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CONTA-ME A SUA HISTÓRIA: GÊNERO E SEXUALIDADES NA TRAJETÓRIA


DOCENTE

Marcio Rodrigo Caetanoi


Paulo Melgaço Silva Junior ii

Resumo: As narrativas biográficas são fragmentos discursivos que significam as experiências de


vida dos sujeitos. Com elas, interessam-nos as “verdades” sobre gênero e sexualidade que
regularam experiências de docentes que atuam na rede pública de ensino do Rio de Janeiro e Rio
Grande do Sul. Através das narrativas, foi possível observar como os sujeitos construíram suas
cadeias de significados e estruturaram suas formas de representar suas sexualidades e gênero.
Essas operaram sobre dois pontos: 1. a responsabilidade com o futuro das e dos estudantes e 2. a
imagem de bom/boa docente. Com eles enfatizamos a importância de profundar as análises sobre
a produção da diferença, já que ela é cultural e, portanto, mediada pelos jogos de interesse social.
Palabras-clave: Discursos; Gênero; Sexualidades; Performatividades; Biografia.

Resumen: Las narrativas biografícas son fragmentos de discursos que significan las experiencias
de vida de los sujetos. Con ellas nos interesan las “verdades” sobre género y sexualidad que
regularon experiencias de docentes que actuan en la red publica de enseñanza de Río de Janeiro
y Río Grande de Sur. A través de las narrativas fue posible observar cómo los sujetos
construyeron sus cadenas de significados y estructuraron sus formas de representar sus
sexualidades y género. Estas operaron sobre dos puntos: 1. la responsabilidad con el futuro de
las/os alumnas/os; 2. la imagen de bueno maestro/a. Con ellos enfatizamos la importancia de
profundizar los análisis sobre la producción de la diferencia, ya que ella es cultural y por lo tanto
mediada por los juegos de interés social.
Palabras-clave: Discursos; Género; Sexualidad; Performantividades; Biografía.

CAMINHOS INVESTIGATIVOS

As narrativas biográficas se constituem como fragmentos discursivos sobre a vida


daqueles e daquelas que as relatam. Elas configuram discursivamente o reencontro com as
experiências dos sujeitos, podendo fornecer as dimensões necessárias para dar conta de
processos de (auto) criação, de tramas e dramas de suas sociabilidades, de construção de suas
identidades e, acima de tudo, como dispositivo de criação de sentido das dinâmicas da vida em
que estejam envolvidos os sujeitos. Suas análises ganham duplo sentido quando nos possibilitam
a reflexão sobre o próprio processo de sua produção e como interpretação narrativa de fatos
vividos (CARMEN PÉREZ, 2003).
A partir de narrativas de professoras e professores que transitam na ilegibilidade iii sexual,
apresentaremos os discursos sobre sexualidade que produziram efeitos e os governaram nas
relações escolares e, mais amplamente, em suas trajetórias de vida. Pensamos que os fragmentos
narrativos aqui apresentados serão capazes de nos oferecer alguns elementos dos discursos que
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governaram e regularam condutas e que, por sua vez, produziram efeitos na escola e em esferas
sociais mais amplas dos sujeitos. Vale destacar que os e as professoras iv foram acessados/as em
encontros individuais, atuam na rede pública de dois estados brasileiros (Rio de Janeiro e Rio
Grande do Sulv) e possuíam entre 33 e 55 anos na época da entrevista. Nesse texto, os sujeitos
entrevistados serão chamados de Logun Edé, Jacinto e Jaci-Quisaña. Todos e todas tiveram seus
nomes substituídos e passaram a ser identificados por personagens de cosmovisões africana,
guarani e grega. Em síntese são:
O professor Logun Edé tem sua vida marcada pelo o amor ao balé. Casado com uma
professora há 12 anos, foi impossibilitado pelo racismo de ser bailarino clássico.
O professor Jacinto elegeu a escola como o seu espaço de ativismo político e reivindicou
a identidade de “professor gay” como princípio de sua atuação. Apaixonado pela escola, Jacinto
tem nas marcas de sua performatividade de gênero os seus principais embates políticos.
Jaci-Quisaña é professora de administração no Ensino Médio. Viúva, Jaci foi, durante
muito tempo, casada com outra professora. Ao passar pela experiência de ter sua companheira
vivendo com câncer, Jaci torna pública sua relação e exige licença médica para cuidá-la.

INVENÇÕES BIOGRÁFICAS: TRAJETÓRIA E DISCURSOS DO SUJEITO

A biografia toma a narrativa do (sobre o) sujeito como o centro de interesse. Ela propõe
que, através de relatos particulares, outras dimensões possam ser articuladas mais amplamente
para o entendimento dos fenômenos sociais. Entretanto, ainda que o sujeito, ao construir a
narrativa sobre si, se configure em um discurso coerente, linear e encadeado, seu passado é
editado e, por isso, se reconstrói discursivamente de maneira não linear, com superposições de
tempo, reflexões e espontaneidade. O que retorna não é o passado em si, mas sua releitura das
experiências vivenciadas. Em outras palavras, não é o passado linear que é reconstituído na
narrativa. Não é a verdade que se constitui por meio da narrativa, mas a interpretação de
experiências vividas e editadas pelo sujeito. O que o discurso produz é aquilo que foi
interpretado e que não apenas marcou o sujeito, mas foi considerado importante de ser
verbalizado no diálogo com seus e suas interlocutoras.
A opção pelas narrativas de vida na produção de dados para este artigo emergiu por
considerarmos a metodologia adequada para articular as dimensões individuais aos fenômenos
sociais mais amplos. Avaliamos que seja importante destacar que pensamos a vida não somente
como um conjunto de ocorrências, mas como experiências vividas em determinado tempo e

