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A tradução brasileira diz atenção uniformemente suspensa. (FREUD, S. Recomendações aos
Médicos que Exercem a Psicanálise.In: ______. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
v.XII, p.149-150).
Luiz-Olyntho Telles da Silva
significante, dentro de uma cadeia. E esse significante, basicamente um
som, sem um significado especial, quando toca o ouvido do analista, pro-
voca uma reação; podemos dizer mesmo que desperta no analista uma rea-
ção muitas vezes com valor de interpretação. O lapso de audição, nesse
caso, pode ser tomado como um indicador da atenção gleichshwebende,
equiflutuante, por parte do analista.
Aqueles que conhecem o relato de Gérard Haddad, O Dia em que
Lacan me Adotou, já terão identificado o episódio em destaque: aquele ao
qual ele se refere como leucemia: A “leucemia” do Dr. Lacan.
Trata-se de algo muito simples: depois de uma noite difícil, em que o
analisante havia brigado mais uma vez com sua mulher, a quem durante
todo o relato chama de A., começa sua sessão por estas palavras:
“– J’ai passé une de ces nuits!”
Ato contínuo, o analista, como que arrancado da sonolência de sua
tarde (a expressão é de Gérard Haddad), despertado pelo significante, eu
diria, interpreta:
“– Quoi? Comment? Vous avez la leucemie?”
une-de-ces-nuits
la-leu-ce-mie
Observem como no francês ocorre uma certa homofonia entre as duas
expressões. Seja como for, o fato é que o analista interrompe a sessão exa-
tamente no momento em que o analisante protesta, dizendo nunca ter fala-
do em leucemia.
Haddad, nesse momento, depois de muitas voltas – entre as quais sua
entrada na Faculdade de Medicina para poder tornar-se e praticar como
analista –, está por terminar a Faculdade, sua segunda Faculdade, e, para
tal, lhe faltam alguns exames. É para aí que ele dirige o valor da interpre-
tação, ainda que com uma frase ambígua: Tenho leucemia... Nesse mo-
mento, Haddad já se analisa com Lacan há mais de sete anos, o que, se
não é muito, também não é pouco. Digo isso apoiado em um tempo lógi-
co, no qual se pode ver o que ele conseguiu até aí e o que não. Ele já sabe
da importância de tomar em consideração as palavras do analista, ainda
que essas sejam enigmáticas. A transferência é a base de sustentação ne-
cessária para esse crédito. Põe-se, então, a estudar a leucemia, convenci-
do de que isso teria a ver com suas provas, e o resultado não foi outro: em
seu exame principal o ponto sorteado será o de hematologia, onde ele se
sai muito bem.
Contentíssimo, apresenta-se à sessão seguinte, em que sua agitação
explode nas seguintes palavras: Sabe, eu de fato peguei a leucemia, peguei-
a nas provas clínicas. E em seguida arremata: É magia! Ao que o analista
considera: Não se trata de mágica, mas de pura lógica. E o analisante, já
adentrado suficientemente nos estudos teóricos, dá-se conta, ainda que com
muitas interrogações, tratar-se aí da lógica do significante.
Era algo que tinha a ver com ele e só com ele. Com um colega de
análise, em análogas circunstâncias, por exemplo, a análise não tem o mes-
mo efeito e o sujeito não consegue terminar sua faculdade. O que estava em
jogo aí era o seu particular desejo.
É possível que pudesse terminar por aqui essa análise. Considerado o
desejo, no momento em que o analista capta a força do significante, esse
arrasta consigo o que for preciso para sua realização. Trata-se de lógica, e
não de sorte. Comigo aconteceu o contrário: ainda adolescente, fiquei para
um exame de segunda época em Latim. Era preciso saber a tradução de – se
bem me lembro – 11 textos. Pois consegui decorar 10 deles, e o sorteado foi
justamente o que eu não sabia. A lógica: eu não sabia nenhum, apenas os
tinha decorado.
Mas esse episódio é apenas uma parte, uma pequena parte de um longo
capítulo do relato; um capítulo que vai de suas primeiras preocupações com
o passe2 até o momento de sua autorização como analista. E, no relato dessa
passagem, ele vai abordando uma série de pontos, utilizando uma série de
metáforas, as quais, no seu conjunto, levaram-me a valorizar o episódio da
leucemia como uma chave, como o epicentro de sua análise. Seus desdo-
bramentos nos possibilitam acompanhar a trajetória dessa análise desde a
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passe: autorizar-se analista, na escola lacaniana.
Luiz-Olyntho Telles da Silva
intersubjetividade com Lacan, conforme ele nos conta (mas também com o
autor destas linhas, se vale o Latim).
