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Reportagem Pública

Praças da PM criticam formação focada na servidão aos


oficiais, vivida em um ambiente em que abusos físicos,
psicológicos e disciplinares fazem parte da rotina

por | 20 de julho de 2015

Acima, formatura de soldados da PM do Rio em 17/01/2014. Foto: Clarice Castro/ GERJ

“Bora, bora, você é um bicho. Você é um jumento, seu gordo!”. O ex-soldado Darlan Menezes Abrantes
imita a fala dos oficiais que o instruíam na academia quando ingressou na Polícia Militar do Ceará, em
fevereiro de 2001. “Às vezes, era hora do almoço e os superiores ficavam no meu ouvido gritando que eu
era um monstro, um parasita. Parecia que tava adestrando um cachorro. O soldado é treinado pra ter
medo de oficial e só. O treinamento era só mexer com o emocional, era pro cara sair do quartel igual a
um pitbull, doido pra morder as pessoas. Como é que eu vou servir a sociedade desse jeito? É ridículo. O
policial tem que treinar o raciocínio rápido, a capacidade de tomar decisões. Hoje se treina um policial
parece que está treinando um cachorro pra uma rinha de rua”, reflete.

Darlan lembra sem saudade dos sete meses passados no extinto Curso de Formação e Aperfeiçoamento
de Praças da PM cearense. “Eu até escrevi isso. Sempre que um professor faltava, éramos obrigados a
fazer faxina em todo o quartel. E o pior: quem reclamava podia ficar preso o fim de semana todo. A
hierarquia fica acima de tudo no militarismo. O treinamento era só aquela coisa da ordem unida
[exercícios militares de formação
reportagens
de marcha,
especiais
detruco
parada amazônia
ou reunião dos membros
resiste casa pública
da tropa], ficar o english
quem somos
dia
f
inteiro marchando debaixo do sol quente. Lá dentro é um sistema feudal, você tem os oficiais que
podem tudo e os soldados que abaixam a cabeça e pronto, acabou. Você é treinado só pra ter medo de
oficial, só isso. O soldado que vê o oficial, mesmo de folga, se treme de medo”, diz.

Enquanto era policial, Darlan estudava Teologia no Seminário Teológico Batista do Ceará e Filosofia na
UECE (Universidade Estadual do Ceará). O ex-soldado conta que passou a questionar algumas ordens e
instruções enquanto frequentava a academia e logo ganhou um apelido: “Mazela”, uma gíria mais
comum no nordeste do Brasil para uma pessoa mole, preguiçosa. Pouco a pouco se espalhava entre a
tropa a ideia de que os questionamentos do “Mazela” eram fruto de uma pura preguiça com relação aos
exercícios militares.

“Fiquei com essa fama no quartel”, afirma. “É uma lavagem cerebral. O militarismo é uma espécie de
religião que cria fanáticos. Ordem unida, leis militares, os regimentos e tal, aqueles gritos de guerra.
Essas coisinhas bestas que os policiais vão aprendendo, como arrumar direito a farda. Você pode ser
preso se não tiver com um gorro ou chapéu na cabeça. Essas coisas que só atrapalham a vida dos
policiais. Às vezes eu pegava um ônibus superlotado, chegava com a farda amassada e ficava sexta,
sábado e domingo preso. Você imagina? Por causa de uma besteira dessas? Isso é ridículo”, exclama. “E
isso é antes e depois do treinamento: se você for hoje na cavalaria da PM de Fortaleza você vai ver
policial capinando, pegando bosta de cavalo, varrendo chão, lavando carro de coronel, abrindo porta
para os semideuses [oficiais]. Eu nunca concordei com isso e fiquei com fama de preguiçoso”, diz.

O assédio moral é a regra na formação do PM em cursos de curta duração que tem como preocupação
principal imprimir a cultura militar no futuro soldado; com pouco aprendizado teórico em temas como
direito penal, constitucional e direitos humanos; além da sujeição a regulamentos disciplinares rígidos.
É o que constatou a pesquisa “Opinião dos Policiais Brasileiros sobre Reformas e Modernização da
Segurança Pública” publicada em 2014 pelo Centro de Pesquisas Jurídicas Aplicadas (CPJA), da Escola
de Direito da FGV de São Paulo, e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (Veja o infográfico
abaixo). Foram ouvidos mais de 21 mil profissionais de segurança pública (entre policiais civis,
militares, rodoviários federais, agentes da polícia científica, peritos criminais e bombeiros) de todas as
unidades da federação, mais da metade deles policiais militares, sobretudo praças (policiais de patentes
mais baixas). Destes, 82,7% afirmaram ter formação máxima de um ano antes de exercer a função,
38,8% afirmaram que já foram vítima de tortura física ou psicológica no treinamento ou fora dele e
64,4% disseram ter sido humilhados ou desrespeitados por superiores hierárquicos. 98,2% de todos os
profissionais (incluindo profissionais de outras áreas) que responderam a pesquisa afirmaram que a
formação e o treinamento deficientes são fatores muito importantes para entender a dificuldade do
trabalho policial.

Clique aqui para ver o infográfico ampliado


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Apesar dos números alarmantes, o tema ainda é pouco discutido dentro das corporação e fora dela. Em
vários estados, os regimentos internos das polícias militares proíbem expressamente que os policiais se
manifestem a respeito da própria profissão. Eles também dizem ter pouco espaço para denunciar as
violações sofridas por eles no dia a dia – a estrutura fechada e hierárquica do militarismo dá pouca
brechas para denúncias ou críticas dos policiais com relação à própria formação, principalmente fora
dos quartéis. Mesmo que essas denúncias se refiram ao descumprimento de direitos humanos
primordiais.

