Era mais uma tarde cinza de inverno, o céu cor de chumbo, e as nuvens enegrecidas se mexendo aos poucos. Ora sim, ora não, um relâmpago piscava no meio da imensidão. A vista que tinha da janela do leito era simples, mais composta por casas do que prédios. Os carros somavam-se numa quantidade grande na avenida à frente, ocupando todas as pistas e vias. Com leveza nos dedos, fechou a fina cortina. A luz do quarto quadrado de hospital era pálida, e quase agredia seu olhar de tão clara. Só não sentia mais nada pois já estava acostumada há mais de dez anos. Encarou calmamente seu reflexo no vidro à sua frente. Beth já tinha trinta anos, e os cabelos cinzas caiam até os ombros. Eram cor de aço não por idade, e sim por uma doença que possuía. Pensar em si mesma a levava a cantos escuros de sua memória, era algo complexo. Não sabia por onde começar a puxar a sua vida. Todos os acontecimentos, de alguma forma, acarretavam em outros. Fora aos doze, quando menstruou pela primeira vez também, que descobriria ser uma maga. Não teve um ritual fúnebre, como pensara. Já não era mais segredo que as coisas se mexiam a sua volta, de acordo com seu temperamento. Por sorte de todos, Beth costumava ser uma menina muito calma, diferente da maioria. E, não depois de muito tempo, recebera a visita de uma maga. Ser inserida no mundo dos infernais não fora uma opção, não a curto prazo. As sombras tinham um charme que ninguém sabia explicar, um mistério a cada esquina sempre puxava qualquer um para um encontro inevitável, o cheiro de perigo no bar de vampiros, e as fadas que seduziam mortalmente. Depois de um ano de aulas sobre sua natureza, Beth finalmente aprendeu a lição final de um mago. Diferente de feiticeiros ou bruxos, magos eram andarilhos atrás de conhecimento. Faziam amizades e relacionamentos pela longa e variada estrada de sua vida. Não tinham o costume de se fixar, construir casa ou moradia. Beth era uma garota em plena puberdade quando recebeu seus anéis — artefatos mágicos feitos para conter e ajudá-la a moldar seus dons — e descobrira que o mundo era bem mais complexo do que já parecia. E, no meio de tudo isso, a sua mentora resolvera ir embora, a explicando finalmente o real significado de ser um mago. Não tardou muito para Beth tirar as próprias conclusões da sua vida. Resolveu deixar sua casa não muito depois, enganando sua mãe, dizendo que iria cursar faculdade em uma cidade vizinha. No mar de lembranças que devaneava, ela não soube discernir quanto tempo levou para se formar em enfermagem. Depois disso, acabou se envolvendo com problemas com feiticeiros. E, se existe uma coisa que todos os infernais recomendam que ninguém nunca faça, essa coisa é se envolver com famílias de feiticeiros. Foi quanto fora amaldiçoada com aquela doença, que acinzentava suas madeixas e deixava seu condicionamento físico num estado delicado. — Senhora? — disse um dos enfermos das macas, com a voz fraca, quase mudo. Havia quatro camas hospitalares naquele leito. Cinco histórias que tinham se cruzado, se encaixado, com ela sendo a manipuladora dos fantoches. Era tão impressionante, pensava sempre, ter todo aquele poder na ponta dos dedos. — Moça? Ela se virou e o olhou com o canto do olhar. O sujeito estava pálido, um pouco amarelado. Seu aspecto era reconfortante. Ela conseguia enxergar esperança nos olhos anêmicos do homem ali deitado. Não havia nem dois dias que ele chegara lá, com suspeitas de pneumonia. De certo, ele tinha mais coisas. As suas tosses frequentes o denunciava. — Amrud — falou, tão baixo que quase para si mesma. Mexeu a pontas do dedo em movimentos coordenados. Piamente, ele a obedeceu e sua cabeça desceu contra o travesseiro, caindo com leveza e olhos fechados. Beth soprou uma mecha de cabelo para fora do rosto, cansada. Há quanto tempo estava em pé? Duas horas? Dois dias? O tempo se passava de forma confusa quando ela se perdia nos próprios