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Publicado em Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio

(http://www.epsjv.fiocruz.br)

Entrevista:
Felipe Demier

‘Talvez a gente esteja assistindo ao surgimento de um novo padrão de


golpe’
Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz | 02/09/2016 11h33 - Atualizado em 06/09/2016 14h17

Primeiramente, foi ou não

um golpe a decisão de destituir Dilma Rousseff da Presidência da República?

Sim, foi um golpe. Mas não um golpe no regime na medida em que a deposição do governo não acarreta
conjuntamente, como em outros episódios da história política brasileira e mundial, a mudança no regime. É um golpe
de governo articulado por vários setores sociais, incluindo parte do aparelho do Estado como o parlamento e o
Judiciário, além do sistema midiático e das forças sociais mais organicamente ligadas ao capital. Não há um golpe no
sentido de modificar o regime político, mas sim de depor um governo caçando o sufrágio universal. Nesse sentido é
um golpe.
Nas manifestações contra o impeachment, alguns cartazes destacavam que 61 votos no Senado anularam 54
milhões de votos populares. Alguns senadores – como Acir Gurgacz (PDT/RO)– afirmaram que não houve
crime de responsabilidade, mas não havia governabilidade e a manutenção de Dilma no poder significaria um
recrudescimento da crise econômica. O procedimento foi político, mas as razões apontadas foram econômicas.
O que isso nos diz sobre a relação entre política e economia?

A relação entre política e economia é o que vai explicar quase todos os processos políticos pelo menos no que diz
respeito à ‘grande política’. No caso atual, a crise econômica começou a se manifestar aqui no segundo mandato da
Dilma e acabou por contribuir para a derrocada do projeto de concertação social – ou o que alguns chamam pacto
social lulista. Isso fez com que parte da burguesia brasileira e, com o tempo gradativamente, todo o conjunto da
classe dominante brasileira tenha optado por uma substituição da representação política no poder antes dos prazos
determinados pela Constituição, visando recuperar o crescimento econômico, as taxas de lucro. Então há uma
determinação econômica nesse sentido. Aos olhos da burguesia brasileira – e não interessa mais se isso era
verdadeiro ou não – o PT já não era visto como um partido capaz de fazer as contrarreformas e o ajuste fiscal no
grau, na intensidade e na velocidade exigidos pela crise econômica. Embora o PT tenha se esforçado para tentar
mostrar que poderia fazer. Mas o que importa é que para a classe dominante brasileira a superação dessa crise passa
pela retirada de direitos e pelo ajuste fiscal e o PT não era visto como um partido capaz de fazer isso.

No artigo do livro ‘A onda conservadora’ você escreveu que as manifestações de 2015 tinham como objetivo
desgastar o governo até as próximas eleições presidenciais, em 2018. Porque se pegou um atalho?

Parece que antes que a classe dominante brasileira optasse pelo atalho, as próprias direções políticas da classe
dominante, isto é, a oposição de direita, viu na crise econômica uma brecha para se lançar numa luta antes do
calendário eleitoral visando recuperar o poder perdido há 13 anos.

Você está falando do senador Aécio Neves que contestou o resultado das eleições de 2014?

Do PSDB. É um aparato político monstruoso que ganhou a confiança e o respeito da classe dominante brasileira
porque construiu na década de 1990 uma hegemonia burguesa no Brasil depois de décadas de crise de hegemonia e o
fez por meio do plano real, mas, sobretudo, realizando as privatizações e o ajuste neoliberal na economia. Para um
partido com a dimensão do PSDB ficar fora do poder federal por 13 anos é algo muito prejudicial, quase
insustentável. E, para usar uma metáfora futebolística, o PSDB se lançou numa luta para recuperar a titularidade da
representação política da burguesia brasileira. Sentiram que dava para explorar a crise. Mas quero deixar claro que
eles começam o movimento antes. Se há algo que o PT diz que é factível é que a oposição de direita tentou
inviabilizar o governo desde o seu primeiro dia, o tal do 3º turno é verdade. Mas o fato é que ela consegue, primeiro,
um lastro social dos setores médios em crise – em vias de proletarização, com aumento do custo de vida,
encarecimento do consumo – que oferece uma base social que permite que leve a cabo essa tentativa de retomada do
Estado antes das eleições. E a burguesia vai aderindo ao longo do processo. Depois da manifestação de março de
2015, gradativamente as frações do capital vão aderindo ao projeto do golpe. O setor industrial – a Fiesp –, setores
do agronegócio, o setor financeiro que é sempre o último a se posicionar. Tudo isso, claro, já contando com o apoio
de massas dos setores médios mais conservadores que se opõem muito mais ao que o PT foi um dia do que ao que
era quando foi deposto e aqueles que nunca aceitaram sequer as políticas sociais compensatórias do partido.

