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Racismo é “efeito colateral” da evolução, diz psicóloga

REINALDO JOSÉ LOPES

Ninguém pode acusar a americana Leda Cosmides de não ir direto ao ponto. A


pesquisadora da Universidade da Califórnia em Santa Barbara, uma das fundadoras da
chamada psicologia evolutiva, tem como objetivo central de seu trabalho nada menos
que desvendar a natureza humana. Por natureza, diz ela, entende-se “os programas de
processamento de informação típicos da nossa espécie, que funcionam de forma
permanente no cérebro humano”. Desde o final dos anos 1980, Cosmides e seus colegas
– o mais ilustre deles é o canadense Steven Pinker – estão usando a teoria da evolução
de Charles Darwin para tentar alcançar essa meta nada modesta. O único jeito de
entender a mente humana, argumentam eles, é levar em conta que ela surgiu como
ferramenta para sobreviver no ambiente hostil que os ancestrais das pessoas de hoje
enfrentavam. Cosmides iniciou uma parceria com uma rede brasileira de psicologia
evolutiva, coordenada por uma psicóloga da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. Seu objetivo é entender, no Brasil, a percepção de raça, que ela considera um
“efeito colateral” ou subproduto de mecanismos evolutivos ligados à idéia de coalizão e
cooperação nos ancestrais dos grupos humanos modernos. Nos EUA, a pesquisadora
imaginou um experimento para tentar comprovar isso. “Nós achávamos que, se você
tivesse duas coalizões, mas a raça não ajudasse a predizer a qual delas se aliar, isso
deveria diminuir o grau com que as pessoas notam e recordam a raça das outras. E isso
se mostrou verdadeiro.” Casada com o colega de pesquisa John Tooby, Cosmides tem
49 anos (“eca!”, brinca) e uma filha de 8. Leia entrevista que ela concedeu à Folha antes
de uma palestra em São Paulo.

Folha - A psicologia evolutiva tem um número enorme de detratores, gente que


costuma dizer que o campo não fez descobertas de verdade até agora. O que a sra.
citaria como os principais progressos da área?
Leda Cosmides - Acho que eles poderiam ser divididos em duas grandes áreas. A
primeira é o que eu chamo de integração conceitual das ciências. A psicologia evolutiva
tem liderado as tentativas de reunir as ciências naturais com as ciências sociais e as
humanidades. Não é uma redução dos outros campos à psicologia. A lei da oferta e da
procura é uma propriedade emergente da interação de muitas mentes. Não dá para
reduzir história e economia à psicologia, mas há um elo causal importante aí. Muitos
economistas estão interessados na psicologia evolutiva, porque sabem que seus modelos
de escolhas racionais não estão corretos. Além disso, há pessoas da área literária
interessadas no que fazemos. A literatura às vezes tem sua própria teoria da natureza
humana – algumas pessoas gostariam ter uma que fosse mais correta (risos).

Folha - A sra. sente essa necessidade entre escritores, por exemplo?


Cosmides - Ela existe mais entre as pessoas que trabalham com crítica literária. Há
filósofos muito interessados nessas idéias. Pode-se pensar numa racionalidade
ecológica, numa mente que está bem estruturada para resolver determinados problemas
adaptativos que os nossos ancestrais caçadores-coletores enfrentavam. Também estou
muito empolgada com o trabalho que estamos fazendo com a rede brasileira [de
psicologia evolutiva]. Os psicólogos sociais descobriram que as pessoas parecem notar
e recordar a raça dos indivíduos que encontram, junto com o sexo e a idade deles. O
sexo e a idade fazem sentido do ponto de vista da evolução, mas a raça? Bom, para
começar, trata-se de um conceito estranho. Além disso, os caçadores-coletores são
nômades e se movimentam a pé. Eles não viajam tão longe! Dificilmente...
Folha - Dificilmente têm a chance de se deslocar o bastante para encontrar pessoas
diferentes deles...
Cosmides - ... que possam ser consideradas de outra raça. Exatamente. Como é que a
seleção natural poderia criar um mecanismo para codificar um aspecto do mundo que
não existia para os nossos ancestrais caçadores-coletores? Então, o que nós achamos é
que deva existir um subproduto, um efeito colateral de outros mecanismos, que
acreditamos ser ligados à idéia de coalizão, usados para entender o conceito de “nós e
eles”, cooperação entre três ou mais indivíduos para alcançar um objetivo comum e
compartilhar os benefícios resultantes. Para os nossos ancestrais isso às vezes poderia
ser positivo, como uma caçada cooperativa ou a divisão de alimentos, e às vezes
negativo, como atacar um outro grupo. Nossa hipótese era que a percepção de raça teria
a ver com esses padrões de cooperação e competição. Um subproduto disso seria fazer
as pessoas codificarem a raça dos outros, porque, pelo menos nos EUA, existem
padrões de colaboração e competição que estão relacionados com raça, já que não se
trata de uma sociedade integrada do ponto de vista racial.