“Morto por “suga”

A ênfase excessiva na preparação física nos cursos


de formação já resultou até em mortes. O caso mais
recente talvez tenha sido o do ex-recruta da PM
Paulo Aparecido dos Santos, de 27 anos, morto em
novembro de 2013 após uma sessão de treinamentos
no CFAP (Centro de Aperfeiçoamento de Praças da
Polícia Militar) do Rio de Janeiro. Paulo morreu
após uma “suga”, gíria dos policiais cariocas para as
sessões de treinamentos físicos que levam os
recrutas até o esgotamento físico.
Durante a sessão, segundo os relatos
reportagens de outros
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recrutas ouvidos pelo repórter Rafael Soares do
jornal Extra, quem não conseguia acompanhar o
ritmo da sessão de treinamentos físicos era obrigado
a sentar no asfalto quente – naquele dia fez mais de
40 graus no bairro de Sulacap, zona oeste do Rio,
onde está localizado o CFAP – ou submetido a
choques térmicos com água gelada.

No mesmo dia em que Paulo morreu, outros 32


alunos precisaram de atendimento médico – 18 com
queimaduras nas nádegas ou nas mãos. Oito oficiais
foram denunciados pelo Ministério Público pela
morte de Paulo. O caso ainda tramita na Justiça
Militar.

Em 2012, três batalhões de Curitiba foram


denunciados por excessos relacionados à formação
dos recrutas. O roteiro é o mesmo: verdadeiras
sessões de tortura física e psicológica, castigos,
punições rigorosas. Há até uma acusação de assédio
sexual (segundo a denúncia, um cabo teria beijado
Paulo Aparecido dos Santos. Foto: Reprodução Jornal Extra
uma recruta à força).

Lição de tortura

A institucionalização de violações de direitos humanos dentro da PM na formação e treinamentos dos


seus integrantes reflete-se diretamente na maneira como reagem no cotidiano com a população. Um
relato exemplar está no relatório final da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, em que o
sociólogo e ex-secretário de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, Luiz Eduardo Soares,
afirmou em depoimento concedido no dia 28 de novembro de 2013: “O BOPE [Batalhão de Operações
Policiais Especiais, pelotão de elite da PM fluminense] oferecia, até 2006, aulas de tortura, 2006! Aulas
de tortura! Não estou me referindo, portanto, apenas às veleidades ideológicas (…), nós estamos falando
de procedimentos institucionais”, afirmou.

Foi a essa realidade que o então recruta Rodrigo Nogueira Batista, egresso da Marinha, foi apresentado
ao participar das Operações Verão nas Praias dois meses depois de ingressar na PM, descritas por ele
como uma espécie de estágio que os recrutas fazem com policiais mais antigos nas praias nobres da
capital fluminense – Ipanema, Copacabana, Barra da Tijuca, Botafogo, Recreio.

“A minha turma partiu pro estágio com dois meses de CFAP, dois meses dentro do CFAP tendo meio
expediente e depois rua. Lá fomos nós de cassetete, shortinho e camisa da Polícia Militar, isso pra
população ver aquele monte de recruta passando para poder dar o que eles chamam de ‘sensação de
segurança pra população’”, relembra. “Eles colocam o policial antigo armado e dois ou três ‘bolas-de-
ferro’, como eles chamam os recrutas, justamente por dificultar a movimentação do policial antigo. A
gente chegava e o antigo ficava angustiado com a nossa presença porque queria pegar dinheiro do
flanelinha, do cara que vende mate, da
reportagens
padaria etruco
especiais
quandoamazônia
ele ia no português
resiste
comer alguma
casa pública
coisa tinha
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que dividir com os “bolas-de-ferro”’, lembra. Na rua: “a barbárie imperava: pivete roubando,
maconheiro… Tudo que tu imaginar. Quando caía na mão era só porrada, porrada, porrada, gás de
pimenta, muito gás de pimenta. Foi ali que eu tive contato com as técnicas de tortura que a Polícia
Militar procede aí em várias ocasiões”, afirma.

“Você vê agora o caso do Amarildo”, comenta. “Aqueles policiais que participaram do caso Amarildo,
pelo menos de acordo com o que o inquérito está investigando, estão fazendo as mesmas práticas que eu
já fazia, que o meu recrutamento já fazia, que outros fizeram bem antes de mim e que já vem de muitos
anos. Vem de uma cultura”, analisa.

O ex-soldado da PM, Rodrigo Nogueira, preso em Bangu 6 desde 2009, durante entrevista a Agência Pública, fala de seu livro “Como nascem os monstros”. Foto Bel
Pedrosa. Rio 23.06.15

Entrevistamos Rodrigo em Bangu 6, o presídio destinado a ex-policiais, bombeiros, milicianos,


agentes penitenciários dentro do complexo penitenciário carioca. Condenado a 30 anos de
reclusão, somando-se as penas recebidas na esfera civil e militar, ele falou com a Pública
numa salinha apertada dentro da penitenciária. Rodrigo é autor de “Como Nascem os
Monstros” (Editora Topbooks), um catatau de mais de 600 páginas onde descreve o que
considera o processo de “perversão” a que são submetidos os jovens na corporação e que o
teria levado a ser condenado por crimes como tentativa de homicídio triplamente qualificado,
furto, extorsão e atentado violento ao pudor (ele nega ter cometido os crimes pelos quais foi
condenado, mas afirma que não é inocente e que já cometeu outras arbitrariedades quando
PM).

