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A Questao do Sujeito em Hegel e na Teoria Psicanalitica” Isabel Fortes’ Introdugao E inegavel a influéncia de Hegel na obra de Lacan. O “retorno a Freud” empreendido por Lacan foi feito a luz do discurso hegeliano, mediado pela interpretagdo de Alexandre Kojéve. O sistema hegeliano foi uma das lan- ternas que iuminaram o texto freudiano para Lacan, oferecendo instru- mentos tedricos para a sua releitura Deste modo, do final dos anos quarenta até os anos cinquenta, é expli- cita a referéncia a Hegel’ nos escritos lacanianos, sendo que, por muito tempo, as categorias filoséficas deste autor direcionaram a teoria de Lacan. Eevidente o legado hegeliano nos seus textos, dentro de uma determinada época. Contudo, a partir de um certo momento de seu ensino a utilizagao dos conceitos de Hegel passa a nao ressoar to bem com o corpo tedrico psicanalitico. Todavia, isto ndo implica em uma recusa das proposicées he- gelianas, mas sim na necessidade de teorizé-las de maneira mais aprofun- dada, Entretanto, embora parecendo afastar-se de Hegel, a partir do mo- mento em que suas elaboragées voltam-se para a ordem do real, Lacan continua dentro do campo teérico hegeliano. 1 Doutoranda em Teoria Psicanalitica da UFRJ, 2 Este trabalho foi apresentado como parte da pesquisa que desenvolvo no Doutorado, 3. Sobre isso, ¢f. Birman, J., “A Filosofiac o Discurso Freudiano”, em. Myppolite, J. Ensaias de Psi candlise ¢ Filosofia. Rio de Janeiro, Timbre-Taurus, 1989. Segundo este autor, as marcas de He~ ‘gel nos escritos lacanianos sao encoatradas principalmente nos seguintes textos: “Le stade de miroir comme formatcur de Ta fonction du Je telle qu‘elle nous est révelée dans experience psychanalytique” (1949). Fcrits, Paris, Seuil, 1966; “L’agressivité en psychanalyse” (1948), idem; “Propos sur la causalité psychique” (1946). idem, ‘0 que nos faz pensar n°13, abril de 1999 92 | Isabel Fontes Com efeito, quando a problematica do real € 2 nocao do Outro harrado passaram a ocupar a frente da cena no ensino lacaniano, ocorreram alguns impasses tedricos que exigiram repensar a leitura lacaniana norteada por Hegel. Frente a este novo arcabouco tedrico, a psicanélise passa a colocar alguns limites conceituais ao sistema hegeliano, que entra em atrito com categorias-chaves da teoria psicanalitica, Estes atritos, como dissemos, nao significaram um abandono dos instrumentos teéricos oferecidos pela me- diagao de Hegel, mas obrigaram Lacan a reelabord-los num plano concei- tual de maior complexidade.* A idéia da leituta hegeliana nao ser mais um instrumental tedrico vali- do para a articulagio dos conceitos psicanaliticos se deve ao fato de Hegel ser visto dentro de um “panlogicismo” que o identifica a um “imperialismo da razao”.” Nesta visio de um Hegel panlégico, as elaboracaes sobre a logi- ca do nao-todo, a nogdo de um Outro barrado e a énfase na dimensio do real articuladas na ultima etapa da teorizagdo lacaniana levariam a consta- tacao de que Lacan é um anti-hegeliano por exceléncia. De fato, nao ha nada de mais incompativel com a Idgica do nao-todo do que a nogio de um sistema fechado onde 0 automovimento da Idéia abrangeria 0 todo da realidade.” No entanto, como observa Zizek, Lacan € hegeliano justamente ali onde no se espera que ele seja.’ E curioso notar que o proprio Lacan testemunha isso, ao dizer que “todo mundo € hegeliano sem sabé-lo”.