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IV C a p ít u l o
PO L ÍT IC A S PÚ BLIC A S E DIREITO
A DM INISTRATIVO
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e Adm inistração Pública. E isso ocorre seja atribuindo-se ao direito
critérios de qualificação jurídica das decisões políticas, seja adotan
do-se no direito um a postura crescentem ente substantiva e, portanto,
mais inform ada por elem entos da política^.
O terreno du S políticas públicas seria o espaço institucional para
a explicitação dos “fatores reais de poder” — na expressão de Lassalle"^
— ativos na sociedade em determinado momento histórico, em rela
ção a um objeto de interesse público (no sentido de interesse do públi
co). Política aqui não conota, evidentemente, a política partidária, mas
política num sentido amplo, como atividade de conhecimento e orga-
nização do poder. E verdade que, embora teoricamente seja relativa
mente simples apartar as duas noções, na prática elas estão entrelaçadas;
a própria visãt de mundo dos agentes sociais é informada pela sua
posição relativa no espectro social e pohtico. E assim a postura supos
tamente neutra dos liberais tende a ganhar um sentido conservador,
isto é, ao não se assumir como comportamento político, redunda num
significado pohtico de manutenção da ordem estabelecida“’.
Em sentido inverso, a penetração declarada no m undo jurídico
pela política, em nome da m odificação da ordem social, conheceu
momentos dramáticos na história, com o exemplo indelével da A le
m anha nazista na m em ória do século XX. “No 3- Reich, esse ‘princí
pio de autoridade’ transform ou o direito em política e vice-versa,
242
revelando as verdadeiras intenções dos agentes do poder e criando
um sistema de provisoriedade normativa, de legislação post-facto,
de des-regulam entação e re-regulam entação perm anente”^.
Além disso, ao se tom ar o sistem a jurídico-adm inistrativo mais
permeável às decisões políticas — cuja sede principal é o Parlam en
to, como instância representativa do povo — , aum enta-se a vulne
rabilidade do sistem a às más escolhas do Poder Legislativo, seja por
deformações na representação (o que ocorre no Brasil, em que os
limites quantitativos do aitigo 45, § 1-, da Constituição Federal criam
a super-representação dos Estados menos populosos e sub-represen-
tação dos mais populosos, com o São Paulo e M inas Gerais), seja por
limitações do próprio m odelo representativo, que, como já advertia
Stuait Mill, nem sempre seleciona os representantes mais aptos a
buscar o bem coletivo, tendo a dem agogia como risco inerente^ e, no
caso brasileiro, os m andonism os locais e a dom inação das oligar
quias como riscos acessórios.
Desses elem entos ressaltam tanto as dificuldades em se trans
por, no Brasil, a barreira construída no campo da ciência para isolar
o direito da política — com o sentido conservador a que acima se
aludiu — como os riscos e problem as da transposição dessa barreira,
os quais reclamam uma solução técnico-institucional ao mesmo tempo
simples e com plexa, na linha dos paradoxos apontados pelos teóri
cos do direito autopoiético^. Simples na m edida em que permita a
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interação dos atores sociais sem a m ediação de um aparato insti
tucional suscetível de apropriação pelas camadas mais preparadas da
sociedade. E complexa enquanto possibilite, ao mesmo tempo, que
esse apai'elho institucional efetue a promoção equalizadora da com u
nicação, necessária para que se complete o processo de relacionamen
to entre as várias partes do mosaico social — indivíduos de classes
sociais opostas, grupos sociais com interesses divergentes, partidos
competidores, organizações concomentes -— e desse relacionamento
resulte uma ação politicamente coordenada e socialmente útil.
A qualidade técnica da solução jurídico-institucional que ve
nha a ser adotada para se trabalhar com esse paradoxo é fundamental
para o aspecto político. Sem uma gestão eficiente do aparelho de
Estado no Brasil não é possível rom per o círculo vicioso que impede
o desenvolvimento do País. Por outro lado, as soluções exclusiva
mente técnicas, centradas no aspecto da gestão, que não contem plem
os problem as da dom inação política em sua m agnitude real — os
quais nunca deixaram de pesar sobre a organização e o funciona
mento do aparelho adm inistrativo do Estado — serão necessaria
mente insatisfatórias. O problem a jurídico-adm inistrativo do Brasil,
embora tenha elementos gerenciais, não é exclusivamente de gestão;
é prim ordialm ente um problem a político.
Por outro lado, é preciso desconfiar das soluções exclusivamente
políticas. Não basta um resultado eleitoral que expresse uma nova
congelação de forças na sociedade. Quando essa nova relação de for
ças se estabelecer, será decisiva para seu sucesso a conform ação ins
titucional que ela venha a im prim ir ao processo de tom ada de deci
sões, no funcionam ento concreto do aparelho de Estado. A engenho-
sidade e a sensibilidade social dessas soluções — e as políticas pú
blicas integram -se a essa nova arquitetura jurídica — é que determ i
narão sua perm anência e evolução, no sentido do desenvolvimento
do povo no País.
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deio de Estado. Pois, se se concebe a politica pública corno criação
do Estado de bem-estar, expressa sempre corno forma de interven
ção do Estado, e se adota corno prem issa a exaustão do Estado de
b em -estar — o que é urna constatação não apenas de autores
neoliberais"*— , seria discutível definir o Estado contem porâneo como
“fundamentalm ente, Estado im plem entador de políticas públicas”
Teria sentido falar em Estado im plem entador de políticas públicas
no ocaso da era do Estado de bem-estar?
Este é um ponto a discutir, se as políticas públicas são uma
forma de intervenção do Estado — típica do Estado de bem-estar
dos anos 50 e 60, caracterizadas pelo forte intervencionism o estatal,
pelo planejam ento e pela presença do direito público, para a prom o
ção de “programas normativos finalísticos” “' — ou se em bora “in
ventadas” sob a égide do dirigism o estatal, o seu esquem a conceituai
permanece válido para explicar e orientar o processo político-social,
numa época que se pretende m arcada não mais pela subordinação de
indivíduos e organizações ao Estado, mas pela coordenação das ações
privadas e estatais sob a orientação do Estado.
Norberto Bobbio observava o fenômeno da “tecnicização do
direito público” — relativam ente recente, se com parado ao direito
privado, e m arcadam ente desenvolvido no século XX — com base
na concepção do Estado de direito “como órgão de produção jurídica
e, no seu conjunto, como ordenam ento jurídico” *^. Com a evolução
245
do Estado de direito pai'a o Estado s o c i a l v o l t a a ter prestígio a
visão do Estado “como form a com plexa de organização social, da
qual o direito é apenas um dos elem entos constitutivos” '^.
Na verdade, o paradigm a do direito liberal do século XIX, ba
seado na norm a geral e abstrata, na sepai-ação de poderes, na distin
ção entre direito público e direito privado, típicos do Estado m oder
no, na denom inação de C harles-Albert M orand, dá lugar a uma su
cessão de modelos de Estado que se caracterizam p^r diferentes graus
e modos de intervenção sobre as esferas privadas. M orand refere-se
a: um direito do Estado-providência, baseado na idéia de prestações
do Estado (serviços públicos); um direito do Estado propulsivo,
centrado nos programas finalísticos; um direito do Estado reflexivo,
cuja expressão são programas relacionais; e finalm ente um direito
do Estado incitador, fundado em atos incitadores, que com binam
norm a e persuasão. Evidentem ente, não há um corte tem poral sepa
rando nitidamente essas fases; o que há são técnicas de intervenção
jurídica que vão sendo criadas e m odificadas, a ponto de cai'acterizar
novos padrões qualitativos da relação entre o Estado e a sociedade.
Essas diferentes técnicas convivem no tempo, sem nunca ter chega
do a afastar o paradigm a da norm a geral e abstrata, a qual, mesmo
criticada e contestada, cercada de novas m anifestações do fenômeno
jurídico, ainda permanece com o o grande elem ento de identidade do
sistema jurídico.
As diversas técnicas de intervenção são utilizadas ao mesmo
tempo. E, mais do que isso, são utilizadas diferentem ente segundo a
atividade social em questão, fazendo conviver modos de ação do
Estado liberal, do Estado intervencionista, do Estado propulsivo num
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mesmo espaço e tempo. O que ocorre é que determ inadas atividades
sociais são mais propícias a uma ou outra técnica. Isto explica o uso
disseminado dos program as fmalísticos nas áreas do direito urbanís
tico e ambiental, por exemplo, com grande difusão de instrumentos
de planejam ento, e a inadequação dessas técnicas em outras áreas,
como a do direito da concoiTência, em que o elem ento das inform a
ções estratégicas das em presas é refratário à subordinação a progra
mas públicos de transparência. O panoram a jurídico que se forma,
segundo Charles-Albert M orand, é o de “um direito em migalhas
gerando uma im ensa necessidade de coordenação”
Entretanto, o Estado social de direito, que se consagrou nas Cons
tituições do século XX, não é sinônimo do Estado de bem-estar, produto
de trinta anos de excedentes capitaüstas no pós-guerra. A inscrição de
dkeitos sociais nas cartas políticas nacionais não é um decalque de uma
situação econômica que muda com as circunstâncias. Os direitos consti
tucionais permanecem, sendo este um dos dilemas do modelo constitu
cional dirigente: como garantE a efetividade do programa constitucio
nal cujos pressupostos, especialmente econômicos, escapam ao poder
de determinação normativa? Ainda mais num período de globalização,
em que os rumos das economias nacionais são diretamente influencia
dos pelos grandes movimentos financekos internacionais e a ação cogente
do Estado nacional dentro de suas fronteiras perde força.