“Por exemplo, um pivete roubou uma coisa de um turista e correu. O policial corre atrás do
pivete e pega o pivete. Quando ele consegue chegar no pivete, ele já jogou o que ele roubou
fora, e ele é menor de idade, não pode ser encaminhado para a delegacia. Porra, mas o policial
sabe que ele roubou. Aí entra o revanchismo, a hora da vingança. Primeiro lugarzinho
separado que tiver (cabine, atrás
reportagens
de um prédio,
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dentro dos postos casa
amazônia resiste
do guarda-vidas)
pública
é a horaenglish
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da válvula de escape”, resume. E como é orientado o recruta antes de ir para rua? “Uma das
instruções que os oficiais davam antes do efetivo sair pro policiamento era: ‘olha, vocês podem
fazer o que vocês quiserem, pega o pivete, bate, quebra o cassetete, dá porrada no flanelinha.
Só não deixa ninguém filmar e nem tirar foto. O resto é com a gente. Cuidado em quem vocês
vão bater, cuidado com o que vocês vão fazer e tchau e benção’”, relata. “O camarada começa
a ver um pivete levando choque, spray de pimenta no ânus, no escroto, dentro da boca e não
sente pena nenhuma. Pelo contrário, ele ri, acha engraçado. E tem um motivo: se nesse
momento que o mais antigo pegou o pivete e começa a fazer isso, se você ficar sentido,
comovido por aquela prática, pode ter certeza que vai virar comédia no batalhão, vai ser tido
como fraco. Vai ser tido como inapto para o serviço policial”, afirma.

Segundo ele, quem demonstra “fraqueza” ou “covardia” num momento como esse começa
lentamente a ser destacado e afastado das funções de “linha de frente” da corporação. “Se você
é duro, você vai trabalhar na patrulha, no GAT [Grupamento de Ações Táticas], na Patamo
[Patrulhamento Tático Móvel]… Agora você que é mais sensato, que não vai se permitir
determinadas coisas, não tem condições de você trabalhar nos serviços mais importantes. Não
tem como o camarada sentar no GAT se não estiver disposto a matar ninguém. Não tem como.
E não é matar só o cara que tá com a arma na mão ali, é matar alguém porque a guarnição
chega a essa conclusão: ‘Não, aquele cara ali a gente tem que matar’. Aí é cerol mesmo”,
garante.

Essa disposição pra matar na “linha de frente” relatada por Rodrigo se traduz em casos reais
ocorridos com as PMs. Em um áudio revelado pelo repórter Luís Adorno, da Ponte, o 1º
tenente da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, tropa de elite da PM paulista)
Guilherme Derrite afirma: “A polícia tá como sempre, né, querendo reduzir a letalidade
policial. Então os tenentes, principalmente os oficiais, mas também cabos e soldados que nos
últimos cinco anos se envolveram em três ocorrências ou mais que tenham resultado em
evento morte do criminoso estão sendo movimentados. Até eu que to fora da rua há dois anos
me encaixo nessa lista. Porque pro camarada trabalhar cinco anos na rua e não ter ma… três
ocorrências, na minha opinião, é vergonhoso né?”

(Leia a entrevista completa do ex-policial Rodrigo aqui).

S im sen h or, N ão sen h or

A cultura de violência nasce com a desumanização do próprio PM já na formação, relatam os


entrevistados. “O soldado da polícia militar não tem direito nenhum. A gente tem que dormir em
alojamentos sujos, caindo aos pedaços. Cada um tinha que trazer a sua rede pra dormir no alojamento.
Os colegas casados que fizeram o treinamento passaram muita dificuldades porque passamos três meses
sem receber salário. O soldado só tem direito de dizer sim senhor e não senhor e de marchar o tempo
todo”, resume o ex-soldado Darlan Menezes Abrantes. “Como uma polícia antidemocrática vai cuidar de
uma sociedade democrática?”, pergunta.

Autor de um livro intitulado “Militarismo: um sistema arcaico de segurança pública” (Editora Premius),
Darlan foi expulso da polícia cearense em janeiro de 2014, após 13 anos de PM. O que causou a
expulsão, segundo ele, foi o livro. “Euespeciais
reportagens
fui pra algumas
truco
universidades
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aqui de Fortalezaquem
casa pública
distribuir
somos
o livro
english
e
f
fiquei do lado de fora da Academia [Academia Estadual de Segurança Pública do Ceará (AESP-CE)] na
hora do almoço. Aí os alunos vinham, pegavam o livro e levavam pra dentro. Durante uma das aulas,
alguns alunos perguntaram para uma professora porque aqui no Brasil tinha polícia militar se na
maioria dos países do mundo ela não era militarizada. Os alunos falaram que tinham visto no meu livro.
Aí, pronto. Começaram a investigar a minha vida, abriram um IPM [Inquérito Policial Militar], eu fui
interrogado e eu fiquei impedido de trabalhar na rua”, conta.

No capítulo 11 do livro de Darlan, há algumas


frases anônimas ditas por seus colegas a
respeito da PM. “Os oficiais são uns
sanguessugas”, diz uma das frases; “a PM é a
polícia mais covarde que existe, pois só prende
pobre”, afirma outra. “No meu interrogatório,
eles queriam que eu dissesse o nome de cada
policial que falou as frases, pra cada policial
ser punido. A minha advogada alegou sigilo da
fonte, igual vocês jornalistas têm. Em outra
sessão, nessa época que eu tava respondendo
o processo, eu tentei argumentar com um
Darlan Menezes Abrantes capitão. ‘Não, capitão, é meu direito escrever o
livro’. Ele ironicamente pegou uma folha de
papel em branco e jogou na minha frente, dizendo: ‘Aqui, os seus direitos’”, diz.

