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A Biografia e a História

Teresa Maria Malatian


UNESP/Franca

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Por que Biografar?
ARTIGOS

A multissecular desconfiança para com este gênero sedutor, afinal, os indivídu-


os fazem ou não a história? O gênero apresenta ainda possibilidades, ainda que tenha
sido bastante criticado? O Catálogo Brasileiro de Publicações em 1994 registrava um
crescimento de 55% das obras sobre o tema em relação a 1987 (Schmidt, 1997, p.1).

A biografia como tendência historiográfica

O estatuto da biografia em História

A biografia nunca esteve ausente das reflexões historiográficas ou das práticas


profissionais dos historiadores, mas muitas vezes se fez acompanhar de um mal-estar
explícito ou implícito.
Como assinala Momigliano, em Sem a pretensão de percorrer de da história factual. Para dar à História
Problèmes d´historiographie ancienne et modo enciclopédico esta trajetória, é im- volume e profundidade, utilizou o herói
moderne (1983), trata-se de gênero anti- portante lembrar que a suspeita e a am- como meio de expressão do fluxo caótico
go que conservou fronteiras fluídas com bigüidade tiveram em Suetônio (75-160) e aleatório da vida e do acesso ao univer-
o campo do conhecimento histórico. Já uma tentativa de estabelecimento de dis- sal e, com esse intuito, produziu estudos
na Antigüidade, despertava a desconfian- tinções, com a individualização da bio- notáveis como A Vida de John Sterling e
ça de autores como Tucídides e Políbio, grafia na direção de torná-la mais confi- a Biografia de Cromwell. O herói indi-
que lhe atribuíam o estatuto de território ável, mediante desmistificação e recusa vidual, sujeito de exaltação, foi por Car-
sujeito à exaltação tendenciosa de um in- do elogio na Vida dos doze Césares. lyle encarregado de exprimir sua época
divíduo, grupo de indivíduos ou causa. Desde a Antigüidade greco-ro- e, assim, a História se tornou o campo
Entre a biografia e a História há um abis- mana construíram-se, pois, referências de afrontamento de personalidades he-
mo de insegurança e fragilidade diante importantes para um gênero que nunca róicas, cada uma com sua função profé-
do problema da verdade da narrativa, cessou de ser cultivado, ainda que atra- tica enquanto encarnação das forças do
sem contar que à primeira se reservava vessando altos e baixos na sua aceitação Espírito, entendidas como religião, “o 17
o estudo dos fatos e gestos dos indiví- e viradas em sua concepção, como ocor- fator principal na vida do homem”. En-
duos, enquanto à segunda cabia o relato reu com as hagiografias medievais. tre eles, o herói demiurgo seria capaz de
dos acontecimentos coletivos ( Levillain, A construção do indivíduo na Ida- dar sentido à história e forçar o destino.
2003, p. 145). de Moderna se fez acompanhar pelos Em sua obra de referência e exaltação do
Plutarco (45-125) construiu um trabalhos modelares de tipo biográfico, idealismo, Os heróis e o culto dos heróis,
modelo ao traçar as Vidas paralelas nas como O século de Luís XIV ou Carlos atribuiu aos indivíduos excepcionais um
quais procurava evidenciar as virtudes XII da Suécia, de que se ocupou Voltai- papel na História da humanidade, confun-
dos homens de ação, que agiam de modo re (1694-1778). O herói foi colocado por dindo-a com a dos “grandes homens que
correto “no interior de duas civilizações ele no centro da História em trabalhos trabalharam a terra: eles foram os condu-
idealizadas, a da Grécia e a de Roma”, modelares . tores, os modeladores, os padrões e, num
tentando com isso escrever uma Histó- Na primeira metade do século XIX largo sentido, os criadores de tudo o que
ria moral estruturada em personalidades inspirou Carlyle a servir-se da biografia a massa geral dos homens procurou fazer
exemplares (Levillain, 2003, p.149). para questionar a linearidade tradicional ou atingir” (Carlyle, [s.d.], p. 9).
