TERCIO MACHADO SIQUEIRA
O messianismo e sua contraposicao com
Deuteronémio (17,14-20)
RESUMO: O messianismo é sabidamente um movimento bastante ligado ao Reino de Juda.
Entretanto, o estudo de suas crigens em Génesis 49, 8-12 possibilita-nos descobrir os ideais mes-
siénicos na comunidade de Israel, em Deuteronémio 17, 14-20. Estes textos apontam para a exis-
téncia de um movimento ativo e permanente que procurava resgatar e manter os ideais
messiénicos do periodo anterior 4 monarquia.
Messianism is well known as a movement associated with the Kingdom of Judah. Nonetheless,
the study ofits origins in Genesis 49,8-12makes it possible for us to reveal messianic ideas in the
community of Israel, in Deuteronomy 17,14-20. These texts point to the existence of an active
and permanent movement that sought to rescue and maintain messianic ideas of the period be-
fore the monarchy.
A Tora, ou Pentateuco, representa mais do que um cédigo fechado
de leis. A Tora é a pedra de esquina “langada” para estabelecer os funda-
mentos da terra (J6 38,4-7). Como exemplo disso, 0 livro de Deuteronémio
nao pode ser tomado, tao-somente, como um instrumento da histéria anteri-
or & monarquia. Sua “lei proclamada” estende-se através da historia do
povo. Assim, os Profetas Anteriores tém muito a ver com o livro do Deutero-
némio. Tudo isso porque a Tora foi construida a partir da vivéncia do povo
biblico, em Canaa. Portanto, o livro do Deuteronémio e o bloco Profetas
Anteriores se complementam na tarefa de comunicar 0 projeto de Javé para
0 povo biblico.
A tradigao messianica se fortaleceu grandemente nos limites de in-
fluéncia do Reino de Juda. Isto é o que lemos nos escritos do Antigo Testa-
mento (AT). Os textos considerados messianicos tém relagao com os judai-
tas, sejam aqueles ligados a tradigao de Belém (1Sm 16,1-13; Mq 5,1-4), se-
jam aqueles conectados ao circulo politico-religioso de Jerusalém (SI 2; 25m
7,4-16). O messianismo, entre as tribos do Norte, ainda é um desafio para os
estudiosos e as estudiosas do AT.
Apesar de a tradigao messidnica ter-se expandido, no Sul, apés a
morte do rei Davi, em meio as desilus6es com os monarcas da dinastia davi-
dica, é possivel detectar elementos da esperanga de ter um lider, com ca-
racteristicas tribais, bem antes do estabelecimento da monarquia em Isra-
el. As marcas historicas desse projeto messianico encontram-se no dito so-
bre Juda, como parte das béngaos de Jacé (Gn 49,8-12).
[319] 167A nossa tentativa, nesta pesquisa, ێ encontrar elementos dessa an-
tiga tradigao em outros textos do AT. O texto de Dt 17,14-20 - denominado
“lei real” ou “direito do rei” — pode ter ligagdes com a primitiva tradicao
messianica. Primeiramente, vamos concentrar a nossa pesquisa sobre e:
tes dois textos, pois eles poderao langar luzes sobre o anseio de um lider,
no periodo tribal.
1. “Até que venha o comandante”
Quanto ao dito sobre Juda (Gn 49,8-12), qualquer abordagem sobre
adatae a origem exige uma analise mais complexa. Estamos propondo @
a origem deste texto seja anterior ao periodo da monarquia e, para tante
trabalhamos com trés raciocinios:
1) Embora nao seja um argumento determinante para julgar a anti-
guidade, o fato de este texto estar localizado no Pentateuco pode pesar em
favor de uma datagao pré-monarquica. Afinal, o Pentateuco nao faz referé:
cia a cidade de Jerusalém.
2) Os ditos sobre as tribos sao tipicos para o periodo pré-monar
quico. Esta é uma observagao feita por Milton Schwantes, em seu artigo
ainda nao publicado, “Marcas de um projeto politico-messianico de Juda”
Em seu argumento, Schwantes afirma que “tais ditos teriam seu ‘lugar ¥
vencial’ no encontro das tribos, seja por ocasiao de agées militares conjun-
tas (Jz 5,14-18) ou para outra solenidade (Js 24)". Claus Westermann confir-
ma essa hipotese, afirmando que a béngao de Jacé é uma colegao de ditos
muito antiga cuja origem é do periodo tribal’. Essa colegao de ditos pode se
caracterizada como a histéria primitiva do convivio das doze tribos, antes
do periodo monarquico.