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lugar e, acima de tudo, sob circunstâncias distintas. A narrativa de vida vai para além do sujeito
individual, com ela é possível dimensioná-lo a contextos mais amplos.
Se entendermos que a constituição de identidade é relacional, as biografias poderão ser
comparadas e conectadas com outras narrações de histórias de vida, numa dinâmica que
ultrapassa a sucessão cronológica de acontecimentos ou a constituição de trajetória individual.
Adotar esta abordagem aliada à perspectiva cultural significa, acima de tudo, conceber a
linguagem como constituinte/integrante da realidade e compreender a narrativa como resultado
de experiências que, por sua vez, podem ser consideradas históricas e denunciam o conjunto de
regras que as governou e as produziu.
Os diálogos nesta trajetória investigativa foram se tecendo com as inúmeras redes de
subjetividades que se intercruzaram. Não se tratava de um diálogo em que os corpos foram
separados radicalmente entre as identidades de investigador e investigado. Claro que sabíamos
os motivos que orientavam este exercício, todos os sujeitos entrevistados não eram distantes,
compartilhávamos identidades e experiências. Ou seja, éramos atravessados por relações afetivas
que se intensificaram com o conhecimento de nossas marcas. Este movimento de aproximação
nos permitiu construir um diálogo mediado por nossos interesses. Mas não eram apenas os
interesses investigativos que se encontravam no jogo, os sujeitos biografados buscaram, através
daquilo que representávamos - a academia - a legitimidade e o reconhecimento de suas histórias.
A vida se constituiu o locus privilegiado de criação da experiência, do saber e do
conhecimento. Ela ofereceu uma multiplicidade de momentos, lugares, espaços, situações e
relações nas quais originaram atos formativos de aprendizagens. Com isto, pensamos ter
elucidado, até aqui, que não compreendemos a narrativa de vida sob a lente da racionalidade
ocidental moderna, que vê o mundo como se tudo dependesse da ação consciente.
Na busca de se constituírem professoras/es, nossas personagens tomaram seus corpos
como suportes de identidades e buscaram os acessórios e comportamentos entendidos e
reconhecidos à profissão docente e ao feminino e masculino. Estes dispositivos/verdades
modelaram suas performatividades e atuaram como mecanismos de regulação de seus corpos.

CORPO E SEXO: REGULAÇÕES HETERONORMATIVAS E


ANDROCÊNTRICAS NA/PELA ESCOLA

Por meio dos artefatos culturais, a exemplo do cinema e redes sociais virtuais, somos
capazes de acessar os mais diversos estilos de vida que darão suporte e legibilidade às
vi
performatividades identitárias . Considerando tal perspectiva, no entrecruzamento das
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identidades sexuais e das lutas político-acadêmicas, é que este texto se originou, como já dito,
com o objetivo de interrogar os discursos sobre sexualidade e gênero que produziram efeitos e
governaram as trajetórias de vida de professoras e professores.
As dinâmicas socioculturais possibilitadas na atualidade nos colocaram diante de sujeitos
facetados, com biografias que não obedecem às expectativas de outrora e com inúmeras rupturas
identitárias. As ideias de performatividades originadas e determinadas em identidades fixas
foram fragilizadas. As transformações no mundo do trabalho, as crises do capital e lutas sexuais
protagonizadas pelas bandeiras feministas transformaram substancialmente os referenciais de
masculinidades e feminilidades, ainda que eles não tenham sido acompanhados pela segurança e
amparo fornecido pelo Estado.
A instabilidade política no que se refere à ausência de reconhecimento estatal das
performatividades hetero-dissidentes revela um movimento angustiante de pessoas LGBTTIQ1
de se fazerem presentes no mundo das relações e amparos públicos. No Brasil, a discussão sobre
as necessidades dessas populações ainda não ganhou o vulto necessário nos aparatos legislativos.
Com a exceção da Lei Maria da Penha 2, nenhuma legislação reconhece arranjos afetivo-sexuais
dissidentes da heterossexualidade, e, talvez por isso, a instabilidade legal se faça sentir nas
relações cotidianas. Jacinto nos narra uma dessas experiências:
Engraçado, eu tenho muito mais problema com homofobia hoje do que na
minha época de adolescência. Eu acho que é porque eu assumo isso na escola,
ela é hipócrita! Pode acontecer tudo desde que você não fale. Tudo é permitido
na escola desde que você fique na sua. Agora, a partir do momento que você
chega numa escola, que você se coloca como gay, que você seja um professor
gay, as coisas mudam. Cara, o preconceito que eu sofro hoje, você não tem
ideia. Outro dia, eu estava pensando que estou pagando alguma coisa que eu
não paguei na minha adolescência. Hoje eu vivo muito mais essa repressão do
que na época da minha adolescência. Por quê? Será por conta dessa militância?
Por eu acreditar nessa coisa? Por buscar uma sociedade mais justa? Será por
que eu me coloco? Eu falo na escola que eu sou gay. Eu sofro duas questões:
uma é a política de enfrentamento mesmo e a outra é uma política educacional.
Assim, hoje em dia, na escola, eu sofro muito mais discriminação do que na
minha época de adolescência. Eu acho que isso pode ser pelo fato de mundo
saber que não existe nenhuma lei que nos proteja.
Diferente de Jacinto, a professora Jaci-Quisaña acredita que o fato de que seu pedido de
licença para cuidar da companheira com câncer não tenha gozado de aparo legal, de imediato,
seja devido à ideia de que a mulher é vista como heterossexual ou, quando solteira, assexuada.