encantamentos. Usar a magia para curar o próximo fora a única aplicação decente que conseguira pensar. Tinha tanto poder, vontade de mudar seu meio, ansiava por alterar a realidade, e, acima de tudo isso, tinha magia, o que a possibilitava a infinitas coisas. E, no fim, acabou por encontrar a solução para a ocupação de seu dom num hospital, ajudando quem precisasse. Claro que seu complexo de messias a levava a lugares obscuros. Beth tinha afinco pelos seus pacientes, e curá-los de seus machucados não era fechar todas as feridas. Sempre se ocupava tentando resolver a vida das pessoas, sendo, em partes, uma psicóloga. Não era muito raro ela usar de suas habilidades para convencer maridos abusivos se separarem de suas esposas, ou serem presos. Isso quando não estava metida num caso do sobrenatural, com a ajuda de seu marido, um dos investigadores particulares da região. Num impulso automático, pegou a prancheta com as fichas dos pacientes. Sua mania predileta era ler nomes, conhecer um pouco mais de quem cuidava, de quem precisava de sua ajuda. O mundo era um lugar tão grande, e tão terrível. Os ordinários se destruíam por si só, mal precisavam dos infernais para o fazer. — Beth? — disse uma voz à porta. Ela olhou, assustada, deixando a prancheta escapar das mãos trêmulas. Dália era uma mulher alta, ossuda e com um semblante não muito acolhedor. Era o tipo de enfermeira que não tinha piedade nem paciência na hora de aplicar injeções. — Caramba, você está um caco! — Talvez — falou, depois de pegar as folhas do chão. — O que houve? Não ouvi a ambulância. — A única emergência é com você — Dália respondeu, entrando pela porta. Com poucos passos, chegou perto o suficiente para pegar o estetoscópio do pescoço de Beth. Seu jaleco branco tinha uma pequena mancha vermelha perto da gola. — Eu assumo daqui. — Não — protestou a maga, com a voz cansada. Aquele timbre de fadiga já estava a tanto tempo empregando em sua voz, que já se tornara natural. — Eu estou bem. — Bem mal — a outra retrucou. — Você já cumpriu seu plantão, isso há algumas horas. Não temos dinheiro para lhe pagar horas extras, ok? — Dália brincou, e o sorriso que tinha no rosto não combinava nem um pouco com o queixo angular logo abaixo. — Só vá para casa, tome um banho e durma. Sem argumentos na língua — talvez por falta de capacidade cognitiva por estar atordoada pensando em descansar — ela resolveu ir. Os corredores tinham seu movimento de sempre, com enfermeiras e médicos indo e vindo, contra e na sua direção. A ignorando. Muitos dos rostos familiares, mas, sem seu estado atual, sorrir era uma tarefa difícil, quiçá acenar. A luz a sua volta era uma mancha pouco definida, que se embaçava a cada passo. Tudo que conseguia ver era a escada, que levava ao térreo, onde entraria na cozinha e tomaria uma caneca grande de café quente, para reconfortar os sentidos e ser trazida para o mundo novamente. Seria simples, senão esbarrasse com uma pequena garota. Não a viu a primeira vista, só quando seu pé não deixou o chão quando enganchou nas pernas da menina. Beth desequilibrou e quase caiu no chão, e agradeceu por ter poucas pessoas no corredor. Conseguiu se apoiar na parede, num segundo oportuno. — Desculpa — a voz sem vontade da garota ecoou pelo corredor agora vazio. Ela estava sentada no chão claro, tão pálida como um fantasma, com seus cabelos encaracolados confusos como os sentimentos embaralhados em seus olhos. Não demorou nem um segundo para ela voltar a sua postura, com o rosto enfiando nos joelhos, presos contra o peito. Beth a encarou com mais afinco. Não era tão incomum encontrar almas penadas vagando pelo hospital, certas pessoas não conseguem simplesmente aceitar a morte. No entanto, Beth não era uma maga sensitiva a fantasmas, e a garota era sólida demais até mesmo para um poltergeist. — Está perdida? — disse, esticando uma das mãos. Sentiu uma coceira engraçada dos cabelos