A PM cearense alegou que a expulsão se baseava em vários artigos do Código Disciplinar e do Código
Penal Militar e que a conduta do ex-soldado iam de encontro ao pudor e decoro da classe. Em São Paulo
e no Ceará, é proibido ao policial “publicar, divulgar ou contribuir para a divulgação irrestrita de fatos,
documentos ou assuntos administrativos ou técnicos de natureza policial, militar ou judiciária que
possam concorrer para o desprestígio da Corporação Militar”. Darlan denunciou sua expulsão ao
Ministério Público do Ceará e entrou com uma ação de reintegração na Justiça ainda não julgada.
Procurada pela Pública, a PM cearense não quis explicar o motivo da expulsão de Darlan nem
comentar as declarações dele.

R egul am en tos “ob sol etos e an tidem oc rá tic os”

“Imagina um professor que não pode falar de educação ou um médico que não pode falar de saúde. Em
muitos estados, o policial não pode falar de segurança pública”, afirma o sociólogo Ignacio Cano, do
Laboratório de Análise da Violência da UERJ. Ele é autor de um estudo que analisou os “manuais de
conduta” dos PMs com o objetivo de comparar os códigos e legislações disciplinares das corporações de
segurança pública no Brasil.

“Os regulamentos disciplinares da PM são obsoletos, antidemocráticos, muitos deles pré-


constitucionais”, define o sociólogo. “Eles foram criados para garantir a hierarquia e a disciplina dentro
da corporação e a imagem da corporação, não foram feitos para proteger nem a população e nem o
policial”, afirma o professor. “A maior parte da formação na PM é para o policial aprender normas, tanto
as leis quanto as normas internas da corporação, e correr pra cima e pra baixo pra ficar em forma. A
educação física não é dada com um propósito de saúde do trabalho, ela também está nessa lógica da
disciplina. O que alguns reportagens
especialistas especiais
e membrostruco
da polícia dizem que, implicitamente,
amazônia resiste casa pública
esses artigos
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abusivos foram derrubados com a Constituição. O fato é que o diploma legal continua vigente”, diz.

Segundo seu estudo, ao menos 10 unidades da federação possuem regulamentos anteriores à


Constituição, inspirados no Regulamento Disciplinar do Exército (RDE). Alguns estados até adotam
diretamente o RDE como regulamento nas polícias militares. Isso foi determinado a partir de um
decreto da ditadura,o Decreto-Lei 667, de 2 de julho de 1969. O artigo 18 do decreto estabelece que: “As
Polícias Militares serão regidas por Regulamento Disciplinar redigido à semelhança do Regulamento
Disciplinar do Exército e adaptado às condições especiais de cada Corporação”.

“Nos regulamentos que nós analisamos, nós vimos casos extremos neste estudo, como regulamentos
que estipulam que, se um policial em posição superior bater num policial de nível inferior para obrigar a
cumprir uma ordem, então não tem problema, é uma coisa normal. Esse é um dos casos mais extremos”,
afirma Ignacio Cano. Ele cita outros abusos, decorrentes do excesso de regulação. “Há todo um
moralismo especial sobre o policial que regula até a vida privada dele. Ele não pode fazer coisas que a
maioria dos mortais fazem: se embebedar, contar uma mentira, contrair dívidas. Ele pode ser punido
por essas coisas. Isso cria uma visão de super-homem moral que não existe, isso sujeita os policiais a
riscos permanentes de punição por condutas que a maioria dos brasileiros fazem”, explica.

Há vários exemplos dessa regulação da vida privada dos policiais. No Espírito Santo, segundo o
regulamento, é proibido aos policiais “manter relacionamento íntimo não recomendável ou socialmente
reprovável, com superiores, pares, subordinados ou civis”. No Amazonas, é vedado ao policial “falar,
habitualmente, língua estrangeira, em estacionamento ou organização policial militar, exceto quando o
cargo ocupado pelo policial militar o exigir”. Em nove estados, constitui uma transgressão disciplinar o
policial “contrair dívidas ou assumir compromissos superiores às suas possibilidades, comprometendo o
bom nome da classe”.

A hierarquia é o valor supremo nos manuais das PMs. Os regulamentos disciplinares das polícias de
Alagoas e Mato Grosso proíbem: “sentar-se a praça, em público, à mesa em que estiver oficial ou vice-
versa, salvo em solenidades, festividades, ou reuniões sociais”. Em outros sete estados, é uma
transgressão disciplinar o policial que está sentado deixar de oferecer seu lugar a um superior. Só nove
estados classificam as transgressões tipificadas nas categorias comuns (Leve, Média, Grave e
Gravíssima); nos demais fica a cargo do superior estipular a gravidade da transgressão.

“Os direitos humanos dos policiais são lesados frequentemente com esses regulamentos. E aí nós
queremos que eles respeitem os direitos humanos dos cidadãos quando eles como seres humanos e
trabalhadores não tem os seus direitos respeitados”, observa Cano. “Quando você trata o policial de uma
forma autoritária e arbitrária, o que você está promovendo é que ele trate o cidadão da mesma forma.
Ele tende a descontar no cidadão a repressão que ele sofre no quartel. Ele tende a ser autoritário,
arbitrário, impositivo. Ele não tem diálogo no quartel, por que ele vai dar espaço pra isso com o
cidadão? Ele tende a esperar do cidadão a mesma moral que a dele”, argumenta o sociólogo.