1
LGBTTIQ - lésbica, gay, bissexual, travesti, transexual, intersexual e queer.
2
Com a Lei Federal nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, foram criados mecanismos para coibir e prevenir a violência
doméstica e familiar contra as mulheres, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, identidade de
gênero, renda, cultura, nível educacional, idade e religião.

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Independente de estarem juntas há mais de 10 anos, e de assumirem publicamente sua relação


afetivo-sexual lésbica, a licença foi condicionada ao casamento civil.
Com a narrativa da professora Jaci-Quisaña, observamos o jogo pedagógico que
reconhece a heterossexualidade como norma e deslegitima ou desconhece arranjos familiares.
Quando perguntada sobre a forma como a escola via sua relação, Jaci-Quisaña responde:
Desqualificação ao nosso sentimento. Desmerecendo nossa relação afetiva e o
nosso casamento. Foi necessário o câncer de Suely para que as pessoas
passassem a acreditar na nossa relação. A sensação que eu tenho é que as
pessoas achavam que ser homossexual é como ir pra praia e não ter
responsabilidades. Foi o caso com que eu me deparei quando eu fui pedir
licença pra cuidar dela. Me pediram um registro civil, eu fiquei louca com a
Assistente Social na Perícia Médica. Eu virei e falei: “eu estou falando da
minha companheira que está com câncer. Eu tenho que cuidar dela”. Tive que
passar por um trauma, expor uma situação super dramática para as pessoas
entenderem que existiam sentimentos. Uma responsabilidade nesse sentimento.
Na perícia, quando eu voltei para pedir a segunda licença, porque a primeiro
me deram por desequilíbrio emocional, eu voltei e disse: “Eu quero que minha
licença entre no artigo que diz que é para cuidar de companheiro”. E de novo
eu apelei quando perguntaram pelo registro civil: “Não tem registro civil.
Estou com ela há tanto tempo. Moramos juntas”. Passei por esses
constrangimentos. Para mim é claro, isso fez com as pessoas que me olhassem
diferente. Elas passaram a levar a sério nossos sentimentos. A nossa felicidade
não foi suficiente pra demonstrar o nosso compromisso.

Estas situações vivenciadas por Jaci nos evidenciam a invisibilidade de seu arranjo
familiar e também nos denunciam a heteronormatividade da escola e da burocracia educacional.
Hodkin (1996) destaca que, para compreender a categoria “família”, é fundamental estudar o
entendimento das pessoas sobre seus arranjos. O autor destaca a compreensão dos laços afetivos,
ampliando, para além da consanguinidade e/ou do sistema legal que rege as relações familiares,
o entendimento do sentido de família. A concepção subjetiva de seus arranjos familiares é
baseada em sentimentos, crenças, valores, que permeiam e conduzem à compreensão dos fatos
cotidianos da vida. Inúmeros espaços culturais, a exemplo daqueles produzidos pelas linguagens
midiáticas, incluindo as redes sociais, cinematográficas, televisivas ou curriculares, entre outros
meios e veículos, são fortalecidos em sua influência na construção de “verdades” sobre a ideia de
família.
Assim, a disputa no plano cultural sobre as ideias que orientam os sentidos sobre família
é, fundamentalmente, um enfrentamento em torno da atribuição de significados e sentidos que
orientam suas percepções e condutas. Pode-se, então, compreender que importantes processos
educativos estão ocorrendo em muitos outros locais além das escolas. E, por meio de operações
tecnológicas e culturais muito diversificadas, acabam por produzir elementos que subsidiam a
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experiência vivida pela professora Jaci.


O quadro narrado é auxiliado pelo fato de que a heterossexualidade compulsória se
ancora no gênero, gerando tabus contra as dissidências. O resultado é a falsa coerência e
complementariedade entre a masculinidade e feminilidade. Em condições de heterossexualidade
normativa, vigiar o gênero, estabelecer limites de espaços e assegurar contornos em seus
comportamentos performáticos é quase sempre uma maneira de afiançar a heterossexualidade.
A eficiência das práticas heteronormativas encontra-se exatamente no fato de que ela não
elege um sujeito para promovê-la. Inclusive aqueles sujeitos, que à primeira vista seriam seus
principais opositores, são co-responsáveis por sua permanência. Com os e as professoras desta
pesquisa, verificamos que suas leituras sobre a prática docente lhes obrigam a sustentar o sistema
heteronormativo. Para Logun Éde, o espaço da escola de dança exige comportamento que, sob
nenhuma hipótese, pode ser maculado:
[...] Na verdade você tem 500 milhões de jogadores que dormem com homens.
Veja a minha história, o meu primo nunca incomodou meu avô porque ele
fazia tudo dentro do modelo e do padrão. Hoje aos 50 e tantos anos ele vive
com o mesmo cara com quem vivia desde os 30 anos. É mais que uma relação
estável. É uma coisa que eu nunca vivenciei. Eu incomodava meu avô porque
gostava de Artes. O que me incomoda na sociedade, eu discuto. Se não discuto
dentro da escola é porque lá as pessoas não precisam ouvir isso. Eu discuto em
outros lados. Porque o rótulo de que todo ser bailarino é gay? Não tenho que
discutir lá dentro porque quem está lá dentro não precisa ouvir isso, já sabe sua
sexualidade, já sabe com quem está dormindo, já está se expondo em tudo que
é lugar. Então, eu discuto fora. Eu discuto em outros lugares, eu discuto com a
minha família, eu discuto com meus filhos, eu discuto em Jacaña, eu discuto na
escola técnica, eu discuto em todos estes ambientes. Lá dentro da escola de
balé não precisa. Eu só faço esse trabalho quando eu pego situações como essa
que vou te contar agora. Nos últimos anos tínhamos dois menininhos fazendo
um pas-des-deux em Lago dos Cisnes. Um dos meninos era o cisne e o outro
era o príncipe. Eu sentei com eles e perguntei: será que isso é necessário? O
que isso vai te somar? Mostrar, “Ah! Eu sou mulher”, “Ah! Eu vou casar com
homem”. O que aquilo iria contribuir para o crescimento da profissão deles?
Disse a eles para parar com aquilo. Perguntando a eles se era importante aquela
cena de sou mulher no meio da sala de aula com um dos menininhos. O que
aquilo iria contribuir para a profissão? A escola fica no pelourinho, o Teatro
fica na Praça Floriano Peixoto, entre o teatro e o Cinema Patheon, eles ficavam
dando saltos de bailarinos, fazendo cena, dando show com uniforme da escola
no meio da rua. Eu os denunciei à direção, será que era preciso eles fazerem
aquilo? Você é bailarino porque você é gay? Bailarino é uma coisa e não tem
nada a ver com a outra. Pra que vai reforçar esse estereotipo? Eu paro pra
discutir. Mas, não é uma constante. Pouquíssimas vezes eu já tive essas
conversas [...].