Nos cinqüenta anos que se segui- H.Berr) criticassem os historiadores ro- Neste esboço historiográfico, os
ram, duas posturas teórico-metodoló- mânticos e sua imagem do herói como Annales ocupam uma posição central,
gicas viriam abalar tais convicções: de exterior à massa humana, que realizava pois a esse grupo são atribuídas diver-
um lado, a de Michelet que colocou em os desígnios da Providência, do progres- sas negações: do indivíduo e da política,
primeiro plano da reflexão histórica os so, e da oposição de Durkheim e sua principalmente. Inegável que desde Feb-
valores coletivos, expressos pelo povo, desconfiança em relação ao sujeito indi- vre e Bloch, a história se torna território
deixando aos indivíduos o papel de re- vidual quanto a seu papel na História, o das massas, dos grande movimentos eco-
presentantes de paixões coletivas; de século XIX continuou campo fértil para nômicos e sociais. No entanto, o grupo
outro, a de Marx que colocou no centro, os estudos biográficos. A biografia cons- fundador da revista não conseguiu – se é
na História, as classes sociais, reduzindo tituía um passatempo de homens cultiva- que o desejou – realizar uma virada an-
drasticamente o papel dos indivíduos no dos, literatura prestigiosa de acadêmicos, tibiográfica. Há consciência das dificul-
discurso histórico, ainda que se ocupasse praticada por políticos, advogados, notá- dades do gênero: Febvre apontou os pro-
dele pontualmente, como em O 18 Bru- veis e letrados em geral, sem alcançar es- blemas, perigos e tentações da biografia
mário de Luís Bonaparte (Marx, 1986). tatuto de cientificidade, como, por exem- individual, mas escreveu, entre outros 18
Não obstante, Taine e Renan per- plo, a biografia de Albert de Broglie. textos, Martinho Lutero, um destino, e A
correram o século do nacionalismo preo- Além disso, autores inseriram es- religião de Rabelais. Sua contribuição ao
cupados com a concepção do grande ho- tudos biográficos ao longo de seus es- gênero consistiu em esclarecer trajetórias
mem como produto da raça, do meio, do critos mais generalizantes, como Jaurès individuais rompendo, no entanto, com
momento, o homem-partícula, o átomo que, ao escrever a História da Revolução a concepção de heróis super-homens e
social que tributou ao romantismo a mu- Francesa, deu primazia às formas so- centrando a análise na utensilagem men-
dança de sentido da biografia: a tensão ciais, mas não desmereceu as persona- tal específica de um período e de um gru-
entre indivíduo e sociedade privilegiou lidades individuais e suas relações com po de homens, preparando assim terreno
a primeira e a biografia visava encontrar os movimentos de fundo, provocados para o estudo das chamadas mentalida-
no destino individual a força do contexto pelas condições de produção e troca. Sua des.
geográfico, cultural, histórico, social. História pretendia ser materialista como Em Martinho Lutero, um destino
Ainda que os historiadores me- queria Marx, lírica como fizera Michelet (1994), Febvre explicitou sua concepção
tódicos (Monod, Langlois, Seignobos, e heróica como praticara Plutarco. do gênero na perspectiva renovadora que
logo seria veiculada pelos Annales HES: ria que eles fazem e, conseqüentemente, nais e sua substituição pelas personagens
trata-se de fato de um personagem excep- é a deles” ( Levillain, 2003, p.149). secundárias, que seriam mais reveladoras
cional e que poderia implicar um juízo, Hoje, oitenta anos decorridos, de uma época ou de um meio. Inclusive,
se o biógrafo enveredasse pelos conflitos ainda nos debatemos com as mesmas propôs que os historiadores deveriam,
religiosos, mas a ótica de Febvre foi a da questões metodológicas: a necessidade em lugar de se aterem aos grandes pen-
compreensão em exemplar lição de mé- de escolhas na trajetória de vida, para a sadores, freqüentar os chamados autores
todo. Sua pretensão: composição do relato biográfico; como e de segunda ordem.
desenhar a curva de um destino que quando iniciá-lo; o período a ser traba- Em suma, não houve entre os An-
foi simples mas trágico; marcar lhado como relevante...A vida de Lutero nalistas da primeira geração ruptura com
com precisão os poucos pontos ver- nesta biografia desenvolve-se até 1525, o gênero biográfico, mas, sim, um ajuste
dadeiramente importantes por que quando ocorre o que Febvre denomina da abordagem ao novo campo teórico e
passou; mostrar como, sob a pres- “recuo sobre si”, “retirada” ou “refúgio metodológico que se abria para a tempo-
são de que circunstâncias, o seu en- em si mesmo”, conforme as diversas tra- ralidade ampla, o econômico e o social. A
tusiasmo inicial teve de enfraquecer duções possíveis da palavra repli. biografia que daí resultou caracterizou-se 19
e inflectir o traçado primitivo; por Marc Bloch igualmente se mante- pela recusa dos exageros laudatórios do
assim, a respeito de um homem de ve próximo do gênero, ao estudar Filipe século XIX e pela busca de adequação
uma singular vitalidade, esse pro- II e o franco-condado, onde abriu novos a paradigmas historiográficos voltados
blema das relações do indivíduo e caminhos para a biografia, ao se ocupar para uma História objetiva, as mentalida-
da coletividade, da iniciativa pesso- do papel dos indivíduos, ainda que in- des, os atores coletivos que, no entanto,
al e da necessidade social que é, tal- serido no quadro das estruturas agrárias reservavam um espaço e um protagonis-
vez, o problema capital da história. da sociedade feudal. Em Apologie pour mo aos sujeitos individuais.
(Prefácio à 1ª edição,1945, p.11) l’Histoire (1997) chegou mesmo a de- Na geração de Braudel, que lide-
Ao utilizar o procedimento biográ- fender o papel dos indivíduos na História rou a chamada Escola dos Annales, após
fico, Febvre combinou erudição e Histó- como necessário, em L´etrange défaite a Segunda Guerra Mundial, a descon-
ria-problema para evidenciar uma postu- (1990) refletiu sobre o papel do testemu- fiança em relação à História do indivíduo
ra epistemológica: “se os homens fazem nho e foi um dos primeiros a preconizar foi o contraponto da postura que privile-
a História, só o historiador sabe a Histó- o abandono das personalidades excepcio- giou as estruturas e a temporalidade lon-
ga, ainda que seu estudo sobre o mundo Era preciso responder às críticas como heróis individuais, com as mesmas
mediterrâneo comportasse a dimensão que incidiam sobre o gênero em sua ex- ilusões de reconstituição e inteligibilida-
individual da atuação de Felipe II, e nela cessiva valorização da personalidade e de linear (1991).