3) Esses ditos (Gn 49,1-28) mostram, através de detalhes, as diferen-
tes caracteristicas das tribos israelitas. Os ditos sAo como retratos que fo:
necem valiosas informagées sobre a primitiva histéria dos hebreus. Enfim.
eles ajudam a penetrar na vida e historia de Israel como povo de Deus. Por
exemplo, no dito sobre Juda (Gn 49,8-12), a expresso “até que venha xiloh™
(v. 10b) precisa ser estudada com mais profundidade. Considerado um te
mo inexplicavel’, a alternativa para buscar o significado de xiloh é anal-
sA-lo no contexto literario da pericope. Assim sendo, o dito sobre Juda abre
com uma referéncia elogiosa a Juda, por sua competéncia e, conseqiiente-
mente, sua superioridade na defesa dos interesses das tribos (v. 8-9). Jud=
foi, realmente, uma tribo que se destacou no contexto do territério localiz=-
1. Claus WESTERMANN, Handbook to the Old Testament, Londres, SPCK, 1969, p. 52.
2. Conforme Ludwig KOHLER e Walter BAUMGARTNER, Lexicon in veteris testamenti libros. Le~
den, E.J. Brill, 1958; sugestao de leitura: Marcos Paulo Monteiro da Cruz BAILAO, “Até que venha Si
Um estudo do messianismo pré-monérquico a partir de Génesis 49,8-12, S40 Bemardo do Campo, Unives
sidade Metodista de Sao Paulo, 1994, 196p. (dissertagao de mestrado).
168 [320]do no sul de Israel, antes do advento do Estado (século XI a.C.). O sucesso
do governo de Davi nao se prende exclusivamente a sua pessoa, mas a he-
ranga de organizagao da tribo de Juda. Infelizmente, temos pouquissimas
informag6es sobre as atividades das tribos, nesse periodo.
Na formagaéo e organizag&o tribal, cada tribo precisava de um lider
ou comandante militar. Mostrando que Judaé desempenhava uma forte lide-
ranga entre as tribos sulistas e, provavelmente, na falta de um comandante
para manter a sua posigao de superioridade naquela regiao, os v. 10-12 fa-
zem mencao da necessidade de um lider tribal e militar. Dessa forma, o ter-
mo hebraico xiloh é, provavelmente, um lider ou comandante tribal, uma fi-
gura valiosa e sempre esperada dentro do contexto politico-religioso.
As formulag6es do texto de Gn 49,8-12 nao possibilitam a conclusao
de que o termo xiloh se refere a expectativa de um futuro rei de Israel. A es-
peranga desse comandante tinha como objetivo a manutengao da suprema-
cia de Juda, no cuidado com as demais tribos israelitas diante dos agresso-
res inimigos, durante o periodo tribal. O termo ‘amim “povos” (v. 10), refere-
se, inicialmente, aos clas ou familias israelitas (Jz 5,14), endo a figura do rei.
Portanto, este texto nao possibilita argumentar em favor da expectativa de
um futuro rei. Assim, xiloh 6 uma figura do povo que carregava uma marca
de um defensor e salvador. Segundo a descrig&o de Gn 49,8-12, o seu co-
mando destinava-se a trazer seguranga e paz para todas as familias. Ov. 12
retrata a opiniao das pessoas que se beneficiam com essa lideranga. As fa-
milias véem beleza no rosto de seu lider e protetor.
Em resumo, a tradigéo messianica tem uma histéria que comega bem
antes do estabelecimento da monarquia. Anterior a ela, existia um movimen-
to que esta refletido nos textos de Gn 49,8-12 e, provavelmente, de Dt 17,
14-20. Na cronologia da histéria de Israel, Deuteronédmio veio depois de Gé-
nesis, entretanto o que importa é a constatagao de que o povo carregava a es-
peranga de que uma figura humana especial viesse sempre ocupar um lugar
de lideranga e comando. Nao importa que estes dois textos tenham algumas
ligag6es literérias com Jerusalém. O que é importante é perceber que eles
mostram fortes ligagdes com a ideologia tribalista do Norte de Israel.