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Os quadros protagonizados pelos e pelas professoras nos orientam a ideia de que as


performatividades, significadas com a cultura, podem ser tomadas como leituras interpretativas
do governo heteronormativo e androcêntrico. Essa experiência parece confirmar que o corpo
funciona como um tecido constituído por fios entrelaçados de identificações performativas, com
inúmeras marcas de experiências, atravessamentos de valores e subjetivações que orientam os
movimentos curriculares.
Entendidos como as tecnologias educativas (currículos, livros, vestimentas, mídias,
políticas públicas, ciência, etc.) que, significadas na cultura e obedecendo a certa lógica de
planejamento, constroem, ensinam e regulam as performatividades do corpo, os movimentos
curriculares produzem subjetividades e arquitetam modos e configurações de viver, os
marcadores de gênero, raça e classe na sociedade (CAETANO, 2016). Com este entendimento,
partimos do princípio de que transitam modelos de gêneros e sexualidades nos currículos, e estes
projetam a heterossexualidade e a masculinidade como norma e referência.
Diante deste cenário, surgem algumas questões que demonstram, a importância do
debate: quais significados e sentidos sobre as identificações dos e das professoras foram
produzidos nos movimentos curriculares? Para que estes e estas professoras pertençam ao grupo
de docentes, significa adequar-se a quais critérios? Que processos de incorporação e de
resistência às imposições culturais foram vividos ao longo de suas escolarizações? Que rituais de
passagem e que marcas estão inscritas nestes corpos? Mais que a busca por respostas, as
perguntas são compreendidas como caminhos que nos levam a configurar os discursos que
governam e orientam as relações afetivas e afetivo-profissionais de Jaci-Quisaña, Logun Edé e
Jacinto em suas redes de pertencimentos.
Para Delory-Momember (2008), são nos pertencimentos que nos compreendemos como
seres singulares. Os vínculos que aproximam os sujeitos são semelhantes aos que estabelecem a
reflexão da vida. Construímos essa experiência compartilhando os símbolos das redes de
pertencimentos nas quais estamos inseridos e, por meio deles, nos governamos. Dessa maneira,
não cessamos de reinventar-nos em performatividades culturalmente significadas.
Transitar na ilegitimidade social e cultural das performatividades hegemônicas de
masculinidades e feminilidades expõe os sujeitos em situações cotidianas de enfrentamentos,
Jacinto nos conta que
[...] quando eu entrei no magistério, eu já comecei com um problema de
homofobia [...] no terceiro ano que estava na escola, entrou um garoto, até um
garoto bonito que vinha de outra escola. Ele tinha batido no professor [...] ele
era dito como problemático. [...] era meio complicado, não se adequava muito
a escola, o que é normal. Geralmente aluno complicado, é bom você chamar

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pro seu lado, botar pra te ajudar, ele se sente mais útil dentro aquele esquema
todo. A turma foi assistir a um filme com uma professora e pedi para ele ficar
porque eu queria fazer uma máscara nele, seria o exemplo para a turma. Como
ela sabia que ele era problemático, deixou [...] Fiquei com ele na sala sozinho
fazendo a máscara [...] Na semana seguinte, eu falei à turma que íamos fazer
uma máscara. Fui ao armário, peguei a máscara dele, “Olha a gente fez a
máscara”. Os alunos perguntaram quem havia feito, “Eu fiz nele”, a turma
maldou. Eu perguntei qual era o problema? Um aluno falou que eu havia
pegado o garoto e me chamou de viado [...] Ele chegou em casa e falou para o
pai o que tinha acontecido, o pai foi na escola e falou que não queria ele
assistindo aula com professor viado. Ele não queria que o filho dele no futuro
fosse gay. Eu fiquei sabendo isso depois, depois vieram me contar.

