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Luiz-Olyntho Telles da Silva

Luiz-Olyntho Telles da Silva*

O presente trabalho busca explorar os efeitos de um ato falho produzido


pelo analista Jacques Lacan no desenrolar de uma análise. O analisante
– mais tarde também analista – é quem conta a história através de um
relato muito sensível de sua própria análise. À época do episódio, já
imbuído do desejo de tornar-se analista, ele está concluindo a Faculda-
de de Medicina e às voltas com uma neurose obsessiva de alto custo
para suas relações profissionais (fora um Agrônomo bem-sucedido) e
especialmente para as relações familiares. Judeu tunisiano, ele havia
renegado a religião na adolescência, devido aos conflitos com o pai. No
transcurso da análise, no entanto, ele se reconcilia com a religião, tor-
nando-se mesmo um estudioso da Torá e tirando dela uma grande con-
tribuição para a teoria da interpretação na Psicanálise.

Atenção flutuante. Ato falho. Complexo de Édipo. Epifania. Identifica-


ção. Interpretação. Lógica. Objeto a. Passe. Significante. Sonhos.
Criança, ama com fé e orgulho a terra em que nasceste.
Olavo Bilac

Blut ist ein ganz besonder Saft. [É o sangue um licor especialíssimo.]


Fausto, Goethe, I, v. 1746 (Trad. Agostinho D’Ornellas)

Os casos clínicos que conhecemos em geral são relatados por aquele


que conduziu a cura; em nossa área, pelo analista. De quando em quando,
contudo, aparece algum analista contando algo de sua própria análise, en-
quanto analisante.
Inesquecível o relato de Smiley Blanton, publicado por sua viúva,
Margaret Gray Blanton, intitulado Diário de Minha Análise com Freud
(1974). É ainda hoje um texto muito corajoso, em que ele nos conta a inti-
midade de seus sonhos, assim como fez o próprio Freud ao inventar a Psi-
canálise. Mas o livro, como ele mesmo diz, é um diário das sessões (entre
1929 e 1938), preocupadas sobejamente com aspectos literários e com a
teoria psicanalítica de recente construção. Blanton parecia estar mais inte-
ressado em aprender uma técnica, e as coisas que conta têm a ver antes com
um mal-estar geral do que com o reconhecimento de um sintoma. De qual-
quer modo, ele coloca na boca de Freud coisas muito interessantes, tais
como a seguinte alocução: “Ao desenvolver uma nova ciência, deve-se fa-
zer as teorias de forma não muito precisa. Não se pode fazer as coisas bem
delimitadas. Mas, quando se escreve, o público exige que se tenham as
coisas bem definidas, pois de outro modo crê que não sabemos o que
estamos dizendo” (sessão de 6 de março de 1930). Freud está naquele mo-
mento com seus 74 anos e sabe que há ainda muito trabalho pela frente.
Depois dele, houve outros relatos, inclusive de análises com Lacan, e
todos nos dizem algo da relação transferencial com seus analistas. Em ge-
ral, constituem-se em uma forma de agradecimento.
Entre esses relatos, talvez o mais recente seja o de Gérard Haddad
(2002). É sobre ele que irei me deter.
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Gérard vem de uma família de judeus tunisianos. Seu pai quer que seja
médico. Se tiver de ser, será um psiquiatra, um médico de loucos, um modo
de deslustrar o título – como ele o diz – e agredir o pai; o que o faz também
se declarando ateu. Sua adolescência coincide com o processo de indepen-
dência da Tunísia, momento de uma torrente cultural vinda da França. Te-
atros, conferências, recitais, livros, livros e livros. Entre eles, uma Introdu-
ção à Psicanálise, escrita pelo próprio Freud, deixa-o apaixonado: fazer
uma Psicanálise tornou-se um sonho. Aí estava o caminho para livrar-se da
infelicidade proporcionada pelos problemas sexuais da adolescência. Mas
a vida dá voltas. Quando vai visitar a namorada, S., que conhecera um ano
antes, em Paris, durante as férias, encontra-a, para sua surpresa, internada
em um Hospital Psiquiátrico, em Munique, aos gritos, em um pavilhão de
agitados. Gérard fica horrorizado e se convence de não ter as forças neces-
sárias para combater a loucura, jogando fora as armas antes de tê-las usado
– como ele nos diz. Na verdade, temos de dizê-lo, nesse momento ele nem
mesmo conhecia os instrumentos disponíveis. Desarvorado com sua deci-
são, depois de ter se preparado durante todo o secundário para a Faculdade
de Medicina, ele resolve dedicar-se ao trabalho agrícola, para desespero de
seu pai, que já o imaginava um camponês, um fellah. O professor encarre-
gado de examiná-lo para o ingresso na escola agrícola, porém, entusiasma-
do com as boas notas de seu currículo, encaminha-o para a Faculdade de
Agronomia. Gérard Haddad torna-se agrônomo, especialista em rizicultura,
casa-se, tem dois filhos e vai muito bem no seu trabalho. Publica um livro
sobre sua adolescência, elogiado por Simone de Beauvoir, e que ele supõe
ter estimulado Sartre a escrever o seu Le Mots. Seu interesse literário e
pelas esquerdas leva-o a encontros interessantes, entre eles, com Louis
Althusser, a quem reconhece como seu maître à penser. Mas também co-
nheceu um psiquiatra, o Dr. G., com quem começou uma psicoterapia de
inspiração analítica. Embora preferisse uma escuta, o Dr. G. lhe receitava
calmantes, mas também o fez escutar o nome de Lacan pela primeira vez.
Seu casamento com A., uma gói italiana, é difícil. Seus sintomas obsessi-
vos incomodam, e ele não perde a esperança de fazer uma análise. Tentou
fazê-la com Octave Mannoni, que a considerou impossível, uma vez que
nessa época Gérard Haddad trabalhava na África. É depois dessas andanças
que – em uma passagem por Paris – resolve telefonar para a Clínica do Dr.
Lacan, na esperança de analisar-se com um de seus alunos. Recebe-o o
próprio Lacan, e a análise então começa.
O relato de Gérard Haddad não é modesto. Ele reclama para si nada
menos que as palavras de Rousseau na abertura das suas Confições: “Fundo
um empreendimento que nunca teve exemplo e cuja execução não terá
imitador”. Veremos o quanto ele busca fazer justiça a essa epígrafe.
Seu livro esparrama-se ao longo de 12 capítulos, e centrarei minha
análise em um deles, o antepenúltimo.
Antes de continuar, um porém: a análise que buscarei será empreendi-
da sobre [a tradução d]o texto publicado, em que o autor supõe um analista.
O que Lacan mesmo pensava sobre esse analisante, não tenho nenhuma
notícia.
O episódio por mim escolhido coloca em destaque esse fenômeno tão
comum nas análises e que os tradutores brasileiros de Freud deram por
chamar de parapraxias: as Fehlleinstungen. Isso que, com Lacan, passamos
a incluir nas formações do inconsciente, no caso um ato falho. Na situação
em exame, tratava-se de um verhören, um lapso de audição. E mais, um
lapso, um verhören do analista. Não é raro que isso ocorra.
Freud (1912) recomendava aos analistas escutar aos analisantes com
uma atenção muito especial, com uma atenção flutuante, com uma
gleichshwebende Aufmerksamkeit (p.171),1 quer dizer, com uma atenção
que dá, por princípio, o mesmo valor (gleich) a todas as palavras. É assim
que ele recomenda ao analista tomar o texto do analisante como a um texto
sagrado, um texto no qual todas as palavras têm o mesmo valor. A diferença
entre uma e outra, Lacan nos oferece para pensar, está em seu valor
significante, quer dizer, em seu valor de representação do sujeito para outro