* A visao de um pan- logicismo em Hegel & fomentada pelas interpretagdes feitas por Kojéve e Hyppolite®, em cuja tradicdo inscreve-se a leitura de Hegel empreendida por Lacan. Uma outra interpretacao possibilita uma imagem radicalmente diferen- te de Hegel. Zizek compreencle a figura do saber absoluto de uma maneira que ndo € nem um pouce panldgica, como uma concepedo, aliés, muito 4 Gf. Birman, J.. Op. cit.,p. b2. 5 Zizek, S., Le plus sublime des hysteriques. Hegel passe, Paris, Point Hors Ligne, 1988, p. 8. Cf. também Wine, N, Pulsaac Inconsviente: a Sublimacda ca Advente do Sujeuo, Rio de Jancito, Jorge Zahar, 1992. 6 Zizek, S.. Op. ct, 7 Zizek, $.. Op. ct. p. 7 8 Lacan, J...O Semindtio, ivro 2:0 Eu na Teoria de Freudena Técnica da Psicandlise, Rio de Janeiro, Jorge Zabar, 1987, p. 97. 9 Alone principal de Lacan paras leitusa de Hegel foram os estudos de Alexandre Kojeve. Masa interpretacao de Hegel feita por Jean Hyppolite também foi da maxima importancia. A Questo do Sujeito em Hegel e na Teoria Psicanalitica proxima ao momento final do processo analitico, experiéncia essa marcada pela castracao e pela constatagio da incompletude do Outro. Tal leitura faz “aparecer um Hegel da logica do significante, de um processo autoreferen- cial articulado como a positivacao repetitiva de um vazio central”."" Deste ponto-de-vista aproximam-se também Jarczyk e Labarritre, quando apon- tam que o saber absoluto nao € o absoluto do saber. Segundo estes autores, a figura do saber absoluto que unifica a série de figuras descritas na Feno- menologia do Espfrito nao se apresenta como uma totalizacao intransponi- vel, mas indica uma “totalidade-movimento”, 0 que os leva a afirmar que a filosofia hegeliana constitui um sistema essencialmente “aberto” | Portanta, pode-se perceber dois movimentos em Lacan no que tange a sua relagdo com Hegel. Num primeiro momento, fica bvia a sua releréncia a Hegel, nao havendo divida de que as categorias filosoficas deste pensa- dor norteiam a elaboracao teorica lacaniana. Num segundo momento, esta referéncia nfo aparece de maneira evidente, embora a aproximagao entre os dois autores continue existindo. Consequentemente, este trabalho consiste em um exercicio tedrico que visa operar com as possibilidades de aproximagdo de Hegel ¢ Lacan, tendo como eixo central a questo do sujeito. Para isso, apresentaremos a consti- tuicdo da autoconscigncia conforme descrita por Hegel na Fenomenologia do Espirito, associando-a ao surgimento do sujeito no discurso psicanaliti- co. Trata-se de tarefa espinhosa, pois estes dois autores sdo reconhecida- mente arduos de serem estudados. Hegel € considerado um pensador bas- tante denso e Lacan possui uma escrita enigméatica que, como ele mesmo disse, nao € para ser entendida. Mas se o que nos move na aventura do sa- ber € o prazer em adentyar terras incégnitas, os textos de Hegel ¢ de Lacan sao material para exploracSes surpreendentes. Vamos primeiro percorrer o processo da formacao da autoconsciéncia em Hegel para, num segundo momento, fazer a articulagao desta “fenome- nologia do espfrito” com a dimensto do sujeito na psicandlise. O sujeito freudiano sé pode ser pensado a partir de uma alteridade que o antecede € © constitu: a estrutura do desejo humano € concebida na sua relagao com © outro, Para apresentar a questéo do sujeito, faremos um cotejamento da 10. Zizek, S.. Le plus sublime des hysteviques, Hegel passe, op. cit... 8. 1 Jarezyk, G. ¢ Labarritrre, P.-J.. Les premiers combats de la reconnaissance. Paris, Aubier. 