Principal nome à frente do site Rede Democrática PM BM, o primeiro sargento da PMDF Roner Gama é
um exemplo da restrição da corporação à liberdade de expressão de seus integrantes. “Essa carga
negativa da ditadura se reflete em procedimentos internos punitivos que existe ainda hoje. O policial,
por exemplo, não pode manifestar na rede social sobre certos aspectos internos da corporação sob o
risco de responder. Eu mesmo estou respondendo a diversos inquéritos e sindicâ ncias por me expressar
ali naquele site. Hoje mesmo eu vou na Corregedoria responder por um comentário que alguém fez no
site. É uma coisa chata, constrangedora. A PM é a única instituição do país em que o agente não pode
questionar o seu superior. Um servidor
reportagens
público não
especiais truco
pode questionar procedimentos
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internos?
quem somos
É algo
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fora do contexto que vivemos. É totalmente absurdo”, afirma.

Com mais de 20 anos de experiência dentro das academias de polícia brasileiras e latinoamericanas, a
antropóloga e professora do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense
(UFF), Jacqueline Muniz, afirma: “No Brasil, nós temos uma lógica aristocrática pautada em privilégios
que perverte o sentido da hierarquia e da disciplina. É um abuso de poder continuado, como acontece
com regulamentos disciplinares caducos e inconstitucionais”, analisa.

“Os próprios policiais dizem nas ruas e nas minhas pesquisas que a motivação deles é a punição. Isso
reflete ambientes de pouca cidadania, transparência, de poucos reconhecimentos dos direitos
constitucionais de um dos principais atores da democracia. O policial é quem faz valer a Constituição na
esquina, não é o Rex que late e abana o rabo. Ele não tem que cortar grama do superior hierárquico,
virar motorista da esposa do coronel, servir cafezinho, ceder lugar na fila do cinema pro superior. Essa
cultura faz com que o policial se sinta inseguro na rua justamente por uma insegurança institucional e
um policial inseguro é pior do que um policial mal pago. Ele se vê o tempo todo com medo de ser
punido. Os policiais sempre dizem: ‘se eu faço demais eu sou punido, se eu faço de menos eu sou
punido, se eu não faço, eu sou punido’. Faltam parâ metros de aferição qualificada para o trabalho
policial e isso ainda depende de nós instituirmos um processo formativo profissional pras polícias”,
analisa.

“Polícia não se improvisa. Um policial experiente custa muito caro à sociedade, ele não pode ser
substituído porque morreu ou porque se acidentou”, conclui a antropóloga.

Leia também: A perversão começa na formação, diz ex-PM condenado

‘ E u j á c ai n o c h ão parapl é gic o’

Em 1989, Saul Humberto Martins, hoje beirando os 50 anos, sonhava em entrar na Polícia Militar do
Distrito Federal. Ele diz que achava a profissão bonita, que via muitas coisas ruins nas ruas e achava que
podia contribuir como policial. Saul entrou na corporação por concurso, tornou-se cabo da PM e
trabalhou como policial por 18 anos até ser atingido por um tiro acidental durante uma instrução, em
abril de 2008, que o fez ficar paraplégico.

“Aquele dia estava tendo um curso de Radiopatrulhamento que tinha começado. Eu não fazia parte do
curso, tava em outra área, mas me pediram pra dar um apoio. E eu fui”, relembra. No curso, voltado a
policiais com mais de dez anos de polícia, Saul deveria simular que era um criminoso e, em várias
situações, tentar tomar a arma das mãos de outro policial. Ele então tirou o colete balístico que usava
para ter mais mobilidade e para representar o papel de “meliante”.

Antes do treinamento, todos os participantes eram orientados a descarregar suas armas. Porém, durante
a instrução, um soldado participante do curso disse que estava com dor de cabeça e quis deixar o quartel
para ir à farmácia. Ele saiu do local,carregou a arma e colocou na cintura e foi de viatura comprar
remédio. Quando retornou, o soldado esqueceu da arma carregada. “Assim que ele chegou, um oficial
entrou na parte de trás do carro e falou pro soldado: ‘vamo que agora é a vez de vocês fazerem a
abordagem’. Eles entraram no local da instrução, que era um local fechado. Quando eles entraram, o
oficial orientou: ‘aborda aquele pessoal lá’”, afirma. Na simulação, Saul foi orientado a reagir à
abordagem. Quando ele reagiu, o soldado que tinha saído disparou a arma carregada.
“O tiro pegou na minha omoplata,
reportagens
perfurou
especiais
o truco amazônia resiste casa pública quem somos english f
pulmão, a coluna e se alojou na minha medula.
Eu já cai no chão paraplégico”, diz. O episódio
de Saul foi filmado e pode ser visto aqui (as
imagens são muito fortes). Saul ficou um mês
internado no Hospital Regional de Taguatinga.
A corregedoria da PM do Distrito Federal
condenou o oficial instrutor do curso e o
soldado que disparou a arma a nove meses de
prisão (convertidos em serviços comunitários),
mas seguem na corporação. Saul, que hoje é
pastor evangélico, ainda pleiteia sua
indenização na Justiça. Imagem do treinamento de abordagem que deixou Saul Humberto Martins paraplégico

“Quem tava dando a instrução no dia do meu acidente não era instrutor. Simplesmente porque ele era
oficial ele tava lá dando a instrução, mas ele não tinha preparo pra dar aquela instrução. Depois do meu
acidente houve vários outros casos. Teve um colega meu que não foi bem orientado numa instrução de
tiro, ele disparou, a cápsula bateu no olho dele e ele saiu de lá cego. Teve outro que levou um tiro no
joelho e teve que amputar a perna. Teve o caso do sargento Silva Barros que morreu lá no Guará, que
recebeu um tiro dentro do Quarto Batalhão de Polícia Militar. Teve até um instrutor do Bope que
morreu também.”, relembra. “Nós precisamos de instrutores mais bem preparados. Temos bons
instrutores, mas o problema é que eles querem colocar os oficiais piás na instrução só porque são
oficiais. Tem muito sargento bom de instrução que não pode virar instrutor, porque eles querem ter esse
privilégio. Puramente pela hierarquia”, reflete.