2. O rei substitui o comandante
Seria correta esta observagao? E provavel que sim, pois amonarquia
foi o sistema de governo aprovado pelos anciaos de Israel (18m 8,1-9). Para
reforgar a veracidade desta afirmagao, é preciso analisar a unidade literaria
de Dt 17,14-20. Esta se encontra inserida no bloco (Dt 16-18) que contém
disposig6es referentes as seguintes autoridades: para o juiz (16,18-20;
17,8-13), para o rei (17,14-20), para o sacerdote (18,1-8) e para o profeta
(18,9-22). Tais disposigdes sugerem que Israel vivia numa época tardia de
sua monarquia, pois reflete uma lideranga bastante complexa e estratifica-
(321) 169da (séculos VIII e Vil a.C.). Dentre estes quatro cargos de lideranga, o rei so-
bressai-se diante das demais fung6es de lideranga. Ha razées circunstanci-
ais para a valorizagao do rei como lider maior do povo. Uma leitura exegéti-
casobre Dt 17,14-20 trara informagoes valiosas sobre o lugar da experiéncia
que o texto vivencia, bem como sua intengao. A provisdo para a instalagao
deumrei sobre as tribos de Israel divide-se em duas partes. Primeiramente
vamos analisar a forma literaria com a qual esta disposigao esta formulada.
Este texto se apresenta formalmente como uma regulamentagao casuisti-
ca: os casos-lei— “quando entrares para a terra...” (v. 14a+b+c) e “e acon-
tecera quando assentar...” (v. 18a) -e as conseqiiéncias — “eu estabelecer
sobre ti um rei” (v. 14d) e “ele devera escrever para sia copia desta torah”
(v. 18b). Estes dois casos-lei recebem, naturalmente, duas regulamenta-
goes. Na primeira provisao para a chegada em Canaa, o Deuteronémio pres-
creve a escolha de um rei. Para tanto, o texto regulamenta:
A. Ocaso-lei (v. 14a-c). Tecnicamente, a formulagao deste verso esta
perfeita, pois ele comega com a particula hebraica ki “se”, “quando”. O ca-
so-lei 6 uma descrigdo que aponta para uma situacao particular quando al-
gumas ages prescritas devam ser tomadas. Assim, 0 v. 14 vivencia todo
um tempo que postula a introdugao do reinado em Israel. A historia biblica
mostra que a monarquia foi aceita depois de muita turbuléncia politica (Jz
9,7-15; 1Sm 8,1-22).
B. As conseqiiéncias (v. 14d+e-17). As conseqiiéncias do estabele-
cimento das tribos em Canaa estao ordenadas em duas instrugoes: Primei-
to: O v. 14d+e assinala a determinagao - “eu estabelecerei sobre ti um
rei...” Esta prescrigao altera a organizagao social do povo. Em segundo lu-
gar, os v. 15-17 referem-se a agao para efetivar a decisao de ter um rei.
Assim, as primeiras provis6es para a instalagaéo de um rei recebem
aqui dois tipos de restrig6es: ser escolhido por Javé e ser submetido a opini-
do do povo (v. 15-17). Estas condigées restritivas sinalizam que esta com-
cepgao de monarquia é diferente daquela instituida em Jerusalém. A forma
de escolha do rei, em Jerusalém, é dinastica. Eis aqui um detalhe importan-
te nesta analise sobre a ligagao entre o messianismo e Dt 17,14-20.
O primeiro bloco de restrigdes (v. 15-17) revela alguns detalhes mui-
to esclarecedores para a nossa analise:
a) Ov. 15 discursa sobre a escolha livre do povo para ter um rei. O tex-
to nao fala sobre a sucess&o dindstica automatica, pois esta é uma novidade
de Jerusalém, embora o v. 20 dé a entender essa possibilidade. Todavia, so
mente o fato de o texto destacar a participacao do povo, nessa escolha, mos-
tra que ha uma divergéncia com a instituigao monarquica de Jerusalém
b) Ainda o v. 15 mostra uma imposigao sobre 0 modo de escolher o
rei: ele deve ser eleito por Javé. O povo pode participar da escolha, mas =
palavra final pertence a Javé. Como se vé, o texto mostra que ha uma parte
170 (322)cipagao das duas partes: Javé “elege”/bahar e 0 povo “estabelece”/sum.
