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RANDAL JOHNSON A dinamica do campo fame ee AO LADO, CASSIANG RICARDO, DE FARDAO ACADEMIC, EM Foro DE 38: NA OUTRA "AGIA CRONISTAE TRADUTOR CARLOS DRUMOND DE ANDRADE, os anos 30 e 40, o campo literdario brasileiro passou porumaprofundareestrutura¢ao(1).Du- rante esse perfodo, o Modernismo canonizou-se e institucionalizou-se, surgiram novas gerag6es de escritores ea di- visao do trabalho intelectual tornou-se mais diversificada e mais especializada. Por volta de 1945,adinamicadessecampo, baseada em mudangas estruturais da autoridade literdria, tinha sido alte- rada de formairreversivel. Aoexaminar osingredientes decisivos da transformagiio desse campoliterério, este estudo temo objeti- vo de mapear as relag6es sutis e complexas entre a literatura e os diferentes niveis de autoridade e de poder nasociedade brasileira. Na primeira parte, fornecemos um pano de fundo e um enquadramento dos pressupostos teéricos deste estudo. Na segunda, enfocamos quatro componentes varidveis do campo liter4rio: as relag6es entre os intelectuais modernistas e o Esta- do; a expansdo da industria editorial; a luta pela definigao legi- tima do trabalho literario; e, finalmente, a redescoberta da autonomia do campoliterdario. O ensaio terminacom um breve estudo de caso, focalizando Octavio de Faria. RANDAL JOHNSON 6 professor da University of California, Los Angeles. Tradugao de Antonio Dimas REVISTA USP, SKO PR 2by: 164-181, JUNHO/AGOSTO 1995 165 PANO DE FUNDO E ENQUADRAMENTO TEORICO. Nos tiltimos vinte anos, o perfodo entre a Revolugdo de 30 e a queda de Gettilio Vargas em 1945 atraiu a atengo cada vez maior de estudiosos das mais diferentes dis- ciplinas. Numerosos fatores explicam o in- teresse sempre crescente por esse perfodo ‘como, por exemplo, a expansio dos progra- mas de pés-graduagdo em Ciencias Sociais nauniversidade brasileiracomaconsequien- te proliferagdo de teses de mestrado e de doutoramento. As mudangas sociais, eco- nOmicasepoliticasqueseseguiramaosacon- tecimentos de 1930, ano que pode ter sidoo marco de nascimento do Brasil moderno, sdo suficientes para justficar tal interesse historiogréfico. Noentanto,etalvezdemodo ‘mais importante, os vinte e um anos da re- cente ditadura militar (1964-85) podem ter despertadointeresse entre osestudiososdas mais diversas disciplinas, tanto no que se refere ao impacto do regime militar, como, num sentido mais amplo, no que se refere & natureza conservadora e autoritdria da lade brasileira. Tal preocupacao leva, inevitavelmente, aos anos 30 e, particular- ‘mente, a0 Estado Novo (1937-45), cuja he- ranga foi, entre outras, a centralizagao e a expansio da burocraciaestatal, acriagdode estruturas corporativas de organizagio so- cial e politica e a redefinigdo da relagdo en- tre os intelectuais e o Estado. Nos estudos literdrios, esta reavaliagio comegou a ocorrer sé recentemente, talvez porque a relacio entre literatura e autoritarismo seja menos visivel logo de imediato, exceto quando se trata de censu- ra, e menos significativa do que em outros setores, pelo menos num nfvel superficial (2). Além disso, os contornos gerais da lite- ratura brasileira entre a Revolugdo de 30¢ oretorno a democracia em 1945 jé so bem conhecidos. Seu cinon esté bem assentado, mesmo que passe constantemente por reinterpretagdes puramente textuais. Ade- mais, o campo da critica, em sua preocupa- do com a textualidade e mais particular- mente com a ruptura lingufstica, nem sem- pre tem favorecido 0 reexame desse perio- do, no qual a elaboragio estética do texto torma-se, com frequéncia, abjeto secundé- rio para consideragOes externas. No entan- to, mesmo um exame superficial das rela- REVISTA USP, SHO PAULO (26) g6es entre o Estado Novo ea producio lite- réria ¢ cultural evidencia a importancia de ‘uma revisdo critica que ultrapasse os limites da simples textualidade. Embora o campo liter4rio possua claramente sua prépria especificidade, seus valores, sua organiza- 0, seusobjetosde debateeseusagentesde consagra¢do, muitas das preocupagGes, ten sdeseestruturasdocampoliterérionosanos 30sdoinsepardveisdaquelesquepertencem aum campointelectual mais amploe dosis- tema social de que faz parte. Os erfticos so virtualmente un&nimes emreconhecer o impacto dos acontecimen- tos de 1930e de seus arredores sobre ocam- po literério. Contudo, baseados, talvez pa- radoxalmente, na pressuposigao de que a literatura representa uma forma autnoma de discurso cultural, a maioria dos estudos sobre a literatura desse momento persegue um modelo carismético que salienta 0 “g6- nio” de escritores individuais e de obrasiso- ladas. Neste tipo de andlise, a relagio entre a literatura e a sociedade quase sempre se reduz.a “representagio” da realidade ou a declaragées ainda mais indefensdveis como, porexemplo, ade que asubversio” dasin- taxe equivale a subversao politica das estru- turas de poder da sociedade brasileira, O pressuposto teérico e central deste estudo é 0 de que a literatura e os textos literdrios ndo so totalmente autonomos, nem inteiramente auto-suficientes ¢ nem ainda simples “reflexos” das estruturas so- ciais, mas sim que constituem uma rede di- namicaderelagdessociais, intimamente vi culada a relagbes sutis de autoridade e de poder. Edward Said tem argumentado que 0s textos obtém sua autoridade em decor- réncia do que ele chama de “afiliagBes”, 0 que é, mais ou menos, aquilo que chamo de “relagdes sociais”, Para Said, as afiliagdes so “aquela rede implicita de aisociagdes culturais peculiares entre formas, discursos coutraselaboragdes estéticas, por um lado, einstituigdes, agéncias, classes e forgas so- ciaisamorfas, por outro”. Tais afiliagdes fin- cam escritores e seus textos num sistema complexo de relagdesculturais queincluem 0 “status do autor, scu momento histérico, ascondigdes de publicacao, difusdoerecep- Ho, valores utilizados, valores e idéias pre- sumidas, um quadro de suposigées tcitas admitidas de modo consensual, um pano de fundo presumivel,ete.”(3). 