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A (IN) DISCIPLINA ESCOLAR

ARTIGO DE PIAGET, WINNICOTT E VYGOTSKY


DE REVISÃO
NAS PERSPECTIVAS

A (IN) DISCIPLINA ESCOLAR NAS PERSPECTIVAS


DE PIAGET, WINNICOTT E VYGOTSKY

Célia Godoy; Glaucy Abdon; Ivanil Correa Lopes; Lilian Cássia Bacich Martins;
Silvia Regina Gramstrup; Wedja Oliveira Leal; Marisa Irene Siqueira Castanho

RESUMO – Neste artigo, os autores discutem o fenômeno da indisciplina


escolar, com base nas teorias de Piaget, Winnicott e Vygotsky.

UNITERMOS: Desenvolvimento.Aprendizagem.

INTRODUÇÃO tos justificados para salvaguardar o poder, não


Vivemos dias de incerteza no plano das importando de onde ele vem e em nome de quem
relações interpessoais, incertezas quanto às regras ele se impõe.
e ditames que regem essas relações, quer nos Se este é o cenário social com o qual nos depa-
espaços macrossociais, quer nos espaços ramos, é nesse cenário que assistimos à
microssociais. transmutação constante dos elementos que dão
Vivemos dias de assombro diante das forças sustentação a um certo universo simbólico
agressivas do homem, o qual em nome de cultural, cujas representações, crenças e valores
quaisquer princípios arbitrários, em defesa de dão o sentido das ações no plano das relações
interesses particulares, instaura regras acima e entre os homens, onde quer que elas ocorram.
além do bem e do mal para regerem as relações No caso da instituição escolar, espaço por
sociais. excelência do processo de educação e de socia-
Somos bombardeados por cenas de violência lização, tem sido enorme o desafio de manter uma
que refletem o nível de incivilidade e de confron- postura reflexiva e de ação frente à invasão

Célia Godoy; Glaucy Abdon; Ivanil Correa Lopes; Lilian Correspondência


Cássia Bacich Martins; Silvia Regina Gramstrup; Dra. Marisa Irene Siqueira Castanho
Wedja Oliveira Leal - Mestrandas integrantes da Linha Rua Loreto, 61 – apto. 81 – V. Sto. Estéfano
de Pesquisa Desenvolvimento Humano e Processo São Paulo – SP – 04152-130
Ensino-Aprendizagem, do Programa de Pós-graduação Tel.: (11) 5077-4417 – (11) 3491-0522
em Psicologia da Universidade São Marcos. E-mail: miscast@uol.com.br
Marisa Irene Siqueira Castanho - Doutora em Psicologia marisa.irene@smarcos.br
Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo IPUSP;
docente e pesquisadora da Linha de Pesquisa
Desenvolvimento Humano e Processo Ensino-
Aprendizagem, do Programa de Pós-graduação em
Psicologia da Universidade São Marcos.