Este verbo tem o sentido de empossar. Estas duas primeiras restrigées ja
apresentam divergéncias com aquilo que era praticado em Jerusalém.
c) Umaterceira imposigao de limite refere-se a escolha de estrangei-
ro paraa fungao de rei. A palavra hebraica para estrangeiro, usadano texto,
é nokri, uma pessoa bastante discriminada na sociedade israelita. E inte-
ressante observar que 0 livro do Deuteronémio usa o termo ger com muito
cuidado, pois ele é um estrangeiro residente, com status especial (Dt 14,29;
16,11.14). Na época da reforma josianica (622 a.C.), o ger desempenhou um
importante papel, por ser um cidadao protegido e de uma certa maneira
querida pela populagao. Um outro estrangeiro aceito é 0 toxab “héspede”
(S139,13). A restrigdo ao nokri “estrangeiro nao residente” , para ser escolhi-
do como rei, faz parte da praética discriminatéria daquela pessoa que nao
tem ligagao consangitinea ou afetiva com o povo israelita (Dt 14,21; 15,3;
23,21; 29,21). Embora Jerusalém rejeitasse qualquer interrupcao da dinas-
tia davidita (conforme 2Rs 11,1-20; 21,23-24), essa legislagéo tem muito a
ver com 0 Reino do Norte.
d) Nos v. 16-17, as restrigdes so ampliadas e assumem um carater
profético. O reindo pode possuir cavalos (v. 16), mulheres (v. 17a) e dinheiro
(v. 17c). Como uma censura profética de Amés e Oséias (século VIII a.C.),0
Deuterondémio profbe o uso de cavalos nas guerras de conquista. Esta legis-
lagao esta muito proxima e afinada com a critica dos profetas do Norte (Am
2,15; 4,10; 6,12; Os 1,7; 14,4). Amés, por exemplo, refere-se aos cavalos como
espolio dos inimigos e instrumento de agressao contra o povo indefeso e
trabalhador. A agilidade do exército inimigo depende basicamente do ca-
valo e das suas charretes. O Reino do Norte conheceu e experimentou na
propria came a excessiva violéncia desses instrumentos de guerra, na con-
quista assiria (Is 5,28). Por outro lado, a multiplicagao dos cavalos poderia
trazer uma crise de alimento, jA que Israel nao dispée de suficientes terras
de produgao agricola. Assim, 0 cavalo era uma dupla ameaga.
e) O v. 17a legisla contra os excessos das cortes. A instrugéo para
que o pessoal da corte nao venha multiplicar para simulheres tem sua razao
de ser. Basta lembrar as criticas do historiador deuteronomista dirigidas a
Salom4o, em Jerusalém (1Rs 11,1-13), e os empreendimentos internacio-
nais de Acab e a secularizagao de sua corte, unindo-se a fenicia Jezabel
(1Rs 16,29-34).
f) Por fim, o v. 17¢ condena, também, a ganancia e o actmulo de ri-
queza, em seu beneficio. Esta lei real é muito severa, e ela é 0 resultado de
muitas experiéncias negativas na histdria dos reis de Israel e de Juda. Ela
proibe ao rei tudo que esta ao alcance da pratica do monarca: cavalos de
guerra, sistema financeiro particular e harém.
Todas essas instrugées, positivas ou negativas, sao sublinhadas
com uma justificativa: “para que seu coragao nao desvie derumo” (v. 17b).
[323] 171O segundo bloco de restrigdes estende-se do v. 18 ao v. 20. A ativida-
de prescrita para o rei, idealizado nesta lei do Deuteronémio (17,14-20), con-
siste também em estudar a Tora. O estudo da Tora é uma necessidade basi-
ca, nado somente para o rei, mas para todo povo que assume grandes proje-
tos (conforme Js 1,4-9). Para o AT, nao ha missao e projeto de vida societaria
sem passar pelo conhecimento da instrug4o divina. Antonius H.J. Gunne-
weg" sugere que a intengao dessa legislagdo tenta transformar o rei em
uma espécie de rabino-mor. Todavia, parece que estando é aintengao da lei
real. Vejamos! Os v. 18 e 19 estabelecem duas responsabilidades seqiien-
ciais para o rei: A primeira é que “ele devera escrever num livro, para seu
uso, uma copia desta Tora” (v. 18b). A segunda responsabilidade prescreve
que “ela (= a Tora) ficaré com ele (= rei), e ele a lerd todos os dias de sua
vida" (v. 19b). Como se vé, a segunda instrugdo depende da primeira.