1987, pp. 34-35: Wine, N. Pulsdo ¢ Inconsciente- a Sublimagie ¢ 0 Advento do Sujeiwo, op. cH. 93 94 | sabel Fortes nogao de desejo conforme apresentada na dialética do senhor e do servo com © desejo visto sob a leitura lacaniana. A frase hegeliana “o desejo ¢ desejo do outro” é bastante cara a obra de Lacan e seus desdobramentos tedricos exigem que 0 advento do sujeito do inconsciente seja necessariamente arti- culado com as dimensdes do desejo e da linguagem. A Pardbola do Senhor e do Servo"? Segundo a visto kojeviana, o capitulo IV da Fenomenologia do Esptrito des- creve a passagem da consciéncia animal para a autoconsciéncia que se dife- rencia das modalidades anteriores da consciéncia Faremos uma exposicao das principais idéias contidas na seca A deste capitulo, intitulada “Autonomia ¢ dependéncia da autoconsciéncia: dom{- nie e servidao”. Seguiremos a traducao comentada de Kojéve”, A questo do sujeito aparece com a transformagao da consciéncia em autoconsciéncia, em Sclbsthewusstsein, onde justamente surge o Selbst, 0 si mesmo. A figura da autoconsciéncia expressa o momento em que o ho- mem pela primeira vez diz “eu”. A certeza sensfvel. a percepgao ¢ o enten- dimento, figuras anteriores da consciéncia, constituem a Bewusstscin, ¢ S40. modalidades nas quais o homem é absorvido pelo objeto que contempla. A contemplagao vai revelar o objeto e nao o sujeito, e por isso estas trés pri- meiras figuras voltam-se para a realidade exterior. Somente na quarta figura, a autoconsciéncia, o sujeito distancia-se da rea- lidade objetiva e volta-se numa atitude reflexiva para si mesmo, o que © per- mite dizer “eu”. No entanto, ao fazer este movimento em direcao asi mesma, a autoconsciéncia se da conta de que para se conhecer precisa de um parametro de comparagao, que 86 pode ser feito a partir de uma outra autoconsciéncia.!* Deste modo, a primeira agéo humana, para Hegel, toma a forma de uma tuta entre duas autoconsciéncias que desejam o reconhecimento. Uma luta € 12 Jarezyk e Labarritre observam que a figura da Dominagao e Servidae, como sugerem traduair estas figuras hegelianas, tem valor de parabola. Trata-se de uma “representacao eloguiente da dualidade interior de toda autoconsciéacia”, como veremas mais adiante. Cf. Jacczyck, G. € Labarritre, PJ. Les premiers combats de ta reconnaissance, Paris, Aubier, 1987, p. 40. 13. Kojeve, Alexandre, La Dialectica del Ama y del Esclava en Hegel. Buenos Aires, Editorial La Ple- yade, 1982 14 Konder, L.. Hegel: a Razdo quase enlouquccida. Rio de Janeiro, Campus, 1991. A Questo do Sujeito em Hegel e na Teoria Psicanalitica envio travada entre duas autoconsciéncias, luta de vida ou morte cujo objeti- vo é ganhar 0 reconhecimento do outro. Mas, neste confronto, o adversario nao pode morrer. Se um dos combatentes morte, o sobrevivente fica impossi- bilitado de realizar 0 desejo de ser reconhecido. A vitoria da luta nao é mataro adversario, mas sim submeté-lo ao reconhecimento do vencedor. Isto implica em que os dois comportamentos humanos constituam-se como desiguais. Nao deve haver uma simetria entre eles, mas uma dissimetria: pelo medo de morrere de arriscar a propria vida, um cede ao outro, dando mais valora pré- pria vida e abrindo mio da satisfacao do desejo de reconhecimento, abando- nando este seu desejo passando a reconhecer 0 outro sem ser reconhecido por ele: torna-se seu servo. Esta consciéncia nao existe puramente para si, mas também para a consciéncia do vencedor, sendo entéo uma consciéncia dependente. Entdo, enquanto o desejo animal busca conservar a sua vida animal, 0 desejo humano deve arriscar a propria vida para dirigir-se a outro desejo: Enquanto o desejo animal (natural) visa a manutencao do idéntico (perseve- racao no ser, instinte de conservagao ou de reprodugao), o desejo humano (histérico) difere constantemente de si mesmo, dirigindo-se entéo sobre um objeto nao natural.'