Sobre o treinamento em si, Saul critica o foco excessivo nos treinamentos de ordem unida. “O cara fica
dentro da academia e 50% do curso é pra aprender militarismo. Precisamos de um treinamento mais
técnico e profissional. O policial tem que ter mais treinamento de tiro, pra ele saber atirar, não pra
matar ninguém, mas pra saber atirar quando for necessário”, opina.

A Pública tentou contato com alguns dos policiais acidentados no Distrito Federal, mas eles se
recusaram a falar. Em nota, a PMDF afirmou que “faz treinamentos constantes com o objetivo de cada
vez mais aprimorar e atualizar o seu pessoal, e esses treinamentos são realizados com armamento de
fogo para simular reais situações de perigo e ação dos policiais. Todas as medidas de cuidado são
tomadas, mas infelizmente acidentes acontecem, não só aqui, mas em qualquer lugar do mundo, e além
do mais, a PMDF tem um dos menores índices de acidentes que causem graves lesões ou até mesmo a
morte de nossos policiais”, conclui a nota.

C ul tura da ditadura

“Nosso sistema de segurança pública traz ainda muita


coisa da época da ditadura, inclusive a formação”, afirma
o cabo da PM de Santa Catarina Elisandro Lotin,
presidente da Anaspra (Associação Nacional de Praças
da Polícia Militar). “Nós já fizemos inúmeras denúncias
[sobre os cursos de formação]. Recentemente, aqui em
Santa Catarina tinha uma academia de polícia com 200
reportagens especiais
mulheres
truco
e elas foram obrigadas
amazônia resiste
a ficar
casa pública
em posição english
quem somos
de
f
apoio e fazer flexões no asfalto quente às três horas da
tarde, várias delas ficaram com queimaduras nas mãos.
Aí você vai chegar nelas e dizer pra elas defenderem a
sociedade?”, questiona.

Vanderlei Ribeiro, presidente da Aspra (Associação de


Praças da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros do
Rio de Janeiro) desde 2008, atribui o “amadorismo” da
formação à “cultura” da PM. “Nós somos mal formados,
mal preparados e induzidos a erro pela cultura
militarista que existe nas polícias militares de todo o
Treinamento físico no CFAP do Rio de Janeiro
Brasil. A formação impõe desde o início um
comportamento autoritário que vai se refletir na população. A cultura militar é perversa, ela não prepara
o PM para compreender que ele tem um compromisso social com a sociedade. A escola de polícia não
tem qualificação nenhuma e não prepara ninguém pra atuar na rua. A formação é agressiva, não
respeita os direitos humanos, é arrogante, autoritária e o policial só sabe agir da mesma forma quando
sai da academia”, avalia.

Para o sargento Leonel Lucas, membro da Brigada Militar do Rio Grande do Sul e presidente da ABAMF
(Associação Beneficente Antônio Mendes Filho, entidade dos praças da Brigada gaúcha) não só o
treinamento dos praças precisa melhorar. “Infelizmente, nós temos ainda alguns capitães Nascimento
dando instrução nos cursos de formação dos praças. É por isso que eu acho que a primeira coisa que tem
que ser mudada é a formação acadêmica dos oficiais superiores, quando a gente mudar a cabeça de
quem tá nos formando lá em cima e os oficiais superiores começarem a receber uma formação mais
humanista, isso vai se refletir pra quem está nas patentes mais baixas.”

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A c adem ia n ão f orm a para direitos h um an os

Autor de uma tese de mestrado em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da


Universidade de São Paulo, o tenente-coronel Adilson Paes de Souza – 30 anos de serviço, hoje
na reserva – analisou o peso da disciplina de Direitos Humanos no currículo da Academia de
Polícia Militar do Barro Branco, escola de oficiais da PM paulista.

Segundo a dissertação de Adilson, só em 1994 a disciplina de Direitos Humanos apareceu no


currículo do Barro Branco e, desde a sua inclusão, a disciplina nunca passou dos 2% do total de
horas-aula oferecido nos cursos de formação. Em 2013, último ano coberto pela pesquisa de
Adilson, a disciplina de Direitos Humanos representou só 1,4% do total de horas-aula do curso
(90 horas aula em um total de mais de 6 mil horas de curso); hoje é ainda menor, foi reduzida
para 41 horas-aula.

Adilson critica também o conteúdo geral dos cursos de formação. “Não é dada sequer uma
pincelada do quadro social que nós vivemos de desigualdade, pobreza, exclusão. É nessa
realidade que o policial vai trabalhar. Quando se fala da questão racial, o policial tem que
entender o mecanismo histórico que produz a desigualdade racial até mesmo para que ele não
reproduza de maneira inconsciente
reportagens
essas mesmas
especiais truco
opressões no dia casa
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sobre a Polícia Militar na periferia: o viés extremamente racista”, exemplifica.