As situações protagonizadas por Jacinto nos reafirmam que o gênero e suas


performatividades são produtos que regulam e normatizam o sujeito. Eles não só funcionam
como norma e interpelam os sujeitos, como também são capazes de moldar os corpos que
governa. Em outras palavras, eles são construções que se perpetuam no tempo e dificilmente os
sujeitos conseguem viver sem eles. Não se trata de uma realidade simples ou uma condição
estática dos/nos corpos: o sexo é um processo mediante o qual as normas reguladoras o
materializam na performatividade desenvolvimento pelo sujeito (BUTLER, 2003). Por meio da
performatividade, orientada pelo gênero, o sujeito transita na legibilidade ou ilegibilidade social.
Com a narrativa de Jacinto, vemos que escrever sobre gênero, independente da atribuição
que lhe damos, é produzir discursos acerca do controle e das práticas pedagógicas sobre
sexualidade. A regulação de que falamos parte do principio de que o entendimento sobre o
gênero habita todas as partes e tempos e se encontra marcado em todos os corpos. O corpo torna-
se outdoor.
O corpo é constituído como um projeto pedagógico, e as marcações, que se executam
sobre ele, são cotidianas e servem para alocá-lo em determinados conjuntos de comportamentos
e performatividades sexuais. Isso supõe investimento e intervenção. Podemos verificar que, ao
contrário do que muitos defendem, as identidades assumidas e constituídas nas experiências
vividas são inscritas nas coisas e nos corpos através de injunções implícitas nas rotinas
cotidianas, nos rituais coletivos ou privados da escola, família, tecnologias midiáticas e tantas
outras que nos seduzem ou nos coagem à participação.
A performatividade da identidade é resultado de articulosos investimentos que
cotidianamente somos disciplinados e compelidos a confirmá-la, em ações e acessórios que
suportamos. Portanto, as performatividades de gênero não são dadas, mas, embora realizadas por
nós, são resultantes de uma construção de que, lançamos mão dos “tijolos” e da “argamassa”
culturalmente disponíveis para construção do efeito que pretendemos.
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Para Berenice Bento (2003), a construção de corpos-sexuados, naturalizados como


diferentes, é mais um assunto da disputa de saberes que se instaurou na Modernidade. Como o
gênero é constituído e significado através de tecnologias educativas assimétricas de âmbito
cultural, social, político e histórico, é ele que significa o sexo. Portanto, não existe in natura sexo
sem gênero.

[...] quando o corpo vem à luz do dia, já carregará um conjunto de expectativas


sobre seus gostos, seu comportamento e sua sexualidade, antecipando um
efeito que se julga causa. A cada ato do bebê a/o mãe/pai interpretará como se
fosse a “natureza falando”. Então, se pode afirmar que todos já nascemos
operados, que somos todos pós-operados. Todos os corpos já nascem
“maculados” pela cultura. A interpelação que “revela” o sexo do corpo tem
efeitos protéticos: faz os corpos-sexuados. Analisar os corpos enquanto
próteses significa livrar-se da dicotomia entre corpo-natureza versus corpo-
cultura e afirmar que, nesta perspectiva as/os mulheres/homens biológicas/os e
as/os mulheres/homens transexuais se igualam. Esta é a primeira cirurgia a que
somos submetidos. A cirurgia para a construção dos corpos sexuados. Neste
sentido, todos somos transexuais, pois, nossos desejos, sonhos, papéis não são
determinados pela natureza. Todos nossos corpos são fabricados: corpo-
homem, corpo-mulher (BENTO, 2003, p. 2).
Até aqui temos defendido que nossos corpos são diariamente interpelados e que as
pedagogias que nos educam buscam desenhar nossas configurações identitárias. Mas é preciso
que saibamos que, em nossas vivências rotineiras, as identidades são posteriores às
performatividades de nossos corpos. Esta última é mais ágil e rizomática. Contudo, as
identidades precisam, para existir, de um “teatro” discursivo que solicita aos recursos científicos,
sociais, culturais e históricos a sua escrita linguística. Esse cenário nos recorda Foerster (1996, p.
66), quando descreve “o mundo como uma imagem da linguagem. A linguagem vem primeiro; o
mundo é uma consequência dela. Se alguém inventa algo, então é a linguagem o que cria o
mundo”.
Uma das operações linguísticas e educativas realizadas e ensinadas, a partir das
identidades, é a constituição de fronteiras sociais imaginárias, em cujo interior acreditamos que
seus usuários devem habitar e configurar as suas expectativas. Neste esquema, um corpo
nomeado não é simplesmente a confirmação de um artefato linguístico, mas a negação de outros
artefatos e experiências, o estabelecimento de lugares e limites de relações sociais.
A escrita linguística de uma sociedade normalizada é o efeito histórico-cultural e
pedagógico de uma tecnologia de poder normatizadora centrada na vida. Estas normas são
aplicadas sutilmente, de modo que se tornam aceitáveis e naturalizadas. Ressalta-se que através
da ideologia e da hegemonia se disseminam os discursos os quais determinam o que é
normal/anormal, certo/errado, saudável/doentio.