* Entdo, 0 outro arrisca a vida e supera este desejo de conservacao em prol de seu desejo humano. Para ele, é vencer ou morrer. E uma consciéncia au- tOnoma, autoconsciéncia pura que se fundamenta no ser-para-si. Este € 0 senhor, Neste sentido, o que estd em questdo na descricao do fendmeno da au- toconsciéncia € 0 tema do reconhecimento: o desejo humane é por exce- lencia desejo de reconhecimento. Nesta luta, as duas entidades sao auto- consciéncia, mas cada uma vé a outra como um animal. O homem tem uma certeza subjetiva de seu valor para si mesmo, mas para esta certeza tornar-se uma verdade, ele precisa impé-la a outros. O que importa é o re- conhecimento deste valor para o outro, Desta forma, a certeza transfor- ma-se em verdade. O homem quer ser reconhecido na sua diferenca, quer ser reconhecido como sujeito desejame. A historia do desejo humano é a prépria dialética do Senhor e do Servo. 15. Borch-Jacobsen, M... Lacan le mattre absolu. Paris, Champs Flammarion, 1995, p. 238. 95 96 6 7 Isabel Fortes Ser para-si, ser pata-o-outro: o desejo do sujeito Nao meu, nao meu é © quanto escrevo Aquem o devo? De quem sou 0 arauto nada? Porque, enganado, Julguei ser meu o que era meu? Que outre mo deu?"* Na releitura que Lacan fez de Freud esta presente a mediacao da dialética do Senhor e do Serva com o texto freudiano. Uma marca da rearticulagao pro- posta pelo “retornoa Freud” empreendido por Lacan expressa-se na nogio do estédio do espelho que, da mesma forma que as figuras da consciéncia em He- gel, nao pode ser compreendido como uma etapa na génese do desenvolvi- mento da crianga, e sim como estruturante do sujeito. O estédio do espelho demonstra que o surgimento do sujeito esta marcado pela insercao deste em uma dialética da intersubjetividade. Esta dialética € também o contexto que possibilita a formagio da autoconsciéncia em Hegel. No estadio do espelho, a crianca passa por um processo de identificagéo primordial que acompanha uma transformacao produzida no sujeito quando este conquista a imagem do seu préprio carpo. Esta identificagao conduz a estruturagao do eu, que se precipita na matriz simbélica, Attavés desta ma- triz, 0 eu liga-se assintoticamente ao devir do sujeito. Fora do pracesso do es- tadio do espelho, a crianca nao possui uma imagem unificada de seu corpo, sendo este vivido como um “corpo despedacado”, vivencia que aparece com {reqééncia tanto nos sonhos como nos surtos psicéticos. A dialética do espe- Iho neutraliza a angustia causada pelos fantasmas decorrentes do esfacela- mento corporal, oferecendo uma imagem totalizada do corpo. Na configura- do final do estadio, a crianca reconhece a imagem no espelho como sendo sua, 0 que Ihe da a exaltacio do Aha Erlebnis, uma sensacao de jubilo decor- rente daassuncaa da propria imagem,”” A fungao imaginaria éa que rege o in- vestimento do objeto como narcfsico. E20 abjeto do espelho que o falo imagi- nario (o pequeno phi) oferece uma “roupagem” narcisica ao corpo talhado do Fernando Pessoa Gf. Lacan, J.. "Le stade du miroir comme formateur de Ia fonction du ‘Je telle quelle nous est révelée dans l'expérience psychanalytique”. Paris, Ecrits, 1949; Dor. J... Introducdoa Leitura de Lacan. Porta Alegre, Artes Médicas, 1989 8 1» 20 21 2 ‘A Questéo do Sujeito em Hegel e na Teoria Psicanalitica | 97 auto-erotismo. O falo nesta vertente interdita 0 gozo através da [ala ao mesmo tempo que “Ihe da corpo na dialética do desejo”.'