A interpretação de Lacan, através de seu verhören, tem uma implica-
ção bem maior, bem mais ampla do que se imagina à primeira vista. Embo-
ra eu não possa afirmar ter o autor do relato se dado conta de todo o alcance
dessa interpretação, posso dizer que, por algum motivo, ele nos apresenta
esses dados desse modo.
Afinal, como é que se consegue dizer exatamente o que se quer se as
palavras não alcançam para tanto? Essa impotência da linguagem pertence
a todos, analistas ou analisantes.
Vejamos então como ele vai encadeando seus tópicos.
Ingressado nos temas mais esotéricos da psicanálise, defronta-se com
um fracasso, o do passe. Fala-se muito, de muitas coisas, mas sabe-se pou-
co, e ele resolve fazer suas próprias descobertas. Compara-se então a Jó,
que não podia mais se contentar com uma fé em Deus transmitida pela
tradição e que desejava uma radical e direta redescoberta de Deus. Ele
quer conhecer o complexo de Édipo em si mesmo, e suas investigações
sobre o objeto a levam-no ao nada, para o aplauso de Lacan.
Vejam, contudo, com a ajuda de qual metáfora ele nos conta ter chega-
do a essa descoberta. Ele a chama de uma epifania. Não bastasse sua preo-
cupação com uma direta redescoberta de Deus, eis que sofre – vou dizer
assim – ao ver clarear diante de si um conceito, uma epifania. Uma vez
alcançado esse nada, ele traz para a análise esse achado, por ele batizado de
filho de uma noite de Iduméia. Nada mais, nada menos. Um filho d’une
nuit.
Já sabíamos de suas preocupações com a questão religiosa, mas o
que transparece nessa noite de Iduméia não deixa de ser surpreendente.
Mesmo porque, ainda guardamos na memória o ocorrido em sua primeira
entrevista com o suposto aluno de Lacan: Gérard está entrando na Rue de
Lile, onde fica o consultório do Dr. Lacan, e, ainda na rua, é invadido por
uma idéia estranha, uma representação que já o visitara em sua adoles-
cência, algo da ordem – outra vez – de uma epifania na qual ele fica de pé,
imóvel e silencioso. Sou todo olhar – diz ele – e esse olhar está virado
para o véu que esconde o Santo dos Santos do Templo de Jerusalém.
Surpreendente para um ateu, não é mesmo? O exame da metafórica noite
de Iduméia nos ajudará a melhor compreender o laço por ele estabelecido
entre Deus e Édipo.
Registremos, antes de tudo, que a Iduméia nem sempre se chamou
assim. Essa região próxima do rio Jordão chamava-se Edom. Apareceu
como Estado nacional no segundo milênio a.C. e, pasmem, por haver se
cumpliciado com árabes e filisteus, quando esses expugnavam Jerusalém,
Edom tornou-se, na literatura profética, o protótipo dos poderes
antiisraelitas e antidivinos, mesmo que sua sabedoria fosse muito estimada
em Israel. Quando Nabucodonosor conquista Jerusalém, os edomitas inva-
dem o território dos judaístas sob pressão dos nebateus, o que provoca
diversas ameaças dos profetas. E, na história posterior, esses edomitas re-
cebem o nome de idumeus. Registre-se a importância da mudança de nome.
Vejam então em que nuit ele vai buscar sua singular descoberta do
significado do objeto pequeno a. Justamente na sapiente noite dos inimigos
de Israel, dos ambivalentes inimigos, eu diria.
Para melhor identificar esse território, vejamos como Isaías o descreve
em sua ameaça:
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A coisa incapaz de se tornar palavra, por oposição a Die Sache, essa sim uma coisa capaz de se
transformar em palavra.
“Leucemia” do Dr. Lacan. Deslocadas as aspas de leucemia para Dr.
Lacan, isso certamente incluiria mais ainda a pessoa do analista como pro-
dutor do ato falho. Afinal, o que ele diz termina com a silaba mie, que em
francês conota miolo, o miolo de pão, por extensão, os miolos, o cérebro. E
o que tem a ver. Bem, na data do ocorrido, Lacan está a cinco anos de sua
morte, uma morte com um diagnóstico muito pouco claro. Negou-se sua
doença até o último momento. O mais perto que se chegou foi a distúrbios
vasculares de natureza cerebral, e o que sabemos desses distúrbios é tratar-
se de uma patologia de lenta evolução. Enfim, parece que essa questão
sanguínea também tinha a ver com o analista. Mas, como sempre, só se
sabe depois, a posteriori.