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No jogo dicotômico centrado no governo político da vida social, Caetano (2016) observa
que os grupos sociais que ocupam posições hegemônicas têm a possibilidade não apenas de auto
representar-se, mas de definir o(s) outro(s). O processo de representação da “anormalidade”
nasce a partir do ponto de vista do dominante. A pessoa que pertence a um grupo subordinado
traz consigo toda a carga e todo o peso da representação, reforçando, assim, como se constroem
as relações de poder e fazendo perceber como nascem as “políticas de identidade” (HALL,
2003).
As identidades que se pluralizam nos espaços de poder se configuram como imagens de
determinados grupos e podem ser traduzidas em representações. Aliás, as identidades somente
existem em função das representações (SILVA, 1994). As imagens criadas a partir da linguagem,
ou vice-versa, podem funcionar como demarcadores da visibilidade social das sexualidades.
Aquilo que está visível estabelece o diferente.
Essa situação nos leva a pensar que a diferença demarcada na narrativa do professor
Jacinto não foi um simples atributo da escola. Ela é fundamentalmente social, política e
culturalmente construída e, por isso, deve ser continuamente interrogada, de modo a evitar que
ela assuma um caráter natural e essencializado.
Inúmeras vertentes epistemológicas e, portanto, políticas que problematizam os artefatos
culturais que nos ensinam sobre a sexualidade, sobretudo as vertentes pós-estruturalistas,
apontam para a noção de que os sujeitos, ao longo do seu desenvolvimento físico e psíquico,
através das mais diversas instituições e ações sociais, se constituem como homem e mulher em
etapas que não são sequenciais, contínuas ou iguais e que, de modo algum, serão concluídas ou
definitivas. Isso ocorre exatamente porque os campos culturais e históricos, em que se formam
os discursos sobre a sexualidade e/ou mesmo as ideias mais amplas em torno dos sujeitos, são
implicados de conflitos e são capazes de produzir múltiplos sentidos. E nem sempre estes são
convergentes nas noções sexuais hegemônicas de determinado contexto. Noções essencialistas,
universais e a-históricas em torno das performatividades dos sujeitos ou das dimensões da vida
são simplistas, porque não destacam as pluralidades de etapas pelas quais as culturas constroem
e marcam os corpos e significam as experiências da vida. Se levarmos em consideração o gênero
e as sexualidades com outras marcas sociais (classe, raça, geração, religião, nacionalidade,
profissão, etc.), teremos infinidades de arranjos e apresentações performáticas.
Essa pluralidade de apresentações fragiliza o discurso unívoco em torno da id-entidade.
A arcaica ideia de que o id daria as bases alicerçadas e coerentes da entidade “Eu” parece se
estremecer com a identidade e inaugurar outra possibilidade de pensá-la. Nessa outra conjuntura,

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ela nos é apresentada por sua múltipla possibilidade, ou seja, ela se configura como identificação
(vinculada à fantasia da identidade).
A identificação (leituras performativas individuais de determinada identidade) pressupõe
o exercício de liberdade – condição central à invenção das coisas. E esse é precisamente o
motivo pelo qual a identificação de Jacinto, Jaci-Quisaña e Logun Edé da identidade professor/a
desestabiliza, desestrutura, incomoda e extasia a escola. Seus re-fazeres biográficos estão
inscritos em configurações sociais que nos aliciam a vários estilos de vida que são apresentados
por meio de artefatos culturais, a exemplo daqueles disponíveis com as tecnologias, a exemplo
de mídia, internet, biomedicina, cirurgias plásticas, etc., possibilitando a ampliação de nossas
experiências.
No âmbito das pesquisas educacionais, os artefatos culturais têm interessado
sobremaneira aos Estudos Culturais de perspectivas críticas e pós-críticas. São muitos os
trabalhos que indagam sobre a relação estabelecida entre os artefatos culturais e os processos de
construção de identidade. No geral, essas investigações caracterizam-se por estudos que
identificam as formas como são apresentados pelos artefatos culturais os sujeitos sociais e as
relações humanas. Elas problematizam as formas como se apresentam os modelos de vida,
existência ideal, relacionamentos promissores, práticas de sucesso e felicidade existencial, etc., e
a maneira como essas perspectivas sugeridas têm efeitos sobre os sujeitos e suas maneiras
singulares de construir-se performaticamente (FISCHER, 1996).
No campo dos Estudos Culturais, as produções atestam que os discursos apresentam
representações sobre ser homem e mulher, sobre arte, ciência, moral, saúde, sexualidade,
maternidade, que, entre outras verdades, disputam território na construção de subjetividades. Por
isso, é curioso e produtivo indagar sobre os efeitos que esses discursos podem produzir na forma
como os indivíduos constroem sentidos em suas existências cotidianas (AMARAL, 2000).
Os artefatos culturais apresentam também um modo peculiar de endereçamento. Trata-se
de uma forma de se relacionar com os sujeitos em um entrelaçamento com estes e as narrativas
apresentadas. A relação entre os sujeitos e o endereçamento de um discurso cultural está
estreitamente vinculada ao estabelecimento de certa identidade. Ellsworth (2001) assinala certa
convocação, uma interpelação, que pode acontecer em diferentes intensidades, desde certa
identificação, que tem como efeito a produção de novas posições de sujeito.
Na contemporaneidade, os reconhecidos marcadores de gênero vii e sexualidades, por si, já
não são nomeações que servem para legitimar nosso sexo de nascimento e estabilizar-nos frente
à cadeia de performatividades que apresentamos/suportamos em nossos corpos, ainda que eles
sejam usados para regular nossos corpos e os fazerem legíveis culturalmente. Entretanto, se o
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corpo é território, é relevante considerar que o discurso que sobre ele emerge está sempre em
disputa.
Com Goellner (2007), temos que o corpo é provisório, conjuntural e histórico, ou seja,
não existe em seus significados nada de natural. Interrogar os discursos sobre o corpo é salientar
sua geração de hierarquizações quando definem o que é positivo e/ou negativo. Tais definições,
com Foucault (1987), são atravessadas por relações de poder que buscam tornar os corpos úteis,
produtivos, docilizados, inteligíveis dentro de uma lógica dicotômica e normativa.
Os atravessamentos se dão por meio de métodos disciplinares no corpo, encontram-se
balizados em discursos produzidos nas mais diversas instâncias, tais como ciência, escola,
família, mídia, etc. Desta maneira, com Goellner (2007), afirmamos que o corpo, assim como as
configurações anatômicas que definem/produzem culturalmente homens e mulheres (entre outras
categorias de diferenciação), deve ser considerado enquanto categoria discursiva e, portanto,
historicizada.
O que se destaca nessas reflexões é a ideia de que as relações de formação e coerção não
se operam privilegiando um sujeito, mas se arquitetam em uma complexa engenharia em que
cada sujeito, em determinado tempo e espaço, configura-se em um lugar na tarefa de assegurar o
controle sobre si e o outro (FOUCAULT, 1987). Estas configurações instauraram um debate
com diferentes posições quanto à avaliação de suas consequências subjetivas e sociais.
As performatividades de Jaci, Jacinto e Logun-Edé afirmam suas condições em um jogo
de projeções altamente controladas e milimetricamente calculadas em seus entendimentos de
feminilidade e masculinidade. As expressões de suas identidades são resultados de articulosos
investimentos os quais, cotidianamente, disciplinam estes indivíduos e compelem a confirmá-los.
Quando não obedeciam ao estatuto, ficavam sujeitos à experiência descrita por Jaci-Quisaña:
O Guilherme afrontava, ele era ousado. O Guilherme não tinha um padrão de
professor de segundo grau, de seguir normas. Ele era um professor de
faculdade. O Guilherme não tinha este cuidado que eu tinha de ser educada, de
não ofender o outro. Se ele tivesse que falar, ele falava, ele até gostava no
fundo. Ele queria era mexer mesmo. Quem é o Guilherme? O Guilherme
namora homem e mulher. Era uma figuraça, entendeu? Isso traz mais conflito
ainda no ambiente da escola. Se a escola já é preconceituosa com aquele cara
que decide ser um homossexual, imagine com aquele que visivelmente é
bissexual. A conta é muito maior. O Guilherme era um showman. Era um
professor que simplesmente um dia eu estava assistindo a televisão, vendo um
concurso de carnaval do hotel Glória, e de repente entra um homem do
tamanho do Guilherme vestido de Governadora Rosinha, era aquela caricatura.
A sua bolsa dele quando abria caia moedas e ele falava “alô, alô. Não, peraí.
Silverinha”. Gente! Pelo o amor de deus, isto era o Guilherme. Ele era muito
mais exigido que eu, ele é homem, no entanto, o Guilherme transitava nos dois
corredores e ele também fazia show. Tudo isto era muito agressivo na escola.
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Se um homossexual já agride, imagina um bissexual? Por isso, qualquer