constituísse um ponto interessante, o es- da importância do sujeito individual, o O gênero continuava a ser prati-
paço biográfico reservado na obra à du- perigo do falseamento das perspectivas e cado, porém desvestido de glórias uni-
ração curta, ao evento, à História que se a heroicização dos indivíduos. Bourdieu versitárias até que a reação, nas décadas
desenrola em velocidade maior que a das foi um dos que se manifestaram nessa di- de 1980 e 1990, acompanhou o floresci-
estruturas e conjunturas. reção - L’histoire de vie est une de ces mento da História narrativa, da valoriza-
Com os avanços da historiografia notions du sens commun qui sont entrées ção do indivíduo, que encontrou nova-
de base marxista e do estruturalismo na en contrebande dans l’univers du savant mente espaço emergindo das estruturas
universidade, o gênero biográfico teve (Bourdieu, 1962/1963). e das classes sociais. Bloch, Febvre e
seu espaço após Segunda Guerra Mun- Michelet foram revisitados em busca de
dial. A ênfase na História serial de Chau- Os “retornos” da História: inspiração. Um dos direcionamentos foi
nu (1978) só fez aprofundar, nas déca- do indivíduo, do político a História do movimento operário que 20
das de 1960 e 1970, a minimização da e da narrativa originou o dicionário biográfico específi-
presença dos sujeitos coletivos em favor co de Jean Maitron (1992), no qual mili-
dos dados quantitativos.1 Foi o apogeu da Outra crítica bastante desabona- tantes obscuros dividiram a atenção dos
desclassificação da biografia, que no en- dora consistia na acusação de a História historiadores com os célebres. A História
tanto, teimosamente, continuava sendo de vida pressupor noções mal definidas dos “de baixo” acompanhou também a
produzida pelos que afrontavam as críti- de coerência, continuidade do eu, iden- onda da História Oral, que se centrou na
cas, ao mesmo tempo em que uma reação tidade. Em resposta, Chartier foi um dos construção de trajetórias individuais nas
veio dos questionamentos decorrentes da raros teóricos a lembrar que sociedade, chamadas histórias de vida.
crise do marxismo, do estruturalismo e classe e mentalidade, que tendiam a subs- Os historiadores formados na tra-
de inovações em direção à revalorização tituir os indivíduos na análise, eram fre- dição dos Annales enfrentaram o gênero
do indivíduo na História. qüentemente tratados pela historiografia e produziram obras de peso, como Duby,

1 Grande parte dessas considerações vêm de CANDAR, Gilles. Le statut de la biographie, 2000. Disponível em:www.irmcmaghreb.org.
em Guilherme o marechal... (1995) e vimentos demográficos, o “retorno” do a biografia (Schmidt, 1997).
Le Goff, com o São Luís (1996), de que político reabilitado juntamente com o da A força do retorno do gênero bio-
falarei adiante. Com eles a biografia ga- curta duração do evento e o retorno da gráfico veio dos questionamentos sobre
nhou prestígio na historiografia universi- narrativa, possibilitaram um novo inte- como distinguir o indivíduo na socie-
tária, que passou a validar o gênero. Em resse pela escrita de si, pela vida cotidia- dade, na qual as análises até então mais
lugar da linearidade factual da curta du- na, dos costumes, dos homens comuns, validadas o diluíram. A tentativa de re-
ração centrada na cronologia do tempo mas também para o indivíduo e seu papel dução da concepção “hipersocializada
curto da vida do indivíduo, a tendência na História, em confronto com a socieda- do homem”, tal como praticada pelo
passou a ser o estabelecimento de rela- de, que coloca para o historiador do gê- marxismo e pelo estruturalismo, enve-
ções desta com o contexto econômico, nero a questão da liberdade de escolhas, redou também pela análise psicológica
político, social, cultural, no qual se inse- as relações entre fenômenos coletivos e que foi centrada na subjetividade da pes-
re e desenvolve uma vida e que esclarece estratégias e comportamentos individu- soa (Gay, 1999) e pela afirmação de sua
trajetórias num campo de possibilidades ais, traduzidos em escolhas que não são autonomia na sociedade. Até mesmo as
de escolhas e de exploração, no qual se inapelavelmente marcadas pela socieda- descobertas da genética têm sido chama- 21
exerce a ação individual. de (Dumont, 1983). das para explicar os jogos entre indiví-
A micro-história de Ginzburg, O Em suma, a chamada crise dos pa- duo e sociedade, entre o hereditário e o
queijo e os vermes (2002) e de Giovanni, radigmas marcou o conhecimento histó- adquirido, entre patrimônio genético e a
Le pouvoir au village (1989), igualmen- rico nas últimas duas décadas, ao ques- vida socialmente construída, a exemplo
te, favoreceram o gênero. tionar o valor analítico de estruturas e do que alimentou o chamado caso Lis-
Nesse processo, Chartier foi tam- relações, modos de produção e história senko (Levillain, 2003, p.168-70).