Folha - Nesse ponto, o Brasil não é tão diferente assim dos EUA...
Cosmides - Pelos dados preliminares brasileiros parece que as coisas não são tão
diferentes. Então, nós achávamos que, se você tivesse duas coalizões, mas a raça não
ajudasse a predizer a qual delas se aliar, isso deveria diminuir o grau com que as
pessoas notam e recordam a raça das outras. E isso se mostrou verdadeiro. É claro que,
nesse experimento, como em qualquer outro, existem interpretações alternativas – razão
pela qual eu repito meus experimentos muitas, muitas vezes, coisa que os nossos
críticos não parecem notar.

Folha - A sra. mencionou o interesse de pessoas nesse tipo de trabalho, mas ainda
há muita resistência a essas idéias, inclusive do ponto de vista político, não?
Cosmides - Sim, e é por isso que os estudantes são a esperança para o futuro, porque
eles não têm pré-compromissos. As pessoas também estão se tornando mais
sofisticadas, estão percebendo que não se trata de determinismo biológico mas de tentar
entender o design da mente, incluindo seu desenvolvimento e as maneiras como o
ambiente afeta o desenvolvimento mental. Por exemplo, eu sou míope. Neste momento
[Cosmides tira os óculos], eu não consigo ver você. Agora [ela coloca os óculos de
novo], eu consigo ver você. Mudança ambiental – das grandes, aliás. No entanto, há
uma base genética para quem fica míope e quem não fica. Os caçadores-coletores não
ficam míopes. Nós temos um mecanismo que ajusta nossa visão à distância focal média,
mas o problema é que, em sociedades como a nossa, estamos lendo de perto, assistindo
à TV de perto, então a distância focal média encurta. A assim um tipo de variação
genética que nem se expressa entre caçadores-coletores acaba se expressando entre nós.

Folha - E quanto ao papel do acaso, ou do aparecimento de características que não


têm uma função evolutiva óbvia num primeiro momento?
Cosmides - Bem, toda a questão da percepção racial é um efeito colateral, para começar.
Eu acredito firmemente que não existe nenhum mecanismo na mente diretamente
adaptado para a percepção de raça. E, especialmente quando se considera o mundo
moderno, há montes de coisas que fazemos e que não são adaptativas. Mas muitas delas
são reflexos de adaptações a um mundo já desaparecido.
Folha - Outra crítica à psicologia evolutiva é o uso de modelos como caçadores-
coletores e macacos para inferir sobre as pressões evolutivas que teriam
predominado entre os ancestrais dos humanos.
Cosmides - Nós evitamos discussões do tipo “os humanos são parecidos com os
babuínos”. A maioria dos psicólogos acaba não olhando para os ambientes passados, e
às vezes assume que estamos “adaptados” ao mundo moderno (escrever, digitar, usar
geladeiras etc.). É claro que existem muitas coisas que nunca poderemos descobrir nos
mínimos detalhes, mas muitas coisas nós sabemos: nada de Estados nacionais,
comunicação de massa, predadores eram um problema etc. Além disso, lembre-se de
que os nossos cérebros e corpos de hoje foram forjados pelos ambientes passados, e por
isso guardam pistas deles. Por exemplo: nós não produzimos vitaminas que eram
comuns na nossa dieta; não produzimos a vitamina B12, mas precisamos dela; a
principal fonte alimentar de B12 é a carne; portanto, nossos ancestrais devem ter
comido algum tipo de carne.

Folha - A idéia de um forte componente inato na mente humana soa fatalista para
muita gente, mas a sra. diz que discorda. Por quê?
Cosmides - Certamente eu não sou fatalista! Somente entendendo os mecanismos da
mente é que você pode esperar melhorar a condição humana. Isso é especialmente
importante quando se considera que nós temos uma mente cheia de muitos mecanismos
especializados em determinadas funções. Um exemplo: existem mecanismos que
governam a agressão grupal (o pensamento do tipo “nós contra eles”), mas eles não
ficam ativos o tempo todo. Que condições sociais os ativam? Se soubermos isso,
podemos evitar situações que causam xenofobia ou guerra.

FSP, 10/06/2006

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