1
A tradução brasileira diz atenção uniformemente suspensa. (FREUD, S. Recomendações aos
Médicos que Exercem a Psicanálise.In: ______. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
v.XII, p.149-150).
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significante, dentro de uma cadeia. E esse significante, basicamente um
som, sem um significado especial, quando toca o ouvido do analista, pro-
voca uma reação; podemos dizer mesmo que desperta no analista uma rea-
ção muitas vezes com valor de interpretação. O lapso de audição, nesse
caso, pode ser tomado como um indicador da atenção gleichshwebende,
equiflutuante, por parte do analista.
Aqueles que conhecem o relato de Gérard Haddad, O Dia em que
Lacan me Adotou, já terão identificado o episódio em destaque: aquele ao
qual ele se refere como leucemia: A “leucemia” do Dr. Lacan.
Trata-se de algo muito simples: depois de uma noite difícil, em que o
analisante havia brigado mais uma vez com sua mulher, a quem durante
todo o relato chama de A., começa sua sessão por estas palavras:
“– J’ai passé une de ces nuits!”
Ato contínuo, o analista, como que arrancado da sonolência de sua
tarde (a expressão é de Gérard Haddad), despertado pelo significante, eu
diria, interpreta:
“– Quoi? Comment? Vous avez la leucemie?”
une-de-ces-nuits
la-leu-ce-mie
Observem como no francês ocorre uma certa homofonia entre as duas
expressões. Seja como for, o fato é que o analista interrompe a sessão exa-
tamente no momento em que o analisante protesta, dizendo nunca ter fala-
do em leucemia.
Haddad, nesse momento, depois de muitas voltas – entre as quais sua
entrada na Faculdade de Medicina para poder tornar-se e praticar como
analista –, está por terminar a Faculdade, sua segunda Faculdade, e, para
tal, lhe faltam alguns exames. É para aí que ele dirige o valor da interpre-
tação, ainda que com uma frase ambígua: Tenho leucemia... Nesse mo-
mento, Haddad já se analisa com Lacan há mais de sete anos, o que, se
não é muito, também não é pouco. Digo isso apoiado em um tempo lógi-
co, no qual se pode ver o que ele conseguiu até aí e o que não. Ele já sabe
da importância de tomar em consideração as palavras do analista, ainda
que essas sejam enigmáticas. A transferência é a base de sustentação ne-
cessária para esse crédito. Põe-se, então, a estudar a leucemia, convenci-
do de que isso teria a ver com suas provas, e o resultado não foi outro: em
seu exame principal o ponto sorteado será o de hematologia, onde ele se
sai muito bem.
Contentíssimo, apresenta-se à sessão seguinte, em que sua agitação
explode nas seguintes palavras: Sabe, eu de fato peguei a leucemia, peguei-
a nas provas clínicas. E em seguida arremata: É magia! Ao que o analista
considera: Não se trata de mágica, mas de pura lógica. E o analisante, já
adentrado suficientemente nos estudos teóricos, dá-se conta, ainda que com
muitas interrogações, tratar-se aí da lógica do significante.
Era algo que tinha a ver com ele e só com ele. Com um colega de
análise, em análogas circunstâncias, por exemplo, a análise não tem o mes-
mo efeito e o sujeito não consegue terminar sua faculdade. O que estava em
jogo aí era o seu particular desejo.
É possível que pudesse terminar por aqui essa análise. Considerado o
desejo, no momento em que o analista capta a força do significante, esse
arrasta consigo o que for preciso para sua realização. Trata-se de lógica, e
não de sorte. Comigo aconteceu o contrário: ainda adolescente, fiquei para
um exame de segunda época em Latim. Era preciso saber a tradução de – se
bem me lembro – 11 textos. Pois consegui decorar 10 deles, e o sorteado foi
justamente o que eu não sabia. A lógica: eu não sabia nenhum, apenas os
tinha decorado.
Mas esse episódio é apenas uma parte, uma pequena parte de um longo
capítulo do relato; um capítulo que vai de suas primeiras preocupações com
o passe2 até o momento de sua autorização como analista. E, no relato dessa
passagem, ele vai abordando uma série de pontos, utilizando uma série de
metáforas, as quais, no seu conjunto, levaram-me a valorizar o episódio da
leucemia como uma chave, como o epicentro de sua análise. Seus desdo-
bramentos nos possibilitam acompanhar a trajetória dessa análise desde a