Mesmo assim, a noção de pohtica púbhca é válida no esquema
conceituai do Estado social de dEeito, que absorve algumas das figuras
criadas com o Estado de bem-estar, dando a elas um novo sentido, agora
não mais de intervenção sobre a atividade privada, mas de diretriz geral,
tanto para a ação de indivíduos e organizações, como do próprio Estado.
247
Administração Pública, em sua relação com os cidadãos. Ou, numa cer
ta perspectiva, como disse Garcia de Entema, “o direito administrativo é
o direito constitucional concretizado, levado à sua aplicação última”^^.
O direito administrativo é a ái'ea do direito que se ocupa do estudo da
instituição estatal, em sua vertente executiva, enquanto o direito consti
tucional trata da organização do poder e dos direitos dos cidadãos, estes,
como balizas negativas e positivas para o exercício do poder estatal.
José Eduardo Faria entende ter havido um a evolução do direito
administrativo e constitucional, do direito liberal para o “direito ad
ministrativo regulador”, que consistiria na utilização do direito pú
blico pai-a a im plem entação e execução de program as econôm icos e
políticas de desenvolvimento'^. Seria esse o direito das políticas 'pú
blicas, parte do m ovimento do “increm entalism o jurídico” do Esta
do pós-rooseveltiano dos anos 50 e 60, como modo de im plem entar
o Estado de direito em termos social-democratas, segundo G iannini'f
O direito constitucional dirigente, para Faria, seria a outra face desse
direito administrativo regulador.
De fato, há um a correspondência entre a form ulação da consti
tuição dirigente, especialm ente a partir da obra de José Joaquim
Gomes Canotilho, e a idéia de um direito adm inistrativo voltado à
concretização, pela A dm inistração Pública, dos ditames constitucio
nais e, em decorrência, de políticas públicas. A idéia da Constituição
program ático-dirigente, cuja atualização deve ser feita pelo legisla
dor com base no conceito de reenvio d i n â m i c o é bastante pertinen
te à abordagem adotada neste trabalho. A ssim como Canotilho trata
da cooperação do legislador infraconstitucional na “determ inação” e
“conformação m aterial” da Constituição-^’, o enfoque das políticas
públicas destaca o papel da A dm inistração na “determ inação e con-
248
form ação” material das leis e das decisões políticas a serem executa
das no nível administrativo.
Poder-se-ia contestar o estudo das políticas públicas na esfera
do direito administrativo, uma vez que se trataria de “atos políticos”,
“atos decisórios que im plicam a fixação de metas, de diretrizes ou de
planos governamentais; fque] se inserem na função política do Go
verno e serão executados pela Adm inistração Pública (em sentido
estrito), no exercício da função administrativa propriam ente dita”-'.
Compete aos representantes do povo, isto é, ao Poder Legislativo e à
direção política do governo a decisão sobre as políticas públicas. A
Administração com pete a sua execução. Entretanto, o fato de ser a
política pública um "quadro normativo de ação” inform ado por “ele
mentos de poder público, elem entos de expertise e elem entos que
tendem a constituir uma ordem local”-- — todos da órbita do apare
lho burocrático — , faz com que a Adm inistração desem penhe um
papel relevante na análise e na elaboração dos pressupostos que dão
base à política pública. A idéia de uma sucessão de atos no tempo,
em que o Legislativo e o governo traçam prim eiro as diretrizes da
política para depois a A dm inistração Pública executá-la, passa a ser
mais um tipo ideal que um dado da realidade. “Este conflito revela
não só a crise entre o Executivo e o Legislativo, em term os de
titularidade da iniciativa legislativa, como, também, a superação de
toda organização formal do Estado liberal.”
Quanto mais se conhece o objeto da política pública, maior é a
possibilidade de efetividade de um program a de ação governam en
tal; a eficácia de líticas públicas consistentes depende diretamente
do grau de articulação entre os poderes e agentes públicos envolvi
dos. Isto é verdadeiro especialm ente no campo dos direitos sociais,
como saúde, educação e previdência, em que as prestações do Esta
do resultam da operação de um sistema extremamente complexo de
estruturas organizacionais, recursos financeiros, figuras jurídicas :uja
apreensão é a chave de um a política pública efetiva e bem-sucedida.
249
Conhecer, portanto, os princípios jurídicos da Adm inistração
Pública, os condicionam entos legais à contratação de funcionários
ou serviços, as form as de organização jurídica da Adm inistração di
reta e indireta, além dos dados materiais geridos pela Adm inistração
em seu cotidiano, são operações : ue necessariam ente fazem parte
do processo de form ulação da política pública. Por outro lado, esse
processo representa o m odo de formação da vontade administrativa
no espaço da ação discricionária — especialm ente num país de regi
me presidencialista, em que os aparelhos do governo e da A dm inis
tração se confundem no Poder Executivo. Por isso se pode concluir
que o direito administrativo interessa às políticas públicas, assim como
as políticas públicas interessam ao direito administrativo.
A situação topològica do c. mpo de estudo jurídico das políti
cas públicas é, na verdade, um falso problem a. Partindo do âmbito
do direito constitucional, utiliza-se a base jurídica do direito adm i
nistrativo — o feixe de princípios que o regem e o postulado da su
prem acia do interesse público sobre o particular — a fim de se traba
lhar sobre o problem a da efetividade do direito público. Isso é o que
se afinna no direito norte-am ericano, cujas políticas públicas são
institutos incorporados ao direito público graças à form a de atuação
das agências, o que ainda é novo no direito público de influência
européia continental.
O que se propõe aqui é a rearticulação do direito público (e não
mais do direito administrativo, isoladamente) em tom o da idéia de
política pública. Mais do que uma alteração nas estmturas jurídicas,
sugere-se uma nova percepção dos fenômenos juiidicos e sua interação
com o contexto sociaPf Para isso é necessário ensaiai- também uma
23. Charles-A lbert Morand. Le droit n éo-m odern e, cit.; “N ão é fácil distin
guir as m od ificações que se produziram realm ente ao nível da estrutura jurídica e as
alterações de percepção dos fen ôm en os Jurídicos que inters ieram no d esen volvi
m ento de um progresso dos con h ecim entos. A herm enêutica permitiu, por exem plo,
com preender que o papel criador do Juiz é m uito m ais considerável que aquele que
se supunha. Sim ultaneam ente, constata-se que o intervencionism o estatal, com base
nas m odalidades de ação escolh idas, provoca um crescim ento do poder de d ecisão
do Juiz. Essa convergência pode ser ilustrada pela análise dos princípios diretivos,
os standards. A herm enêutica permitiu apreender m elhor o vasto poder de que o Juiz
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conceituação jurídica de política pública, de tal forma que haja uma
aproximação entre as noções de direito público e política pública.
estava investido, enquanto ele opera sobre as bases dos princípios diretivos, com o
aqueles im plicados no funcionam ento das liberdades individuais” (p. 18-19).
24. M uller e Surel, L ’a n a ly s e d e s p o litiq u e s p u b liq u e s , cit., p. 15.T ércio
Sam paio Ferraz Junior refere-se ao uso da d icotom ia dado/construto em direito, na
obra de François Gény, M é to d o d e inlerpretación y fu en tes em derech o p r iv a d o , em
que o autor classifica as fontes do direito em substanciais (elem en tos materiais,
históricos, racionais e ideais), que fazem do direito um dado, ou, de outro lado,
fontes form ais, resultado da elaboração técn ica dos juristas, que resultam no direito
com o construto (A ciência d o direito, cit.).
25. M uller e Surel, L ’a n a lyse d e s p o litiq u e s p u b liq u es, cit., p. 17. ^
26. M uller e Surel, L ’an a lyse des p o litiq u es p u b liqu es, cit., p. 2 5-26.
251
contradições, e, mais do que isso, há um “caráter intrinsecam ente
contraditório de toda politica”-f
Como categoria analítica, as políticas públicas envolveriam sem
pre uma conotação valorativa; de um lado, do ponto de vista de quem
quer dem onstrar a racionalidade da ação governam ental, apontando
os vetores que a orientam; de outro lado, da perspectiva dos seus
opositores, cujo questionam ento estará voltado à coerência ou à efi
cácia da ação governamental-''. Essa dim ensão axiológica das políti
cas públicas aparece nos fins da ação governam ental, os quais se
detalham e concretizam em metas e objetivos.