Para a antropóloga Jacqueline Muniz, da UFF, a partir do final dos anos 1980 algumas
academias se abriram para outras áreas de forma positiva o que inspirou a criação da Rede
Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública (Renaesp), em 2003, que repassa recursos
para cursos de especialização para as polícias em universidades de todo o país. “Qualificando os
gestores e operadores de segurança pública e pesquisadores foi possível dar um salto de
qualidade na elaboração de diagnósticos e iniciativas que subsidiassem políticas públicas”,
destaca. Ela também considera importante a criação da Matriz Curricular do Ministério da
Justiça (um documento de referência às polícias militares e civis brasileiras para a elaboração
das grades curriculares de cada estado), e a criação do Fundo Nacional de Segurança Pública,
com recursos vinculados ao planejamento das atividades. “Antes do Fundo a tradição era só de
compra de armamento, viatura e munição. Então o policial ganhava um armamento novo, mas
desconhecia completamente o que é a logística policial e o diálogo entre os armamentos para
fazer uso gradual, qualificado e comedido da força.”

Os avanços, porém, estão restritos a alguns estados, observa Jaqueline Muniz. “Ainda não
produzimos uma espécie de ‘esperanto’, de linguagem comum entre as polícias que favoreça a
transparência, a profissionalização, a integração e o controle social sobre as práticas de ensino
na polícia”, conclui.

A mudança não é fácil como experimentou na prática César Barreira, professor titular de
Sociologia da Universidade Federal do Ceará e coordenador do LEV (Laboratório de Estudos da
Violência). Em 2011 o sociólogo implantou a Academia Estadual de Segurança Pública do Ceará,
com uma proposta de formação integrada de todos os profissionais de segurança pública – à
exceção dos agentes penitenciários. “Eu avalio essa experiência como muito positiva. Houve
uma mistura do ambiente policial com o acadêmico, a parte técnica era dada pelos especialistas
em segurança pública e a parte humanística era ensinada por professores doutores”,
exemplifica. Ele usa os verbos no passado porque um ano e três meses depois do início da
experiência, ele foi exonerado pelo secretário de Segurança Pública e Defesa Social, coronel
Francisco Bezerra. “Claramente essa minha proposta não foi muito bem recebida por todos. Os
soldados, os policiais da Polícia Civil e a Polícia Forense receberam bem, parte dos oficiais da
PM é que não receberam. Não sei se essas ideias vão continuar porque você sabe que um
sociólogo à frente de uma academia de polícia é diferente de um tenente-coronel”, finaliza.

Outra tentativa é o Instituto Superior de Ciências Policiais (ISCP), uma instituição de ensino
superior credenciada no MEC, criada pela Polícia Militar do Distrito Federal que oferece dois
cursos de graduação (bacharelado em Ciências Policiais e tecnólogo em Segurança Pública) e
cursos de pós-graduação lato sensu. “A ideia é oferecer um curso amplo para formar
profissionais de gestão em segurança pública. Aqui no Brasil é o primeiro instituto desse tipo.
No Chile, pra você ter uma ideia, existe um instituto semelhante desde 1939”, diz o coronel
Sousa Lima, coordenador do Departamento de Educação da PMDF e reitor do ISCP. “Também
temos uma pró-reitoria de pesquisa para fornecer apoio acadêmico à realidade do policial.
Quem vai estudar qual o melhor equipamento pro policial não se aposentar com problemas na
coluna? Quem vai estudar que arma o policial usa pra fazer menos dano? Quem vai estudar que
munição ele vai estudar? A gente resolveu estudar a gente mesmo porque ninguém tá
preocupado com a polícia”, alfineta.
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Uma questão divide opiniões de policiais e especialistas em segurança pública: é possível oferecer uma
formação mais humana e eficiente aos policiais militares sem mexer na natureza militar da PM? Em
quase todas as entrevistas feitas para esta reportagem, o tema da desmilitarização das polícias apareceu
reanimado pela PEC 51/ 2013 de autoria do senador Lindbergh Farias (PT-RJ).

Opinião: o que dizem os PMs (Clique para ver o infográfico ampliado)

A antropóloga Jacqueline Muniz acha que sim. “A estrutura militar em si não limita o efeito do processo
formativo para os policiais, o que impede o policial aplicar o que ele aprendeu é o abuso de poder. Há
polícias de inspiração militar, como a Gendarmarie, da França, os Carabineri, da Itália, e a Guarda Civil
Espanhola que foram democratizadas, têm grau elevado de formação e os direitos e deveres dos policiais
são garantidos como cidadãos plenos. E essas polícias são muito bem avaliadas por suas sociedades e
têm, inclusive, baixo índice de violência, corrupção e violação”, afirma. O cabo Elisandro Lotin,
presidente da Anaspra, vai na mesma linha. “Você pode ter uma polícia militar desde que a atuação dela
na rua seja focada na dignidade da pessoa humana, cidadania, desde que desvincule de toda aquela
lógica que o Exército ainda insiste em ter de controle das polícias militares: do armamento até a
formação, o número de efetivo. A partir dessa desvinculação [do Exército], que não significa
desmilitarização, nós podemos ter uma matriz nacional de atuação das polícias militares no Brasil
focados em dignidade da pessoa humana, em direitos trabalhistas para os profissionais de segurança
pública, códigos de ética e conduta adequados à democracia”, defende.