batendo na nuca. Diferente da sensação, a expressão da garota não era alegre ou feliz. Seus olhos cristalinos pendiam uma tristeza trevosa. Algo que passava da carne, e penetrava a alma. Beth sabia exatamente as aflições ali ocultas, pois não há muito tempo costumava ver o mesmo semblante capenga no espelho. A garota recuou, com medo. Beth tremulou os dedos, e os anéis em seus dedos brilharam contra a luz branca do corredor. — Mamãe — a voz fina da garota era uma linha tênue de fumaça, que se esvaiu ar gelado. Foi no mesmo segundo que ela apontou um dedo fraco para o leito ao lado. E o quarto de hospital era idêntico aos outros, a não ser pela incrível atmosfera densa que ali cercava. Não era um feitiço, e Beth praguejou por isso, caso fosse um, poderia quebra-lo num piscar de olhos. Era a realidade, a fria e dura vida, batendo como concreto contra a mais falsas e macias das superfícies criadas pela mágica. Uma pontada gelada subiu pelo peito, e traços de lágrimas começaram a queimar abaixo do olho. Não foi difícil lembra-se da paciente. Três ataques cardíacos na noite passada, com uma parada respiratória entre um e outro. Olhando o sofrimento daquela mulher em estado terminal, não era tão difícil ignorar os argumentos contra eutanásia. Nem a mais forte das magias a faria voltar. Apenas um milagre poderia o fazer. E, sobre os Deuses, Beth não tinha tempo para caçá-los em suas festas excêntricas em algum bolsão cósmico paralelo. A garota a puxou pela manga do jaleco e a sacudiu, com força: — Você é médica, não é? Quando ela volta? Apesar de ter aberto a boca, Beth não teve fôlego para responder. Não teve a coragem necessária, por isso mentiu, alertando que não demoraria muito para a mulher acordar de seu coma incurável. Apreensiva, Beth procurou a saída mais próxima, para conseguir respirar sem engasgar e se culpar. Tantos truques saiam de sua boca, tantas mágicas que podia fazer e, ainda sim, tudo era inútil para ajudar aquela enferma. Pularia para fora da entrada do hospital, se não fosse pela chuva grossa que caia. O ar era tenso e o redor ficara cinzento. Até mesmo as cores se tornavam menos chamativas, afundando o mundo numa padronização estranha e sufocante. A passos rápidos, ela ignorou o temporal e correu na direção do carro, no meio do estacionamento. Entrou encharcada no sedã prateado. Passou alguns minutos encarando para o teto do carro, tentando encontrar uma saída daquela situação, tentando ignorar o mundo a sua volta. Fingindo existir perfeição nas sarjetas onde os humanos viviam. Não bastava olhar-se longe para ver uma comunidade atrás da enorme construção do hospital. Não era muito raro os casos de crianças carentes que morriam por desnutrição, ou mães que morriam em partos clandestinos. Se não fosse pelo toque abrupto do celular, continuaria devaneando por muito mais tempo. Pareceu encontrar tranquilidade ao encarar para a imensidão cinza do forro, encolhendo as pernas e se esquentando. Exatamente como a garota no corredor. Era uma mensagem de Patrícia, uma de suas melhores amigas. Sua história com Patrícia era turbulenta, e, se não gostasse muito de sua amizade, já teria a mandado andar há tempos. A feiticeira vivia enrolada em problemas e mais problemas, nunca conseguindo se desfazer de um sem se enfiar em outro. O maior erro de Patrícia era sua incrível habilidade em levar seus amigos para suas confusões. Beth suspirou e soprou uma das mechas molhadas do cabelo. O chumaço pesado não saiu do lugar, continuando preso na direção do nariz. De fato, Patrícia tinha se metido em mais problemas.
O vermelho se destacou, inevitavelmente.