164-181, JUNHO/AGOSTO 1995 GRACILIANO RAMOS, CONSIDERADO Pai DA'GERAGAO DE 30, TAMBEM CONHECIDA Como Genagae REGIONALISTA A pritica literéria define-se, portanto, demodorelacional, tantoem termosdeuma “intertextualidade” fundamentalmentelite- réria, quanto em termos do quadro institucional dentro do qual a literatura emerge ese sustenta. No caso especifico do Brasil, onde a produgao cultural tem-se de- senvolvido a sombra de ou dentro de pardmetros autorizados pelo Estado, as re- lagdes com o(s) poder(es) constitufdo(s) devem ser consideradas como parte das miltiplas afiliagdes da literatura. Isso no REVISTA USP, SHO PAULO (26) quer dizer que os intelectuais ou os escrito- res sejam “contaminados” em sua ligagdo com oEstado; que aliteratura esteja neces- sariamente a servigo do Estado; ou que es- teja diretamente sujeita a determinagées econdmicas; ou, ainda, que simplesmente “reflita” as ideologias politicas externas. Ao contrério, a literaturae.praticaliterdriabrasi- leiras participam e expressam, de varias maneiras, as clivagens que caracterizam 0 pensamento da elite social de modo geral. ‘Ambas servem, em dltima instncia, para 164-181, JUNMO/AGOSTO 1995 reproduzir,em um mercado de bens simb6- licos, a estrutura hierérquica da sociedade brasileira (4) Dizer que 0 campo literdrio reproduza sociedade nao é denegrir 0 valor da obra artistica ouliteréria, Pelocontrério. Issoaju- daa explicar o seu poder, sua autoridade e sua fungdo social. Na discuss4o sobre as afiliagdes, Said demonstra queaculturaser- veao “poder e,em tiltima instancia, aoesta- do nacional, no porque ela reprime e coa- ge, mas sim porque é afirmativa, positiva, persuasiva” (5). A literatura e a cultura expressam os valores, as ansiedades e as preocupagées de um certo segmento da so- ciedade, possuindo, portanto, um valor es- sencialmente positivo, pelo menos para aquele segmento. Ao mesmo tempo, torna- se dificil discutir a universalidade desses valores, mesmo dentro de um contexto na- ional especifico. Pelo contrério, ao expres sar os valores de fragio especifica de uma classe e ao se reproduzir, a pratica literéria tende a participar do trabalho de reprodu- 4osocial, reforgando, desse modo, aqueles valores e a estrutura social da qual emerge. A TRANSFORMAGAO DO CAMPO. LITERARIO © Modernismo, os intelectuais e o Estado O trabalho intelectual ocorre em con- textossociaisespecificos, entrecortadosine- vitavelmente por uma série de tens6es. No Brasil dos anos 20 ¢ 30, algumas dessas ten- Ges inhama ver comocentralismo politico versus 0 federalismo descentralizador da Primeira Repiblica; a modernizagao institucional versus a continuagdo de seto- res tradicionais da elite no poder; a criago de uma cultura nacional autoconsciente versus uma heranga cultural européi desejo de reforma versus a necessidade de autopreservagao; a existéncia de uma so- ciedade civil fraca versus um Estado cada ver mais forte; e com a missio que os inte lectuais se atribufam dentro do projeto de construgao nacional versus seu isolamento real perante os centros de poder. Durante oEstadoNovo, Gettilio Vargas apelou aos intelectuais e aos escritores para que abandonassem a torre de marfim que haviam ocupado com freqiiéncia durante © REVISTA US?, Sho PAULO (26) perfodorepublicanoeinstou-os aque parti- cipassem de modo ativo na tarefa de cons- trugdo nacional. Falando por ocasiaiodesua possena Academia Brasileira de Letras,em 1943, Vargas criticou o papel anterior da Academia ¢ 0 isolacionismo dos intelectu- ais em relagdo a sociedade, advogando, em vez disso, a “simbiose necesséria entre ho- ‘mens de pensamento e de ago” que come- ara a se formar nos anos 30. A entrada de Vargas na Academia, orquestrada por Cassiano Ricardo, poeta e idedlogo do Es- tado Novo, personifieava, num nivel pura- mente simbélico, esta simbiose (6). Emoutras ocasides, Vargas reconheceu a importancia do movimento modernista brasileiro com relagao a Revolugio de 30¢ ao Estado Novo. Em discurso pronunciado na Universidade do Brasil, em 1951, por exemplo, Vargas lembrava o significado do relacionamento entre literatura e politica. “As forgas coletivas que provocaram 0 ‘movimentorevoluciondriodomodernis- ‘mo na literatura brasileira [...] foram as. ‘mesmas que precipitaram, no campo social e politico, a Revolugio vitoriosa de 1930. A inquietagao brasileira [...] buscava algo de novo, maissinceramen- te nosso, mais visceralmente brasileiro [..] arenovagao dos valores literérios ¢ artisticos, por um lado, [e] a renovagio dos valores politicos e das préprias insti- tuigdes [por outro] [...]se fundiram num movimentomaisamplo, mais geral, mais completo, simultaneamente reformador © conservador, onde foram limitados os excessos, [..] harmonizadas as tendén- cias mais radicais e divergentes” (7). Segundo a interpretagio retrospectiva de Vargas, operou-se uma convergéncia entre os campos literdrio e politico no dese- jo pela modernizagao (“renovagio” na fala de Gettlio) e pelo nacionalismo. De fato,a tensdo entre o cosmopolitismo eo naciona- lismo cultural que estruturou o modernis- mo-uma‘modernidadecontradit6ria” para usar a expresso de Daniel Pécaut - esta no miolo de muitas das quest6es politicas le- vantadas nos anos 30 (8). Embora a viséocan6nica predominante do Modernismo tenda a reforgar seus as- pectos “progressistas” (ruptura com o dis- curso liter4rio anterior e, por extensio, 164-181, JUNHO/AGOSTO 1995 afiliagdo a posigdes politicas e ideolégicas “progressistas”), a dupla énfase do discurso presidencialsobreamodernizagaoeatradi- ‘¢do (““reformador e conservador”) caracte- rizade modobem preciso tanto oModernis- mo quanto as fundagées ideolégicas do re- gime corporativo de Getélio Vargas, que fez esforgos concertados para delinear e estabelecer suas raizes e suas intengSes cul- turais. Isso, por outro lado, facilitou a con- vergéncia de interesses entre intelectuais € Estado, bem como a incorporacio daque- les dentro do aparato estatal, durante o Es- tado Novo (9). Foramintimerosos fatores que envolve- ram, éclaro,estaconvergéncia, um dosquais foiaexpansio da burocracia federal e aqui- Jo que Sérgio Miceli chamou de “mercado de postos” (pp. 130-40), usando expresso emprestada de Bourdieu. Além dessas con- sideragdes de ordem institucional, muitos intelectuais, incluindo-se ai a maioria dos modernistas, responderamconvocagio do Estado Novo que pedia a sua participagao noprocessodeconstrugo nacional, enquan- to que outros, imbufdos de um sentido de missao patristica, j4 vinham, desde meados dos anos 20, expressando o desejo de parti cipar da vida puiblica. Esta “misso” auto- atribufda, que freqiientemente assume a forma de “consciéncia”, “guia”, “mentor” u “voz” nacional, tem sido caracterfstica de intelectuais em diversas circunstancias nacionaischist6ricas. Emmomentosdecrise oude transformacao politica, osintelectuais