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permanente de novas formas de relações, de histórica, damos pistas das abordagens escolhidas
crenças e de valores minando o cotidiano escolar para tratar do tema da indisciplina. Salientamos
e grassando a dinâmica das relações, diante das não ser pretensão deste trabalho fazer correlações
quais os educadores se mostram perplexos e, na ou aproximações entre as teorias de Piaget,
maior parte das vezes, sem parâmetros de ação. Winnicott e Vygotsky, pois estas possuem visões
É comum os professores se queixarem a respeito de homem e mundo diferentes. O objetivo é, a
de alunos indisciplinados, sem limites, partir desses autores, refletir sobre o fenômeno
agressivos. da indisciplina escolar e encontrar apoios para
Nesse sentido, entendemos a indisciplina seu enfrentamento no universo escolar.
escolar como um tema imprescindível aos Alguns recortes das teorias em estudo podem
professores, aos pais e a todos de alguma forma trazer as contribuições anunciadas. No caso de
envolvidos com o desenvolvimento da criança. Piaget, o foco recai sobre a idéia do julgamento
Optamos por abordar o tema pela ótica do moral como uma conquista do desenvolvimento
desenvolvimento humano entendido como das estruturas cognitivas na criança. A teoria do
processo iniciado na família, depois com amadurecimento de Winnicott permite pensar
agregação da escola como responsável pela sobre a natureza da agressividade e da conduta
passagem dos estádios imaturos para a vida em anti-social e nas possibilidades construtivas
sociedade. A indisciplina escolar pode, a dessas forças agressivas. Por fim, a abordagem
depender de como for compreendida e enfrentada, Sócio-Histórica de Vygotsky traz elementos
revelar-se como fator de crescimento para profes- fundamentais para compreender a constituição
sores, alunos e pais. Falar sobre (in)disciplina do humano nos espaços sociais.
implica refletir sobre as questões de autonomia,
de independência, de interdependência e de A (in)disciplina escolar na perspectiva de
controle social presentes em todas as culturas. Piaget
Tais questões estão na base de como é entendido A questão da indisciplina no cotidiano escolar,
o processo que leva à passagem do indivíduo à analisada sob a perspectiva da teoria de Piaget,
sociedade e da natureza à cultura. Ou seja, é nos leva à reflexão sobre sua concepção do
nas relações construídas no cotidiano dos espaços desenvolvimento da moralidade. O estabele-
institucionais sociais que se galga a lenta e cimento de regras e a maneira como os alunos
conflituosa passagem para o desenvolvimento de percebem essas regras está na base desta reflexão
um ser autônomo, em espaços potenciais para sobre a indisciplina, pois, ao discutir as relações
criar e viver sua condição social e histórica. entre moralidade e indisciplina, devemos estar
As “velhas” teorias psicológicas tecem atentos aos princípios subjacentes às regras
posicionamentos compreensivos sobre como e implantadas e elaboradas pela escola: em espe-
para que o homem se desenvolve. A questão é cial, o princípio de justiça e a forma como a regra
saber se estas teorias ainda podem trazer é estabelecida, ou seja, se o princípio é o da
contribuições face às perplexidades do mundo de coação, por exemplo. Assim, ao considerarmos
hoje. Quanto elas nos ajudariam a compreender um ato indisciplinado ou não, necessitamos
o anseio pelo poder e controle como parte do conhecer a natureza das regras que regem o
desenvolvimento humano? Quão tênue seria o grupo ao qual o sujeito pertence e a forma como
divisor de águas entre a ordenação dos desejos e as regras foram estabelecidas.
os limites externos impostos, traçando os Tal questão polêmica deve ser tratada em sua
contornos do que é ou não possível e aceitável complexidade e na relação dialética entre a noção
em cada grupo social? de justiça e o respeito às regras as quais, em
Ao falarmos no ser autônomo, ao referirmo- Piaget1, desenvolvem-se dentro de um processo
nos aos espaços potenciais e à condição social e psicogenético de evolução.