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passe: autorizar-se analista, na escola lacaniana.
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intersubjetividade com Lacan, conforme ele nos conta (mas também com o
autor destas linhas, se vale o Latim).
A interpretação de Lacan, através de seu verhören, tem uma implica-
ção bem maior, bem mais ampla do que se imagina à primeira vista. Embo-
ra eu não possa afirmar ter o autor do relato se dado conta de todo o alcance
dessa interpretação, posso dizer que, por algum motivo, ele nos apresenta
esses dados desse modo.
Afinal, como é que se consegue dizer exatamente o que se quer se as
palavras não alcançam para tanto? Essa impotência da linguagem pertence
a todos, analistas ou analisantes.
Vejamos então como ele vai encadeando seus tópicos.
Ingressado nos temas mais esotéricos da psicanálise, defronta-se com
um fracasso, o do passe. Fala-se muito, de muitas coisas, mas sabe-se pou-
co, e ele resolve fazer suas próprias descobertas. Compara-se então a Jó,
que não podia mais se contentar com uma fé em Deus transmitida pela
tradição e que desejava uma radical e direta redescoberta de Deus. Ele
quer conhecer o complexo de Édipo em si mesmo, e suas investigações
sobre o objeto a levam-no ao nada, para o aplauso de Lacan.
Vejam, contudo, com a ajuda de qual metáfora ele nos conta ter chega-
do a essa descoberta. Ele a chama de uma epifania. Não bastasse sua preo-
cupação com uma direta redescoberta de Deus, eis que sofre – vou dizer
assim – ao ver clarear diante de si um conceito, uma epifania. Uma vez
alcançado esse nada, ele traz para a análise esse achado, por ele batizado de
filho de uma noite de Iduméia. Nada mais, nada menos. Um filho d’une
nuit.
Já sabíamos de suas preocupações com a questão religiosa, mas o
que transparece nessa noite de Iduméia não deixa de ser surpreendente.
Mesmo porque, ainda guardamos na memória o ocorrido em sua primeira
entrevista com o suposto aluno de Lacan: Gérard está entrando na Rue de
Lile, onde fica o consultório do Dr. Lacan, e, ainda na rua, é invadido por
uma idéia estranha, uma representação que já o visitara em sua adoles-
cência, algo da ordem – outra vez – de uma epifania na qual ele fica de pé,
imóvel e silencioso. Sou todo olhar – diz ele – e esse olhar está virado
para o véu que esconde o Santo dos Santos do Templo de Jerusalém.
Surpreendente para um ateu, não é mesmo? O exame da metafórica noite
de Iduméia nos ajudará a melhor compreender o laço por ele estabelecido
entre Deus e Édipo.
Registremos, antes de tudo, que a Iduméia nem sempre se chamou
assim. Essa região próxima do rio Jordão chamava-se Edom. Apareceu
como Estado nacional no segundo milênio a.C. e, pasmem, por haver se
cumpliciado com árabes e filisteus, quando esses expugnavam Jerusalém,
Edom tornou-se, na literatura profética, o protótipo dos poderes
antiisraelitas e antidivinos, mesmo que sua sabedoria fosse muito estimada
em Israel. Quando Nabucodonosor conquista Jerusalém, os edomitas inva-
dem o território dos judaístas sob pressão dos nebateus, o que provoca
diversas ameaças dos profetas. E, na história posterior, esses edomitas re-
cebem o nome de idumeus. Registre-se a importância da mudança de nome.
Vejam então em que nuit ele vai buscar sua singular descoberta do
significado do objeto pequeno a. Justamente na sapiente noite dos inimigos
de Israel, dos ambivalentes inimigos, eu diria.
Para melhor identificar esse território, vejamos como Isaías o descreve
em sua ameaça:

Os seus córregos [da Iduméia] se transformarão em piche, o pó da sua


terra em breu e o seu chão ficará como piche fervendo.10 Passam dias e
noites e o chão não se esfria, fica soltando sua fumaça para sempre. De
geração em geração fica no abandono, e era após era ninguém mais
passa por aí.11 Seus herdeiros são o pelicano e o ouriço; a coruja e o
urubu fazem aí sua morada. Javé estenderá aí o prumo do caos e o nível
da confusão.12 Não haverá nobres para proclamar um rei, os seus che-
fes desaparecerão.13 Crescerão espinhos em seus palácios e em suas
fortalezas ervas daninhas e urtigas; será morada do lobo, esconderijo
dos filhotes de avestruz.14 Aí vão se encontrar o gato do mato e a hiena,
o cabrito selvagem chamará seus companheiros; aí Lilit vai descansar,
encontrando um lugar de repouso.15 Aí vai se aninhar a cobra, que bo-
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tará, chocará os seus ovos e recolherá sua ninhada em sua sombra; aí se
reunirão as aves de rapina, cada qual com sua companheira. (Isaías 34:
9-15)

Será demasiado tomar essa descrição de Isaías como constituinte do


pano de fundo do psiquismo desse sujeito? Sim, talvez seja, mas não deixe-
mos de notar, contudo, que ele pelo menos aponta para uma difícil identifi-
cação com sua raça. Iduméia representa sua ambivalência em relação ao
judaísmo de seus pais. Não é à toa que ele se casa com uma gói; uma gói
que, resolvida a ambivalência, se converte ao judaísmo.
Talvez pareça terrível a idéia de alguém ter de passar por essa visão de
si mesmo. Pode ser. Mas a verdade é que, nesse caso, a utilização dessa
metáfora permitiu-lhe ir adiante. É depois disso que reconhece a metamor-
fose sofrida na análise com Lacan. Ele passa por aí para chegar ao terceiro
nível de sua formação, que na tradução de Procópio Abreu aparece como
supervisão. Para ele, o primeiro nível consistia na análise propriamente
dita, enquanto o segundo era provido pela participação nos seminários.
Desestimulado por Lacan a supervisionar com o próprio analista, Ha-
ddad procura Claude Conté, um analista da quarta geração, segundo o cri-
tério de Elisabeth Roudinesco. Próximo de Lacan, Conté ocupou diversos
cargos importantes na Escola Freudiana de Paris (EFP), dando, contudo,
alguns passos – eu diria – sem uma boa inspiração. Primeiro, enquanto um
dos responsáveis pelo passe na instituição, cabe a ele comunicar a Juliette
Labin – analista experiente, com vasta clientela e AME (Analista Membro
de Escola) da Escola – a decisão negativa do júri quanto ao seu passe a AE
(Analista de Escola). Ele o faz, e como resposta ela comete suicídio. Esta-
mos em 1977. Na dissolução da EFP, dois anos depois, sua inspiração falha
mais uma vez e ele apóia Miller na Fundação do Campo Freudiano. Leva
um tempo demasiado longo para reconhecer o maquiavelismo maoísta de
Miller e voltar atrás. Haddad diz que ele tem um fim trágico que desconhe-
ço, mas do que não duvido.
Maus passos não eram, porém, o todo de Conté, e ele ajuda decisiva-
mente Haddad em um momento crucial de sua análise já bem avançada: De
saco cheio com as curtíssimas sessões de Lacan, G.H. decide abandoná-lo,
pedindo a Conté que o receba em análise. A resposta ética de seu supervisor
o surpreende: Não, vá vê-lo de novo. É com ele que as coisas aconteceram.
Não se troca assim de analista, sobretudo quando as coisas foram levadas
tão longe.
São passos, todos esses, que o ajudam a clarear sua identificação, a
fortificar seu sangue. De volta ao divã, ele participa de cartéis e destaca um
em que se estuda a Identificação. Aí conhece A.D., uma colega que irá lhe
dar uma grande ajuda, amorosa e mesmo financeira. Ler em A.D. a clássica
abreviatura de Ano Domini não me parece exagero: A.D. será para ele um
pai a abrir caminho até a publicação de seu tão desejado livro.
É nesse clima, com uma possível ambivalência entre A. e A.D. (este A.
com um algo a mais, da ordem do imaginário), que ele vai para a análise
falar de ces nuits, possibilitando a Lacan escutar a já mencionada leucemie,
que o leva a estudar toda a hematologia e particularmente a questão das
anemias. O que G.H. ainda não sabe, o que ele ainda não se deu conta é que
a letra escolhida para identificar sua esposa é o mesmo A com que se iden-
tifica a Autre, com A maiúsculo. Mais adiante, Lacan apontará esse lugar
para ele.
Essa valorização do sangue me remontou à primeira parte do Fausto
de Goethe, quanto Mefistófeles está ultimando a negociação de sua alma e
pede que o contrato seja assinado com sangue. O contexto dá a entender
que Mefistófeles assim o quer, porque se trata, todo ele, de um suco, de um
extrato, de um licor especialíssimo. O que fica dito nas entrelinhas é que o
que o Diabo quer mesmo é esse sangue. É aí que está a vida. Onde está o
sangue, está a atenção – já disse alguém. E a ambivalência de Haddad en-
contrava nessa anemia uma metáfora. Aí estava não a fraqueza de seu san-
gue, mas sim sua fraqueza com relação a seu sangue; vale dizer, com sua
raça.
O que acontece na leucemia? A produção normal de glóbulos brancos
é afetada, os glóbulos não amadurecem para desempenhar suas funções e,
doentes, passam a se multiplicar, tomando também o lugar dos glóbulos
