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A VERDADE

E A HISTÓRIA
Synésio Scofano Fernandes

           
  
                           

                                                             

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Lucien Febvre 1

Introdução
Circulam na mídia afirmações atri- A palavra História originou-se da
buídas a diferentes personalidades, que, expressão grega “Istoria”, que tem dois sen-
com pequenas variações, podem ser sin- tidos: um objetivo - o que ocorreu - e outro
tetizadas na seguinte expressão: “Verdade subjetivo - o conhecimento do ocorrido.
Histórica”. Em português, também, permane-
Inicialmente, a frase acima enuncia- ceu esse duplo sentido.
da está envolta numa rede de conceitos
que variam desde a superficialidade até a História Objetiva e História Subjetiva
contradição. A frase diz respeito às diferen- Dessa ligeira análise dos significados
tes significações assumidas pelo vocábulo da palavra História, é possível inferir os
verdade no decorrer do tempo ou se refere entendimentos das expressões: História
à verdade de um determinado fato ou de Objetiva e História Subjetiva.
uma interpretação histórica? No entanto, A História Objetiva refere-se ao
o tema merece um exame mais profundo acontecido em determinado tempo e
de modo a contribuir para o entendimento a Subjetiva diz respeito à descrição e à
da relação verdade - história. interpretação, isto é, ao conhecimento
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dos acontecimentos e dos fatos históricos As Fontes Históricas
ocorridos. O conteúdo da História Ob- O registro possível do conteúdo da
jetiva evanesce no preciso momento em História Objetiva consta das fontes histó-
que ocorre, passando a ser passado e não ricas: testemunhos pessoais, documentos e
mais podendo ser reconstituído em todas outros objetos de diferentes naturezas. No
as suas características, porque as múltiplas entanto, essas fontes, para serem utilizadas,
relações que o integram ao seu contexto, devem ser submetidas à crítica, de modo a
também mutante, não se repetem em avaliar-se a sua real contribuição para o co-
outro tempo, que é o seu futuro. nhecimento dos fatos históricos. As fontes
documentais devem ser analisadas sob os
O Objeto do Estudo da História pontos de vistas da isenção e das significações
O objeto do estudo da História é dos conceitos utilizados. Quanto mais os fatos
único, singular, isto é, não ocorre em outro se distanciem, no tempo, de um determinado
tempo diferente daquele em que aconteceu. presente, em que se elabora o conhecimento
Quanto a esse aspecto, há uma diferença desses fatos passados, mais a análise semântica
em relação às ciências ditas da natureza torna-se importante, porque os significados
(física, química, biologia). Nessas ciências, das palavras se alteram de acordo com a
os objetos de suas investigações são repro- cultura. De outro lado, a crítica interna dos
duzíveis. Por outro lado, as ciências da documentos deve focalizar, também, a isenção
natureza procuram estabelecer ou constatar dos relatos escritos, porque mesmos os regis-
leis universais que regulem os fenômenos tros oficiais têm um comprometimento com
investigados. São ciências nomotéticas, um modo de pensar particular, podem estar
explicativas, enquanto a História é com- submetidos a uma determinada ideologia, a
preensiva, ideográfica, tendo por objetivo um credo político, a interesses e preconceitos.
a compreensão do fato histórico. Não se No que se refere aos testemunhos
preocupa em construir hipóteses sobre a pessoais, a crítica deve considerar o
regularidade e a previsibilidade dos fatos contexto cultural, particularmente o
que observa e analisa, pois isso seria im- social e o político, bem como os este-
possível. A compreensão do fato histórico, reótipos, que, necessariamente, afetam
que permitirá o conhecimento do aconte- o modo de pensar e de agir das pessoas.
cido, pode ser feita sob diferentes ângulos Portanto, os depoimentos e os relatos de-
e perspectivas, de acordo com a cultura do vem ser considerados dentro desse quadro
momento em que esse conhecimento está de referências. O investigador do passado,
sendo elaborado. Cultura que circunscreve como diz Collingwood, tem de vivenciar o
o fazer do investigador, que é afetado tam- personagem que, nas suas circunstâncias, re-
bém, pelas suas crenças e seus interesses latou ou relata uma passagem desse passado.
individuais. Tem de penetrar no interior dos sucessos