bém decisivo ao apontar a similitude dos serial, recuperando os sujeitos individu-
procedimentos da disciplina histórica a ais, estudos de caso e a micro-história. Escrita de si - fontes para
serem observados em qualquer tipo de Mais descritiva e narrativa que analítica, a biografia
estudo, sujeito a incertezas, dúvidas e enfocando o homem mais que as circuns-
instabilidades (1998). tâncias, incorporando aportes da litera- Desde as décadas de 1970 e 1980,
A menor ênfase na História quan- tura, a historiografia com seus diversos a escrita de si vem alcançando grande
titativa e serial, com seus ciclos e mo- “retornos” abriu novamente espaço para popularidade, abrigada pela literatura,
pela mídia, nas ciências humanas e nas de escritas de si alcançaram a pletora: es- A história de vida e os documentos que
práticas de formação. Autobiografias, trelas do mundo das artes, dos esportes, a iluminam (cartas, diários íntimos) al-
diários e correspondências constituem personagens da política, intelectuais, sem cançam o estatuto de objeto científico no
assim um campo imenso de possibili- esquecer os anônimos “homens comuns”, qual a palavra constitui o meio privile-
dades para o historiador em seu intuito personagens construídos a longo ou cur- giado de acesso a atitudes e representa-
de construção de biografias. Resultam to prazo inundam em longos relatos ou ções do sujeito (Lewis, 1970).
de atividades solitárias de introspecção, em curtos fragmentos, jornais, revistas, Em reação aos modelos teóricos
ainda que a autoria possa ser partilhada documentários, reality shows, novelas, totalizantes da vida social, como o mar-
por secretários, assessores ou familiares. TV, rádio, web, nas quais a exposição da xismo e o estruturalismo, e aos métodos
Trata-se, deste ponto de vista, de escritas vida privada se oferece ao consumo de quantitativos, o relato de vida foi redes-
de si nas quais o indivíduo assume uma multidões. coberto na Europa gerando, nos anos
posição reflexiva em relação à sua histó- As razões desse movimento podem 1970, as reflexões pioneiras na França de
ria e ao mundo no qual se movimenta. ser localizadas numa angustiante busca Daniel Bertaux sobre a aproximação bio-
Na literatura, as obras de cará- de elementos identitários que desloca o gráfica. Os trabalhos sociológicos nesta 22
ter autobiográfico se publicam em toda reconhecimento de si no conhecimento vertente abrigaram a maior parte da pro-
parte, colocando ao alcance do público do outro que se torna tempo familiar sem dução do gênero e alcançaram, nos anos
histórias de vida em escritos tão diver- perder a distância física, presentificados 1980, grande expansão e reflexões meto-
sos como a autobiografia literária, a au- pela atividade midiática que permite até dológicas sobre o estatuto dessa história
tobiografia intelectual, o diário íntimo, o o acompanhamento do cotidiano em tem- e seu valor como documento confiável
diário de pesquisa, o diário de escritor, po real dos que se colocam diante da tela para o conhecimento reconhecido como
os relatos de viagem, a correspondência da TV. científico.
e as memórias, em geral, enunciados na Nas ciências humanas, as aborda- Uma quarta dimensão da escrita
primeira pessoa, embora por vezes na se- gens de histórias de vida cresceram enor- de si na contemporaneidade consiste na
gunda ou mesmo na terceira, visando à memente desde que a Escola de Chicago sua utilização no campo da formação,
construção de um relato a ser recebido elegeu a vida dos imigrantes como signi- uma vez reconhecido seu papel como
como verídico pelo leitor. ficativa para a compreensão da socieda- “arte formadora da existência”, como
Na mídia as condições e formas de norte-americana e lhes deu a palavra. afirma Gaston Pineau em Práticas de
formação (1996). Logo apropriado pelas esvaziamento dos projetos coletivos e ao do gênero autobiográfico. Ou, uma abor-
teorias e práticas educacionais, inclusive desencantamento do mundo nas últimas dagem antropológica que inscrevesse os
no Brasil, este entendimento vem sen- quatro décadas. textos no contexto de sociedades e men-
do utilizado como estratégia de reajuste A redescoberta do indivíduo e dos talidades nos quais foram gerados.