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vermelhos e das plaquetas. O sangue fica aguado. Lembram de ele compa-
rar o conhecimento do Édipo ao conhecimento de Deus, e também de sua
necessidade de contrariar o pai, que tanto gosto fazia por seus estudos de
medicina? Havia mesmo um problema com seu sangue. Custava-lhe che-
gar a essa conclusão. Quando a comissão de exames clínicos lhe pergunta
sobre a síndrome de Garcin, ele não lembra, não sabe tratar-se de um câncer
na cabeça. Mas a lógica do significante é tão potente, que mesmo tendo
sido reconhecida apenas uma de suas partes ela não deixa de produzir seus
efeitos.
Agora ele já pode se ocupar de seu próprio passe. Mas, outra surpresa,
o cenário desse passe não será o ritual proposto pela escola ,e sim o propos-
to pelo bar-mitzvá de seus filhos. O que se ganha dos pais paga-se aos
filhos. No caso, ele paga com os juros da elaboração do Édipo.
Desdivinizada, a identificação já pode passar por trâmites mais simbólicos.
No exame desses trâmites, ele se reconhece um pai patógeno para seus
filhos. Pois esse reconhecimento, nada fácil, com a força de uma castração
simbólica, possibilita mesmo que Lacan o autorize a tomar seus próprios
filhos em análise, ainda que por um curto espaço de tempo. Eis aí um mo-
mento em que se pode apreciar os efeitos de uma destituição subjetiva. Isso
certamente lhe possibilitou adentrar no complexo tema da identificação
primária. Seguindo uma indicação de Lacan, ele se dedica, então, ao estu-
do das culturas semíticas. Pode ser que aí tenha se encontrado com os
idumeus, com os irmãos Esaú e Jacó. Com Esaú, também chamado de
Edom, e com Jacó, que depois de ter lutado com um anjo, e saído vencedor,
tem seu nome mudado para Israel. A experiência do passe, tenha ou não
dado certo, tem sua verdade, e o importante é que essas passagens impli-
cam mudança de nome. A valorização desses passes abre-lhe a possibilida-
de de perceber a verdade contida mesmo na passagem de ano. Esse passe,
denominado Rosh Há-Shana pelos judeus – e ele então se dá conta do sig-
nificado que todas aquelas comidinhas acompanhadas de rezas com fórmu-
las particularíssimas –, é o equivalente a um jantar totêmico. O que se come
aí são fundamentalmente palavras. Esse estalo é tão importante para ele,
que mais tarde o desenvolverá em um livro chamado Comer o Livro. Seu
primeiro ensaio sobre o tema, contudo, é contagiado ainda de sua
ambivalência, e ele não crê no seu valor, surpreendendo-se quando Jacques
Hassoum e Erik Porge, entre outros – e depois o próprio Lacan –, ficam
excitados com sua exposição.
Sua relação com o Talmude já é bastante clara e, inspirado em um de
seus doutores, que dizia ter aprendido mais com seus alunos que com seus
mestres, propõe à EFP um projeto de leitura dos textos de Freud relaciona-
dos à neurose obsessiva, e é aceito.
Essa iniciativa é plena de conseqüências: a primeira relacionada é o
próprio fato de ter seu projeto aprovado por uma instância capaz mesmo de
reprovar projetos de colegas do status de um Leclaire. Verdade que nesse
projeto negado, Leclaire estava associado a Antoinette Fouque, a quem
G.H. chama de Egéria, egéria do feminismo. Egéria é o nome de uma ninfa
que dá conselhos, e esse não é um princípio recomendado pela Psicanálise.
Depois, a questão religiosa, sempre presente, vem dominar a cena. De
uma parte, Françoise Dolto encarnará o lado cristão, buscando evangelizar
a Psicanálise. G.H., aferrado ao Talmude, busca extrair dele contribuições
para a Psicanálise. Ainda que ocupados ambos com a religião, são posições
bem diferentes: enquanto Dolto quer aproximar a Psicanálise da Religião,
fazendo da primeira um braço da segunda, G.H. procura na Religião ele-
mentos que possam contribuir para a leitura da Psicanálise. É assim que ele
instrumenta sua obsessividade. Do Talmude, ele retira elementos que lhe
permitem ler a loucura, mas não só! Daí ele retira também elementos com
os quais consegue dar certos parâmetros à teoria da interpretação. Para tan-
to, apóia-se no cânon do Rabino Ismaël, que abrange um total de 13 regras.
As primeiras das quatro regras com as quais se constitui o discurso do
Midrash são a héqèch, a gezéra chava, a qal vahomer e a binyan av. São
todas muito interessantes: a primeira, a héqèch, é um argumento de assimi-
lação. O termo constitui um substantivo derivado do verbo aproximar, cho-
car dois objetos e, no campo jurídico, assimilar ou pelo menos aproximar
duas espécies jurídicas.
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A segunda regra, a gezéra chava, em hebraico significa ao mesmo
tempo palavra e julgamento. Gezéra chava designa termos idênticos, ou
também Issorhem, palavras semelhantes implicando a noção de analogia.
A terceira, a qal vahomer, é definida como um raciocínio a fortiori.
Qal significa leve em hebraico e designa uma prescrição menos grave ou
mais difícil de observar do que outra, ou simplesmente o que é permitido,
puro, isento de falta; homer significa matéria pesada e, no direito, um man-
damento grave. Uma boa tradução para a qal vahomer seria uma coisa
menos grave e uma coisa mais grave, algo da ordem do oxímoro.
A binyan av consiste em um argumento a contrario, um argumento