probleminha com ele assumia uma proporção exagerada. Depois ele teve um
processo administrativo e saiu da escola.

Com a experiência, verificamos que, para ser professora ou professor e sustentar esta
identidade, o sujeito é obrigado a calcular cada movimento, vestimenta, desejo, discurso e
posição. A performatividade de gênero e da sexualidade foi efeito panóptico que teve encontrou,
nos próprios sujeitos, a estrutura de vigilância. A eficácia do poder produtivo da vigilância
ocorreu exatamente porque contou com as pedagogias que sutilmente foram interpelando,
produzindo e naturalizando em Jaci, Jacinto e Logun-Éde a auto vigilância.
A concepção de “poder disciplinar” de Foucault (2002) nos auxilia a compreensão dos
processos de construção dos corpos-sexuados e da incorporação de uma estilística performativas,
uma vez que foram produzidos a partir de um conjunto de estratégias discursivas e não
discursivas fundamentadas na vigilância de condutas apropriadas ao gênero, às sexualidades e à
docência.
Com Jaci, Jacinto e Logun-Edé, verificamos que é nas formas, no jogo de apresentações e
nas expectativas heteronormativas de gênero, que as sexualidades dissidentes são nomeadas e/ou
especuladas. Elas, por serem inscritas e significadas no corpo, estão no interior das
hierarquizações e classificações sociais, tanto quanto nos movimentos curriculares e, mais
amplamente, nas ações e relações escolares, ou seja, no sentido mais amplo de currículo.
A experiência descrita a seguir, por Logun Edé, nos exemplifica a afirmação:
Eu sempre escuto coisinhas como: “Olha! O professor é viado”. Acho que
todos os rótulos são possíveis e esses rótulos possíveis existem entre os
professores. Agora, existe uma grande incógnita: qual é a do Logun Edé? Um
dia o professor de história virou pra mim e disse: “Ah! É porque você é artista.
Artista acha que pode fazer de tudo”. Existe um professor de ciências da noite
que o grande desejo dele é saber qual é a minha. Afinal de contas, ao mesmo
tempo em que sou casado e tenho dois filhos, tenho essas coisas todas com os
alunos e faço balé. Existe tudo isso nesse rótulo. O meu jeito de viver acaba
deixando muito claro em todos os lugares, os que vão gostar do Logun Edé e
os que vão odiar o Logun Edé. Os que vão respeitar o Logun Edé enquanto
profissional que tem sua vida muito claro dentro das expectativas de gênero
masculina e também aqueles que não suportam o Logun Edé que buscam,
principalmente, aquele viado que está ali. Eu acho que esta é a forma que as
pessoas mais gostam de desclassificar o cara, o chamando de viado. Entre os
alunos tem a mesma coisa. Existem aqueles que convivem comigo, esses são
mais próximos e que sabem muito bem o que eu penso. Sabem que acho que
não deve existir rótulo e que saímos. Então, para esse não tem aquilo de
classificar o Logun Edé como isso ou como aquilo. Mas, tem aqueles que me
classificam de viado. Tem de tudo [...] O Logun Edé homossexual ele surge se
houver um momento político. Quando há esse momento político. No dia a dia