E quais eram os interesses do chamado ‘baixo centrão’ para pegar esse atalho?

O PMDB talvez simbolize essa ala do centrão da direita. O PT dormiu com o inimigo e sabia disso. Talvez tenha
dormido pensando em amor, mas o PMDB nunca pensou em algo mais do que um sexo ocasional. Quando ele
percebe que a maré virou, e tendo a possibilidade de chegar ao poder – indiretamente pelo voto, mas diretamente
com um homem dele na presidência – ele [o partido] se desloca. O PMDB nunca esteve fora do aparato federal desde
a redemocratização. É fato que isso expressa o equívoco das opções políticas do PT que buscou sempre se coligar
com os setores mais conservadores, fisiológicos, tradicionalistas da burguesia brasileira – e dos seus representantes
no Congresso - até como uma forma de, segundo eles, garantir governabilidade e isolar o que seria um setor mais
ideológico da oposição de direita, neoliberal mesmo – PSDB, DEM. Num momento de crise é obvio que esses
setores do centrão se deslocariam para onde a maré levasse. Assim como se as mobilizações de rua se esvaziassem e
se a burguesia brasileira não tivesse aderido a uma proposta golpista – tivesse ponderado que já que a sua
lucratividade continua alta mesmo com a crise não valeria a pena uma convulsão política – o PMDB teria tomado
uma postura firme de rechaço ao impeachment.

Você tem falado das democracias blindadas, mas antes de entrar nisso, queria falar de outra blindagem,
expressão muito usada nos jornais para falar do instinto de autoproteção dos políticos, que aderem ao
impeachment como uma forma de ter maior controle sobre a Lava Jato na medida em que vários estão na
mira da investigação. Você concorda com essa leitura? Ou não é um elemento tão preponderante para a gente
entender o atalho?

Primeiro, tem que quebrar uma visão juridicista ou técnica da Lava Jato como se um belo dia a operação tivesse
começado e se transformado em um elemento no cenário com o qual as forças políticas tinham que lidar. Eu acho
que a Lava Jato é parte do processo golpista e que talvez até envolva aspirações de setores do capital internacional
interessados em áreas estratégicas da economia brasileira, como construção e petróleo. Desde o seu início a operação
tem um conteúdo claramente político que se expressa pela punitividade seletiva do [juiz] Sergio Moro. A não ser que
a gente acredite numa autonomia e independência totais da Polícia Federal, do Judiciário, dos aparelhos de Estado, o
que não condiz com a realidade. A Lava Jato foi desde sempre um instrumento da oposição de direita. Todas as
delações premiadas e todo o processo eram direcionados para atingir quadros do governo federal: PT, PMDB e PP.
Mas é fato que uma vez o processo desencadeado alguns aspectos de autonomia relativa aparecem. Aquela gravação
do Romero Jucá expressa que já tendo atingido o objetivo de limar o PT, por conta das cobranças sociais em
determinado momento as coisas poderiam ir mais além atingindo quadros do governo interino e da oposição de
direita. Isso, sim, pode levar a uma blindagem nesse sentido mais comum utilizado pela imprensa de proteger certos
políticos e num grande acordo encerrar a Lava Jato apenas com a punição dos quadros do PT. E aí aquela hipótese
que foi depreendida através das declarações do Jucá de que a Dilma não teria aceitado nenhum acordo em relação a
isso.

O que é democracia blindada e como esse conceito ajuda a entender o que está acontecendo no Brasil hoje?