para excluir as implicações que podem resultar da Torá. Contrariamente à
analogia que estende o campo de uma norma, ele o restringe. Os elementos
subentendidos da regra são agora excluídos pelo intérprete. O adágio latino
Qui dicit de uno, negat de altero, qui de uno negat, de altero dicit parece
bem expressar essa regra, na qual não seria impossível encontrar as bases
da negação, da Verneinung freudiana.
Enfim, menciono essas regras porque Haddad privilegia uma delas, e
não uma qualquer e nem a primeira e nem a última. Privilegia a segunda, a
gezéra chava. Embora a pronúncia dessa expressão no hebraico possa ser
diferente, proponho lê-las de modo transliterativo, como no nosso portugu-
ês, como g e como ch. Gezéra tem a ver com ligsor, que é igual a nossa
tesoura; chava conota literalmente chácara, fazenda, qualquer pedaço de
terra. Na verdade, leio esta regra assim: Gez-era-a-chave. A letra z pode
soar para nós como s, fazendo o plural de g: gês. Acredito que esse jeu de
mots, que esse calembur faça sentido mesmo em francês, e por isso vou
mantê-lo. Ges era a chave. Ge de Gérard, mas também de gênesis e de je, o
eu francês com o qual Lacan representa o sujeito do inconsciente. São qua-
se sinônimos. Não são? Gerar e gênese? Embora Haddad tenha traduzido a
gezéra chava por transferência significante, seu sentido primeiro é o de
conexões recorrentes. Parece ser a regra por excelência a dar ao Talmude
seu estilo. Aí está! Gerar e gênese são termos recorrentes, ainda que nas
línguas latinas. Em hebraico, para Gênesis, diz-se Bereshit, que significa
no princípio – e interessante que esse princípio não começa com a primeira
letra do alfabeto, e sim e justamente com a segunda, bet. A insistência da
segunda? Talvez para dizer que sem o segundo não é possível pensar no
primeiro! Estamos novamente às voltas com as mudanças de nomes e com
a volta às origens, ao Bereshit, ao princípio da Torá, ao sangue de sua raça.
Se lembrarmos que o desenho da letra bet [ ] representa uma caverna, uma
casa primitiva, talvez fique mais fácil entender que seu projeto de estudo da
neurose obsessiva, ao seguir a proposta lacaniana de retorno a Freud,
engancha-se precisamente em seu caminho terapêutico de retorno às pró-
prias origens, de retorno a casa, tal qual o filho pródigo. Não fosse tudo
isso, a simplicidade da tesoura cortante contida na gezéra e as terras nome-
adas pela chava, os grandes e cultivados arrozais de sua antiga profissão
bastariam para ver que os cortes sofridos em sua análise não estavam sendo
sem conseqüências em sua segunda profissão. Segunda, note-se, tornada
primeira.
Envolvido nesse processo, Haddad nos faz uma singular confissão:
por vezes, quando esperava por sua consulta na biblioteca do Dr. Lacan,
este deixava a porta do consultório entreaberta – não se sabe se inadvertida-
mente ou não –, transformando-o em auditório e, aí, o que é que se escuta?
A primeira frase que ele nos conta ter escutado é a seguinte: Durante toda
a minha análise – dizia um analisante – pensei que o senhor fosse judeu e,
no entanto, o senhor não o é Não é preciso haver trilhado muito tempo o
caminho da Psicanálise para saber que, quando se fala dos outros, algo se
diz da gente mesmo. Ser judeu era sem dúvida uma questão importante
para Gérard Haddad. Por ocasião de sua formatura, seu pai, que tanto que-
ria vê-lo médico, não estava feliz, não queria comemorar com ele, deixan-
do-o só! Queria vê-lo como médico, certamente, mas não assim, tão longe
de casa, tão longe da beit. Gérard ainda está em trânsito.
Impossibilitado de resolver essa difícil questão com seu próprio pai,
elabora-a na análise, lugar apropriado para isso, onde o analista poderá
suportar os papéis necessários a essa durcharbeitung.
Em outra cena desse auditório, Haddad mostra que sua valorização da
Luiz-Olyntho Telles da Silva
religião ainda o leva a confundir aquilo que escuta, obnubilado por sua
subjetividade. Agora é Lacan quem fala a um suposto candidato à análise:
Se você estivesse em seu país – diz Lacan – consultaria um feiticeiro para
o mal de que sofre. Mas aqui, na Europa, você vem ver um psicanalista. E
em seguida acrescenta: Vou enviá-lo a um de meus alunos, que o ajudará a
resolver o seu problema. Suponho que a confusão de Haddad resida justa-
mente, conforme nos conta, em acreditar que, para Lacan, havia uma equi-
valência entre o feiticeiro, ou xamã, e o psicanalista. Uma coisa é que, se
estamos pensando nos quatro discursos propostos por Lacan, ambos pos-
sam ocupar o lugar do agente, mas não podemos esquecer que, ocupado por
um ou por outro, teremos discursos diferentes. Ocupado pelo analista, jus-
tamente pelo a de sua primeira preocupação, um representante do resto,
desse nada de segundo grau, diferente de um nihil inicial, diferente do zero
de origem, teremos um discurso do analista que, se chega a ficar famoso, é
porque cura. Mas ocupado por um xamã, cheio de poderes, tal qual um S1,
um Amo, o discurso será outro e só curará, como se diria através da regra
binyan av, ao contrário, se for famoso.
Os conceitos da religião certamente podem ajudar, mas não é sendo
religioso que o analista fará seu trabalho. Quando Lacan propõe encami-