* Entretanto, a crianga s6 tem a possibilidade de se reconhecer na pro- pria imagem porque um outro ja a reconheceu desta forma. O estadio do espelho € 0 processo da dialética que faz com que somente através do ou- tro 0 eu possa assumir o valor de sua representagdo imaginaria. A identifi- cacdo da crianca com sua imagem especular s6 € possivel na medida em que esta sustentada pelo reconhecimento do Outro (a mae).” E nesta perspectiva que se fundamemta famoso esquema L da diatética da intersubjetividade apresentado no seminario O eu na teovia de Freud ¢ na técnica da psicandlise.” Neste esquema, o sujeito S esta preso (atienado) as redes da linguagem e, por isso, a sua propria imagem no espelho, que con- figura-se para ele como sendo o seu eu (moi), interage ditetamente com a’, © outro, seu semelhante. Deste modo, a relacdo consigo mesmo esta sem- pre mediada pela relagao do sujeito ao eu (moi). De medo inverso, a rela- ¢ao do sujeito com o outro tem sempre presente a dimensdo do eu (ini). Portanto, ha aqui unia identificacdo de si como outro ¢ do outro a si." Ao fazer alusio 4 dialética proposta por Hegel, Hyppolite lembra da frase de Rimbaud, “Eu é um outro”, A autoconsciéncia se insere no esquema da al- teridade, pois é fundamental o aparecimento da consciéncia humana “em es- pelho” para que a historia seja feita. E no movimento em direcdo a uma alteri- dade que o sujeito psicanalitico aparece, da mesma forma que a autoconsciéncia, como assinala Hyppolite: Ela € relacdoe relacao com o outro. Mas ¢ relagao com o outro na medida que 0 outro seja eu; relagao com 0 cu & condigdo de que eu seja 0 outro”? Por isso mesmo, a figura da dominacao e servidao sao posstveis naquilo que Hyppolite denomina “elemento” da autoconsciéncia: Eeste elemento poderia ser definido assim: a esséncia do homem € ser louco, Lacan]. “Subversion du sujet et dialectique du désir”. Ecrits. Paris, Scuil, 1966. Dor, Joel. Ineredugdo a Leitura de Lacan. Porto Alegre, Artes Médicas, 1989, p. 122. Lacan, J.. 0 Eu na Teoria de Freud e na Técnica da Pstcandlise. Rio de Janciro, Zahar Edivorcs. Dor, J. Imtroducao a leitura de Lacan, op. cit..p. 124. Hyppolite, )..“Fenomenologia de Hegel e Psicandlise”, op. cit. p. 65 98 23 24 5 26 Isabel Fortes ou seja, ser ele no outro, ser ele através desta alteridade,”* Assim, a dimensao da alteridade é condicao sine qua non para o surgimento do sujeito.”* A categoria de intersubjetividade é essencial para se compreen- der o percurso de sujeito tanto no ato psicanalitico como na Fenomenologia do Espirito de Hegel.’® O movimento de ser 20 mesmo tempo para-si e pa- ra-outro faz parte, como vimos, da dialética do Senhor e do Servo que constitui a auteconsciéncia. A passagem da consciéncia natural (Bewusst- sein) para a autoconsciéncia (Selbsthewusstsein) sé pode ocorrer através da mediagao de uma outra autoconsciencia, Para a autoconsciéncia ha sempre uma outra autoconsciéncia, ou seja, ela so pode se experimentar como um Selbst, um si mesmo, quando se vé frente a outta autoconsciéncia. E © que nos ensina Hegel: Aautoconsciéncia ¢ em sie para si quando c porque ¢ em sie para si para uma outra; quer dizer, s6 € como alga reconhecido.?