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A partir da análise dos jogos de regras, Piaget1 se em seu lugar, é capaz de distanciar-se de suas
identifica as etapas do processo de conscien- concepções e compreender, não necessariamente
tização das mesmas. Na etapa da anomia, há a aceitando, a posição adotada pelo outro frente à
ausência de regras, por desconhecimento e pela situação. Surge o sentimento de respeito mútuo
falta de necessidade destas, pois a criança brinca baseado na cooperação, na colaboração e na soli-
para satisfazer suas necessidades motoras. Na dariedade. Ou seja, aparece o sistema de coor-
fase da heteronomia, a criança percebe a existên- denações sociais e individuais, produzindo uma
cia de regras, mas sua fonte é externa, é determi- moral de cooperação e de transição para a auto-
nada pelo adulto, não faz parte da brincadeira. nomia pessoal, em oposição à moral intuitiva de
Finalmente, quando atinge a autonomia, a fonte heteronomia, característica das crianças do
de existência das regras é o próprio indivíduo na período precedente. Com a autonomia, o indi-
sua relação com o outro. Piaget julga que o desen- víduo é capaz de discernir entre o certo e o erra-
volvimento do juízo moral segue as mesmas do, a partir de sua moral interna: as regras
etapas. A disciplina, portanto, pode ser analisada passam a serem internalizadas e sua percepção
a partir da interação estabelecida pelo indivíduo sobre o respeito a elas está regida pelos princípios
em relação a um conjunto de regras. de justiça característicos de sua sociedade.
Piaget pesquisa, também, as concepções “Toda moral consiste num sistema de regras,
infantis relacionadas ao dever moral, percebendo e a essência de toda moralidade deve ser
que, inicialmente, o dever é heterônomo, carac- procurada no respeito que o indivíduo adquire
teriza-se por um respeito unilateral à ordem deter- por essas regras”1. Podemos concluir que, apesar
minada, geralmente pelo adulto responsável. A de Piaget não se referir ao tema indisciplina, a
primeira moral da criança é a da obediência e o revolta às regras ou o desconhecimento delas
primeiro critério do bem é, durante muito tempo pode ser um dos fatores determinantes nos atos
para os pequenos, a vontade dos pais. A moral de indisciplina. Indivíduos autônomos não são,
da primeira infância fica, com efeito, essencial- necessariamente, indivíduos disciplinados, mas,
mente heterônoma, isto é, dependente de uma sem dúvida, são indivíduos capazes de analisar
vontade exterior, a dos seres respeitados ou dos as regras e, a partir de sua reflexão, posicionar-
pais. Logo, os primeiros valores morais são se em relação a elas.
moldados a partir da regra recebida; por meio do
respeito unilateral, esta regra é tomada ao pé da A (in)disciplina escolar na perspectiva da
letra e não em sua essência. A descrença na lei teoria do amadurecimento de Winnicott
estabelecida pelo adulto acontece quando este Winnicott não abordou especificamente o tema
diz uma coisa e faz outra. indisciplina escolar. Entretanto, em sua teoria do
Na fase intermediária de interiorização e amadurecimento, encontramos conceitos
generalização das regras, a criança passa a relevantes, os quais podem fornecer pistas ao
respeitar a regra em si e não às ordens do adulto. professor para o entendimento e enfrentamento
Ao atingir a próxima fase, a da autonomia, a da indisciplina na sala de aula. Referimo-nos aos
criança passa a conceber o dever como sendo conceitos de agressividade, de privação/
decorrente da reciprocidade, tornando-se capaz deprivação, de tendência anti-social e de espaço
de uma certa reflexão, coordenando suas ações potencial.
com as dos outros. A criança pode cooperar porque No entanto, antes de explorarmos estes
não confunde mais seu ponto de vista com o dos conceitos, é necessário expor que, na perspectiva
outros; é capaz de dissociar seu ponto de vista winnicottiana, o homem é compreendido na
para coordená-lo com o dos outros e, assim, as relação mantida com o ambiente. A interação com
discussões tornam-se possíveis. Ao analisar uma o ambiente, inicialmente, é a relação do bebê com
situação sob o ponto de vista do outro, colocando- a mãe (dependência absoluta), do qual depende