Não obstante, há tam bém uma dimensão prática, factual, na idéia
de política pública como “pr Tam a de ação governam ental para um
setor da sociedade ou um espaço geográfico”-'^.
27. M uller e Surel, L ’an alyse d e s p o litiq u e s p u bliq u es, cit., p. 19-20.
28. M uller e Surel, L ’an alyse d e s p o litiq u es p u b liq u es, cit., p. 14-15.
29. M uller e Surel, L 'an alyse d es p o litiq u es p u bliq u es, cit., p. 16. Os autores
referem a conceituação de M ény e T hoenig, em P olitiques publiques, 1989.
30. Fábio Konder C om paralo. Planejar o d esen v o h im ento; a perspectiva
institucional, in Para viver a d em o cra c ia , São Paulo, B rasiliense, 1989, p. 102.
31. B obbio, M atteucci e Pasquino, D icio n á rio d e p o litic a , Brasilia. U niversi
dade de B rasília/Linha Gráfica Ed., 1991, v. 2.
32. Comparato, Planejar o desenvolvim ento.... m Para viver a democracia, cit.
252
“A política, contraposta à noção de princípio, designa ‘aquela
espécie de padrão de conduta [standard] que assinala uma meta a
alcançar, geralm ente uma m elhoria em algum a característica econô
mica, política ou social da comunidade, ainda que certas metas se
jam negativas, pelo fato de im plicarem que determ inada característi
ca deve ser protegida contra uma m udança hostil’. D aí por que as
argumentações jurídicas de princípios tendem a estabelecer um di
reito individual, enquanto as argumentações jurídicas de políticas
visam a estabelecer uma m eta ou finalidade coletiva”-^\
Esse seria o caminho para superar-se a concepção da norma
geral e abstrata como referência central do aparelho burocrático do
Estado, introduzindo-se no mundo do direito público o conceito de
política pública como program a de ação^’"'. Na verdade, a crise do
modelo norm ativista e dedutivo, em certa m edida reducionista, leva
a novos modelos de representação do direito, em que as técnicas de
legislação e decisão não se baseiam mais exclusivamente em regras,
mas tam bém em princípios e objetivos-^\ A visão liberal do direito
como conjunto de normas cede lugar a com preensões baseadas na
idéia de com unicação do direito com as expressões não-jurídicas da
vida, ou do subsistem a jurídico com outros subsistemas, “as deci
sões criam regras, mas as regras criam por sua vez decisões”-^^.
O direito do Estado-providência é fundado não mais sobre con
dições — típicas de um esquem a normativo do tipo “se-então” —
33. R onald D w orkin, Taking rights seriously, apud Fábio Konder Com paraio,
Juízo de constitucionalidade de políticas públicas.
34. Fábio Konder C om parato, Juízo de co n stitu cio n a lid a d e..., in E stu d o s
em H o m en a g em a G e r a ld o A ta lib a , cit., v. 2, p. 3 4 1 -3 5 9 . “O sistem a norm ativo
organiza, em sum a, a co n v iv ên cia hum ana de um m od o por assim dizer negativo:
o que se põe em fo co , p elo papel saliente atribuído à sanção, é o que não se deve
fazer.”
35. D anièle Bourcier, M od éliser la d écision adm inistrative. R éflexion s sur
quelques paradigm es, in Le droit a d m in istra tif en mutation, org. Jacques Chevalier,
Paris, PUF, 1993, p. 258.
36. N iklas Luhm ann, The unity o f legal system , citado por D anièle Bourcier,
M odéliser..., in Le d ro it a d m in istra tif en m utation, cit., p. 271.
253
mas sobre objetivos, representados num esquem a “fim -m eio”''7 E
com elas a aplicação das normas deixa de se fazer com base no seu
próprio texto ou nas decisões dos tribunais, mas passa tam bém , assu-
m idamente, a incorporar a representação de outras noções, como o
senso comum, as regras heurísticas e em especial o enfoque baseado
no problema, na finalidade, no efeito perseguido, nos princípios em
jogo e nas prioridades-^^
Entretanto, o risco dessa interpenetração entre direito e política
é a descaracterização da lei, em sua peculiaridade, pela lógica das
políticas, como vetores de program as para a realização de direitos,
como adverte Habermas:
“(...) particularidades concretas e orientações para objetivos
sempre m igraram à lei pelo cam inho dos program as políticos dos
legisladores. Até mesm o a legalidade form al burguesa teve de estar
aberta aos objetivos coletivos, tais com o aqueles encontrados nas
políticas relacionadas a questões m ilitares ou tributação. Nesses ca
sos, contudo, a perseguição de objetivos coletivos teve de estar su
bordinada à função principal do direito (i.e., a norm atização das ex
pectativas de conduta) de um modo que fosse possível interpretar
políticas em geral como a realização de direitos. Porque a lei tem
uma estrutura própria e não é arbitrariam ente m aleável, essa exigên
cia é mantida tam bém para as decisões coletivas ligadas a um Estado
ativo, que usa a lei para influenciar os processos sociais. As condi
ções constitutivas do direito e do poder político seriam violadas se a
formação da política fizesse uso da form a da lei pai'a não importa
que propósito, com isso destruindo a função interna da lei. M esmo
no Estado social, o direito não deve ser com pletam ente reduzido à
política se não se quiser extinguir a tensão interna entre facticidade e
validade, e entre esta e a norm atividade da lei: ‘A lei se tom a um
instrum ento da política se a tensão interna, e ao mesm o tempo o
254
próprio meio legal, estipula as condiçoes procedimentais sob as quais
a política pode ter a lei à sua disposição'
O modelo das políticas públicas não exclui o da legalidade, mas
convive com ele. Para Charles-Albert M orand, as políticas públicas
podem ser incorporadas à lei, se supeipor a elas ou se pôr a seu ser
viço, num quadro em que o direito é cada vez mais desordenado,
complexo e movediço^". Não obstante, no modelo que estamos pro
pondo, a realização das políticas deve dar-se dentro dos parâmetros
da legalidade e da constitucionalidade, o que im plica que passem a
ser reconhecidos pelo direito — e gerar efeitos jurídicos — os atos e
também as omissões que constituem cada política pública. O proble
ma passa a ser, então, o de desenvolver a análise jurídica, “de modo
a tom ar operacional o conceito de política, na tarefa de interpretação
do direito vigente e de construção do direito futuro”"".
Inovando na tradição jurídica, a política distinguir-se-ia das
categorias das normas e atos jurídicos, em bora esses elem entos se
jam parte integrante dela. A noção operacional de política estaiia
mais próxim a do conceito de atividade, “conjunto organizado de
normas e atos tendentes à realização de um objetivo determ inado”"'-.
Q uando Fábio K onder C om parato cogita de um “ju ízo de
constitucionahdade de pohticas púbhcas”, aíhm a que “os atos, decisões
ou normas que a compõem, tomados isoladamente, são de natureza he
terogênea e submetem-se a um regime jurídico que lhes é próprio”‘'f E
39. Jürgen H abem ias, B etw een f a c ts a n d norms, 2. éd., C am bridge, The M IT
Press, 1996, p. 4 2 8 .
40. Charles-A lbert Morand, Le d roit n éo-m odern e, cit., p. 13.
41. Com parato, E nsaio sobre o ju ízo de constitucionalidade..., in E stu do s em
h om en agem a G era ld o A ta liba , cit.
42. Comparato, Ensaio sobre o juízo de constitucionahdade..., in Estudos em home
nagem a Geraldo Ataliba, cit., v. 2, p. 343-359. Sobre a relação entre a discricionariedade
e a amphação do escopo da função administrativa, com a adoção do conceito de atividade
com o ampliação da idéia de ato administrativo, vide capítulo I, item 3.
43. Com parato, E nsaio sobre o ju ízo de constitucionalidade..., in E stu dos em
hom en agem a G era ld o A taliba. N o m esm o sentido, José R einaldo de L im a L opes,
D ireito subjetivo..., in D ireito s humanos, direitos s o cia is e ju s tiç a , cit.
255
conclui que “o juízo de validade de uma pohtica não se confunde nunca
com o juízo de validade das normas e dos atos que a compõem”''^.
No entanto, ao desenvolver a idéia. Com parato desloca-se do
objeto da ação de inconstitucionalidade e passa a focar o problema
da atribuição judicial sobre os atos políticos, para afastar “a clássica
objeção de que o Judiciário não tem com petência, pelo princípio da
divisão de Poderes, pai*a julgar questões políticas”'^\
Nesse ponto, fica então sem resposta a pergunta que se esboçai'a
no início do artigo comentado''^: se a política pública não se confunde
com o ato ou a nonna, mas é a atividade que resulta de um conjunto de
atos e nonnas, o que deve ser submetido ao contraste judicial: o ato, a
norma ou a atividade? Quanto aos dois primeiros, parece que Comparato
os afasta da posição de objeto da ação, ao afirmar que o juízo de vali
dade da política não se confunde com o juízo de validade dos atos que
a compõem. Ademais, tal modalidade de controle jurisdicional de atos
ou normas não coloca qualquer questionamento que já não tenha sido
equacionado pela teoria jurídica clássica.