* Portanto, a consciéncia defronta-se com o seguinte paradoxo ao assumir a fi- gura da autoconsciéncia: ela tem que ser ao mesmo tempo si mesma € outra, ela sé é capaz de reconhecimento ao experienciat-se como uma outra que nao € ela mesma, mas que é aa mesmo tempo também ela mesma. Segundo Jarczyk e Labarrigre, deste modo configura-se, justamente, a dualidade inte- rior de toda autoconsciéncia. Ela apresenta uma reduplicagdo essencial para poder alcancar o reconhecimento efetivo. O processo do reconhecimento ba- seia-se jusiamente no fato de que a autoconsciéncia $6 seja si-mesma para uma outra. Fste proceso ocorre no interior da autoconsciéncia, quando esta Hyppolite, J.. idem, p. 67. ‘Trabathamos acorrespondéncia entre 0 “estadio do espelho” de Lacan e a dialética hegeliana a partir dos seguintes autores: Birman, . "A Filosofia e o Discurso Freudiane”, Ensaios de Psica- ndlise ¢ Filosofia, op. it,; Hyppolite, . "Fenomenologia de Hegel ¢ Psicandlise”. Ensaios de Psi- canalisee Filosofia, op. eit; Dor, J. Inirodugdo a Leitura de Lacan op. cit GF. Birman, J. “A Filosofia eo Discurso Freudiano”, op. cit, p25, Hegel, G. W. F.. *La verité de la certitude de soi-meme. Independance et dépendance de la conscience de soi, domination et servitude”. Phénoménologie de esprit. Paris, Aubier, 1941, cap. IV, p. 155. Optamos neste trabalho por traduzir, de forma diferente da de Hyppolite, a Selbstbewussisein por autoconscigncia e nde por consciéncia-de-si, seguinde a sugestio de La- barrierre e Gwendoline em Premicrs combats... O termo auteconsciéncia € melhor porque consciéneia-de-si da a impressio de uma consciencia que toma 2 si como um objeto externa a ela mesma, como faz toda a tradicao da filosofia consciencialista, n 28 29 A Questao do Suiito ent Hegel e na Teoria Psicanalitica vai “colocar-se 4 prova da diferenga, da oposicdo, da exclusao miutua”, Este € ‘© caminho que a leva ao “processo de totalidade reflexiva” que a faz voltar-se para si mesma. Possui, desta forma, um objeto duplo, ela eo mundo quea re- vela a cla mesma. A sua maior descoberta ao querer conhecer o mundo € que neste movimento ela conhece a si mesma, sendo por isso ao mesmo tempo auténoma e dependente.”” (Um aspecto fundamental para a compreensio do sujeito [reudiano a ser destacado nesta incursdo em Hegel e Lacan € 0 fato de que a dimensao da alteridade produz um sujeito que s6 pode existir na e através da lingua- gem. Uma teoria do sujeito, tanto no sistema hegeliano como na psicanali- se, tem este ponto de partida. Como aponta Garcia-Roza, 0 reconhecimento humano sé pode realizar-se pela palavra, A linguagem € o pressuposto para o desejo humano, pois nao ha como se pensar em sujeito humano fora da linguagem.” Alias, desde seus primeiros textos, Freud j4 colocava o registro da Jin- guagem como a marca fundamental do inconsciente. Em Sobre as afasias (1891), o aparelho psfquico era denominado “aparelho de linguagem”, Em Interpretagio dos sonhos (1900), Freud assinala que a matéria-prima dos sonhos é uma fala interditada. Quando falamos de linguagem, estamos di- zendo que a dimensao do outro esta presente. Segundo Garcia-Roza, 0 su- jeito nfo € uma manifestagio isolada que possuiria em si uma natureza es- sencial. © aparelho de linguagem do qual fala Freud em Sobre as afasias € construfdo por uma aprendizagem feita a partir da relagdo com um outro, isto é, um outro aparelho de linguagem que introduz o sujeito na ordem do simbélico.” Nesta ordem, emerge o sujeito do inconsciente constituido na ¢ pela Tinguagem, na medida em que o Outro é 0 lugar do tesouro dos significan- tes. Se a desejo do sujeito € desejo do Outro ese 0 Outro é o lugar do signi- ficante, entao o sujeito € definido pela sua articulagao com o significamte. ‘Jarceyk, G. e Labarvigre, P.J...Les premiers cambatsde la reconmatssance. Paris, Aubiee, 1987, p.25. Sobre isso, Garcia-Roza discorda de Kojeve na sua leituca hegeliana de uma antropogt nese, que afirma a passagem de uma animalidade para a ordem do humano, conforme vimos anteri- ormente, Segundo Gatcia-Roza, em Hegel 0 simbdlice (e, portanto, © humane) existiria desde sempre. (Garcia-Roza. Aula no Dontorado em Teoria Psicanalitica, UFR). Esta visto ¢ mais proxima da psicandlise, ja que esta ultima toma a linguagem como ponto de partida, ¢ no 0 reino naturah Garcia-Roza, L. A.. “Sobre as Afasias”. Introducdo & Metapsicolagia Freudiana, vol. 1. Rio de Ja- neira, Jorge Zaliar, 1991, p. 40. 