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para constituir-se como humano. A relação com o faixa etária. A criança anti-social olha além, pois
ambiente iniciada com a mãe estende-se na busca os limites na sociedade a fim de desenvolver
relação com o meio no qual o indivíduo está seu crescimento emocional.
inserido (dependência relativa) e isto inclui a Winnicott2 entende que a tendência anti-social
escola como um ambiente socializador. implica esperança, pois essa tendência “[...]
A partir desta visão, apresentamos o primeiro caracteriza-se por um elemento nela que compele
conceito, o da agressividade. Segundo Winnicott2, o meio ambiente a ser importante. O paciente,
a agressividade é motilidade, é energia potencia- por meio de pulsões inconscientes, compele
lizadora da ação e da expressão da criança no alguém de se encarregar, de cuidar dele”
mundo, de natureza inata. (Winnicott2, 1995, 130, grifos do autor). A criança
Para Abram3, Winnicott afirma que o ambiente pode cometer atos infracionais com o objetivo de
externo determina a forma como o bebê e, que alguém a barre.
futuramente a criança, vai lidar com sua agressão Quando as forças destrutivas ameaçam
inata, isto é, em um ambiente facilitador, esta dominar as forças de amor, o indivíduo precisa
agressão pode ser transformada e integrada na fazer algo para salvar-se. A saída, assim, é a
personalidade da criança, como uma energia que dramatização do seu mundo interior (fantasia) no
potencializará atividades no brincar, na escola e mundo exterior. Uma vez que ele possa
no trabalho. Já, em um ambiente no qual o bebê representar o papel destrutivo, será capaz de
sofre de deprivações e ou privações, a agressão provocar o controle de sua destrutividade por uma
pode se reverter em violência e destrutividade. autoridade externa, isto é, “ele espera que os
A deprivação para Winnicott2 é a perda de limites que foram perdidos (a autoridade do pai)
condições facilitadoras do ambiente, pressupondo sejam redescobertos. O indivíduo está em busca
que a criança tenha, em algum momento, vivido do ambiente que está preparado para dizer não,
em um ambiente suficientemente bom e, por não como punição, mas como um incentivador
algum motivo, o perdeu. A privação acontece do sentimento de segurança” (Abram3, 2000, p.
quando a criança nunca possuiu um ambiente 44, grifo do autor). Desse modo, pais e profes-
facilitador, ou seja, nunca experimentou essas sores não devem deixar as crianças diante de uma
condições benéficas. O poema de Abram autoridade frouxa, a tal ponto que elas mesmas
intitulado “Comunicação da mãe para a criança“ assumam a autoridade.
nos faz compreender melhor e metaforicamente Além da dramatização, um outro método é por
o que vem a ser um ambiente facilitador: meio de jogos ou trabalhos que envolvam ação,
“Eu encontrei você;/Você sobreviveu a tudo o podendo causar prazer, eliminando os senti-
que eu fiz, e eu passo, então, a reconhecê-la/ mentos de frustração e ofensa, por exemplo: lutar
Como não-eu;/Eu uso você;/Eu esqueço de você;/ boxe; chutar bola, ou a menina que brinca de estar
Mas você se recorda de mim;/Continuo a esperando um bebê. Em todo jogo, trabalho e arte
esquercer-me de você;/Eu perco você;/Fico triste” está o remorso inconsciente por um dano causado
(Abram, 1968/2000, p.223). na fantasia inconsciente e um desejo (também
A criança que sofreu de privação ou deprivação inconsciente) de começar a corrigir as coisas.
no primeiro ambiente, ao apresentar Em seu artigo Moral e educação, Winnicott4
comportamentos considerados como atos afirma que a criança tem a capacidade para ser
indisciplinares na escola, pode estar sinalizando educada moralmente, mas a insistência em uma
um pedido de socorro, um S.O.S, na perspectiva organização moral imposta faz com que se
winnicottiana. Trata-se da tendência anti-social perca sua criatividade. Muitas vezes, é preciso
que não é um diagnóstico, pois pode ser favorecer os espaços potenciais de criação para
encontrada em indivíduos normais, indivíduos que a criança tenha a ilusão que criou a
neuróticos, indivíduos psicóticos e em qualquer educação moral.

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O espaço potencial, outro importante conceito Segundo Oliveira8,9, o pressuposto básico da