O engarrafamento pelas ruas do centro estava absurdo. Há duas esquinas, havia acontecido um pequeno acidente com um motoqueiro que batera contra um caminhão. Era como estar no hospital. Viu sangue, um enfermo e os paramédicos. Ficou em choque, por algum motivo. Não teve forças para ir ajudar na situação, mesmo reconhecendo alguns colegas de trabalho. Preferiu ficar no carro. Sua cabeça já tinha problemas demais. O semáforo molhado a lembrava da enorme poça de sangue sendo diluída na água do temporal, que batia forte contra a calçada e a levava para os esgotos. Olhou para o carro do lado, e viu o motorista tranquilo, não dando a mínima. — Tia? — Beth quase pulou onde estava, se não fosse o forro baixo do teto. Sua cabeça se afundou contra o almofadado do banco. Olhou para o lado, assustada. Viu apenas um garoto, todo molhado, com o cabeço baixo e preso a face. Ele pegou o pacote de balas sortidas que deixara no retrovisor, há poucos segundos. Por algum motivo, os segundos passaram-se mais lentamente. Beth centrou-se no olhar perdido do menino, aquelas pequenas orbes escuras e sem objetivo, que a encaravam com o único propósito de conseguir alguns trocados. Eram tão delicados aqueles olhos, e eram lindas janelas para uma alma tão simples. A balança da realidade pareceu pesar para o lado errado, pela milésima vez. O mundo era injusto, e certas pessoas nasciam sem sorte. Mas, diferente de todos, Beth fazia sua sorte, nunca precisou depender do mundo. Por que diabos aquele menino não podia ter-se nascido mago? Sentiu-se fazia e fútil. Muito fútil. O menino a estendeu a mão, pedindo uma moeda. A buzina do carro de trás soou alta, fazendo seu coração palpitar forte contra o peito sem ar. — Entre — ela mexeu a cabeça, o convidando. O garoto recuou, desacostumado com a proposta. — Vamos logo — sua voz soou abafada pelo som estridente da buzina do esportivo — Entre! O garoto a obedeceu, sorrindo. Não tinham muitas alternativas de saída. Estavam no meio de uma avenida, num temporal e com vias interditadas. Nenhum dos dois tinha como contestar. Beth não disse nada no primeiro instante. Ficou estática e apenas pisou no acelerador. Continuou a dirigir, vendo o garoto pelo espelho. Ele tinha um rosto juvenil, talvez tivesse treze, tinha a mesma cara dos meninos que atendia quando estava na pediatria, pré-adolescentes que estavam caminhando para a puberdade. Algumas espinhas polvilhavam seu cara pálida. O garoto ajeitou os cabelos. — Qual seu nome? — ela perguntou. Seu olhar fora de foco acompanhou uma pequena gota pelo vidro. Ele levantou a vista, o guiso das moedas que carregava na palma suja estalou. — Iago — ele respondeu, com receio. — Você vai me matar? Beth empalideceu, sentindo o frio finalmente invadir seu corpo. Seu peito vazio travou. Qual era a realidade daquela criança? — Está frio, não está? — Sim — a voz de Iago não era firme, e nem seria agora. — Dona, pra onde você tá me levando? — Para a casa — apesar de tê-las dito, não compreendeu nenhuma das palavras que disse. — Você precisa de um banho quente. Estava na friagem O garoto olhou para baixo. Suas bochechas pálidas avermelharam. — Eu não tenho casa — replicou, sentido. — Você pode me deixar aqui. — Ele apontou para fora, com um dedo trêmulo e voz falha. — Na chuva? — Beth manobrou o volante inconsciente, pois toda sua atenção estava ao observar os movimentos delicados do pequeno homem no banco de trás. Tudo nele a fascinava, a chamava a atenção. Ele era um amontoado de delicadeza num monte de lixo, jogado no mundo, para morrer, se tivesse sorte. — Você está louco? Pode pegar uma pneumonia. — Eu não ligo. Eu juro. Me deixa aqui! — sua voz se elevou alguns decibéis. — Por favor! A mão dele voou contra o vidro, num soco forte e firme. No entanto, desnutrido do jeito que era, tudo que houve foi um baque e um grito agudo da parte dele. Assustada, procurou a primeira vaga para encostar o carro. O puxou para perto, tentando ser o mais delicada possível. Acabou levando um pontapé de raspão. Eles se encararam, por um segundo, quando Iago cansou de reagir em vão. Por mais que odiasse estar errada, Beth não podia tirar toda a razão do garoto. Afinal, aquilo era sequestro.