nhar esse paciente a um colega, ainda que um aluno, suponho que com essa
atitude ele esteja dizendo da impossibilidade inerente ao discurso do Amo
exigido pelo candidato. Lacan conhece bem sua relação com a fama e sabe
que esse candidato demandava dele uma cura xamânica. Ao não aceitar
esse lugar do que cura porque famoso, Lacan possibilitava a esse candidato
melhor examinar suas pretensões. Enquanto o discurso do analista está
marcado pela castração, o do Amo, do Xamã, certamente não. Isso pode
ajudar também a entender um pouco mais a posição de Dolto e o porquê do
desentendimento de Lacan com ela. Gérard consegue ver o difícil lugar de
Dolto, mas nesse momento ainda não pode discriminar-se devidamente
dessa posição. Sua crítica a respeito do título do livro de Dolto e Sévérin,
L’Évangile au Risque de la Psychanalyse (1977), me parece adequada, na
medida em que ele expressaria melhor seu conteúdo se fosse ao contrário.
A tradução portuguesa, de certo modo, dá conta dessa ambigüidade. A psi-
canálise dos evangelhos tanto pode dizer da Psicanálise contida nos evan-
gelhos como dos evangelhos lidos à luz da Psicanálise. É somente desde o
imaginário que podemos aproximar essas duas figuras, o Evangelho e a
Psicanálise.
Ao longo desta exposição, eu lhes apontei algumas mudanças de no-
mes. Quero agora apontar-lhes outra, crucial.
Sua tese A Loucura no Talmude finalmente encontrou um editor, mas,
para levá-lo ao prelo, algumas modificações precisavam ser feitas em seu
conteúdo, e também no seu título. Junto com seu editor – de certo modo
ocupando o lugar do Outro –, encontram outro título: O Filho Ilegítimo,
subtitulado Fontes talmúdicas da psicanálise. A mudança de título, como a
mudança de nome, não é sem conseqüências. Ele fala aí de Freud como um
herdeiro, ainda que herético, dos mestres do judaísmo. Como sempre, ao
falar de outro, fala de si, mas, assim falando, está agora elaborando sua
reconciliação, o que lhe possibilita escrever diretamente sobre um caso de
conversão a pedido de Laurent Theis, diretor da revista H Histoire, então
recém-criada.
O Caso Aimé Pallière e a Verdadeira Religião será o título de seu
artigo, no qual ele trata da relação entre um seminarista católico, Aimé
Pallière, e seu mestre judeu, o Rabino Elie Benamozegh. Aimé quer con-
verter-se ao judaísmo, mas é desaconselhado por seu mestre. É como se
Benamozegh dissesse que cada um tem de fazer o seu melhor, mas no seu
próprio campo. E aqui temos outra intervenção de Lacan prenhe de signifi-
cados. Pallière adotara como pseudônimo uma expressão hebraica –
loetmol – com o sentido de não ontem. Depois de ter mencionado isso em
análise, ao pagar a sessão, G. H. surpreende-se com o fato de o analista
cobrar também a sessão do dia anterior, um feriado. Mas como? Era uma
multa a assinalar para ele a importância de não ter estado lá, no ontem,
valorizando assim sua antecedência.
Não ontem. O significado particular desse loetmol, substituto para um
nome próprio, para ele se devia ao fato de não ter estado presente no ontem
Luiz-Olyntho Telles da Silva
de sua raça. As perseguições, o genocídio, a shoah não tinha sido com ele!
Assumir este texto, trabalhar sobre um nome como este, Aimé[e], empre-
gado pelo próprio Lacan como pseudônimo do caso de sua tese de doutora-
do (1975), tinha também o sentido de retomar o valor das origens. O feriado
não foi cobrado em vão. Haddad se ocupa da história de seu povo, visita
Auschwitz e Birkenau, onde conhece as valas nas quais a cada dia haviam
sido queimados 20.000 corpos dos filhos de sua gente. Ele sabe agora que
o holocausto não foi um crime apenas contra o povo judeu, e sim contra
toda a humanidade. E nesse momento ele registra: Lacan acompanhou-me
atentamente, durante toda essa nova travessia do horror. Nova? Nova tra-
vessia? Qual foi a outra? Está bem, não faltaram momentos difíceis, mas
diria também que não deve ter sido fácil atravessar a nuit de Iduméia.
E, para terminar, só mais uma palavrinha sobre seu final de análise.
Marcada a data para o final, ambos de acordo, as sessões se sucedem, fa-
zendo a análise avançar a passos largos, para usar sua própria expressão. E
ao término da última sessão, o analista pergunta: Quando é que o vejo de
novo? Manobra discreta, porém decisiva para evitar as catastróficas conse-
qüências, como as ocorridas como o Homem dos Lobos, devido à fixação,
por parte de Freud, de uma data para o fim de análise. Haddad batiza este
movimento de cura em trompe l’oeil, a meu ver um nome muito adequado,
afinal, esse talvez seja o mais francês dos estilos de pintura, o qual busca
claramente enganar o olho. Esse engano – não nos enganemos – é aquele
que consiste em fazer semblante de a, e não o da taumaturgia. Frente aos
comentários correntes dos milagres de F. Dolto, por exemplo, de que seus
truques em geral só davam certo com ela, Lacan se posiciona dizendo não
ser um taumaturgo. O que ele faz é possibilitar que a análise continue.
Ao concluir, queria lembrar que em toda a análise sempre ficam restos
não analisados, algo a ver com o que Freud chamava de Das Ding3. Na frase
gerada pelo vehören de Lacan por certo também. Pois eis que me ocorreu
um trocadilho com o título do capítulo que estivemos trabalhando: A