desenvolvido por Winnicott, é um lugar que não obra de Vygotsky é a idéia do homem constituir-
é nem interno nem externo, é uma instância se como tal a partir da sua relação com o outro. O
intermediária na qual o ser humano pode criar e outro se representa, então, pela cultura histori-
recriar experiências a partir das oportunidades e camente acumulada. O homem é, portanto,
condições ambientais suficientemente boas5. entendido como ser social e histórico, porém não
Assim, em um contexto de condições suficien- condicionado a essa história, tendo possibilidades
temente boas, o ambiente poderá fornecer ele- de transformar sua realidade.
mentos para suprir ou reparar necessidades que Uma das muitas preocupações de Vygotsky10
o indivíduo tem ou teve no primeiro ambiente. foi a relação entre desenvolvimento e aprendi-
Na abordagem psicanalítica de Winnicott, zagem, buscando entender a origem dos
entendemos os atos de indisciplina como, muitas processos psicológicos. A diferença básica entre
vezes, um pedido de socorro demonstrado em os estudos do autor e de outros pesquisadores
uma tendência anti-social. A escola como um dá-se, principalmente, pelo fato de, para este
ambiente suficientemente bom pode fazer uso de autor, o aprendizado estar relacionado ao
sua especificidade pedagógica, propiciando ao desenvolvimento. Ou seja, o indivíduo, na medi-
aluno espaços potenciais, nos quais ele exerça da em que aprende, desenvolve-se e, por meio
sua criatividade e, assim, utilize sua agressivi- do aprendizado, processos internos estruturam-
dade (motilidade) e atividade de maneira se, em especial, o pensamento e a linguagem.
positiva. Vygotsky11 ressaltou a importância da lingua-
gem como instrumento de formação do
A (in)disciplina escolar na perspectiva pensamento, ou seja, a linguagem age decisi-
sócio-histórica de Vygotsky vamente na estrutura do pensamento e é a
A questão da indisciplina pode ser entendida ferramenta básica para a construção de
na perspectiva de Vygotsky de várias formas. conhecimentos.
Inicialmente, é necessário entender alguns Em seus estudos, Vygotsky postulou a
pressupostos da Psicologia Sócio-Histórica, mais possibilidade de transformar o mundo concreto,
especificamente como o homem é visto nessa pelo emprego de ferramentas, estabelecendo
perspectiva. condições para mudar suas ações e transformar
É válido ressaltar que Vygotsky não fez qualitativamente sua consciência. A consciência
referências diretas à indisciplina, porém, a partir e as funções superiores, para este teórico sócio-
de suas idéias, nos propusemos a fazer uma histórico, têm origem no espaço externo, na
relação entre alguns pressupostos de sua teoria relação com os objetos e com as pessoas, nas
e a indisciplina, como fez a autora Teresa Rego6. condições objetivas da vida em sociedade.
Vygotsky criou uma teoria de desenvolvi- Vygotsky enfatizou o desenvolvimento
mento da mente humana que, ainda nos dias psicológico de cada sujeito como resultado do
atuais, traz contribuições significativas para a progresso geral da humanidade mediado por
educação. Sua teoria, também conhecida como instrumentos desenvolvidos pelos homens, pois,
Sócio-Histórica ou Histórico-Cultural, tem se “[...] é na atividade prática, nas interações que
constituído como base para as práticas educativas. os homens estabelecem entre si e com a natureza,
Para Davidov e Zinchenko7, Vygotsky enfatizou que se originam e se desenvolvem as funções
a importância do convívio social, afirmando que psíquicas especificamente humanas”12.
as práticas educativas, formais e informais, Segundo Rego6, a mediação possibilita dois
são meios sociais para organizar uma situação processos que favorecem a constituição psicológica
de vida, a fim de promover o desenvolvimento do sujeito: o interpsicológico e o intrapsicológico.
mental da criança. A atividade mediada passa por um processo

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interpsicológico ou interpessoal. Quando esta cultural, no qual os alunos estão inseridos e por
atividade torna-se independente e voluntária, meio dos quais constroem suas relações.
passa por um processo intrapsicológico ou
intrapessoal, baseado em valores, imagens e Considerações finais
representações mentais. Vygotsky (apud Rego6) Os objetivos deste artigo foram: primeiro,
entende a constituição psicológica como “[...] um entender a indisciplina escolar como parte
processo de desenvolvimento profundamente processo de desenvolvimento das nossas crianças
enraizado nas ligações entre história individual e, segundo, compreendê-la como fenômeno
e história social”. complexo constituído nas relações sociais e como
Podemos inferir que a relação homem-mundo processo de constante burilação da natureza
é uma relação mediada. Para Rego6, com base na humana rumo a um projeto de desenvolvimento
construção social do sujeito, as características social. Buscamos, na revisão de alguns aspectos
psicológicas e socioculturais não são dadas a das teorias de Piaget, Winnicott e Vygotsky sobre
priori, nem fornecidas pelas pressões sociais, e o desenvolvimento humano, subsídios teóricos
sim, formam-se a partir das inúmeras e constantes para tal reflexão, trazer contribuições para os
interações do indivíduo com o meio. educadores refletirem sobre a indisciplina e
A sociedade e o indivíduo são vistos como recriarem situações de sala de aula.
sistemas complexos e dinâmicos, submetidos a Retomando a análise inicial do contexto no
ininterruptos e recíprocos processos de desenvol- qual vivemos hoje, no que diz respeito à escola,
vimento e transformação. Todavia, falar em talvez imponha-se a premência da revisão de
desenvolvimento humano é falar em seu contexto discursos extremos de leis não aplicáveis a uma
cultural. realidade mutante historicamente, alguns limites
Nesta perspectiva, a indisciplina escolar de certo e errado estão se reconfigurando,
resulta de um processo compartilhado com gerando um desconforto generalizado, acom-
pessoas e outros elementos da cultura na qual os panhado o sentimento de impotência sobre o que
sujeitos estão inseridos. O comportamento fazer. Impõe-se um esforço aos participantes da
indisciplinado dependerá, portanto, de expe- dinâmica escolar, alunos e professores, diretores
riências e de relações com o grupo social e a época e coordenadores, funcionários e pais para o
histórica. estabelecimento de ações de reciprocidade e de
Entende-se a família como primeiro contexto reflexões coletivas propiciadoras da construção
de socialização do indivíduo; contudo, os traços participativa de um projeto educacional, o qual
que caracterizam a criança e o jovem ao longo de indique os rumos da educação que se quer seguir.
seu desenvolvimento não dependerão exclusi- O presente estudo não tem a pretensão de
vamente das experiências vivenciadas no interior esgotar ou finalizar a discussão, mas de fazer parte
da família, mas das inúmeras aprendizagens do da espiral de conhecimento que se procura
indivíduo, em diferentes contextos socializados, construir acerca do desenvolvimento humano.
tais como: instituições sociais, meios de Considerar as regras dele como parte do desenvol-
comunicação e práticas sociais, entre outros vimento humano não significa impô-las, mas
instrumentos de mediação. Dessa forma, o ato tido implicar-se nos processos educacionais favorece-
como disciplinado ou indisciplinado resulta das dores de condições de criação, autonomia, de ética
considerações do todo do contexto social e e moral nos relacionamentos interpessoais.