É uma nova configuração das democracias liberais contemporâneas que vão ser reformatadas a partir do final dos
anos 1970, a partir da necessidade de o capital recuperar as taxas de lucro que levou, no caso da Europa, a um
desmonte de aspectos vertebrais do Estado de Bem Estar Social. Na medida em que a dominação de classe e os
interesses do capital exigem contrarreformas e retirada de direitos, as estruturas políticas responsáveis por essas
tarefas precisam também ser reformatadas de modo a minimizar ou bloquear completamente – daí a blindagem –
posições políticas que levem em conta os interesses populares por reformas sociais. As democracias liberais do pós-
guerra europeu eram baseadas em reformas e direitos sociais e tinham dentro das instâncias do regime – não só do
Executivo, mas, sobretudo, no parlamento – representações políticas que defendiam direitos sociais mesmo que de
forma distorcida. E aí não estou me referindo a críticos do capitalismo, mas a defensores de reformas. A partir dos
anos 1980 a concepção de direito social não é mais elemento definidor da democracia representativa. Há uma volta
às origens da concepção liberal de democracia. Para que esse conteúdo contrarreformista substitua o conteúdo
reformista, todas as expressões políticas que representavam interesses da classe trabalhadora e dos movimentos
sociais tiveram que ser transformadas. A ideia da democracia blindada é que a pressão popular, a pressão das ruas
não encontre mais espaço nas instâncias representativas do regime.

Como isso se dá?

Em primeiro lugar o transformismo de boa parte dessas representações políticas que antes expressavam, mesmo que
de forma moderada, o interesse por reformas. Os partidos socialdemocratas vão se converter, em alguns casos de
forma muito acelerada, em partidos contrarreformistas, ou se a gente quiser, em partidos sociais liberais. Além do
transformismo, uma série de mecanismos institucionais são criados e progressivamente lapidados para fechar os
poros do regime democrático à entrada de verdadeiros representantes dos interesses populares. Já não se trata de um
sistema político representativo imune à entrada de posturas anticapitalistas, revolucionárias, socialistas radicais, mas
que torna praticamente impossível a entrada de defensores de direitos sociais.

E esses mecanismos são vários. Um deles é a grande mídia. A mídia empresarial hoje é um dos elementos
constitutivos do regime. Não é externo no sentido de defender ideias compatíveis que possam cimentar
ideologicamente o regime. Não. Muitas vezes as mídias cumprem o papel do grande partido da burguesia. E isso fica
claro na pauta política da grande imprensa: a redução da grande política sempre à pequena política, o menosprezo
por qualquer forma de política extraparlamentar, a cobertura parcial dos eventos de natureza política, o constante
ataque aos movimentos sociais, a criminalização das lutas sociais, a blindagem – aí no sentido convencional e ao
mesmo tempo no meu sentido – dos governos quando são interessantes para a classe dominante. E vai além, no
rebaixamento do nível do debate cultural no país, com um que se aproxima de níveis de indigência intelectual. Tudo
isso favorece o processo de despolitização e a não participação do cidadão na vida política. E, portanto, torna cada
vez mais as instâncias políticas um espaço somente pertencente aos grupos políticos tradicionais fiéis à classe
dominante. A blindagem tem a função de que só os partidos que têm acordo com o dogma do capital participem com
força do sistema político hoje. Têm que defender o ajuste fiscal, a retirada de direitos. E do ponto de vista
institucional são aprovadas contrarreformas que vão mudando o sistema eleitoral.

Como essa que tirou candidatos competitivos do debate na televisão?

Chegamos a esse momento quase cômico de se excluir candidatos competitivos do debate a partir de um direito da
emissora ou de um voto de veto dos outros candidatos. Outros elementos são o tempo de televisão, o financiamento
de campanha, tudo uma blindagem que consegue isolar elementos incômodos para a democracia liberal
contrarreformista.

E como esse conceito ajuda a entender o que está acontecendo no Brasil hoje?

Voltando ao golpe: como eu disse, diferentemente do que alguns alegam, não há um golpe na democracia, há um
golpe no governo. Em uma primeira dimensão de análise, isso pode ser lido como uma prova de força do atual
regime democrático blindado porque ele se mostra capaz, por meio dos seus próprios procedimentos constitutivos, de
substituir peças políticas incômodas quando for necessário para o capital sem ter de alterar o próprio regime como
antes era o padrão clássico dos golpes políticos. Por meio da democracia blindada, a classe dominante brasileira se
vê dispensada da tarefa de um golpe de regime propriamente dito, de um golpe militar. É uma democracia tão
blindada que se mostra capaz de caçar o sufrágio universal de 54,5 milhões de brasileiros sem ter que recorrer a um
golpe de força. Por outro lado, há potencialmente um elemento de fraqueza na medida em que ela se mostra uma
democracia muito inflexível às aspirações populares.

Ela acaba se expondo?