brasileirossempre exigiramedefenderamo direito de intervir no processo de organiza- Ao, reorganizacao ou de transformagao nacional. Logodepois da Independencia, os. escritores romanticos - a maioria dos quais estava intimamente vinculada ao governo imperial-chamaramparasiatarefahercdlea de forjar uma cultura nacional. Dafa preo- cupacdo, perceptivel noindianismodeGon- alves Dias e de José de Alencar, com acri= aco de simbolos de identidade nacional. Com a declaracdo da Reptblica (1889), muitos intelectuais, armados de teorias positivistas e de um liberalismo ideolégico, viram-se como “guias” no processo de mo- dernizagéo e como instrumentos para 0 remodelamento do Estado. Nos anos 20, a preocupacio cientificista dos republicanos foisubstituidapelonacionalismoculturalque procuravaasrafzesdabrasilidade comoparte de um processo mais amplo de descoberta nacional (10). Naesteira da Primeira Guerra Mundial € do notério fracasso do liberalismo, 0 Bra- silenfrentava uma crise muito séria, na qual © tema da revolugdo era constante no dis- curso cultural e politico. Escritores como Alberto Torres ¢ Manoel Bonfim rejeita- vam as tradicionais andlises deterministas sobre o relativo atraso do pats, amplamente: baseadas nas teorias dodarwinismosocial e na inferioridade “inerente” das ragas nao- arianas. Em vez disso, eles exigiam ocxame dosdeterminantes hist6ricos. Bonfim incor- porou seu anti-racismo dentro de uma posi- ‘<0 de nacionalismo e de antiimperialismo, argumentando que os “latino-americanos tinham que rejeitar o racismo ndo somente porque era cientificamente falso, mas, mais importante, porque era um instrumento usado pelos estrangeiros para desmoralizé- los e desarmé-los” (11). Como solugao, Bonfim reclamava enormes aumentos nos gastos de educacdo, item que tinha sido amplamentenegligenciandodurante toda hist6ria do Brasil. Junto com a rejeigo da superioridade ariana, encabecada por Manoel Bongim, Alberto Torres defendia uma posigaoagressivadenacionalismoeco- némico, ao mesmo tempo em que denunci- ava aalienacao da elite brasileira, idéia essa que seria forgosamente retomada por seus seguidores nas décadas seguintes (12). Durante 0s anos 20 ¢ 30, intelectuais de jiversas crengas demonstraram preocupa- ¢40.com a ignordncia dos brasileiros em re- ago a sua propria terra e com a necessida- dedeliberté-losde modelos importados (13). Em Oliveira Vianna, por exemplo, esta preocupagao toma a forma de uma ops g4o entre o “Brasil legal” e o “Brasil real”. O “legal” ¢ 0 Brasil que existe apenas de modo abstrato em documentos tais comoa Constituigao de 1891, Trata-se de uma na- ‘doestruturadade.acordocom osprincipios do liberalismo democrético, com uma filo- sofia e um sistema politicos importados da Europa e, portanto, inauténticos, artificiais ealienados da realidade brasileira. O Esta- do liberal fracassou em criar uma unidade nacional,emdotaropafsdeum{mpetorumo Amodernizagaoeem aleangar aconciliagao das classes sociais. Era preciso outra f6rmu- Ja, mais adaptada & realidade brasileira. © Brasil “real”, livre de ideologias cos- REVISTA USP, SHO PAULO (269: 164-181, 1UNMO/AGOSTO 1995 169 mopolitas, existe, em sua forma mais pura, no interior, dominado pelas elites senhori- aise fundidriaseé “autocratico,paternalista e patriarcalista, autoritério antidemocrético” (14). Assim, para se pre- servar e se garantir a soberania ea sobrevi- véncianacionais, Oliveira Viannapropunha, no lugar do liberalismo, um autoritarismo autéctone, nacionalista e especificamente brasileiro, dominado por elites ilustradas e, senecessério,reeducadas. A formula que se embute no miolo do pensamento de Olivei- ra Vianna-modernizag4o institucional atra- vés do autoritarismo nacionalista - informa a matriz de grande parte do pensamento polftico brasileiro entre as guerras (15). Embora se mostrasse um pouco tardio na adogo do nacionalismo cultural explici- to que permeou 0 campo intelectual desde 1916, a preocupagdo do Modernismocom a modernizagao da literatura brasileira corresponde, mais ou menos, ao apelo de modernizacdo institucional defendido por Oliveira Vianna. Alids, as mesmas cate- goriasutilizadas por Oliveira Vianna, quan- do rejeitou 0 liberalismo, so as que o Mo- dernismo usa ao atacar os modelos literdri- os que o precederam: inautenticidade, attificialismo e alienagao da realidade bra- sileira. Em momentos diversos, o antili- beralismo do movimento expressou-se atra- vés de figuras como Graga Aranha, Ronald. de Carvalho, Oswaldde Andrade, Cassiano Ricardo, Ribeiro Couto, Menotti del Picchia € Plinio Salgado. Sua procura, sobretudo a partir de 1924, de modos brasileiros de ex- pressdo ajusta-se bem as correntesnaciona- listas do pensamento autoritério em geral, incluindo-se af a énfase na necessidade do predominio das elites ilustradas (16). Mesmo ointeresse pela cultura popular, muito evidente, por exemplo, na obra de Mario de Andrade, néo_ implicou redistribuigdo de bens econdmicos ou mes- mo simb6licos. Ao contrério, a cultura po- pular serviu como modelo ou fonte de “ins- pirag4o” para a regeneracao da produgaio daelite-alinhada com diregdes mais “auten- ticamente” nacionais (17). Umasubcorrente messianica, representada especialmente pelo Pau-Brasil e pela Antropofagia de Oswald, assim como pela facgao Verde- Amarelo/Anta, encontraria sua plena ex- pressfio depois de 1930 com a exacerbacao das tensbes politicas,com oestilhagamento REVISTA USP, SAO PAULO (26) doModernismoem linhasideol6gicasecom © surgimento do romance social neonaturalista. A direita ou a esquerda, os intelectuais viram-se imbufdos de miss&o espectfica na tarefa de salvagdo nacional e, neste sentido, tentaram romper com 0 isolamento que se experimentara durante aPrimeiraRepabli- ca. Apesar das andlises e dos progndsticos diferentes, eracomum atodasastendéncias a idéia de que a solugio da crise dependia quase que exclusivamente de umaelite ilus- trada, Omedo da “revolugao” estavaimplt- cito tanto na critica do liberalismo, quanto na afirmagdo de que as massas eram igno- rantes. Assim sendo, tanto os setores pro- gressistas quanto os conservadores desen- volveram concepgdes orgénicas da socieda- de edapolftica. A modernizagaoeaorgani- zagao institucionais eram meios de impedir uma verdadeira revolugio e uma transfor- ™magdosocial profunda. Em outraspalavras, a geragio de 1920 descobriu e tornou co- nhecida a “vocagdo nacional” e o lugar que osintelectuaisdeveriam