Já Vanderlei Ribeiro, presidente da associação de praças carioca, discorda. “A estrutura militarista é


incompatível com o policiamento ostensivo. Militarismo é pro Exército. Primeiro você tem que mexer na
estrutura pra depois você falar em alterar a formação. Não tem outro caminho. Você pode pegar o
melhor especialista do país para dar aula para os policiais, só que o que ele vai fazer na rua vai ser
diferente do que ele aprendeu lá porque a cultura enraizada não permite outro tipo de comportamento.
Aqui no Rio de Janeiro teve vários convênios com ONGs, vários professores universitários foram dar
aula lá nos cursos e não mudou em nada porque a questão toda é mi-li-tar. Não adianta o camarada ter
aula de sociologia se ele vai chegar na rua e vai matar, se ele é treinado nesse conceito militarista”,
avalia. “Não adianta vocêreportagens
fazer aula de direitos humanos
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que predomina é a ideia militar, é a lógica militar”, opina o ex-soldado Darlan Menezes Abrantes.

“Nas entrevistas com os policiais para a minha dissertação, uma fala me chamou a atenção. Eles diziam:
‘Nós entramos em serviço e ao entrar em serviço nós entramos em território inimigo. No território
inimigo, eu mato ou eu morro. Não me peça para interceder pela vida do inimigo.’ Estudando depois
sobre essa fala, eu fui estudar a Doutrina de Segurança Nacional e ela necessita de um inimigo para se
fazer presente. Na ditadura, o inimigo era quem? Quem contestava a ditadura. Terminou a
redemocratização e essa ideia persiste, hoje o inimigo é quem enfrenta a polícia, quem pratica um delito
ou quem vive em determinadas áreas. O discurso de muitas autoridades é o discurso da guerra, de
retomar o território do inimigo, de ocupar o morro e devolver para o Estado. É o discurso da Doutrina
de Segurança Nacional. Na ponta da linha, o recado chega assim: ‘Lá tem um inimigo, então o aniquile’.
Talvez isso explique a letalidade da polícia”, conclui o tenente-coronel Adilson Paes de Souza.

“Quando você vê um soldado policiando, algo já está errado. Ou o camarada é soldado, ou policial. O
soldado tem uma premissa que é o quê? Matar o inimigo. Isso aí é o principal.O soldado é formado para
eliminar o inimigo e o policial não, pelo menos não deveria”, afirma o ex-soldado da PM Rodrigo
Nogueira Batista. “Essa confusão de atribuições entre soldado e policial, elas não se resolvem de
maneira fácil. As coisas continuam acontecendo aos olhos de todo mundo e ninguém faz nada. Por
exemplo, aquele pessoal que tava voltando de uma festa dentro do HB20 branco e que foram
perseguidos por uma patrulha. Não teve um estalinho, uma bombinha, nada que viesse do HB20 pra
patrulha e o cara deu 15 tiros de fuzil no carro. Isso só pode acontecer na cabeça de um soldado, na
cabeça de um policial não aconteceria nunca. Um policial iria correr atrás, cercar. Mas ele não ia dar tiro
em quem não tá dando tiro nele. Só na cabeça do soldado, que acha que tá na guerra e acha que se não
atirar primeiro vai levar tiro. O cara foi lá, deu a sirene e o carro acelerou pra fugir da polícia. ‘Ah, é
bandido, vou dar tiro’. Podia ser alguém bêbado, podia estar todo mundo fazendo uma suruba dentro do
carro, podia ter uma cachaça no carro e o cara estar com medo de ser pego, o cara podia não ter
habilitação, o cara podia ser surdo… São milhões de coisas, mas o cara não para pra analisar essas coisas
porque ele não foi condicionado pra pensar, a contextualizar o tipo de serviço que ele tá fazendo. Ele foi
treinado pra quê? Acelerou, correu, bala!”, analisa o ex-PM, hoje na prisão.

Leia também: A perversão começa na formação, diz ex-PM condenado

Esta reportagem foi financiada coletivamente e escolhida pelos doadores do crow dfunding
# ReportagemPública2015. Saiba mais

Tags: direitos humanos, guerra às drogas, PM, Polícia Militar, segurança, segurança publica, tráfico de
drogas, violência policial

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Eduardo Viveros • 2 anos atrás


Sou guarda municipal, e assino embaixo dessa reportagem, na
gcm em geral também reproduz-se todo esse quadro ideológico
conservador do século XIX na formação, porque ou as gcms são
comandadas na sua generalidade por militares linha-dura, isto é,
psicopatas, ou o treinamento é dado por eles. E o treino, assim
como o da PM, tem como único propósito formar gente com
mentalidade em algum lugar do século XIX, ou seja, racistas,
machistas, homofóbicos, escravistas, autoritários, violentos etc.
Conheço muita gente que entrou normal na segurança pública, aí
depois da lavagem cerebral transformaram o cara no robocop,
separou da mulher, dos filhos, dos amigos, até que um dia ele
pirou e se matou depois de ter matado a família toda. As mãos dos
conservadores, dentro e fora da segurança pública, estão todas
manchadas com o sangue deles, deveriam serem indiciados por
genocídio no tribunal internacional da Haia, nos Países Baixos.
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Carlos Valim • 2 anos atrás


É realmente muito triste. A princípio, parece uma boa ideia ter
policias violentos, que combatem o crime na porrada e resolvendo
tudo com as próprias mãoes. Mas isso vira uma coisa sem
controle, que transformam os PMs em máquinas, eles erram,
pegam pessoas inocentes, exageram nas punições, perdem o
respeito da população e passam a ser temidos por quem deviam
proteger... É um câncer. Conversei uma vez com um general das
Forças Aéreas da Suécia, e ele me contou como mudaram a
cultura do Exército do país. Lá o cara que comete um erro pode ir
contar para os superiores o que fez, e, se ele for sincero, não é
punido. Aqui é tudo no bullying, nos castigos, tudo dá prisão. O
cara vira um bicho, se desumaniza. Como vai proteger a
sociedade, lidar com o cidadão comum?
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