Estas duas responsabilidades estaéo amplamente justificadas nos v.
19c-20. Elas estao marcadas pela preposigao le-ma‘an “para que” (v. 19ce
20d). Esta conjungao encabega uma série de responsabilidades que 0 rei as-
sume em sua fungao de governar. O rei devera tomar a Tora de forma sériae
pratica. O texto hebraico usa express6es fortes para caracterizar as respon-
sabilidades do rei: Je-ma‘an yilmed le-yir’ah ‘et yahveh “para que aprendas
atemer a Javé” (v. 19c), li-xmor ‘et-kol-dibre ha-torah “para observar todas
as palavras da Tora” (v. 19d), ela-‘asotam “para pér em pratica” estes esta-
tutos (v. 19e). A seqtiéncia dos verbos neste v. 19 é significativa. A finalida-
de maior de qualquer aprendizado nao é actmulo de conhecimento, mas 2
pratica dele nos atos de governo. Mais significativo, ainda, sAo os dois
exemplos de pratica que 0 texto fornece, e 0 povo deve seguir. Aqui, é sur-
preendente o desfecho da primeira recomendagao. O estudo e 0 conheci-
mento da Tora encerram-se em um exercicio simples, mas profundamente
importante para o estabelecimento da vida integra de uma comunidade:
“para que nao se levante seu coragao sobre seus irmaos” (v. 20a). A segun-
da recomendagao é subordinada 4 anterior: “para que ele nao se desvie
desse mandamento” (v. 20b).
Por fim, a conjungao Je-ma‘an “para que” (v. 20d) abre a explicitacao
das conseqiiéncias que levardo o rei a guardar e estudar a Tora: “para que
faga prolongar os dias do seu reinado”. A segunda prescrigao (v. 18-20) con-
centra um valor superior ao da primeira (v. 15-17).
3. A ideologia messianica em Deuteronémio 17,14-20
Tentamos, até aqui, ler o dito de Juda (Gn 49,8-12) e a lei real (Dt
17,14-20) para encontrar uma possivel ligagao entre estes dois textos, no
3. Antonius H.J. GUNNEWEG, Teclogia biblica do Antigo Testamento, Sao Paulo, Teolégica/Ec
goes Loyola, 2006, p. 169.
172 [324]que concerne a ideologia messianica. Dessa leitura, algumas conclusoes fo-
ram feitas.
A. A forma literaria desses dois textos nao apresenta uma aparente
conexéo. Todavia, nao entendemos que tal nivel de conex4o possa determi-
Mar, ou nao, uma ligag&o entre estas duas unidades literarias. O dito de
Juda faz parte de uma extensa pericope que abarca cerca de doze béngéos
de Jacé sobre os seus filhos (Gn 49,1-28). Trata-se de uma colego de ditos
tribais (conforme Dt 33,1-29). Enquanto isso, 0 texto do Deuteronémio apre-
senta-se na forma de uma lei casuistica, legislando sobre 0 direito do rei. Em
conseqtiéncia disso, é possivel pensar que estas unidades literarias proce-
dem de distintos ambientes vivenciais e diferentes datas. Portanto, a liga-
Gao desejada tem que ser buscada em outro nivel.
B. O fato de estas duas pericopes apresentarem-se com estas dife-
rengas, no nivel literario, nao nos autoriza a abandonar a questo que nos
propomos tratar neste trabalho de pesquisa. Sem muita delonga, vamos a
primeira hipdtese.
Havia, em todo Israel, uma consciéncia de que o povo carecia de uma
lideranga carismatica que viesse orienta-lo e defendé-lo diante das agres-
ses inimigas, seja no ambiente tribal, seja no contexto do Estado. Isso fica
claro em muitos textos biblicos, particularmente nos dois em questao. O AT
mostra que essa concepgao de governo esta presente nos diferentes perio-
dos dahistéria do povo biblico. Evidentemente que, no periodo tribal, as pre-
tensées de um lider eram diferentes e menos sofisticadas. Como surgimento
da monarquia, a concepgao de lideranga foi alterada, conforme vemos nos
dois textos em estudo. A partir da instalagao da monarquia, surgem dois ti-
pos de lideranga, freqiientemente com caracteristicas e expectativas dife-
rentes. A histéria biblica reporta que, apartir dai, acomunidade israelita pas-
sa a esperar por dois tipos de lideranga. Por quest6es de espaco, vamos nos
deter no projeto que os dois textos mostram (Gn 49,8-12 e Dt 17,14-20).