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para descobrir os pensamentos que neles se presente e da subjetividade do Historiador.
exprimem e compreender a ação praticada. Assim, a história da historiografia resulta
Mas todos os registros – escritos, desse permanente trabalho de reinterpre-
orais, pictóricos – disponíveis em um dado tação do passado, que é infinito.
momento, são apenas referências para o A criação da História pelo historiador
conhecimento do passado, que não pode não tem por objetivo reconstituir o “fato em
ser revivido e se perdeu no tempo. si” ocorrido no passado, o “noumenos” (se-
Portanto, como assinala Heidegger, gundo uma terminologia kantiana), inaces-
a fonte da história está no passado, mas sível ao nosso conhecimento, mas interpretá-
somente o presente é criador da história. O -lo, de acordo com uma visão particular.
conhecimento do passado - história subjetiva
- é elaborado de acordo com a cultura de um A Verdade na História
determinado tempo presente, que possibili- Portanto, qual a posição da verdade
ta, ao historiador, criar esse conhecimento. em relação à história? Certamente, não é a
Nesse sentido, Dewey diz que “A menor mesma daquela ocupada nas ciências da na-
reflexão mostra que o material empregado tureza (física, química, biologia), em que se
para escrever a História é aquele da época em procura a previsibilidade de acordo com uma
que uma História é escrita. Não dispomos lei concebida a partir de dados observáveis e
de nenhum material para os primeiros prin- de hipóteses construídas pelo pesquisador.
cípios, exceto aquele do presente histórico”.2 De outro modo, será que a verdade,
na História, encontra-se na aderência dos
O Historiador dados decorrentes das fontes históricas ao
O trabalho de descrição, análise e que realmente aconteceu? A resposta a essa
interpretação do acontecido é um ato indagação depara-se com a impossibilida-
de criação do Historiador, que se vale, de, pois não há como comparar esses dados
também, da sua imaginação e mesmo da com um passado, que já não mais existe.
fantasia para elaborar a sua narrativa. É um Na verdade, a constatação, ou não, da
ato pessoal, intransferível. Não pode ser aderência das informações decorrentes das
cooperativo ou coletivo, pois, na verdade, é fontes ao acontecido, não seria, propria-
uma ação solitária do Historiador. Por isso mente, a elaboração do conhecimento do
que a História Subjetiva - o conhecimento passado, mas apenas uma etapa dessa ativi-
do passado - é continuamente reescrita dade. Pois a História Subjetiva exige, tam-
porque sempre haverá uma perspectiva bém, a análise e a interpretação do ocorrido.
particular, inovadora, percebida pelo A essa altura, é necessário ressaltar
Historiador, que contribui para a com- que a criação do passado, realizada pelo
preensão do acontecido. Essa perspectiva Historiador, em um determinado presen-
decorre da cultura de um determinado te, não resultaria, também, como poderia

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parecer, da utilização de procedimentos ções construídas pelos investigadores para
e instrumentos judiciais, que derivam de compreender o passado e, enfim, o espírito
códigos e normas próprios desse tipo de humano. Nesse sentido, cada narrativa tem a
investigação e têm por objetivo apurar a sua própria verdade, que resulta da coerência
infração a preceitos legais vigentes em um e da integridade da atividade do Historiador.
dado presente. Há que se precaver, contra Cabe, no momento, retornar à advertência
o propósito, algumas vezes presente na de cautela recomendada por Renouvin em
história oficial, de, absurdamente, tentar relação à “tendência de buscar no passado
criar fatos históricos por intermédio de di- argumentos históricos propícios à concre-
plomas legais. Ora, não é a lei ou o decreto tização de teses políticas atuais, falseando
que constitui e interpreta o acontecimento a pesquisa e levando, muitas vezes, os
ocorrido no passado, o que só pode ser historiadores a sacrificarem a sua inde-
feito a partir de dados decorrentes das pendência espiritual, pelo desejo de servir
fontes históricas e do ato interpretativo e, a teses políticas ou ideológicas”.3
portanto, subjetivo do Historiador.
Como se constata, a posição da Portanto, há que se separar a cons-
verdade na História não é a mesma da- trução da História Subjetiva de outros
quela identificada em outros campos tipos de trabalhos, que objetivam atender
do conhecimento humano, mas sim a interesses políticos e ideológicos, quase
decorre das infinitas análises e interpreta- sempre provisórios e superficiais.

Synésio Scofano Fernandes

(1) Lucien Febvre. Prefácio a Charles Mozaré, Trois essais sur histoire ET Culture, Pág VIII.
(2) John Dewey: Logic: The Theory of Inquiry, NY, 1949, Pág 223.
(3) P. Renouvin, “L’orientation actuelle des travaux d’histoire contemporaine”, pág 372.

Gen Div Synésio Scofano Fernandes é natural do Rio de Janeiro. Foi


Comandante do Centro de Estudos de Pessoal (CEP) e Diretor de Assuntos
Culturais (DAC). Atualmente é Vice-Presidente da FUNCEB.

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