ocuparnopafs,mas raramente aquela vocagdo se ligava a um desejo de transformagées realmente revo- lucionérias (18). Luciano Martins argumenta que, nos anos 20, uma inteligéncia nativa comegou a se constituir no Brasil na medida em que diversos grupos exigiam ou aspiravam pela modernizagio social, politica, cultural, eco- nOmica e institucional, cujo objetivo diltimo eraaconstrugao de uma nagdo moderna. O desejo de legitimidade dessa inteligéncia, essencial para o cumprimento de uma mis so auto-atribuida, provinha do reconheci mento eda valoriza¢do de seu conhecimen- to por amplos setores da elite social, assim como da sua habilidade em definir 0 “naci- onal” e de tragar as condigoes gerais para a organizagao social. No entanto, essa inteli- géncia falhou quando chegou a hora de estruturar um campo cultural autondmo, j4 que 0 elo que se procurava entre a modernidade e a modernizagao levou, pri- meiro,aaliangas insatisfat6riascom ideolo- gias politicas superadas ou extremistas, de- pois, e mais importante, levoura ao Estado. ‘essa forma, antes que se desenvolvessem estruturas ou instituigdes auténomas que garantissem certa independéncia de aco, isenta deimposigdes externas, ocampo.cul- tural tornou-se altamente politizado e cai Vo4-181, JUNHO /AGOSTO 1995 sob ainfluéncia do Estado, quando nao sob ‘0 seu controle (19). No fim dos anos 20, comego dos 30, muitosintelectuais tenderam aassociarsuas atividades com as do Estado, por eles defi- nido como “a representagao mais elevada da Nagao”, e ao qual atribufam a preserva- do da ordem, a organizagio e a unidade nacional. O papel desses intelectuais, acre- ditavam alguns, era insepardvel dos objeti- ‘vos mais amplos do Estado e, desse modo, muitos deles se uniram na adogdo de solu- gdesautoritérias ede desmobilizagao social. © antiliberalismo desses intelectuais, sua desconfianga das elites econ6micas, assim ‘como sua crenga no poder das idéias que conduzem & ago coincidiu com posigdes sustentadas por largos setores das elites politicas e sociais. E, na medida em que tais elitesexpressavamodesej ode“redescobrir” ‘Brasil verdadeiroe deconstruircientifica- ‘mente uma identidade nacional, esse mes- mo antiliberalismo encontrou ressonancia nas tentativas do Estado em erigir um senso de nacionalidade e de forjar uma unidade politica e cultural organica. Porcausa destacoincidéncia de propési- tonacional(ista), oregimede Getilio Vargas teve sucesso em cooptar ¢ em incorporar intelectuais de varias tendéncias, numa es- ala bem ampla. A definigdo da missdo cul- tural desse regime -construir um sentidode nacionalidade e uma unidade cultural atra- -vés da redescoberta das ratzes culturais na- cionais - ajustou-se plenamente ao prop6si- to dos intelectuais. Desse modo, acultura e politica tornaramse inseparaveis, Duran- te 0 Estado Novo, o Estado penetrou em todas as 4reas da atividade cultural, nao apenas através do controle ideol6gico, mas também através do apoio & criagao de asso- -ciagbes profissionais e, de modo ativo, res- paldando as diversas formas de produgao cultural, por meio de organizagSes como 0 Servigo Nacional de Teatro (SNT), 0 Insti- tuto Nacional de Cinema Educativo (Ince) colnstituto Nacional do Livro (INL), todos criados em 1937. Em outras palavras, a cul- tura tornou-se atribuigao do Estado (20). ‘Ao expressar a relagaio adequada entre ointelectualeaelitepolitica, Getiilio Vargas adotouumaidéiaque vinhasendorecomen- dada desde meados dos anos 20 pelos inte- lectuais ligados ao grupo Verde-Amarelo/ Anta, uma subcorrente do Modernismo. A. maioria deles jé estava engajada na justifi- cacao ideolégica do Estado autoritério/ corporativo, assim como em vérias modali- dades dos esforgos de propaganda do Esta- do Novo. Menotti del Piochia, Cassiano Ricardo e Candido Motta Filho tinham ser- vido,um depoisdooutro,comodiretoresdo DepartamentoEstadual de Imprensae Pro- paganda (Deip), asegdo paulista da agencia de propaganda governamental, Cassiano Ricardo, em seguida, dirigiu o jornal gover- nista A Manhd e Menotti dirigiu A Noite. ‘No entanto, nao foram apenas os mo- dernistas que se juntaram ao aparato do Estado. O Ministério da Educagao de Gustavo Capanema tornou-se um novo mecenas para muitos intelectuais. Durante todo 0 Estado Novo, Carlos Drummond de Andrade serviu como chefe de gabinete de Capanema; Rodrigo Mello Franco de Andrade foi diretor do Servigo do PatrimOnio Histérico e Artistico Nacional (SPHAN); Mario de Andrade idealizou a primeira versiodalei quecriavaoSPHAN, colaborou de perto com essa agéncia e ain- da criou um projeto de enciclopédia brasi- leira para © Instituto Nacional do Livro (INL); 0 “Hino da Revolugio de 30” foi composto por Heitor Villa-Lobos, que ain- da dirigiu o movimento de canto orfednico para o ministério; Liicio Costa e Oscar Niemeyer, arquitetos da Brastlia ultra-mo- derna, desenharam onovo prédio do minis- tério. Candido Portinari foi comissionado para pintar murais, Bruno Giorgi encarre- gou-se da construgao de um monumento & juventude; Augusto Meyer serviu como di- retor do Instituto Nacional do Livro; Pru- dente de Morais e Vinicius de Moraes par- ticiparam da comissio de censura do cine- ma; Ronald de Carvalho, Ribeiro Couto, Murilo Mendes e Raul Bopp serviram no corpo diplomético; Sérgio Buarque de Holandae Rubem Borbade Moraes ocupa- ram altos postos na Biblioteca Nacional; Manuel BandeiraeramembrodoConselho Consultivo do SPHAN e, junto com Jorge de Lima, foi professor da Faculdade Fede- ral de Filosofia; Rosério Fusco, Marques Rebelo e Graciliano Ramos contribufram com o jornal Cultura Politica do DIP; em So Paulo, Oswald de Andrade trabalhou no Conselho Editorial de Planalto, jornal do Deip (21). Poder-se-ia argumentar, na companhia REVISTA USP, SRO PAULO (26): 164-181, JUNHO/AGOSTO 1995 I71 de Antonio Candido, que hé uma diferenca entre “servir” ¢ “vender-se ao” Estado, ou, junto com Luciano Martins, para quem a ambivalénciade muitos intelectuaislevou-os uma “quase-esquizofrenia politica”, assim que se viram sitiados dentro de um Estado cujoautoritarismocondenavam. Outros,ain- da, argumentam que havia muito poucas op- es para os intelectuais que queriam partici- par de algum modo significative na vida da nagdo. Outrosargumentostambémaceitveis, como o de Silviano Santiago em relaglo a ‘Mario de Andrade, dio conta da integridade moral ou ética de muitos intelectuais que ser- viram ao aparato do Estado (22). Eclaro que houve graus