C. Otratamento sobre esses dois movimentos é muito complexo. Va-
mos aqui prender-nos no suposto movimento indicado no dito de Juda, que
acreditamos ter conexdes com a lei do rei, no Ambito da tradigao teolégica.
Por que tal suspeita? Simplesmente porque ambos os textos nao mostram
sinais de violéncia e guerra, mesmo no texto do Deuteronémio que foi redi-
gido no ambiente do Estado. O dito de Juda promove a paz refletida no util
jumentinho amarrado a uma videira e no rosto sorridente dos agricultores
(49,11-12). Enquanto isso, o xiloh é um comandante carismatico muito se-
melhante aos lideres tribais. Ele promove a vida e a paz entre 0 povo, prepa-
rando as tribos para a defesa, diante dos inimigos conquistadores e opres-
sores. Por outro lado, a lei do rei segue a mesma tendéncia. Suas instrugdes
nao incluem a promogao da guerra e a subjugagao dos inimigos, confor-
me relatao Salmo 2. Aescolha do seu lider, o rei, impée duas restrigées:
a primeira diz que a escolha do rei deve passar pela aprovagéo do povo
[325] 173(17,15-17) e a segunda faz a exigéncia sobre a preservagao e estudo da Tora
(17,18-20). Sao detalhes que aproximam os dois textos. Embora nao mencio-
nando objetivamente, Gerhard von Rad langa luzes sobre uma possivel co-
nexao entre estes dois textos. Gerhard von Rad observa que “o direito real
formava, na realidade, uma espécie de corpo estranhono Deuteronémio™.
D. A lei do rei nao é considerada um texto messianico®. Estes exege-
tas ndo visualizam uma conex4o com o movimento messianico.
Todavia, dois estudiosos acendem uma luz que possibilita uma dis-
cussdo sobre o messianismo no texto de Deuteronémio. O primeiro é Ger-
hard von Rad®. Ele silencia sobre a possibilidade de a pericope (Dt 17,14-20)
pertencer a grupos de tradig&o messianica. Ele tece dois comentarios bem
interessantes que ajudam a esclarecer o lugar e a intengao deste texto. Em
primeiro lugar, ele sugere que alei real formava uma espécie de corpo estra-
nho no livro do Deuteronémio. Segundo, ele observa que havia uma diver-
géncia entre a politica real de Jerusalém e as antigas tradigdes tribais do
resto do territério israelita. Estas duas constatagées concorrem para forta-
lecer a hipdétese que o movimento messianico, ao longo da histdria biblica.
atuou e se diversificou, constituindo varios grupos, embora dois deles te-
nham sobressaido: o messias rei-pastor e omessias rei-guerreiro. Evidente-
mente que os ditos sobre Juda e a lei do rei carregam as caracteristicas do
messias-pastor.
O segundo exegeta a fazer interessantes observagées sobre Dt 1%
14-20 6 E.W. Nicholson’. Em sua obra, Nicholson aponta para dois pontos in-
teressantes que langam luzes para a discussao sobre a influéncia messiani-
ca: Primeiramente, alei do rei guarda pouco interesse pela instituigao da mo-
narquia. Para ele, o Deuteronémio trata a realeza como uma instituigao im-
portada das nagoes vizinhas®. Segundo, ele cré que os redatores do Deutero-
némio tinham raizes profundas no profetismo do Reino do Norte. Dai, a restri-
aoa realezae, por outro lado, o interesse para coma lideranga carismatica’.
Embora nao mencionando qualquer conexéo com o messianismo
Pedro Kramer’’ também mostra uma possibilidade de discuss4o sobre este
4, Gerhard von RAD, Teologia do Antigo Testamento, Sao Paulo, ASTE, 2* edigao, 2006, p. 83.