99 100 | isabel Fortes 3I 2 O desejo do sujeito tece a sua rama na linguagem, nica forma posstvel de se apresentar, pois este sujeito é efeito da linguagem, sujeito da enunciagaa que aparece no enunciado do discurso, Para além do sujeito do enunciado, esta o sujeito da enunciacdo, sujeito dividido, sujeito do inconsciente que irrompe nas brechas da cadeia signi- ficante, ali onde “o ser treme na vacilacao de seu proprio enunciado”.” O sujeito como significante € o que Lacan chama de um shifter, um sinal indi- cativo que no enunciado designa 0 sujeito da enunciacao, Deste modo, o sujeito do inconsciente € efeito da linguagem, irrompen- do nas brechas da linearidade do enunciado. Este sujeito nao se quer coe- rente, mas incoerente, nao se pretende unificado, mas fragmentario, pon- tual, no surge na linearidade do enunciado, mas na sua descontinuidade: nao o sujeito da consciéncia, mas o sujeito do movimento desejante do inconsciente. O desejo, apontando sempre para o Outro, mostra sua faceta trégica, pois este Outro, lugar do simbdtico, é a0 mesmo tempo a condena- cdo € a possibilidade de emergéncia do sujeito. O fato de que nada chega a nés.a nao ser pasando pela linguagem (ou enquan- to linguragem) faz do ser humano um prisioneiro da linguagem, mas ao mes- mo tempo the confere o poder tinico de criar 0 mundocom o qual ele vai se ar- ticular.” Portanto, se s6 a partir da nocao de um sujeito inserido na linguagem po- de-se compreender a concepgao de que o desejo € desejo do outro, € por- que o desejo humano tem esta marca de nao ser um desejo de objeto, mas. um desejo de um outro desejo —somente dirige-se para objetos quando estes sao abjetos dos desejos de outros sujeitos humanos. A diregao do de- sejo humane é 0 desejo do outro, € ser desejado pelo outro, ser amado pelo ‘outro, ser reconhecido em seu valor humano.™ Este é, como vimos anteri- ormente, um dos temas fundamentais do cap. IV da Fenamenologia do Espt- rite: o reconhecimento, Lacan, J., “Subversion du sujet et dialectique du désir dans l'inconscient freudien”, Ecrits, Pa- ris, Seuil, 1966, p. 802. Garcia-Roza, |. A..A Interpretacae do Sonko (1900). introducao a Metapsicologia Ficudiana, vol. 2 Rio de Janciro, 1993, p. 229 Garcia-Roza, |. A..°O Va me-Dumarf, 1991, p. 110. ‘ca Falta’. Anudrio Brasilcira de Psicandlise, Rio de Janeiro, Relu- A Questao do Sujeito em Hegel e na Teoria Psicanalitica Neste sentido, a concepgao hegeliana *o desejo € desejo do Outro” é também bastante cara a psicanalise. A dimensao do Outro é fundante de ‘uma teoria do desejo. Entretanto, ¢ importante considerar que o que esta em questo no desejo humano nao € a falta, mas vazio. A nogo de falta li- pa-se ao desejo de um objeto que vem “preencher” esta falta. A falta de ob- jeto remete ao desejo animal. No desejo humano nao ha falta de objeto, mas apenas um vazio irredutivel e insuperavel. Ao desejo humane nao fal- ta um objeto porque 0 que deseja ¢ permanecer desejando: é desejo de de- sejar, desejo de ser reconhecido como sujeito desejante. Ao mover-se no registro do vazio, o desejo humano vai de encontro a um outro vazio.”” E somente no registro do vazio torna-se possivel a superacao da realidade natural ¢ 0 surgimento de um desejo nao natural. Portanto, o desejo conce- bido no registro do vazio pressupde a linguagem, pois o desejo nesta con- cepgiio no deseja um objeto, mas deseja o préprio desejo. O desejo huma- no € necessariamente desejo de desejo.