deidentificagao com o regime. Cassiano Ricardo e seus co- legas verdeamarelos apoiaram energica- mente o Estado Novo e assim agiram em ‘consondincia com suas préprias conviegdes ideoldgicas e politicas. O apoio de Drummond foi definhando a medida que o regime autoritdriofoi-seaproximandodeseu fim inevitavel e & medida também que, de modo crescente, embora breve, foise dan- doonamorodo poetacomasidéias socialis- tas. Mario de Andrade, como se comprova através de tantas cartas sobre o assunto, di- vidiu-se diante das exigéncias da burocracia federal da cultura e nunca e sentiu particu- larmenteavontadecom politica nemcom a proximidade dos que ocupavam o poder. No fundo, a verdade é que o Modernis- moinstitucionalizou-se durante e dentro do Estado Novo, na medida em que a maioria dos modernistasfoi incorporada ao aparato do Estado, prestando-se, assim, direta ou indiretamente, de modointencional oundo, ao reforgo das estruturas hierdrquicas ¢ clitistas de dominagao (23). Emoutraspala- vvras, a contribuigdo dos intelectuais para o projeto cultural do Estado, nao importa se direta ou indireta, serviu para reforcar e reproduzir a posigo do campo literério/in- telectual dentro do campo mais amplo de poder e para reforgar o papel do Estado como agente da legitimacao intelectual. A expansdo da indiistria editorial No Brasil, o mercado para bens simb6- licos tem sido historicamente muito restrito econcentrado, sobretudo por causada falta generalizadade acess educagaio piblicae REVISTA USP, SHO PAULO (76) por causa também dos altos nfveis de anal- fabetismo (1890 - 84%; 1920 - 75%; 1940 - 57%) (24). Esta situagio tem acarretado sravesconseqilénciasparaodesenvolvimen- tode um campoliterdrio auténomo. Ainda que 0 decréscimo do analfabetismo pareca indicar um aumento do puiblico leitor po- tencial, o que poderia provocar tanto a di- versificagao do piblico quanto a dos produ- tores,aliteraturalegitima (istoé,aquelaque despreza o interesse comercial como moti- vacao primeira e que é reconhecida como literatura “séria” pelacritica)continuaaser uma forma de expressao cultural dirigida sobretudo a uma elite educada, apesar da expansao consider4vel e do crescimento da indtstria editorial nos anos 30. A capacida- de limitada do mercado de bens simb6licos tem tornado bastante problematica a profissionalizago do campo. Os anos 30 assistiram ao aparecimento ou ao crescimento de importantes firmas editoriais taiscomo Ariel, Schmidt, Compa- nhia Editora Nacional, Globo e, especial- mente, a José Olympio, que acabou por se tornar a editora literéria mais importante do perfodo. Esta expansio, que significava considerdveis investimentos em novos pro- dutoresculturaise, particularmente,emnova geragaoderomancistas,criouapossibilidade de aparecimento de pequenos grupos de es- critoressemniprofissionais,como Jorge Ama- do, José LinsdoRegoeFrico Verfssimo, Para se ter uma idéia daimportancia dessa expan- so, apesar de suas imitagdes, basta lembrar que a maioria das obras publicadas pelos ‘modernistas nos anos 20foi financiada pelos préprios autores e alguns, como Manuel Bandeira, financiaram todassuasedig6esaté os anos 40 (25). Uma obradaimportanciade ‘Macunaima (1928) teve uma tiragem inicial de 800 exemplares; uma segunda edigdo em 1937 teve 1.000; e uma terceira, em 1944, al- cangou 3.000. Em outras palavras, em dezesseis anossafram apenas 4,800exempla- res de Macunaima (26). A expansio dessa indiistria foi resulta- do, parcial pelo menos, da crise econémica internacional que teve forte impacto sobre ‘© Brasil no comego dos anos 30, O declinio r4pido do prego do café bem como a desva- lorizagao conseqiiente do mil-réis em rela- ao as moedas européias provocaram um aumento substancial no custo de livros im- portadose umaquedadraméticano volume 164-181, JUNHO /AGOSTO 1995 desuaimportagao. Dessemodo,criavam-se condigdes, pela primeira vez, para que o li- vro brasileiro se tornasse competitive no mercado local, desde © comego do século XIX, abrindo-se, assim, um espago para a diversificagao ¢ a expansao da produgo local, bem como para a ficgo traduzida. Num certo sentido e em escala bem peque- na, iso funcionou como forma substitutiva da importagao (27). ‘A produgao de bens simb6licos e cultu- rais no Brasil acha-se altamente concentra- da no eixo Sao Paulo-Rio, com alguma ati- vidade em Belo Horizonte, Porto Alegre ¢ outras capitais estaduais. Em 1937 os esta- dos do Rio, de So Paulo e do Rio Grande do Sul detinham 61% das casas editoriais. Ainda que a concentragao de produgao de bensculturais permanecessseessencialmen- te inalterada, mantendo-se 0 Rio como 0 locus preferencial de consagragao e de legitimagao, os anos 30 testemunharanf no- t4vel expansiio no mimero de volumes pu- blicados, assim como na extensao dos cir- cuitos de distribuigdo. Enquanto em 19290 niimero de livros publicados no pais era da ordem de 4,5 milhdes de volumes, por volta de 1937 as trés maiores editoras do pats publicavam, somenteelas,essamesmaquan- tidade. A inddstria editorial de Sao Paulo experimentou uma taxa de crescimento de mais de 600% entre 1930 e 1936 (28). ‘Sem uma discussaosobre a Editora José Olympio, seria impossfvel a compreensZo maisamplae completa dadinamicadocam- po literério entre 30 € 40. Para Carlos Drummond de Andrade, orumosocial que a literatura brasileira tomou durante esse perfodo s6 pode ser entendido em termos dainteragioentre intelectuaise artistasque se juntavam diariamente na livraria José Olympio: Graciliano Ramos, Candido Portinari, José Lins do Rego, Astrojildo Pereira, Amando Fontes, Gilberto Freyree muitos outros (29). © comentério de Drummond é,sem divida,correto,masnao vai longe 0 suficiente, porque a José Olympio também publicava os grandes nomes do romance intimista ou psicol6gi- co que surgia em oposi¢ao quase sempre explicita ao romance social. Excetuando- se a figura isolada de Erico Verfssimo, a José Olympio publicou todo romancista hoje considerado candnico e, desse modo, acabou por se constituir numa concentra- REVISTA USP, SAO PAULO (26: 164-181, g&osem precedentes e numa centralizagdo de autoridade, entendida esta autoridade como 0 poder de reconhecimento e, em liltima instancia, de legitimagao no campo editorial. Era como se a publicagao sob 0 selo da José Olympio fosse condigao sine qua non da consagragao. Todas as clivagens dos campos literdrio ¢ intelectual e, por conseguinte, do campo dopodercomoum todo, estiovirtualmente