Restaria, portanto, entender que o juízo de constitucionalidade
proposto teria por objeto a atividade. E aí se retom a, a meu ver, ao
fulcro do problem a jurídico das políticas públicas. Qual a expressão
jurídica da atividade governam ental ou administrativa?
Ou, dito de outro modo, qual a expressão jurídica das políticas
públicas? Política é norm a? É plano? É atividade? Poder-se-ia falar
em “regime jurídico das políticas públicas” ? E finalm ente a pergun
ta agudamente form ulada por Danièle Bourcier: “Até que ponto se
pode ‘representar’ um poder discricionário?”''^
256
Coloca-se então o problem a de saber qual a form a exterior, re
conhecível pelo sistema jurídico, que assume uma política pública.
Vejamos alguns exemplos da diversidade de modos de referir-
se à figura das políticas públicas. A lei que institui a Agência Nacio-
✓
nal de Aguas (ANA) incum be-a de im plem entar a Política Nacional
de Recursos Hídricos, baixada p o r outra lei, a Lei federal n. 9.433/
97, em bora com a criação da ANA a com petência para form ular a
política na ái'ea tenha recaído sobre o Conselho Nacional de Recur
sos Hídricos. Já a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) foi criada
tendo, entre outras atribuições, a de executar a Política Nacional de
Inteligência, /zxm/í/ pelo Presidente da República. Por sua vez, em
matéria de telecom unicações, a Lei Geral de Telecomunicações co
meteu à Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) o dever
de executar as políticas estabelecidas pelos Poderes Executivo e
Legislativo, com petindo tam bém ao seu Conselho Diretor o estabe
lecimento e alteração de políticas.
Há exemplo de política consubstanciada em Em enda Constitu
cional, como foi o caso do FUNDEF (Fundo de M anutenção e D e
senvolvimento do Ensino Fundam ental e de Valorização do M agisté
rio), criado pela Em enda Constitucional n. 14/96.
Isso sem falar de program as instituídos por ato administrativo
ou por program as que resultam de uma com binação de atos adm inis
trativos, ordenados num procedim ento ou não. E o caso, por exem
plo, de sistemas de transporte municipal nas grandes m etrópoles, em
que o form ato jurídico dado aos contratos de concessão de serviço
público, as cláusulas rem uneratórias, as condições de oferta do ser
viço, podem atender ao interesse predominante das com panhias de
ônibus ou dos usuários, desse equilíbrio resultando a conformação
da política pública de transporte municipal.
Vê-se, portanto, u íste ponto, que a exteriorização da política
pública está muito distante de um padrão jurídico uniform e e clara
mente apreensível pelo sistem a jurídico. Isto se reflete em dúvidas
quanto à vinculatividade dos instrum entos de expressão das políticas
— o seu caráter cogente em face de governos e condições políticas
que m udam — e quanto à justiciabilidade dessas m esm as políticas,
isto é, a possibilidade de exigir o seu cum prim ento em juízo.
257
Que essa justiciabilidade existe, ninguém há de negar, em face
do artigo 5^, XXXV, da Constituição Federal. Os m odos de exercê-
la, no entanto, são vários, alguns mais “com preensíveis” pela ordem
jurídica em vigor✓
— é o caso da ação civil pública, por exemplo — e
outros menos. E sabido que o sucesso de certas m edidas judiciais
sobre políticas públicas está na razão direta da afinidade política entre
os integrantes do tribunal e o governante que as implementa, isso não
apenas no Brasil, mas em F dos os lugares do mundo, destacando-se
os Estados Unidos. Entretanto, observo que outro componente desse
sucesso, nem sempre adequadamente considerado, é a capacidade de
“assimilação” da medida judicial proposta pelo sistema jurídico'"'.
A criação de deteiminado programa faz surgir interessados, titula
res de direitos específicos a medidas contempladas no programa (a eles,
por alguma razão, não estendidas), onde antes havia apenas titulai'es de
direitos em abstrato. Exemplificando, a existência de uma política de
valorização do ensino fundamental pode fazer surgir o dheito à matrícu
la numa escola em detenninada região onde antes se poderia falai* ape
nas em titulaiidade do dii*eito à educação. Como lidar com esse “novo
dii'eito”, que pode estar colocado diante de novas complexidades, com
preendidas na estrutura e funcionamento do programa?
48. U m caso concreto que exem plifica essa tese são as ações judiciais que con
testaram a instituição do Plano de A tendim ento à Saúde (PAS). cn ad o na Prefeitura
M unicipal de São Paulo em 1995 (governo Paulo M aluf) e que custou o atraso do
ingresso do M unicípio no Sistem a Ú nico de Saúde em seis anos. Apesar de o PAS ter
sido criticado por qua.se todas as entidades de classe de m édicos de São Paulo e por
vários setores organizados da área da saúde, as m edidas judiciais propostas pelo M i
nistério Público, repletas de fundam entos jurídicos consistentes, não tiveram êxito,
em parte pelas razões de afinidade política acima aludidas, mas em pane porque o
Tribunal, ao decidir num ou noutro sentido poderia estar avocando para si. involuntá
ria e indevidam ente, a tarefa de definir a con fon n ação do sistem a de saúde m unicipal,
o que pesou para a decretação definitiva da im procedência das ações.
258
governamental que não se exprima, necessariam ente, no instrum en
to jurídico do plano. Freqüentem ente as políticas públicas se exte
riorizam através de planos (em bora com eles não se confundam),
que podem ter caráter geral, com o o Plano Nacional de Desenvolvi
mento, regional, ou ainda setorial, quando se trata, por exemplo, do
Plano Nacional de Saúde, do Plano de Educação etc. Nesses casos, o
instrum ento normativo do plano é a lei, na qual se estabelecem os
objetivos da política, os instrum entos institucionais de sua realiza
ção e outras condições de im plementação. Sucedem-se norm as de
execução, da alçada do Poder Executivo.
A política é mais am pla que o plano e define-se com o o pro
cesso de escolha dos m eios para a realização dos objetivos do go
verno, com a participação dos agentes públicos e privados. “Assim,
para a com preensão das políticas públicas é essencial com preen
der-se o regim e das finanças públicas. E para com preender estas
últim as é preciso inseri-las nos princípios constitucionais que es
tão além dos lim ites ao poder de tributar. Elas precisam estar
inseridas no direito que o Estado recebeu de planejar não apenas
suas contas mas de planejar o desenvolvim ento nacional, que in
clui e exige a efetivação de condições de exercício dos direitos so
ciais pelos cidadãos brasileiros. Assim , o Estado não só deve pla
nejar seu orçam ento anual mas tam bém suas despesas de capital e
program as de duração continuada”'^'’.
A política pública transcende os instrum entos normativos do
plano ou dc programa. Flá, no entanto, um paralelo evidente entre o
processo de form ulação da política e a atividade de planejamento.
Note-se a con^elação de ambos, no sentido de que, ao contrário do
que muitos sustentaram no auge da tecnocracia dos anos 70, o plane
jam ento não é uma atividade vazia de conteúdo político. Trata-se de
função em inentem ente técnica, voltada à realização de v. lores so
ciais: “técnica social de im portância muito maior, a qual permitiria
elevar o nível de racionalidade das decisões que com andam comple-
259
xos processos sociais, evitando-se surjam processos cumulativos e
não-reversíveis em direções indesejáveis”“''’.
Essa discussão nos remete ao caráter do planejam ento, que a
Constituição brasileira define, de m aneira peculiar, com o “deter
minante para o setor público e indicativo ^.iora o setor privado” (art.
174). Em bora inspirado no artigo 131 da Constituição espanhola, o
duplo caráter da atividade de planejam ento é inovação brasileira, pai'a
a qual já apontava a doutrina do direito econôm ico“" em época de
m aior prestígio do conceito de planejam ento, na década de 70, quan
do foram editados o 1 Plano Nacional de Desenvolvim ento (I PND),
e o II Plano Nacional de Desenvolvim ento (II PND).
No artigo “O indispensável direitc econôm ico” , Fábio Konder
Com parato já apontava os problem as de ordem legal decoiTentes da
adoção do plano e que vão “desde a natureza jurídica dos órgãos de
planejamento, a posição dos atos de planificação no quadro hierár
quico das normas jurídicas e os intrincados problem as de com petên
cia administrativa, até a consideração dos meios financeiros previs
tos no plano e sua concordância com os princípios básicos do direito
financeiro (notadamente o princípio da anualidade orçam entária)”“'-.