5. Frank CRUSEMANN, A Tora - Teologia ¢ historia social da lei do Antigo Testamento, Petrop:
Editora Vozes, 2002, p. 327-332; José Luis SICRE DIAZ, De Davi ao messias— Textos basicos da esperar
messianica, Petropolis, Editora Vozes, 2001; Moshe WEINFELD, Deuteronomy and the Deuterono:
School, Oxford, At the Clarendon Press, 1972; Edesio SANCHEZ, Deuteronomio, Buenos Aires, Edi
Kairos, 2002 (Comentario Biblico Iberoamericano); Pedro KRAMER, Origem e legislagdo do Deuter
mio, $40 Paulo, Paulinas, 2006.
6. Gerhard von RAD, Teologia do Antigo Testamento, p. 82-83.
7. E.W. NICHOLSON, Deuteronomy and Tradition, Oxford, Basil Blackwell, 1967.
8. E.W. NICHOLSON, Deuteronomy and Tradition, p. 50.106.
9. E.W. NICHOLSON, Deuteronomy and Tradition, p. 69.82.
10. Pedro KRAMER, Origem o logislagao do Deuteronémio.
174 [326]tema, pois ele trata este livro como um programa de uma sociedade sem
empobrecidos e excluidos.
Lig6es que ficam
Discutir a antiguidade dos dois textos em questao (Gn 49,8-12 e Dt
17,14-20) é tarefa secundaria para os objetivos desta pesquisa. Certamente,
alei real é mais tardia, porém o importante é que ela contém elementos an-
teriores 4 redag&o deuteronomista (século VII a.C.). Entretanto, o que im-
porta, aqui, é situar a identidade deste projeto com aquele exposto no dito
de Juda. O que transparece objetivamente nestes dois textos é 0 projeto do
Uder carismatico para Israel que venha contrapor-se ao programa de um rei
ditador e violento. A critica, exposta nestes dois textos, esta bem documen-
tada, especialmente em Jz 9,7-15 e 1Sm 8,1-14. Basicamente, esse movi-
mento nao contesta a instituigao do rei como tal, mas tece duras criticas a
sua ideologia de governo monarquico. A origem dessa contestagao esta en-
tre os pastores e agricultores, povo pobre que vivia na periferia dos centros
agricolas de Israel.
Para entender esse movimento, que carrega aideologia messianica,
épreciso conhecer a critica profética contra os monarcas. Conforme a critica
da lei real (Dt 17,17), o rei acumula riqueza, explora e empobrece o povo tra-
balhador (conforme 1Sm 8,10-18); ele também constroi uma ideologia capaz
de ofuscar os olhos do povo crente e fiel, contestando, até mesmo, a autori-
dade de Javé (8,7-8).
Portanto, a lei real procura legislar em favor do rei, um auténtico li-
der carismatico, que nao venha agir conforme os governos de Israel e Juda,
isto é, multipliquem cavalos para as suas guerras de conquista, fagam cres-
cer os seus haréns e enriquegam as suas contas particulares. Para que isso
nao acontega, o Deuterondédmio estabelece 0 direito do rei: observar a Tora,
lendo-a e praticando-a diariamente. Esta constante pratica sera um sinal
para que ele nao seja um opressor e espoliador de seus irmaos stiditos. Com
isso, é possivel encontrar a ideologia messianica na figura do rei idealizada
no direito do rei (Dt 17,14-21).
A tradig&o messianica nasceu e se concentrou, prioritariamente,
nos limites de influéncia do Reino de Juda. Todos os textos considerados
messianicos tém relagao com os judaitas, seja aqueles ligados a tradigao de
Belém (1Sm 16,1-13; Mq 5,1-4), seja aqueles conectados ao circulo politi-
co-religioso de Jerusalém (SI 2; 2Sm 7,4-16).
Apesar de a tradic&o messianica ter-se expandido apés a morte do rei
Davi, em meio as desilusées com os monarcas da dinastia davidica, é possi-
vel detectar elementos da esperan¢a de um lider, com caracteristicas tribais,
bem antes do estabelecimento da monarquia em Israel. As marcas histéricas
desse projeto messianico encontram-se no dito sobre Juda, como parte das
[327] 175béngaos de Jacé (Gn 49,8-12). A nossa tentativa 6 encontrar elementos dessa
tradigao em outros textos do AT. O texto de Dt 17,14-20 — denominado “lei
real” ou “direito do rei” — pode ter ligagdes com a primitiva tradigdo messiani-
ca. Vale a pena concentrar a nossa pesquisa sobre estes dois textos, pois eles
poderao langar luzes sobre o antigo messianismo tribal.
‘Tércio Machado Siqueira
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