permanente do indivíduo às intensas e traços de sua trajetória individual tem Essas duas posições sinalizam a
velozes transformações sociais do mun- sido cada vez mais valorizadas, como diversidade de constituição do objeto,
do contemporâneo, de modo a preservar nos relatos sobre o Gulag e outras expe- porém ambas podem estar presentes e se
sua própria historicidade e sua posição riências extremas revisitadas. A história complementar, para que se possa analisar
de sujeito histórico pela constante utili- do “povo comum” igualmente contribuiu e usufruir dos relatos pelos quais o indi-
zação de referentes identitários. para a releitura de diários, cartas e textos víduo fala de si em determinadas condi-
O crescimento do gênero remonta memorialísticos em sua possibilidade de ções sociais (econômicas, políticas, so-
ao século XIX, quando preenchia fun- contribuição para a recuperação dos pro- ciais, culturais), e constrói uma relação
ções definidas como educação de si, in- tagonismos individuais e de releituras da identitária consigo mesmo, que Foucault
teriorização de normas de convivência história segundo diversas ópticas. denomina práticas de si. 23
em determinados meios sociais, além de Do contato com a escrita de si em A historiografia apropria-se de tais
satisfazer à fome de intimidade e privaci- suas diversas modalidades, aflora a cons- abordagens e as reconstitui de modo que
dade que acompanhou a implantação da tatação de ser este um território marcado o discurso de si, considerado na dimen-
ordem burguesa. Hoje, se os diários ínti- pelas tensões entre indivíduo e socie- são histórica, releva de cada época, em
mos e as cartas perderam espaço na vida dade, pela dificuldade de se estabelecer cada sociedade, as relações do público e
cotidiana, a busca de histórias de vida limites entre ação individual e ação co- do privado, da coletividade e do indiví-
afirma o predomínio da subjetividade e letiva, pelo questionamento da liberdade duo, da singularidade e da pluralidade,
do individualismo a que corresponde o de ação e do papel impositivo de grupos do indivíduo consigo mesmo. Importa
fracasso do welfare state e dos regimes sociais e construções coletivas da cultura ocupar-se de discursos codificados histo-
socialistas. O encolhimento do espaço (Montagner, 2007). ricamente e que são, portanto, portado-
público, a fragmentação da subjetividade Uma possibilidade seria uma res de relações de força e de consciência
em diversos espaços, a busca identitária abordagem literária das filiações que cir- de si. Trata-se de ter constantemente em
exacerbada constituem o contraponto ao cunscrevesse o campo histórico e formal presença as formas como o indivíduo e
sua identidade são permanentemente in- se traduz em momentos nos quais o indi- do, assinala o espaço socialmente reser-
ventadas e reinventadas: discursivas e víduo constrói sua experiência, a qual o vado à escrita de si no século XIX na Eu-
materiais (suportes e técnicas de escrita individualiza, o singulariza num campo ropa, quando diários, cartas e memórias
da palavra), com mediações exteriores (a de relações. ao contarem “realidades interiores” re-
cidade, a religião, o poder), numa prática É esta perspectiva que permite ao produziam experiências individuais, nas
que é sempre implícita ou explicitamente historiador considerar os momentos vivi- quais fantasias e “realidades” se mesclam
coletiva. dos como diretrizes da temática biográ- num jogo de ocultamento/revelação sem-
Dito de outra forma, a construção fica, superando a linearidade factual da pre apresentado como um compromisso
do discurso que carrega a construção de narrativa, para proceder a uma operação com a verdade, cuja enunciação ao leitor
si não pode ser abstraída das formações historiográfica de tematização da exis- constitui verdadeiro deleite. A partir de
históricas que regem a vida dos homens tência individual, segundo o grupamento uma abordagem psicanalítica, Gay sina-
em sociedade e, ao mesmo tempo, do das experiências do objeto em torno de liza o cuidado a ser tomado pelo histo-
modo como grupos constituem práticas certos pontos de ancoragem específicos riador com as poses, as táticas evasivas,
de si, as quais se traduzem nas represen- que podem se justapor ou desaparecer, a exposição e a proteção do eu dirigida a 24
tações do eu fixadas nos relatos. Pode-se mas que marcam seu ser no mundo. Isto é um público seleto (1999, p.71-177), que
rastrear desde a Antigüidade tais práticas particularmente constatável no momento mais oculta do que revela o verdadeiro
que passam pelo mundo greco-romano da escrita de si, quando o indivíduo ex- “eu”. Suas constatações foram basea-
como os relatos militares de Júlio Cé- perimenta a imersão – de extensão tem- das em documentos produzidos durante
sar, por exemplo, e prosseguem ao longo poral variável – num trabalho de criação a chamada era vitoriana que muito dife-
dos séculos pelas confissões tão caras ao específico e distanciado, mas ao mesmo rem dos hodiernos caminhos de escanca-
Cristianismo até alcançar sob múltiplas tempo próximo de outros momentos na- ramento da vida privada, em seus deta-
e variadas modalidades o quadro atual quele instante revisitados e reelaborados, lhes mais íntimos, pois eram altamente
descrito. colocando à luz esse eu construído antes codificados com regras explícitas acerca
Do ponto de vista metodológico de tudo para si mesmo, buscando eluci- do decoro a ser mantido, dos assuntos
trata-se de considerar com Henri Lefèb- dar o enigma de sua própria existência considerados tabus, do grau de expansão
vre, em A soma e o resto (1989), a exis- (Delory-Momberger, 2000, p.11). do eu conforme o leitor potencial. Mas
tência de um espaço-tempo interior que Peter Gay, em O coração desvela- se o método psicanalítico é de difícil
absorção pelo historiador, sua proposta possam estabelecer identificações proje- nagem até a impregnação como ponto
metodológica não deixa de ser notável, tivas importantes. Biografar indivíduos de saturação, ideal para que se possa es-
por abrir um campo de possibilidades de vivos ou não? Qual o grau de exaustão crever sobre ele, o trabalho crítico sobre
análise das motivações subjetivas na ela- do “eu” que a biografia comporta? Como testemunhos diferentes e contraditórios,
boração da escrita de si e que, se levadas biografar sem criar “tipos”? Como bio- para que se amplie o enfoque analítico
em conta, podem contribuir para a crítica grafar sem cair nos elogios ou julgamen- e se possam alcançar tanto aspectos des-
do documento retirando-lhe uma postu- tos? conhecidos de sua vida como ultrapassar
ra ingênua ou desavisada num momento Não há muito como eludir a for- sua opacidade para seus contemporâneos
em que mais do que nunca se instalou um ma narrativa e cronológica que permite e mais próximos.