M assim o Severo Giannini considera os termos “planificação” e
“program ação” equivalentes, ambos entendidos como “técnica de
atuação administrativa de longa duração”“'? Segundo historia, os pri
meiros planos juridicam ente relevantes foram os de contabilidade
pública, seguidos pelos planos urbanísticos elaborados por ocasião
da ampliação das grandes cidades, como Paris, Nápoles e Viena no
século XIX e, finalmente, no século XX, as planificações mais típi
cas, os planos econômicos. Contudo, Giannini identifica as planifi-
50. C elso Furtado. Auto-retrato intelectual, in C elso Furtado, col. G ran des
Cientistas Sociais, org. Francisco de Oliveira. São Paulo. Á tica, 1983, v. 33, p. 35.
51. Grau, P lanejam ento eco n ô m ico e regra ju r íd ic a . São Paulo, Ed. do Autor,
1997.
52. Comparato, O indispensável direito eco n ô m ico , RT, São Paulo, Revista
dos Tribunais, n. 353, mar. 1965.
53. G iannini, El p o d e r público. E sta d o s y adm in istra cion es p ú b lic a s. Madrid,
Ed. C ivitas. 1991, cit.. p. 155.
260
cações econômicas com os países socialistas'''', excluindo de seu re
lato as experiências de planejam ento realizadas no pós-gueiTa — al
gumas com reconhecido sucesso, como a francesa — ao afirmar que
as teses dos economistas sobre a conveniência de se adotar a planifi
cação tam bém em países de econom ia de mercado não puderam ser
verificadas na prática, uma vez que nenhum dos Estados não-socia-
listas teria adotado planificações, salvo a Itália, cujo plano de 1967/
70 teria sido um fracasso"?
Entretanto, a conclusão daqueles que examinai'am mais de perto a
questão do planejamento não coincide com a negativa de Giannini. Ex
periências importantes de planejamento ao longo do século XX — que
tiveram por objeto tanto as empresas privadas como os problemas de
desenvolvimento regional e nacional dos países — apontam pai'a o sen
tido oposto. A evolução histórica que vai da década de 30 até os anos da
recuperação econômica do pós-guen'a consohdam o planejamento como
“pressuposto indispensável de todo programa de ação pohtica, econô
mica ou social”, uma vez que praticamente todos os países do mundo
capitahsta passam a adotai' os métodos do planejamento^^.
54. Planejam ento e planificação, para m uitos autores não são exp ressões si
nônim as, identificando-se a últim a co m o o planejam ento cogen te realizado nas e c o
nom ias socialistas, acepção que adota M assim o Giannini: “Juridicam ente, un pian
eco n ó m ico nacional es un conjunto orgânico de ordenes a las em presas, que se
funda, por tanto, en relaciones de potestad-sujeción, las cuales, en sistem as que
garantizan la libre iniciativa econ óm ica, só lo serían p ibles si el m ism o sistem a
reservase a lo s poderes p ú b lico s p otestad es de ‘p rogram ación ’ (térm ino usado
preferentem ente en lo s textos norm ativos). Pero, de hecho, la m ayor parte de los
ordenam ientos positivos no con ocen textos constitucionales que enuncien los dos
extrem os de la m ateria — libertad y potestad — (...) de manera que serían necesarias
ley es de rango constitucional para generalizar el extrem o ‘p o testa d ’. La m ayor
dificultad es la institucional en cuanto que para la aplicación de un pian eco n ó m ico
se necesitan num erosos órganos centrales y periféricos, pertrechados de técnicos
adecuados, con capacidad para dirigir y controlar las em presas; órganos que son,
por tanto, co sto sisim o s y de una dudosa eficien cia en un ordenam iento que no es
socialista.”
55. E l p o d e r pú blico..., cit., p. 157-158.
56. Eros Roberto Grau, P la n ejam en to eco n ò m ico e regra ju r íd ic a , cit.. Ed. do
Autor, 1977, p. 12.
261
A divergência do ilustre publicista itabano merece destaque, por
que toca exatamente na dificuldade de definição ontològica do plano
como instrumento jurídico-institucional para a realização do desenvol
vimento, o que se soma às dificuldades pohticas e técnicas para a elabo
ração e implementação do plano. Merec c registro a conclusão final de
Giannini, favorável ao planejamento, admitindo que a atividade admi
nistrativa se desenvolve por meio de planos, tendência que “paiece en
contrar, atualmente, uma coirespondência com a reahdade”^f
Especificam ente no que diz respeito ao direito, o modelo das
pohticas públicas, concebido como form a de im plem entação do Es
tado do bem-estar, pairou acim a ou ao lado das estruturas jurídicas
tradicionais, não tendo sido completamente integrado ao ordenamento
normativo. A própria discussão, hoj.. posta em segundo plano, mas
bastante intensa à época, sobre o caráter “program ático” (que se en
tendia como sinônimo de não-vinculante) das normas do plano reve
la essa não integração.
M eirelles Teixeira, citando Crisafulli, faz um interessante rela
to sobre a form ulação da noção de normas program áticas na Consti
tuição italiana de 1948, as quais refletiam o ponto de equilíbrio pos
sível entre as forças que pretendiam restaurar o ordenam ento políti
co-social pré-fascista e o m ovim ento de transform ação das estrutu
ras da sociedade italiana.
“(...) as exigências de transfoimações substanciais no ordenamento
econômico-social, pleiteadas pelos partidos das classes trabalhadoras,
puderam afiimar-se, na foim ação da vontade constituinte, apenas na
medida e até o ponto limite em que elas coincidiam ou mesmo de outro
modo se conciliavam com as exigências do solidarismo cristão e com
as de caráter ético-religioso próprias de grande form ação do centro,
representadas pelo partido da democracia crista
Assim, o fundam ento pohtico, segundo a observação de Vezio
Crisafulli, explicaria a reduzida força normativa dos dispositivos di
tos “program áticos".
262
“Daí, na C onstituição italiana (como em todas as modernas
Constituições ‘sociais'), duas faces bem distintas; uma, voltada para
a estrutura do Estado, e form a de governo, consagrando as liberda
des dem ocráticas tradicionais (na Itália, recuperadas pela Nação de
pois do trágico parêntese fascista), e as novas liberdades dem ocráti
cas que as forças políticas mais avançadas conseguiram fossem
traduzidas em precisa e atual regulam entação de Direito Positivo; e,
de outro lado, a outra parte da Constituição, determ inando apenas
meras prom essas de um desenvolvimento futuro, estabelecendo cer
tas 'diretivas program áticas' à ação dos futuros poderes constituí
dos, no campo das relações 'sociais’"^'^.
O que se pode deduzir desse relato, com parando-se a situação
das políticas públicas na década de 50 e na atualidade é a não-pene-
tração dessa experiência no plano do ordenam ento jurídico, centrado
na concepção tradicional acim a citada, das normas coativas integra
das num sistema (referidas a ele e ponto de referência de outras nor
mas do sistema)'’'’.
“Efetivamente, a decisão de planificação 1administrativa], en
tendida esta em sentido am plo (com preendendo todo tipo de planos,
gerais e setoriais) não se adapta facilm ente ao esquem a tradicional
da norm a ju ríd ica, ou seja, o 'esquem a se-en tã o ' (W enn-dann-
Schema), assentando antes num 'esquem a fim -m eio' {Zweck-Mittel-
Schenia). Enquanto que o 'esquem a se-então' corresponde a uma
aplicação silogística da lei, já o 'esquem a fim -m eio' aponta para uma
aplicação projetada para o futuro, em que a decisão exig tempo, se
confunde em larga m edida com a execução ou realização continuada
e assenta em dados, valorações e estimativas altamente com plexas”'’'.
A mesma refutação produzida quanto à ausência de força norma
tiva dos princípios constitucionais aplica-se às regras do plano, numa
visão mais contem porânea:
263
“Esses valores [constitucionais] não são simples retórica, não são
— de novo temos que impugnai' essa falaz doutrina, de tanta força
inercial entre nós — simples princípios ‘programáticos’, sem valor
normativo de aplicação possível; ao contrái-io, são justamente a base
inteira do ordenamento, aquela que há de prestai' a este seu sentido pró
prio, a que há de presidii', portanto, toda sua inteipretação e aphcação”'’?
No caso brasileiro, a falta de continuidade dos planos que exis
tiram na época e a sua reduzida força executiva seriam a negação da
própria idéia de plano. Essas considerações e mais a constatação da
variedade de an'anjos institucionais, em cada país, de acordo não só
com as condições econôm icas e sociais, mas tam bém com a tradição
jurídica e a evolução histórica que assumiu o planejam ento, levam à
conclusão de que o tem a das políticas públicas no campo do direito
abre um campo de possibilidades a ser explorado pelo juspublicista.