™ Lacan, no texto “Subversao do sujeita e dialética do desejo no inconscien- te freudiano”?, mostra que por desejar na forma do desejo do Outro a ques- tao que vem para o sujeito do Lugar do Outro é © que conduz o caminho do seu préprio desejo. A questdo Che vuoi? (0 que queres de mim?) expressa 0 enigma do desejo do Outro. Esta pergunta indica que ha um hiato entre o enunciado do discurso € a enunciagao: “Vocé me pede algo, mas o que vocé visa para além deste pedido?”* Neste contexto, a figura do Che vuoi? € a que promove o circuito do sujeito do inconsciente na sua articulacdo com o dese- jo, através do qual ele acede a sua identificacao simbslica, colocada em 1(A) a0 final do grafico do desejo, na qual o sujeito identifica-se com um traco do Outro. A forma do grafico € um ponto de interrogacdo, expressando este enigma do desejo do Outro que se coloca para o sujeito.”” 33. Adiferenca entre as nocées do desejo movido pela falta ou pelo vazio sto trabalhadas em Gar- cia-Roza, L. A.."O Vazioe Falta: a Quesiao do Sujeito na Psicanalise”. Anudrio Brasileiro de Pst- candlise, Rio de janciro, Relume-Dumari, 1991; Perelson, S.."O Desejo para o Sujeito Absolu- to”. A Dimensdo Trdgica do Desejo. Rio de Janeiro, Revinter, 1994, 34. Cf. Garcia-Roza, L. A..."O Vazio ¢ a Falta: a Questao de Sujeito na Psicaniliso”, op. cit.; Perel- son, S.. A Dimensdo Tragica do Descja, op. cit. 35. Lacan, J.. “Subversion du sujet et dialectique du désir dans "inconscient freudien”. Eevts, Pa- ris, Seuil, 1966. 36. Sobre isso, of. Zizek, S...Eles ndo sabem o que fazem:0 Sublime Objetoda Idcologta. Jorge Zahar, 1992. 37 Lacan, ., “Subversion du sujet et dialectique du désit*, op. cit de Janeiro, 10 102 | sabe! Fortes Nesta perspectiva, 0 sujeito s6 pode ser compreendido, novamente, em uma estratégia intersubjetiva. E do Outro que ele recebe a mensagem que emite pois “a significagao da mensagem do emissor nao é nunca dada a nao. ser através da interpretacao significante da resposta do receptor”."" A estru- turagao do sujeita s6 tem como ser realizada dentro de uma “hist6ria rela- cional”. Quando uma crianga nasce, ela se encontra imediatamente imersa no universo simbélico, pela via da mediagao desejante do Outro, inserida na linguagem pois, como sujeito humano, s6 pode ser constituido em um espaco “entre sujeitos” Bibliografia Birman, J.. “A Filosofia e 0 Discurso Freudiano”, em Hyppolite, J. Ensaios de Psi- candlise Filosofia. Rio de Janeiro, Timbre-Taurus, 1989. Borch-Jacobsen, M.. Lacan le matire absolu. Paris, Champs Flammarion, 1995. Dor, J.. “Discussto sobre a Exposigio de Piera Aulagnier”, Interpretacdo e Ato, Tempo Psicanalitico. Rio de Janeiro, SPID, marco de 1992, n° 26. Introducdo a leitura de Lacan. Porto Alegre, Artes Médicas, 1989. Garcia-Roza, |.. A.. “O Vazio e a Falta”, Anudrio Brasileiro de Psicandlise, Ria de Ja- neiro, Relume-Dumara, 1991, “Sobre as Afasias”. Indrodugio & Metapsicologia Freudiana, vol. 1. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1991 <=> - A Interpretagao do Souho (1900). Introducao a Metapsicologia Freudiana, vol 2. Rio de Janeiro, 1991. 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