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A (IN) DISCIPLINA ESCOLAR NAS PERSPECTIVAS DE PIAGET, WINNICOTT E VYGOTSKY

SUMMARY
The school (in) discipline in the Piaget’s, Winnicott’s and
Vygotsky’s perspectives

In this article, the authors discuss the school indiscipline phenomenon,


with base in Piaget’s, Winnicott’s and Vygotsky’s theories.

KEY WORDS: Development. Learning.

REFERÊNCIAS pressupostos e desdobramentos. São Paulo:


1. Piaget J. Juízo moral. Rio de Janeiro: Papirus;1994.
Forense;1994. 8. Oliveira MK. Vygotsky - aprendizado e
2. Winnicott D. Privação e delinqüência. Porto desenvolvimento: um processo sócio-
Alegre:Artes Médicas;1995. histórico. São Paulo:Scipione;1993.
3. Abram J. A linguagem de Winnicott. Rio de 9. Oliveira MK. A indisciplina e o processo
Janeiro:Revinter;2000. educativo: uma análise na perspectiva
4. Winnicott D. Os processos de maturação da Vygotskiana. In: Aquino JG, org. Indisci-
criança. Porto Alegre:Artes Médicas;1983/ plina na escola: alternativas teóricas e
1990. práticas. São Paulo:Summus;1996.
5. Dias EO. A teoria do amadurecimento de D. 10. Vigotski LS. A formação social da mente.
W. Winnicott. São Paulo:Imago;2003. São Paulo:Martins Fontes;1998.
6. Rego TC. Vygotsky: uma perspectiva histó- 11. Vigotski LS. A construção do pensamento e
rico-cultural da educação. Petrópolis:Vozes; da linguagem. São Paulo:Martins Fontes;
1995. 2001.
7. Davidov V, Zinchenko VP. A contribuição de 12. Palangana IC. Desenvolvimento & apren-
Vygotsky para o desenvolvimento da Psico- dizagem em Piaget e Vygotsky - A rele-
logia. In Daniels H, ed. Vygotsky em foco: vância social. São Paulo:Plexus;1994.

Trabalho originalmente apresentado à disciplina Artigo recebido: 03/07/2006


Fundamentos Psicossociais do Desenvolvimento Aprovado: 14/09/2006
Humano, do Programa de Pós-graduação em Psicologia
da Universidade São Marcos, em novembro de 2005 e
em Mesa-Redonda com o mesmo título no evento Saber
2006, São Paulo, em 3 de setembro de 2006.

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