264
A tem ática das políticas públicas, como processo de formação
do interesse público, está ligada à questão da discricionaiiedade do
administrador, na medida em que “o momento essencial da discri-
cionariedade é aquele em que se individualizam e se confrontam os
vários interesses concorrentes”'’\ E um interesse é reconhecível como
interesse público quando é assim qualificado pela lei ou pelo direi
to'’'’, que é exatamente o que se faz no processo de form ação da polí
tica pública como dado de direito, ou seja, sancionar detenninados
fins e objetivos, defmindo-os legitim amente como a finalidade da
atividade administrativa.
As políticas públicas podem ser entendidas como form a de con
trole prévio de discricionariedade na m edida em que exigem a apre
sentação dos pressupostos m ateriais que inform am a decisão, em
conseqüência da qual se desencadeia a ação administrativa. O pro
cesso de elaboração da política seria propício a explicitar e docu-
mentcU' os pressupostos da atividade administrativa e, dessa forma,
tornar viável o controle posterior dos motivos.
Nesse sentido, a concepção da política pública esvaziaria ainda
mais a noção de discricionariedade técnica, cunhada por Bernatzik
em 1864, sob a qual se aglutinavam as “decisões que, não sendo
discricionárias, deveriam contudo ser, pela sua alta complexidade
técnica ( ‘elevada com plexidade das premissas factuais’), retiradas
do controle jurisdicional, porque, como ele dizia, de administração
percebem os adm inistradores, e só eles, pela sua form ação técni-
ca”'’’. Em bora o conceito de discricionariedade técnica seja em si
controvertido, até porque a idéia de discricionariedade há muito dei
xou de ser sinônimo de insuscetibilidade de controle jurisdicional, o
seu núcleo perm anece sendo um obstáculo à participação dos cida-
6 5 . M a ssim o S ev ero G ia n n in i, Il p o t e r e d is c r e z i o n a l e d e l l a p u b b l i c a
amministrazione, 1939, apud Franco B assi, N ote sulla discrezionalità amministrativa,
in Le trasform azioni d el diritto am m in istrativo.S critti degli allievi p e r gli ottanta
anni d i M a ssim o Severo Giannini, org. Sandro A m orosino, M ilano, Giuffrè, 1995.
66. B assi, N ote..., in Le trasform azion i d e l diritto am m in istrativo, cit.
67. Segundo A ntonio Francisco de Sousa, “C on ceitos in d eterm in a d o s”, cit.,
p. 105-106.
265
dãos na A dm inistração e ao contraste pleno da atividade adm inistra
tiva, na m edida em que os instrum entos do direito não são aptos, por
si sós, a sopesar as escolhas técnicas.
Para isso é necessário o conceito de processualidade e que este
se abra em três m om entos: o da form ação, o da execução e o da
avaliação. O prim eiro m om ento é o da apresentação dos pressupos
tos técnicos e m ateriais, pela A dm inistração ou pelos interessados,
para confronto com outros pressupostos, de m esm a natureza, trazi
dos pelas demais partes, cujos interesses sejam não-coincidentes com
aqueles^l O segundo m om ento com preende as m edidas adm inistra
tivas, financeiras e legais de im plem entação do programa. E final
mente o terceiro m om ento no processo de atuação da política públi
ca é o da apreciação dos efeitos, sociais e jurídicos, novam ente sob o
prism a do contraditório, de cada um a das escolhas possíveis, em vis
ta dos pressupostos apresentados.
A com plexidade dos fatos e dos elem entos m ateriais que com
porão os motivos da atividade adm inistrativa será, desse modo, ex
posta às partes no processo adm inistrativo e exam inada em suas im
plicações, de tal form a que a decisão adm inistrativa resultante seja
plenamente inform ada, do ponto de vista substantivo, e não apenas
resultado de um a contraposição formal, em que os elem entos de fun
do da questão perm anecem ocultos.
M aria João Estorninho refere a im portância crescente da ativi
dade processual da Adm inistração, tanto no campo dos atos, como
dos contratos. Ganha relevo o processo de form ação da vontade da
266
Administração, que, na perspectiva dos atos administrativos, era re
legado a caráter secundário e instrum ental, como pré-ordenação de
ações tendentes ao ato. O papel central da noção de ato cede lugar à
idéia de atividade;
“Hoje, a atividade adm inistrativa tende a ser encai'ada numa
perspectiva global, na qual assum em relevância com portam entos que
podem ou não ser pré-determ inados legalmente e que podem expres
sar-se através de atos m ateriais, técnicos, organizatórios, operativos,
c o g n o s c itiv o s , in s p e tiv o s , d e c is ó rio s ou m esm o e x tra -p ro -
cedim entais”'’“’.
A ação adm inistrativa ganha, então, um novo sentido, “não em
assegurar a conform idade da atividade adm inistrativa a uma ordem
normativa pré-existente ( ‘legalidade-legitim idade’), mas sim em ‘dar
vida, através da participação e do confronto de todos os interessados
co-envolvidos, a uma justa e original com posição de interesses’ ( ‘le
galidade-justiça’)”^".
Anote-se, aliás, que esse tem a tam bém vem se deslocando para
o centro das atenções no direito administrativo norte-am ericano, com
a discussão sobre “que fatores confluem para a definição do interes
se público e qual seja o m elhor m ecanism o decisório para o reflexo
adequado de tal com posição”^'.
A escolha das diretrizes da política, os objetivos de determ ina
do program a não são simples princípios de ação, mas são os vetores
para a im plem entação concreta de certas formas de agir do Poder
Público, que levarão a resultados desejados. E essa é a conexão das
políticas públicas com o direito administrativo. Cada vez mais os
atos, contratos, regulam entos e operações materiais encetados pela
Administração Pública, m esm o no exercício de com petências discri
cionárias, devem exprim ir não a decisão isolada e pessoal do agente
267
público, mas escolhas politicam ente inform adas que por essa via
dem onstrem os interesses públicos a concretizar.
A form ulação da política consistiria, portanto, num processo, e
os programas de ação do governo seriam as decisões decorrentes
desse processo. Nesse sentido, o increm ento das atividades con
cernentes à elaboração das políticas e à sua execução insere-se num
movimento de “procedim entalizacão das relações entre os poderes
públicos”^-. Nesse fenôm eno sobressai o poder de iniciativa do go
vemo, mas tam bém o poder de influência do aparelho administrativo
quanto aos pressupostos da sua própria ação. D esfaz-se o mito da
Administração com o m áquina de execução neutra ou inerte, na me
dida em que o desenho institucional de determ inada política depen
de do conhecimento dos organism os adm inistrativos, dos procedi
mentos, da legislação, do quadro de pessoal disponível, das disponi
bilidades financeiras, enfim, de um conjunto de elem entos que se
não pode, sozinho, desencadear a ação — porque depende do im pul
so da dfieção política do govem o — , pode, por outro lado, tranformai'-
se em obstáculo para a im plem entação dessa iniciativa.
Isso porque, como se sabe, uma política de govem o pode ser
viabilizada ou inviabilizada confoiTne as decisões administrativas que
realizem os seus objetivos ou não. A guisa de exemplo, a criação de
órgãos públicos para atender a pressões de setores sociais — quando
não se fazem acom panhar das medidas adm inistrativas necessárias
para sua efetiva im plantação, tais como a criação de cargos, a abertu
ra de concursos para a form ação do quadro de funcionários — põem
a nu os reais vetores da ação governam ental'?
268
Finalmente, o adjetivo “pública”, justaposto ao substantivo “po
lítica”, deve indicar tanto os destinatários com o os autores da políti
ca. Uma política é pública quando contem pla os interesses públicos,
isto é, da coletividade — não como fórmula justificadora do cuidado
d iferenciado com in teresses p articu lares ou do descuido in d i
ferenciado de interesses que m erecem proteção — mas como reali
zação desejada pela sociedade. Mas uma política pública também
deve ser expressão de um processo público, no sentido de abertura à
participação de todos os interessados, diretos e indiretos, pai*a a m a
nifestação clara e transparente das posições em jogo.
Nesse sentido, o processo administrativo de form ulação e exe
cução das políticas públicas é tam bém processo político, cuja legiti
midade e cuja “qualidade decisória”, no sentido da clareza das prio
ridades e dos meios para realizá-las, estão na razão direta do am adu
recimento da participação dem ocrática dos cidadãos. O sucesso da
política pública, qualquer que seja ela, está relacionado com essa
qualidade do processo adm inistrativo que precede a sua realização e
que a implementa. As inform ações sobre a realidade a transformar, a
capacitação técnica e a vinculação profissional dos servidores públi
cos, a disciplina dos serviços públicos, enfim, a solução dos proble
mas inseridos no processo administrativo, com o sentido lato em
prestado à expressão pelo direito americano, determ inarão, no plano
concreto, os resultados da política pública com o instrum ento de de
senvolvimento.
269
em legislativa, executiva ejudiciáiia^''. Enti'etanto, a realização concreta
das políticas públicas demonstra que o próprio caráter diretivo do plano
ou do programa implica a permanência de uma pai'cela da atividade
“formadora” do direito nas mãos do governo (Poder Executivo), per
dendo-se a nitidez da sepai'ação entre os dois centros de atribuições.