evidentes nas listas da José Olympio, que publicouescritores daesquerdaedadireita, romances sociais e psicol6gicos, modernis- tasde geragGes diferentes, de200u 30, cat6- licoseideGlogosleigos,escritores desconhe- cidos e consagrados. Se, de um lado, essa editora criou, em 1936, a famosa Colegio Documentos Brasileiros, dirigida por Gil- berto Freyre ¢ inaugurada pelas Ratzes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda, por outro ela iniciara a colegio de Problemas Politicos Brasileiros, em 1934, que era um amplo f6rum para Plinio Salgado e seus companheiros da causa integralista. José Olympio foi também o editor de A Nova Polltica do Brasil de Getilio Vargas e dos diretoresdoDIP, Lourival Fontese Amflcar Dutra de Meneses (30). Pelo menos no comego, José Olympio conseguiu atrair o melhor da nova geracio deescritores brasileiros,sobretudo por cau- sa das vantagens econdmicas que oferecia. Acexpandir o aleance doromance brasilei 0 e ao oferecer tais vantagens, 0 proprio José Olympio ajudou a configurar o campo € estimulou a proliferagio dos romances sociaisescritos durante esse perfodo. Como ja foi dito, isso acabou por criar condigoes para a existéncia de um pequeno grupo de escritores semiprofissionais, relativamente independentes das limitagdes e das exigén- cias externas que afligiam aqueles que nao podiam viver apenas do que escreviam. A posigao desses escritores no campo intelec- tual derivava, em grande parte, das “san- Ges positivas” dos editores e do piiblico leitor, materializadas em vendas, resenhas, prémios literérios, ete. Embora 0 campo li- terério fosse altamente politizado e sujeito aindmeras estratégias de legitimago base- adas em afinidades ideolégicas, mesmo aquelesescritoresexplicitamente alinhados com um credo politico especifico consegui- am manter sua posigo no campo apenas por causa de um certo grau de reconheci- JUNHO/AGOSTO 1995 173 mento positivo vindo doseriticosedo pal co, muito mais do que suas posigées poli cas to-somente. Em outras palavras, as determinantesexternaseram refratadaspela logica especifica do campo literério (31). Com a dominago do campo pela José Olympio, levanta-se o problema da depen- déncia cultural interna, da centralizagao da concentragao da producao de bens sim- bolicos. Uma das ronias do campoliterério nos anos 30 € 0 contraste entre a prolifera- fo do romance social regionalista dentro do contexto da centralizagao extrema da legftima publicagao literéria. O sucesso do romance do Nordeste e dos romancistas nordestinos s6 foi possfvel através do qua- dro institucional fornecido pela capital do pais. Em meados dos anos 30, a maioria dos grandes representantes do género jé havia estabelecido residéncia no Rio de Janeiro, embora continuasse ainda a escrever sobre seus estados de origem, Nesse sentido, pode- se tragar uma homologia entre a expansdoe acentralizacao da inddstria editorial, espe- cialmente da José Olympio com seu grupo heterogéneo de escritores, e a expansioea centralizacdodo aparatodo Estado,comsua incorporagio de intelectuais de todas as procedéncias politicas. E ir6nico que o romance social tivesse alcangadosucessoapenas dentrodomesmo programa editorial que publicou as figuras mais poderosas do Estado Novo e de seu aparato de propaganda. Se eu estiver certo ao dizer que arubrica da José Olympio, nos anos 30, tornou-se sinal de legitimidade, atenua-se por simesma aeficécia do discur- so literario engagé, na medida em que os dois extremos politicos e as maiores figuras do aparato autoritério do Estado se vale- ram da mesma fonte de legitimidade. A defini¢Go legitima da prdtica literaria Se a primeira instancia da avaliagao da produgio literdria é a indistria editorial, a seguinte € a critica literéria, o que a torna uma segunda instncia de reconhecimento e de legitimago. Como no campo litersrio de que faz parte, a critica desenvolve suas proprias regras de operacdo, sua propria hierarquia e suas proprias estruturas de autoridade. Na verdade, ela é uma das con- digGes dacxisténciaedesustentagaodaobra literéria enquanto tal, Segundo Bourdieu, “qualquer afirmagio critica contém, de um lado, o reconhecimento do valor da ‘obra que Ihe dé origem [...] e, de outro, uma afirmagao de sua prépria legitimi- dade. Todocritico manifestando apenas seu julgamento da obra, mas também reivindica o direito de falar sobre ela e de julgé-la. Em resumo, 0 critico partici- pa de uma luta pelo monopdlio do dis- cursolegitimosobreaobradeartee, por conseguinte, também da produgéo do valor da obra de arte” (32). Gragas & profissionalizagao université- ria, a transformago mais significativa no ‘campo da critica aconteceria apenas no fim do perfodo em questao, isto é,entre 4045, Antes disso, a critica fora amplamente do- minada pelo rodapé impressionista, isto 6, pela critica jornalistica semanal, claborada por apenas um critico que normalmente ‘ocupava espaco fixo num jornal (33). Oscriticos de rodapé exerciam, amide, um enorme poder no julgamento das obras, literarias. O poder de Tristao de Atafde,nos anos 20, por exemplo, & deserito por Joao Luiz Lafeté nos seguintes termos: “Todas as obras importantes que surgi- ram por essa época passaram pelo seu crivodejulgador; foi ocritico doModer- nismo, 0 divulgador de pesquisas liter4- rias das vanguardas de entdo; sua pala- vra podia ser decisiva, sua opinido era capaz de consagrar, sua presenga era constante e respeitada, seus jufzos eram recebidos muitas vezescomodefinitivos, encerrando discussoes” (34). Alvaro Lins, um outroexemplo, talvezo critico maisimportante dos anos 40, foides- crito como o “imperador da critica brasilei- ra”, 0 “regente da literatura”, “o mestre da erttica”, 0 “prefeito dos crticos”, responsé- vel, em tiltima instancia, pela “reitoria das letras brasileiras” (35). O poder destescrti- cos era tal que suas opinides afetavam tanto aavaliagio das obras literdrias como a ven- da de livros ou ainda, em outras palavras,a legitimagao e a consagragio pelo piiblico. Um poder que funcionava também como uma forma de censura nao-intencional tal- yea, que criticos menores se intimidavam REVISTA USP, SRO PAULO (26): 164-181, JUNHO/AGOSTO 1995 e,porconseguinte, relutavam ememitirsuas opinides. ‘Apesar de um nimero razoavelmente limitado de criticos distribuir-se pelos jor- nais, houve, entre 1930 e 1940, uma diversi- ficagdo importante no terreno das resenhas literdrias,gracasapublicagdesrelativamen- te ndo-partidérias