“apetite biográfico” (p.169). o acompanhamento da trajetória do per- Entre histórias de vida individu-
Na mesma linha, Artières, em Ar- sonagem e o estabelecimento de “marcos ais e prosopografias (notícias biográficas
quivar a própria vida (1998), assinala na temporais entre acontecimentos e histó- individuais que se confrontam para que
escrita de si a presença de três elemen- ria individual”. Constitui, portanto, ca- mediante amostras se possam estabelecer
tos: a injunção social, a prática de arqui- racterística da biografia a narrativa que tipos, salientar traços comuns), o gênero 25
vamento e a intenção autobiográfica. Em deve levar em conta o recorte temporal se mantém próximo da literatura e, por
todos eles, a intenção de tomar distância da história de uma vida (Abreu, 1998). isso mesmo, a solicitar atenção redobra-
em relação a si mesmo se impõe no diá- Tal constatação não implica o uso exclu- da do historiador.
logo entre o narrador e o leitor, no aludi- sivo do método discursivo, factual, cen- Da literatura têm sido incorpora-
do jogo de ocultamento/revelação . trado na existência individual. dos técnicas e recursos estilísticos como
Considerada por muitos historia- o flashback (Duby, 1995), elementos fic-
Como biografar dores como uma arte (Oreux, in Duby cionais mesclados à informação segu-
et al.,1986), a biografia exige do pesqui- ramente documentada, incorporação de
A tarefa de construção de biogra- sador um cuidado que de resto não se detalhes pitorescos e da vida cotidiana,
fias pelo historiador coloca em questão distancia daquele que é devido a qual- estilo cuidado, narrativa fluída, num di-
direcionamentos a serem observados quer outro tipo de discurso histórico, e álogo com o hipotético leitor, inspirado
desde a escolha do personagem, em fun- que caracteriza a disciplina histórica: a também pelo jornalismo. Nem é de se
ção da sua atuação ou de qualidades que compreensão, a aproximação do perso- desprezar a prática de deixar fluir a cons-
ciência do escritor na caracterização do voltada para o macro, ou por permitir a levadas em conta, quando o historiador
personagem visando à produção de um visualização da tensão entre indivíduo e se apropria da memória do biografado,
efeito de realidade (Schmidt,1997). Aos sociedade. Seja pela abordagem dos sen- expondo seus segredos, suas mazelas,
historiadores e preservadores da disci- timentos, do inconsciente, da cultura, da suas contradições.
plina histórica, cabe a tarefa de elimi- vida privada, do cotidiano ou, mais ade- Na mesma linha de reflexão, pode-
nar a mescla entre biografia e romance, quadamente, como “um locus no qual se situar Franco Ferrarotti cujas reflexões
de estabelecer referências documentais uma incoerente e freqüentemente con- se dirigem para a abordagem estrutura-
e empíricas seguras, de preocupar-se traditória pluralidade de determinações lista das relações entre indivíduo e socie-
com a verdade ou as verdades, pelo uso relacionais interagem”, como afirmou dade nos estudos biográficos, afirmando
de “provavelmente”, “talvez”, “pode-se Bourdieu em A ilusão biográfica (1976), que “uma vida é uma prática que se apro-
presumir”, “acredita-se que” etc. (p. 10). e que permitem alcançar o sujeito para pria das relações sociais (as estruturas
Em todos os autores, que vêm fa- além de uma constância, a si mesmo ver- sociais) as interioriza e as retransforma
zendo reflexões sobre o tema, persiste o dadeiramente inatingível, para dar conta em estruturas psicológicas por sua ativi-
grande problema que é o de “desvendar de um sujeito fracionado e múltiplo, tal dade de desestruturação-reestruturação” 26
os múltiplos fios que ligam um indivíduo como se apresenta aos olhos sensíveis do (Histoire et histoires de vie, 1990).
ao seu contexto”, como foi mencionado, historiador. Se o enquadramento nos pare-
seja para revelar dimensões de proble- Esse direcionamento permite que ce excessivo, é bom salientar que o au-
mas da pesquisa não perceptíveis nos en- se busquem estabelecer as articulações tor minimiza a rigidez ao apresentar a
foques macroscópicos, seja na compro- “entre vida pública e vida privada, entre vida humana como “síntese horizontal
vação ou refutação de hipóteses. cotidiano e não-cotidiano, entre atos ra- de uma estrutura social”, mas recusa o
A meu ver, trata-se de cultivar um cionais e motivações irracionais“ (Sch- determinismo mecânico entre história
gênero que comporta, em primeiro lugar, midt, 1997). Eixos analíticos importantes social e história de vida. Atribui ao su-
a sedução do historiador pelo persona- podem ser traçados então em função de jeito um papel ativo ao insistir em que
gem, por sua vida de alguma maneira família, estudos, trabalho e militância. “Longe de refletir o social, o indivíduo
considerada excepcional e digna de ser o Persiste ainda, todavia, a questão se apropria dele, o mediatiza, filtra e
centro de um estudo, por revelar aspectos ética que, independentemente das ame- retraduz projetando-o em uma outra di-
ainda não abordados pela historiografia aças no âmbito da justiça, precisam ser mensão(...) , a de sua subjetividade, al-
cançando assim a definição do indivíduo que a teoria literária é chamada a integrar terminada ou explícita como num ajuste
como síntese individualizada e ativa de uma relação transdisciplinar da História. de contas. Em todos os casos, em maior
uma sociedade(Ferrarotti, 1990). A questão central por ele aborda- ou menor grau, o eu se torna o outro. É
Deste ponto de vista, o relato biográfico da consiste na relação entre o autor e o este o pacto que esse estabelece nos tex-
deixa de ser uma série de anedotas para leitor num “contrato de leitura” também tos literários de tipo autobiográfico, entre
centrar-se na ação social do indivíduo, na denominado “pacto autobiográfico”. o narrador e o personagem narrado e que
sua relação com a sociedade, análise que Em análise bastante sofisticada das tra- pode ser transposto para o terreno da bio-
sugere a partir de ancoragens antropoló- mas presentes na elaboração do relato grafia.