“Em bora a form ulação de políticas seja uma função que geral
mente não figura entre as tarefas habituais dos burocratas, as respon-
sabiLdades que lhes concernem surgem porque o que se gera nesta
primeira etapa pode afetar a concretização das políticas. Em geral,
as autoridades políticas superiores definem o alcance e conteúdo das
políticas públicas. Deste modo, os procedim entos em que se produz
essa definição dificilmente afetam, e de fato determ inam , quais polí
ticas devem aplicar os burocratas. Estas duas eta[ is principais do
processo de form ulação de políticas estão estreitam ente relaciona
das entre si de diversas m aneiras”^\
Ter-se-ia alterado, segundo Fábio Konder Com parato, o senti
do material do governo:
“Acontece que não foi apenas pela form a de governar que o
Estado contem porâneo reforçou os poderes do ramo executivo. Foi
também pelo conteúdo da própria ação governam ental. Doravante e
sempre mais, em todos os países, governar não significa tão-só a
administração do presente, isto é, a gestão de fatos conjunturais, mas
tam bém e sobretudo o planejam ento do futuro, pelo estabelecim ento
de políticas a médio e longo prazo”^'’.
74. Garcia de Eritema critica o entendim ento apresentado por Eisenm ann, mas
que se pode dizer que consiste num entendim ento generalizado, em relação à apreen
são da separação de poderes, de M ontesquieu. Gar cia de E ntenia critica o uso inade
quado de O espírito d as leis. onde não se encontrará nem separação funcional nem
material das autoridades estatais. "A idéia de separação, entendida com o acantonamento
estrito dos poderes, cada um com m onopólio pleno sobre uma respectrva função, é
uma interpretação radicalmente falsa.” (Revolucióu Francesa, cit., p. 49).
75. John Burke. R esponsabilidadburocrática. Buenos Aires, Ed. Heliasta. 1994.
76. Compai'ato, Para viver a dem ocra cia, cit., p. 102. Quanto à estruturação
do poder, a p rop osta do autor é a in stitu içã o de um ó rg ã o de p la n eja m en to
desvinculado do Poder E xecutivo, cu jas d ecisõ es seriam tom adas por um C onselho
corporativo com atribuições distintas das do C ongi'esso N acional.
270
A teoria política cunhada no liberalismo atribui a função for
madora do direito à com petência exclusiva do Poder Legislativo, sede
da representação popular. A isso corresponde uma segunda linha de
defesa do princípio da legalidade formal na m aioria dos países, se
gundo Charles-Albert M orand. pela qual “o Parlamento pode proce
der a delegações de poderes, mas as normas mais im portantes devem
figurar na lei. O Parlam ento deve fixar a matéria sobre a qual incide
a delegação, seu objetivo e sua extensão”^?
Em m atéria de políticas públicas, o acerto dessa visão se con
firma em relação aos programas de longo prazo cuja realização ul
trapasse a duração de um governo. Os objetivos de interesse público
não podem ser sacrificados pela alternância no poder, essencial à
democracia. As leis de plano, portanto, conciliam princípio republi
cano e dem ocrático com as dem andas da estabilidade e da go
vernabilidade.
Todavia, como program as de ação, ou como program as de go
verno, não parece lógico que as políticas possam ser impostas pelo
Legislativo ao Executivo. A origem normativa da política pública,
mesmo que resulte da iniciativa legislativa do governo (Poder Exe
cutivo), é o Poder Legislativo. No entanto, diante da dim ensão assu
mida hoje pelo fenômeno da norm atividade do Poder Executivo, é de
se pensar que o mais adequado seria a realização das políticas pelo
Executivo, por sua própria iniciativa, segundo as diretrizes e dentro
dos limites aprovados pelo Legislativo.
O exercício de funções normativas pelo Poder Executivo é no
ção que se encontra num a zona mnzenta devido à necessidade cres
cente de instrum entos para uma ação ágil do governo. Esse tipo de
instrumento normativo permite que se realize o que Eros Roberto
Grau chamou de “capacidade normativa de conjuntura”^^ visando
77. C harles-A lbert M orand, Le droit n éo-m odern e, cit., p. 27. O autor enten
de que m esm o na França, em que a '^onstituição de 1958 deu grande am plitude ao
poder norm ativo do Fxecutivo, ao admitir os decretos autônom os, a jurisprudência
tanto do C onselh o de Fstado co m o do C onselh o C onstitucional acabou restaurando
o dom ínio tradicional da lei.
78. Grau, P lan ejam en to econ ôm ico, cit., p. 69.
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ao desempenho de uma atividade de ordenação pelo Estado sobre os
agentes econômicos. O fenôm eno, segundo o autor, corresponde ao
aumento da quantidade e da im portância das norm as editadas pelo
Poder Executivo, por meio da Administração centralizada ou dos entes
estatais autônomos, m ediante o exercício de com petência delegada
pelo Poder Legislativo. Esse fenôm eno foi analisado tam bém por
Fábio Konder Com parato, que constata a generalização, nos países
dv Ocidente, da “parcial transferência ao Executivo da própria tarefa
de fazer leis”''^, tendência de que não se exclui o Brasil, adepto dos
decretos-leis no regime constitucional de 1967/69 e das medidas pro
visórias, que se converteram no principal instrum ento legislativo do
govem o sob a égide da Constituição de 1988. O instrum ento da m e
dida provisória, previsto no artigo 62 da Cons /iuição Federal, foi
inspirado no modelo parlam entarista italiano visando o que viria a
ser o parlam entarism o brasileiro. A opção do constituinte pelo presi
dencialismo, no entanto, se fez sem as necessárias adaptações.
Observe-se que a delegação é a form a mais intensam ente utili
zada pelo Poder Executivo am ericano para regulam entar e fiscalizar
setores inteiros da atividade econôm ica sem a atuação direta do Po
der Legislativo, que apenas fixa as diretrizes para a ação adm inistra
tiva das agências.
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serviços públicos. Em segundo lugar, trata-se de saber se e como o
Judiciário pode provocar a e.x.ecução de tais políticas”'"’.
A escassa jurisprudência brasileira sobre o assunto, que tem
algumas decisões concentradas na tem ática ambiental, dá idéia de
que o equilíbrio entre os poderes é uma questão que está m uito longe
de ser equacionada.
“Apelação cível n. 166.981-1/1;
(...) Aqui, o Ministério Público oficiante perante o Juiz da Comarca
de M anlia entendeu que o lançamento dos esgotos domésticos da pe
quena comunidade de Oriente (...) implicava em prejuízo ao equilibrio
ecológico, eis que sem tratamento de seus dejetos. E em conseqüência
pôs em juízo a ação civil pública, para que a Prefeitura local fosse
obrigada à construção de sistemas de tratamento de esgotos, ou de
contenção de seus detritos e tratamento, antes de serem lançados às
águas fluviais. Deu-lhe razão a sentença, condenada a ré em atender
no prazo de seis meses, pena de multa diária (....)
O julgado não se sustenta porque a pretensão do autor não era
providência admissível pelo direito objetivo (...) na m edida em que
não podem os Juizes e Tribunais assom ar para si a deliberação de
prática de atos de administração, que resultam sempre e necessaria
mente de exame de conveniência e oportunidade daqueles escolhi
dos pelo meio constitucional próprio para exercê-los.
Salta à evidência que, por sérias e bem intencionadas que se
jam as posições de não adm inistradores (...) de ver dotada a peque
na Oriente de m elhores ondições de saneam ento básico, tal cir
cunstância nem de longe arreda a objeção de que, dentro de seus
critérios próprios, podia e devia a A dm inistração M unicipal dosar
prevalências, usando seus recursos financeiros, em assim enten
dendo, para outros cam pos, sabido que são várias as urgências a
que devem atender as Prefeituras.
Logo, a presente ação civil pública o que fez foi discrim inar
entre as urgências da com unidade, escolhendo uma como maior que
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outras tantas, e ordenando que fosse atendida, o que não tem cabida
ao prisma da ordem político-social, como tam bém ante a Constitui
ção Federal, desde o seu artigo 2-, nem é da letra ou do sentido da
legislação específica das ações civis públicas.
Nada pode fazer a Adininistração, que não se contenha em seus
recursos, e ademais, há de fazê-lo segundo as previsões programáticas
e orçamentáiáas, aí ingerindo tam bém outro Poder, o Legislativo, cujas
atribuições igualm ente restai'am atropeladas”’".