como o Boletim de Ariel (1931-38), Dome Casmurro(1937-45), Revista Nova (1931-32), Lanterna Verde (1934-38; 1943-44), Revista Académica (1933-45), 0 suplemento “Autores e Livros” dojornal A Manha (1941-48) ¢ a revista Clima (1941- 48). Foi este um perfodo que presenciou também o aparecimento de tendéncias cri- ticas explicitamente alinhadas com ideolo- gias especificas, publicadas em perl6dicos ‘que funcionavam como drgéosdemovimen- tos politicos tais como A Manha (1934-35) da Alianga Nacional Libertadora, A Ofensi- vada Agio Integralista Brasileira (1934-38) € 0s Cadernos da Hora Presente (1939-40) que reunia simpatizantes da proscrita AIB e, depois da defenestragio de Gettlio, a re- vista Literatura (1946-48), associada ao Par- tido Comunista. Em tais casos, 0 espago da propria publicacao era quase sempre sufici- ente para definir a orientagdo ideolégica e as preferéncias literdrias, como no caso de Tasso daSilveiraem A Ofensivaeode Jorge Amado em A Manha, Nos anos 30, 0 debate literdrio concen- trou-se. em torno de dois grandes t6picos inter-relacionados: oestatuto do Modernis- mo dentro do c4non literdrio nacional e a legitima definigdo da prética literdria. Os debates sobre o segundo t6pico tornaram- se altamente politizados e aqueles a respei- todo primeiro carregavam um teor politico também, mesmo que de modo implicito. Pode até ser que as conquistas estéticas do Modernismo tenham-se tornado “rotinizadas”, mas muitos criticos recusa- ram-se a garantir-Ihe total consagragio legitimidade. As maiores criticas a0 movie mento vieram da direita, que se inclinava a identific4-lo, de modo certo ou errado, nao interessa, mas sempre de modo simplista, comaesquerda. Tipicodesse procedimento ctitico foram os ataques exagerados deTas- so da Silveira em sua Definigito do Moder- nismo Brasleiro (1931) ou 0 infame ensaio “Mensagem-Post-modernista” (1937) de Octavio de Faria. Em termos do segundo t6pico -a defini- ‘¢&0 legitima da pratica literéria -, 0 campo literério ou critico, fortemente dividido en- tre extremos politicos, reproduzia os deba- tesideol6gicos da sociedade como um todo. Esse principio de legitimacdo ¢ inteiramen- te externo A propria obra literdria e deriva das posigdes politicas assumidas pelo escri- tor. As questées de forma literéria emer- gem apenas de vez em quando e mais rara- ‘mente ainda entre aqueles envolvidos com paixdo no debate. Isto é verdade tanto para a direita quanto para a esquerda, em cujas, facgdessemprehouvetentativasdesenegar estatuto de romance a obras provenientes de orientagées diferentes: Liicio Cardoso: “A minha concepgaio de romance vai assim de encontro & da maioria dos romancistas modernos que Ppreconizam uma arte de observagao ura,a fotografia da realidade. Querem apanhar essas coisas que vemos af e que nada exprime porque a verdade est no subsolo. Naoosreconhegocomoroman- cistas, mas talvez.como repérteres”. Marques Rebelo: “Nao compreendo e no tolero a concepgao do romance-re- portagemnosentidoquelheemprestam varios escritores modernos. Por certo, noromanceh4 um {undo dereportagem edocumento,como, alias, acontece com outras formas literérias. Mas nao deve- mos dar-Ihe esse cunho particular que seria colocé-lo no terreno da Histéria e do jornalismo. Romance ¢ outra coisa - € uma obra de arte”. Jorge Amado, escrevendo sobre Em Surdina de Liicia Miguel-Pereira: “Es- pero que a Srta. Liicia Miguel-Pereira [.-] decida-se a escrever romances edei- xe para trés suas idéias preconcebidas e ‘suas explicagdes, que so 6timas em ar- tigos, mas indteis nas paginas de um ro- mance” (36). O que est em jogo aqui (¢ os exemplos poderiam multiplicar-se de forma indefini- da) 6 precisamente a definigao legitima da obra de arte ou, neste caso, do romance. A lutaideol6gica dentro da critica assu- miu um semn-ndmero de formas ¢ envolveu nao apenas os criticos, mas também o Esta- do, suas estratégias de orientagdo e de con- REVISTA USP, SHO PAULO (26): 164-181, JUNMO/AGOSTO 1995 175 trole cultural. Enquanto 0 Estado Novo concentrava esforgos no sentido de institueionalizar, configurar e controlar a produgio, reprodugio e difusdo dos bens simbélicos, os produtores de tais bens con- seguiam, com freqiléncia, desenvolver seus proprios modos de resistencia. Em outras palavras, reagindo & pressio do Estado, os intelectuaiscriaram suasprépriasformas de contrapressao destinadasasolapar os desig- nios do Estado ou a fazer avangar seus pr6- prios projetos ideolégicos, 0 que se exemplifica com a edigao especial em ho- menagem a Romain Rolland da Revista Académica,em 1936, ou com a quantidade de espaco dedicado a alguns escritores bra- sileiros especificos que: eram identificados com aesquerda. Tal presséio,noentanto,era limitada.e, em ciltima insténcia, conformava- secom al6gica espectficadocampolitersrio, que tendia arejeitarimposigdes externas em favor de suas préprias regras de funciona- mento ou de sua propria autoridade. A autonomizagao do campo literario Um dos conceitos centrais do método analiticode Pierre Bourdieuéaquelequese refere A “autonomia” do campo de produ- Socultural. A partirdeséculoXVIII,avida artisticae intelectual européia passouafun- cionar com mais autonomia, desde que co- ‘megou ase libertar das presses éticas e es- téticas oriundas de instanciasexternascomo: a aristocracia e a Igreja. O processo de autonomizacéo implica a formacéo de um piiblico consumidor mais numeroso e mais diversificado, que d4 margem a produtores commaiorindependénciaecondmicaeque, ‘ao mesmo tempo, constitui-se como instén- cia paralela de legitimagao. A autonomizacao implica também adiversifi- cagiodeprodutoresde benssimbélicos,cuja profissionalizagio crescente leva-os areco- nhecer apenas certos tipos de determina- ‘ges especficas ao campo em questao. Fi- nalmente, isso engendra a multiplicagao de agentes de consagrago, como os criticos, por exemplo, ¢ de disseminagéo, como os editores. Ambos sdo investidos de umalegi- timidade especificamenteculturalaindaque estejam, eventualmente, subordinados a restrig6es de carter econdmico esocial (37). A independéncia das presses de agen- REVISTA USP, SRO PAULO (76) tes externos de legitimagao, como a Igreja ou a aristocracia, acabou por deslocar 0 manifesto relacionamento do campo artis- tico e intelectual com 0 poder. Auténomo, ‘o-campo criou légica propria com base em suas instncias de legitimidade e de consa- ‘gragdo, assim como criou também seus pr6- prios