3
A coisa incapaz de se tornar palavra, por oposição a Die Sache, essa sim uma coisa capaz de se
transformar em palavra.
“Leucemia” do Dr. Lacan. Deslocadas as aspas de leucemia para Dr.
Lacan, isso certamente incluiria mais ainda a pessoa do analista como pro-
dutor do ato falho. Afinal, o que ele diz termina com a silaba mie, que em
francês conota miolo, o miolo de pão, por extensão, os miolos, o cérebro. E
o que tem a ver. Bem, na data do ocorrido, Lacan está a cinco anos de sua
morte, uma morte com um diagnóstico muito pouco claro. Negou-se sua
doença até o último momento. O mais perto que se chegou foi a distúrbios
vasculares de natureza cerebral, e o que sabemos desses distúrbios é tratar-
se de uma patologia de lenta evolução. Enfim, parece que essa questão
sanguínea também tinha a ver com o analista. Mas, como sempre, só se
sabe depois, a posteriori.

Não posso terminar sem expressar meu comovido agradecimento ao


Dr. Gérard Haddad por sua honestidade intelectual e por sua generosidade.
Seu texto me possibilitou uma inestimável proximidade com o Lacan-ana-
lista. O calor exalado de seu relato me contagiou a ponto de escrever este
texto.

Gezéra Chava: Effects of an analysis with Lacan


This paper seeks to explore the effects of a Freudian slip committed by the analyst Jacques
Lacan in the course of an analysis section. The man analyzed – later to become an analyst
himself – tells the story through a very sensitive account of his own analysis. At the time
of the fact, already infused with the desire to become an analysit, he is about to finish Med
School and suffering from an obssessive neurosis very detrimental to his professional
relationships (he used to be a successful agronomist) and especially to his family
relationships. A Tunisian Jew, he had renounced Religion in his teens due to the conflicts
with his father. However, in the course of the analysis, he reconciles himself with Religion
and even comes to be a student of the Torah, from which he retrieves a great contribution
to the interpretation theory of Psychoanalysis.

Suspended attention. Parapraxis. Œdipus Complex. Epiphany. Identification. Interpretation.


Logic. Object a. Pass. Significant. Dreams.
Luiz-Olyntho Telles da Silva
Gezéra Chava: Efectos de un análisis con Lacan
El presente trabajo busca explotar los efectos de un acto fallo producido por el analista
Jacques Lacan en el desarrollo de un análisis. El analizante – más tarde también analista –
es quien cuenta la historia a través de un relato muy sensible de su propio análisis. En la
época del episodio, imbuido del deseo de volverse analista, él está concluyendo la Facultad
de Medicina y con una neurosis obsesiva de alto costo para sus relaciones profesionales
(fue un Agrónomo exitoso) y especialmente para las relaciones familiares. Judío tunisinio,
él había renegado de la religión en la adolescencia, debido a los conflictos con su padre.
En el transcurso del análisis, sin embargo, él se reconcilia con la religión, volviéndose un
estudioso de la Torá y sacando de ella una gran contribución para la teoría de la
interpretación en el Psicoanálisis.

Atención flotante. Acto fallido. Complejo de Edipo. Epifanía. Identificación. Interpretación.


Lógica. Objeto a. Pase. Significante. Sueños.

BLANTON, S. Diário de mi Análisis con Freud. Traducción de Martha Eguía.


Buenos Aires: Corregidor, 1974.
DOLTO, F.; SÉVÉRIN, G. A (1977). A Psicanálise dos Evangelhos. Tradução
de Valdemar Ferreira Alves. Lisboa: Sociocultur, s.d.
FREUD, S. (1912). Ratschläge für den Arzt bei der psychoanalytischen
Behandlung. S. Fischer: Frankfurt,1975. (Sigmund Freud Studienausgabe,
Ergänzungsband).
HADDAD, G. (2002). O Dia em que Lacan me Adotou. Tradução de Procópio
Abreu. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2003.
LACAN, J. De la Psychose Paranoïque dana ses Rapports avec la Personnalité
Suivi de Premiers Ecrits sur la Paranoïa. Paris: Seuil, 1975.

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