No mesmo sentido, o acórdão proferido na Apelação n. 175.123-
1/8, em ação civil pública que determ inou à SABESP o tratam ento
de efluentes da rede pública de esgoto, antes de seu despejo nos rios
m encionados na ação:
“O provim ento d esb o rd a flag ran tem en te dos lindes ju ris-
dicionais, implicando grave usuipação da atividade discricionária,
que ao Poder Público in genere é atribuída, consistindo, mesmo, em
uma de suas mais relevantes motivações funcionais. (...) Permitir,
por hipótese, que o Judiciário, extravasando as comportas de sua atua
ção hétero-com positiva. venha a coartar o Executivo a uma obra,
embora a repute conveniente e inadiável, traduz frontal lesão ao prin
cípio constitucional, que considera os Poderes harm ônicos porém
independentes entre si. (...)
Conquanto a novel legislação, contida no Código do Consum i
dor — diploma sobremodo hodierno para um País de poucas tradi
ções de proficuidade — assegure ao cidadão adequada e eficaz pres
tação dos serviços públicos em geral, nem por isso se arma a jurisdi
ção de instrum ento hábil a ditar processo de atuação técnica ao Exe
cutivo, sem despersonalizar por inteiro a inerência fundam ental des
se Poder. (...)
Se, p er ühsurduni, convalidássem os a insólita fiscalização dos
atos da A dm inistração Pública pelo Judiciário, sem ressaibo de dú
vida teríam os im plantado o caos. Este últim o assum iria um descon
certante m onism o funcional, com o instância não de reparação das
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m azelas adm inistrativas, mas órgão reitor de toda a dinâm ica exe
cutiva”"?
Em sentido contrário, com fundam ento na garantia constitucio
nal dos direitos sociais, outro acórdão do mesmo Tribunal de Justiça
de São Paulo, também em m atéria ambiental, mais uma vez entre o
M inistério
y
Público,
_
vitorioso em primeira instância, e o Departamento
de Aguas e Esgotos, este batendo-se pelo direito de determinai', ele
próprio, o momento e o m odo de cum prir o ditame constitucional de
zelar pelo meio ambiente. A matéria de fato é idêntica à ventilada no
primeiro acórdão, despejo de esgoto in natura em m anancial de abas
tecimento da cidade:
“Todas as partes convêm em que é im periosa e inadiável a cons
trução de sistemas de tratam ento dos esgotos. Sendo-o, não podem
as litisconsortes passivas retardá-la, a pretexto de não terem sido ain
da definidas as áreas prioritárias de ação governam ental. A saúde
coletiva é, por sua natureza, prioritária; a respeito, não há discricio-
nariedade do Poder Público: sem água cujos padrões de pureza se
encontrem dentro das classes legais de aproveitamento (cf. anexo ao
Decreto estadual n. 8.468, de 8.9.1976) a própria vida não é possível,
como bem prim eiro !
Nem devem arrecear-se de que se lhes im ponha ônus financeiro
incompatível com sua força orçam entária. Não foi por outra razão,
senão para adequar os projetos e cronogram as às disponibilidades
dos orçam entos das devedoras que, com sensatez, a r. sentença sub
meteu a ai'bitramento prévio, à luz de prova técnica ampla, o prazo
de cum prim ento da obrigação declarada”"?
Esses acórdãos dão uma pequena am ostra do campo de contro
vérsias que se abre em relação ao controle das políticas públicas pelo
Poder Judiciáiáo. Talvez não sejam essas decisões as mais significa-
tivas^ e m sejam "esses osJ eadmg-ertses. Mas" a s ú ã lra n s c riç ã o se
justifica por revelar de um lado a natureza dos argumentos e de outro
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o desencontro conceituai (e não apenas de visão política) em tom o
da questão da separação de poderes. No que diz respeito ao direito
adm inistrativo, destaque-se a polêm ica quanto ao significado da
discricionariedade administrativa, ora concebida como liberdade de
escolha de prioridades, ora entendida de modo mais estrito, como pos
sibilidade de escolha de meios para a reahzação da finalidade da lei.
A ponderação enUe interesses conflitantes é bastante dehcada, as
sim como a própria titularidade dos direitos é polêmica, uma vez que
tanto o Ministério Púbhco-autor da ação, como o Poder Executivo-réu
ou o Poder Judiciário que decide são todos integrantes do Poder Público
e agem igualmente em defesa do interesse público. Trata-se, portanto,
de identificar o interesse público mais relevante na questão, aquele que
reahza com maior propriedade a finalidade da lei, e verificar se as medi
das concretas em anáhse são válidas e eficazes para reahzá-lo.
A esse respeito, pondera José Afonso da Silva contra o que qua
lifica de “judiciarism o” no Brasil de hoje, especialmente em relação
às iniciativas do M inistério Público, que levam o Poder Judiciário, a
pretexto de exercer a guarda dos princípios constitucionais, a avan
çar “ao fundo do mérito, da oportunidade e da conveniência de ativi
dades da Adm inistração Pública”''''.
M erece c o m e n tá rio , ain d a, um o u tro ex em p lo — cu ja
justiciabilidade é controvertida — em que a ação adm inistrativa se
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faz com base numa política pressuposta, um “não-plano”, cujos reais
objetivos não são claros nem foram submetidos às instâncias com pe
tentes, especificam ente ao Poder Legislativo.
Trata-se de parecer do Conselho Nacional de Educação em que
se discutia a falta de uniformidade dos critérios de avaliação das Co
missões de Especialistas e de Verificação em face da “política do MEC
no sentido de diversificar o sistema de ensino superior brasileiro”.
“Esta política admite que instituições que associam ensino e
pesquisa constituem um segm ento im portante do sistema, mas não
podem ser consideradas nem como modelo nem com o paradigma
das demais instituições de ensino, as quais tam bém são necessárias
como ocorre nos países desenvolvidos e não devem ser avaliadas
pelos mesmos critérios que se aplicam a universidades. É perfeita
mente possível a existência de bons cursos de graduação, especial
mente na área de form ação profissional, que não desenvolvam pes
quisa (a não ser como atividade prática dos alunos) e que não incluam
no corpo docente elevado percentual de mestres e doutores''^^.
O que cham a atenção no trecho destacado é que essa “política
de diversificação do ensino superior brasileiro” não está formalizada
em nenhum a norm a ou docum ento jurídico produzido segundo os
processos de form ulação tradicionais da política. Qual a lei ou qual o
instrum ento que consagra a dita “política de diversificação” ? E mais,
como pode essa “política sem lei” ou essa “política à m argem da lei”
induzir a uma aplicação contrária de disposição expressa da Lei de
Dx. -trizes e Bases, que exige que o corpo docente das universidades
seja integrado por no m ínim o um terço de mestres e doutores (Lei n.
9.394/96, art. 52, II)?
Pensando ainda na reform a do Estado que optou pelo enxu
gamento de serviços sociais, é razoável considerar a existência de
uma categoria das “políticas públicas não escritas ’, que se expressa,
não num docum ento oficial, mas no estrangulam ento de verbas orça-
’nentárias, no bloqueio de contratações de pessoal, no congelamento
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de salários, na canalização de verbas para setores concorrentes. N es
se caso o que, concretam ente, deveria ser subm etido ao controle ju
dicial? Qual seria o objeto de uma ação de inconstitucionalidade ou
de ilegalidade dessa política pública (ou dessa política “não-públi-
ca”)? Quem sabe não se deveria propor a figura de jm a ação cautelar
de inconstitucionalidade por omissão, exatamente para obrigar que
os pressupostos dessa política fossem expressos segundo um a forma
passível de reconhecim ento e controle pelo sistema jurídico?
Pergunta-se ainda; o que teria o direito administrativo tradicio
nal a dizer sobre esse “não-plano” ? Como se pode dar conta desse
problema utilizando-se as categorias tradicionais do ato, contrato,
regulamento e as operações m ateriais? Poderia o governo argum en
tar que se trata de atos adm inistrativos proferioos no âm bito de sua
com petência discricionária? Com o fica a questão da continuidade do
serviço público se a qualidade de sua prestação ficar com prom etida
a tal ponto, que ele venha a decair da condição de excelência que
chegou a atingir? E se, nesse m om ento, não se puder mais prestar o
mesmo serviço, porque os funcionários especializados terão m igra
do inteiram ente para o sistem a privado, o que se dirá dos princípios
da economicidade e da moralidade na Administração Pública? E cons
titucional ou legal que os recursos públicos investidos por décadas
para a formação de um sistem a nacional público de ensino e pesqui
sa sejam dispersados em nom e de uma “política de diversificação”
oculta? São esses atos pren'ogativas da Adm inistração Pública?
Este trabalho não traz resposta a estas perguntas mas pretende,
por meio delas, dem onstrar a pertinência da crítica ao paradigm a
tradicional do direito administrativo, por demais estreito para dar
conta da com plexidade da relação entre a A dm inistração Pública e a
sociedade nos novos tempos. Abre-se aqui uma senda para a pesqui
sa de novas formas de articulação entre o direito e a política no direi
to público. E possível que o aprofundam ento da elaboração jurídica
em tom o do conceito de políticas públicas faça dessa vereda uma
lai'ga avenida.
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