mecanismos, regras, hierarquias canénes. Ao rejeitar essas pressdes exter- nas, ocampoacabou também por se especi- alizar e por se diferenciar internamente. Ao invés de uma relagdo direta com o poder, desenvolveu-se uma relagao homéloga na qualocampo artisticoeintelectual,inserido no campo mais vasto do poder, reproduz.0 campo de poder dentro de sua propria es- trutura hierdrquica (38). NaFranga, odesenvolvimentodaindis- tria cultural e, em particular, a relagdo que se estabeleceu entre a imprensa didria e a literatura, especialmente o folhetim, coinci- diucom a expansio do pablico ledor, resul- tado da ampliagao do acesso & educagao primAria, que permitiu as novas classes ‘acesso a0 consumo cultural. Em outras pa- lavras, 0 desenvolvimento do sistema de produgdo de bens simbélicos correspondeu ao processo de diversificagao de ptiblicos para os quais as diferentes categorias de produtoresenderegavam suasobras. Quan- do se estabelece um mercado de bens sim- bolicos e os artistas conseguem viver to- somente de sua arte, esses mesmos escrito researtistast¢mapossibilidadededeclarar, demodoparadoxal, airredutibilidadedesua arte ao estatuto utilitério, assim como a in- dependéncia ¢ a singularidade do trabalho intelectual e artistico (39). ‘A autonomizagao do campo literério brasileiro, pelo menos dentro daquelas li- nhas delineadas por Bourdieu para o terri- t6rio francés, comegou, quando muito, por volta de 1940, uma vez que, até ento, pou- cos tinham sido os escritores que haviam conseguido viver apenasdaliteratura,oque ndosignificaqueestecamponiotivesse tido suas pr6priasregrasdefuncionamento, seus pr6prios valores, etc. Ao tentar explicar 0 papel transformador da literatura na socie~ dade brasileira, Antonio Candidoalegaque, noBrasil, historicamente, pelomenos até os anos 40,realizou-se oprojetomaisbem “aca- bado” de expresso do pensamento sociale da sensibilidade, seja na literatura, na historiografia ounasciénciassociais. Segun- 164-181, JUNHO/AGOSTO 1995 do ele, essa expressdo acabou por alcangar uma forma literéria ou quase literéria: “a literatura tem sido aqui, mais do que a filo- sofia e as ciéncias humanas, o fendmeno central da vida do espirito”. Enquanto tal fendmeno, a literatura tinha, freqientemente, incorporadooutrosdiscur- 50s ¢ tinha reagido as pressées externas a0 campo literdrio. Em termos de seu proprio discurso, tém faltadoaliteratura brasileiraa independénciae aautonomia frente aspres- sdes externas, o que ela possui em outros contextos. Com a divisao crescente e dife- renciada do trabalho intelectual, motivada, em grande parte, pelocrescimento das cién- cias sociais, a literatura comegou a ganhar especificidade e autonomia,assumindo uma configuragaomaisespecificamenteestética, ‘aomesmotempoem que vem perdendoseu duradouro prestfgioenguantobandeiracul- tural (40). ‘A expansao do mercado de bens simbd- licos, ainda que em escala modesta, e a repime rec-ceoplades ple gover cena (Azeved Ara. Alcau noosa Lina Posies de Meards.Oovara Vianna, Octave Taruiio de Souza}, como as hguaseeraloprestiga tern da ra de romancits (Gractiano Ras, José Lino Figo, Rachel ‘de Queter Octavio de Fara, Cyo ds Anos, Lise Cardoso, Jodo Aphersus sam esqucet toda uma calagoea de ecrtoret Que ‘sbunhama charela da cata pel lo de prencaram aos anda brsrstces om oparan ono aoe aaron Go Esads eects 2 Classe Origen ne Bas, 89,128. 31 Sérgio Mle ep... 95 22 Plea Bou, “The Fad of Coral rection, 0. p31. {3 Adba 8. dM. Ble, A Obra Cita de Avaro Une osu Funplo Hts, Petipa, Vere, 1979, BP 23-4 34 Joke Luz Lat, 1950-4 Criteao 0 Modemismo, Sto Paul, Duss Cade, 1974, p57 8 Desogbs de Cavoe Drummond de Andrade, Rebate Ain Coes, Jako Cabralde Mao Neo 6¢ Caos Gaara Caco pr Ada Bole op ct 48 ‘8 Ctapso de Lice Cardou a Brie Bona, Os Inletuai Pensa: a imag Resin |..JAPaiavra Lice Cardo’ n Dom ‘Casmaro 64, fun /1988 Marques Rebelo a Br Broce, "Os rielectuns Pensa Marques Rebels Faleun Dom Casio (2 aga /198, 7 Jorge Amada: "Em Surdiw’, m Boetin de A Il aT, 6.7, 57 Este pardgato wos prximos devem mute 20 capo de Pie Bourdau 0 Mercado de Bans Simbstcos’ nA Economia dt Tras ‘Simatic, vad Serge Mal, Sao Pau, Perspectva, 182, p. 99108. ‘8 Parauma disussto suit do pape rata dn do processo de reprodujto soil vertambém: Job ito "CanoscaanaNon ‘Carona A Crgue othe Curent Debate. ELH. 4,5, Fal 1007, oapacameste pp 404-503 38 Pinre Bourdu, "0 Macao de Bers Simba’ op cpp. 102. “40 Arnie Cando, Lert @Secee4ee, op. p90. Mal recantment, Hay Whe ecu a pronmidade aie ox cursos ‘etéaco e erkra, War Tops of Dacoures, Baknore, Jobe Hpkne Unverty Press, 1978 41 Daniel Pent 0p. pp. 85-6. 42 Amani Cando, “Os Escrores © a Diadura™. Ver também Cares Guirerme Mota, “Cut Poliica no Estado Nove (1897-10457, EEnsontos com a Chapa Basie, jan/979 pp 87-94 45 Altgeaa ache se eprodurda ras memdras de Cassano Ricard (Viagem ne Espapo ono Tape Fi de ane, Olympia 1970) ‘snas cars de Mario oe Andras (Cartas Miro Mvan (194-1048) lo Ga Janar Nova Front, 188), {44 Segundo Bourdieu toss os apenies enoves num campe especie tim caro nimere de eressescomuns, espa ent nua ‘qunse lacona com ofunconamenie ea pepetuno go propa campo, Deseredo, una cra cumplchdecbivatonde act ex am es artapensmos am outos stores. Na fundap de ABDE lal cumpiade 6 evident, Bourdieu, Qusiles ce Sono pO Vertambsm 0 Mereago de Bens Sbcos” op St p. 99-181, especialmente p.708, m7. “45 Para ma veto grado Congreso, var Carles Ginerme Mat, lasloga de Cut rasa (1832-1074), "0:1. Vertambim Arione Candie, “Os Escores a Oras’, op. ct eA 1977.90. {45 al Arlo, Ltrtura am vist, op. 238 {47 Ver Caos Drunmand se Anta, © Cbsenader se Estée, Rida ana, 066 Ohmp, 1985, p.25.6 Vertambémn RAUl Anal, op, pp. 201-2. 9.38 8 ail Arie 0pot. 9p. 287-007. 8 49.Wisen Martins, A Ceca Ltda no Bras I, 2d, Rona, Francisco AN, 1963, pp. 597-8 0 dam, idem, pp. 69827 51 laa Sostehind “Da Rodaed Crile Rates Paris sobie a Crica Lec Brasiara da Decade AD 30¢ Anos BOY: abaNo ‘presenta ne Woodroow Wisan nematenal Cena for Seto, iar 1086 £2 Renato Ong, A Modems Tipo Brasil, op. 65-8. Os nimaros clades per On clraies nite attori, o rdce de: (lipo de Souza Arad, O Livro Basiayr 1820-197, Fo de Jane, Ea Paral, 1874 59 Shiano Santiago, Vale Quanto Peta ope ».25 ‘st Cassino Alcatee, agen no Esparo eno Tempo, Rl de Janero, 056 Opi, 1970, pp 169-78 REVISTA USP, SAO PAULO (26): 164-181, JUNHO/AGOSTO 1995 181

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