gicas e sociológicas. autobiográfico, que incluem a relação Na mesma direção, Bourdieu
Nessa perspectiva, a biografia será do narrador consigo mesmo enquanto (1996) irá alertar seus leitores sobre as
entendida como uma leitura do social no personagem, Lejeune chega a uma tipo- armadilhas do gênero, com a tônica ana-
qual se estabelecem relações entre um logia do gênero biográfico como “texto lítica voltada, porém, para as relações
indivíduo e o tempo sócio-histórico, ar- referencial” que, por suas exigências no entre indivíduo e sociedade .
ticulando biografia e sociedade (Abreu, campo da disciplina histórica, necessita 27
1998 ). Esta é a principal ênfase da atual se submeter a uma prova de verificação. Bourdieu e o habitus
releitura do gênero biográfico cujas dire- Nela está presente não apenas a verossi-
trizes estão nas obras de Lejeune, Bour- milhança, “efeito do real”, assim como Tomarei como base as considera-
dieu e Le Goff. a maior ancoragem possível ao real, que ções de Bourdieu feitas sobre a “ilusão
lhe serve de referência. Como texto re- biográfica” e apresentadas em Actes de
Lejeune e o pacto ferencial inclui, portanto, uma “definição la Recherche en Sciences Sociales (1986,
autobiográfico do campo real visado e um enunciado de p.69-72) e republicadas em Usos e abu-
modalidades e do grau de verossimilhan- sos da História Oral, organizada por
As reflexões de Lejeune sobre o ça que o texto pretende” (1998, p.36). Marieta de Morais Ferreira e Janaína
estatuto da autobiografia como texto li- Mas a principal contribuição de Amado (1996). Além disso, o diálogo
terário passam pela comparação entre Lejeune consiste no alerta sobre a rela- que com ele estabeleceu Giovanni Levi,
este gênero e a biografia e acabam por ção de identidade que se estabelece entre em Les usages de la biographie (1989),
ser úteis à historiografia, na medida em o autor e o biografado, implícita, inde- publicado também no mesmo volume.
O núcleo de sua análise reside na ceito a ser operacionalizado na biografia, tomada de posição sobre o protagonismo
teoria da práxis construída em relação na medida em que revela sistema de dis- individual e o grau de autonomia dos su-
aos campos , ou seja, os “domínios es- posições socialmente constituídas que, jeitos individuais, ou sua vulnerabilidade
pecíficos da vida social”. Em suas diver- em seu constante movimento estruturan- diante das forças que operam nos campos
sas obras alerta para a inexistência de te, está na origem e unifica as práticas nos quais eles se movem, testemunho da
uma “seqüência cronológica e lógica dos dos agentes sociais (Economia das tro- complexidade do trabalho de pesquisa.
acontecimentos e ocorrências da vida de cas simbólicas, 1998). 2 Recorro aqui a Giovani Levi
uma pessoa”, numa linha construtivista As marcas distintivas estão presen- (1996) que estabeleceu importante diálo-
que postula a linearidade progressiva e tes no nome, no biológico e nas ações dos go com Bourdieu em Usos da biografia
a causalidade como construções a pos- indivíduos, definindo trajetórias comuns e afirma a “irredutibilidade dos indivídu-
teriori. Desde 1968, quando publicou o nos campos nos quais se insere. Sua pre- os e de seus comportamentos a sistemas
Métier de Sociologue, com Passeron e sença como diretriz da pesquisa permite normativos gerais”, embora aceite o es-
Chamboredon, Bourdieu já se ocupava situar os agentes sociais – os indivíduos tabelecimento da “superfície social” da
desse tema, que foi percorrendo ao lon- – socialmente, pela trajetória diacrônica ação dos indivíduos. Ainda assim, há que 28
go de sua obra até chegar ao conceito de nos diversos campos. Tal procedimento atentar para os elementos contraditórios,
ilusão biográfica, ao defender a idéia de metodológico permite escapar à ilusão a fragmentação dos tempos e dos ritmos
que o sentido de causalidade e sentido biográfica pela construção de certos tra- da vida dos indivíduos, pelos movimen-
coerente é algo atribuído às ações huma- ços pertinentes, em termos de estratégias tos incessantes de retornos, idas e vindas
nas. Se o sentido global do sujeito esca- e injunções ocorridas em cada campo e que ocorrem numa rede de relações nas
pa até mesmo à sua autopercepção, resta que afetam diretamente os indivíduos, os quais os indivíduos se definem.