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não tenho essa preocupação. A homossexualidade ela vai estar muito forte e
precisa aparecer quando ela precisa fazer um embate com a heterossexualidade.
Quando precisa está na luta política. Eu não penso nisso nesse momento. Nesse
momento [...] eu sou [...] ser humano que sabe que a vida é passageira e que
quer viver, que tem uma série de possibilidades da vida e que sabe que tem
uma série de dificuldades a enfrentar. Uma vez eu te disse, a vida da gente é
cheia de nãos, mas não se compara com a de um negro. Talvez, seja a mais
cheia de nãos. A gente tem que construir a nossa trajetória a partir dessas
negações e buscando caminhos. Então, o que eu procuro pra mim é isso. É sair
buscando caminhos sem parar pra pensar. Alguns vão me lembrar no meio do
caminho [...] que sou viado, que sou homossexual. Outros vão me lembrar que
sou negro. Outros vão me lembrar de algumas coisas. Mas, eu quero seguir
minhas possibilidades. Se o embate político valer a pena, eu vou me lembrar do
que me foi dito e vou pra esse embate político. Mas, fora isso, eu vou vivendo.
Não tem em 24 horas do dia aquele momento que eu penso: agora estou com
essa comunidade e a minha relação com essa comunidade é x, agora eu estou
ali o Logun Edé é y. Se alguém vive comigo 24 horas por dia vai conhecer em
cada local um sujeito que vai falar de um Logun Edé diferente.

Com a narrativa do professor Logun Edé, verificamos que os discursos sociais, ao


tentarem marcar idealmente um corpo, de modo que um seja o complemento oposto do outro,
são, a nosso ver, a base que alimenta as especulações e as sexualidades dissidentes. Em outras
palavras, esse ideal inatingível - que a Modernidade, suas tecnologias e alianças pontuais com os
princípios judaico-cristãos criaram em torno dos sexos/gêneros - permitiu um corpo referência.
Entretanto, no cotidiano, exatamente por sua configuração econômica, geográfica, cultural e
histórica, os sexos/gêneros assumiram inúmeros contornos, buscaram escapar à lógica
dicotômica, mas ainda lutam contra a especulação, nomeação e enquadramento.
A sonhada liberdade ou a opção de criar novas questões à vida são a base que nos
implusionam a subverter a sociedade e nos reapropriarmos da possibilidade de construir
infinitamente as performatividades. Como na política e na cultura, a performatividade é o lugar
do impossível, é o espaço em que o sujeito deixa suas contribuições, e no qual se torna autor de
sua prática e invenção.
Ainda que o mundo exista sem a nossa presença, nossa presença no mundo nos exige
muita criatividade para inventá-lo e fazê-lo um lugar em que possamos viver com dignidade.
Para que o mundo tenha sentido, devemos criar/significar o que nele já contém, devemos
aprender a questioná-lo e a inventar o que ainda não existe. Neste sentido, viver criativamente é
também uma condição para criar/ampliar a democracia e se criar com a democracia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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A partir das experiências de Jaci, Jacinto e Logun Edé, constatamos que, na sociedade
contemporânea, o corpo tornou-se o suporte criativo de artesãos das performatividades. Em
situações de liberdade e as condições materiais, o sujeito pode ser capaz de produzir aquilo que
ele deseja ser/estar no mundo das possibilidades.
Os contornos e pontos que, durante muito tempo referenciaram o sujeito universal,
passaram a escapar por entre os dedos com a crítica feminista. A fragmentação do sujeito não
está distante da escola, ela se reflete em suas práticas quando verificamos agendas de vários
coletivos reivindicando espaços nos seus currículos e prioridades.
Durante este exercício narrativo, conseguimos verificar a presença de diversas
feminilidades e masculinidades presentes nos discursos de Jaci-Quisaña, Jacinto e Logun Edé.
Isto reafirma a idéia de que as categorias de gênero e sexualidades são construídas, e que cada
sujeito fabrica seu corpo, realiza seu desempenho e se apresenta como um projeto interminável,
sempre buscando atender ou responder às expectativas criadas sobre o que é o seu ser/estar.
Estas palavras podem mostrar que, na prática, as identidades produzidas a partir das
performatividades de gênero e sexualidades podem ser mais amplas do que as defendidas nos
discursos ou percebidas nas práticas pedagógicas e nos currículos.

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______.; HALL, S.; WOODWARD, K. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos
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i
FURG
ii
UFRJ
iii O sujeito ilegível caracteriza-se por sua capacidade de transitar entre os/fora dos “enquadramentos” identitários.
A dificuldade ou impossibilidade do outro de ajustá-lo às expectativas identitárias o leva ao transito na ilegibilidade
social.
iv Como crítica à universalização masculina e seu governo no uso da Língua Portuguesa, descreveremos o sujeito da
frase no feminino antecipado dos artigos O – que descreve a existência do gênero masculino – e A – que anuncia o
gênero feminino do sujeito.
v Buscando reforçar o anonimato a pedido dos sujeitos não indicaremos com precisão os lugares de suas atuações
profissionais e moradias.
vi Partimos de uma visão que compreende as identidades como resultados de atos performativos de linguagem
(BUTLER, 2003).
vii
Em alguns campos da vida e de suas relações, os marcadores de gênero estão tão confusos que não nos permitem
afirmar que se referem a mulheres ou homens, exemplo dos comportamentos, acessórios simbólicos e expressões
corporais. Entretanto, em outros eles ainda estão enraizados e fundamentam as desigualdades entre homens e
mulheres, como no campo econômico, nas esferas de representação política e nos números de violência doméstica e
pública. Este último dado é interessante para refletir as diferenças sexuais entre os espaços, se na ordem reconhecida
como privada são elas as maiores vítimas e eles os maiores agressores, no espaço público são eles as vítimas e

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permanecem os maiores agressores. O que evidencia uma educação para a violência e a complexidade existentes
entre as categorias gênero e sexo.

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