aos analistas recorrer à objetivação do quais se movimentam pelos traços do ha- Levi aproxima a teoria sociológi-
habitus que decorre da interiorização do bitus, sujeitos a relações de poder. ca da valorização da ação individual ao
social pelo indivíduo, de modo estável, Se tais colocações de âmbito so- analisar o jogo entre indivíduo e grupo,
porém sujeito a modificações. ciológico permitem uma sofisticação da entre biografia e contexto, reconhecendo
Habitus se torna, então, um con- pesquisa, requerem do historiador uma a existência de determinações das quais

2 Para estas considerações sobre Bourdieu, vali-me sobretudo de sua interpretação por Montagner, 2007.
o indivíduo não consegue fugir, mas dis- diversos planos. po da pesquisa” (p. 15), ainda que reco-
tingue um espaço de atuação individual, Do ponto de vista teórico-meto- nheça ser utópica a busca de um conheci-
que é o espaço da liberdade e que se tra- dológico, o expoente da terceira geração mento integral do indivíduo: lacunas na
duz em escolhas, as quais, ao evidencia- dos Annales apontou as dificuldades de documentação, silêncios, descontinuida-
rem incoerências e conflitos, promovem cultivo do gênero aparentemente fácil e des, incoerências estão sempre presen-
a mudança social. mostrou como é possível fugir de abor- tes.
dagens “anacronicamente psicológicas”, Dialogando com a literatura, vê
Le Goff e a Nova História ou que utilizem com facilidade a noção no procedimento biográfico a necessida-
de mentalidades ou o recurso ao anedóti- de de produção de “efeitos do real”, que
Dele veio grande renovação do co. aproximam o trabalho do historiador ao
gênero, com uma reflexão aprofundada Não faz concessões ao afirmar que do romancista, pois eles são obtidos pela
das condições da escrita de um estudo os problemas enfrentados na escrita da escrita, pelo estilo e pelo trabalho com as
biográfico sobre personagem relevante História são os mesmos encontrados na fontes (p.16). Resguarda, assim, o histo-
para a história da França, por meio da elaboração de uma biografia cujo percur- riador das possíveis tentações . 29
qual buscou compreender questões não so compreende a proposição de um pro- Os aportes dos Annales são refi-
respondidas para o século XIII. Este tra- blema, a crítica das fontes, o tratamento nados pelo diálogo que estabelece com
balho constituiu-se numa reflexão sobre na duração longa o suficiente para com- Bourdieu, Passeron e Giovani Levi: en-
a fabricação social, ou seja, as condições portar a dialética da continuidade e da dossa a tese da “ilusão biográfica” e vai
de formação da memória coletiva, sobre mudança, a tônica na explicação, o dis- mais longe, apontando o perigo da “uto-
alguns aspectos do personagem biografa- tanciamento do historiador em relação à pia biográfica” que nada mais seria que o
do. Além disso, abordou a arquitetura de questão tratada (São Luis, 1999 p. 14). empenho em não deixar escapar nenhum
sua construção com as dificuldades, os Neste magistral trabalho encontra- detalhe insignificante (p.18). Seguindo
limites e as especificidades. O resultado se a tradição historiográfica cujo ponto os passos de Levi (1996), alerta para a
final é a reconciliação da biografia com de partida está na concepção de uma his- armadilha da “cronologia ordenada”, da
a História que elege o indivíduo como tória global e que a partir daí considera “personalidade coerente e estável, das
centro de relações sociais e estabelece o indivíduo como “sujeito globalizante”, ações sem inércia e das decisões sem in-
em lugar da linha, a rede e a interface dos em torno do qual se organiza todo o cam- certezas” (p.18), ainda mais em se tratan-
do de seu biografado, cuja vida se faz Uma última questão: a relação do DELORY-MOMBERGER, Christine. Les his-
revestir de brumas . biografado com o tempo apresenta pers- toires de vie. Paris: Anthropos, 2000.
Além da fuga dessa ilusão, foge pectivas próprias de cronologia e perio-
BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo:
também dos determinismos afirmando dização, ao postular a articulação entre Brasiliense, 2004.
que “São Luís não vai imperturbavelmen- o tempo da biografia e os tempos da __________.O poder simbólico. Rio de Janei-
te em direção a seu destino de rei santo, História em seus diferentes ritmos. Re- ro: Bertrand-Brasil, 2002.
nas condições do século XIII e segundo lembrando Marc Bloch, afirma que ”os __________. As regras da arte. São Paulo:
os modelos dominantes de seu tempo. homens são mais filhos de seu tempo do Companhia das Letras, 1996.
__________. Actes de la Recherche en Scien-
Ele se constrói a si mesmo e constrói sua que de seus pais” (1997). E encerra com
ces Sociales. L´ilusion biographique, p.60-72,
época tanto quanto é construído por ela. a tese de Borges: “Um homem não está 1986.
E essa construção é feita de acasos, hesi- verdadeiramente morto senão quando o __________. A ilusão biográfica. In: FERREI-
tações, escolhas” (1999, p.18). último homem que o conheceu está tam- RA, Marieta De Moraes; AMADO, Janaína
Mas o mais significativo de suas bém morto” (p.24-25). (Org.) Usos e abusos da História Oral. Rio de
posições teórico-metodológicas consiste Janeiro: FGV, 1976. 30
na constante busca da afirmação da liber- Referências
__________. Economia das trocas simbólicas.
dade individual manifesta nas escolhas São Paulo, Perspectiva, Trad. de Sérgio Miceli,
realizadas pelos indivíduos diante de ABREU, Alzira Alves De. Dicionário Biográ-
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