Sim. Ela se mostra capaz de cassar o voto popular e incapaz de incorporar demandas sociais progressivas – e mais
ainda – se vê impelida a implementar de forma acelerada as contrarreformas e, assim, coloca em risco a sua
legitimidade. A sua sustentação social enquanto forma de dominação consensual. Se essa fragilidade vai se
manifestar ou não só as mobilizações sociais dirão. Talvez a gente esteja assistindo ao surgimento de um novo
padrão de golpe. Novos tipos de golpe associados a novos tipos de democracia já blindadas. Como no caso
paraguaio, por exemplo.

Esse conceito também ajuda a entender o que está acontecendo na América Latina nesse momento levando
em conta que, pelo menos na América do Sul, tivemos governos que acenavam para algumas aspirações da
população, ainda que com políticas focalizadas?

Assistimos ao esgotamento dessas experiências neopopulistas. Eram regimes políticos que formataram um novo
padrão de pacto social no qual as demandas populares são incorporadas às políticas públicas e as massas são um
elemento importante de sustentação de um aparelho burocrático relativamente autônomo, com um projeto
neodesenvolvimentista ou um projeto que busca um grau de manobra dessas economias periféricas no sistema
internacional. Essas experiências que inegavelmente tiveram méritos tanto no caso do Equador, da Bolívia e da
Venezuela se depararam com seus próprios limites constitutivos. Ao não ir além da crítica antineoliberal e não
colocar em pauta a superação, por obra da própria classe trabalhadora, de uma perspectiva capitalista. Pela sua
dimensão periférica num cenário de crise econômica mundial, acabaram se vendo diante de uma ofensiva da
burguesia nativa que nunca viu esses governos neopopulistas como seus governos e que agora se encontra numa
conjuntura mais favorável para retomar o poder. No caso da Venezuela essa burguesia tentou durante muito tempo a
via golpista clássica e agora parece ter aderido a uma tentativa de voltar pelo processo eleitoral. O caso do Paraguai é
exemplar desse novo padrão de golpe nas democracias blindadas na periferia do sistema, em que, pelos próprios
mecanismos institucionais, parlamentares, você substitui um governante que, naquela conjuntura, se mostrava
incômodo aos anseios do capital, da classe dominante local.

Quando nasce a democracia blindada aqui?


Os estudiosos marxistas da transição começam a encontrar, ainda em fins de governo Médici – portanto no auge da
ditadura – um projeto de transição daquele regime ditatorial para uma democracia de tipo restrita que vai se acelerar
nos governos Geisel e Figueiredo. E esse processo vai se desenvolver e, em sentido geral, na cultura da própria
ditadura e, portanto, a classe dominante orgânica vai manter a direção do processo. Mas o fato é que esse processo de
construção de uma democracia blindada vai ser em um primeiro momento limitado pela presença do movimento
popular, que vai se expressar no novo sindicalismo, nos movimentos sociais, no MST, na CUT e no PT. Mas esse
processo blindado vai ser em um primeiro momento limitado pela reaparição da classe operária e do movimento
popular, que vai se expressar no novo sindicalismo, nos movimentos sociais, nomeadamente no MST, na CUT e no
PT. Essas lutas sociais atravessam a harmonia da transição burguesa. Isso tudo vai se expressar no caráter híbrido,
contraditório da própria Constituição de 1988 que, se por um lado, já contém aspectos de uma democracia liberal em
processo de blindagem, por outro contém também uma série de direitos sociais que expressam a presença e a força
do movimento popular. A Constituição instaura o sufrágio universal, a independência entre os poderes e o sistema
representativo liberal, mas mantém dispositivos de tutela que concede aos militares o papel de recorrer, em casos de
necessidade, pela força para manter a ‘lei e a ordem’. De qualquer forma, muitos aspectos progressistas da
Constituição de 1988 sequer regulamentados já começam a ser atacados a partir dos anos 1990 naquela experiência
um pouco aventureira do governo Collor. A sintonização da economia brasileira ao neoliberalismo a partir da
experiência do Collor já começa a contrarreformar aquelas conquistas, que ou não saíram do papel ou saíram de
forma muito precária por conta do desfinanciamento. Uma série de coisas: privatizações, abertura ao capital privado
das áreas estratégicas do Estado, desvinculação dos recursos da União, a DRU. Começa a se avançar, agora em linha
mais direta, na construção dos mecanismos da blindagem. No entanto, o PT funcionou nos anos 1990 ainda como um
partido que obstaculizava essa blindagem da democracia pelo simples fato de funcionar ele mesmo, dentro das
instâncias do regime, como um partido defensor de direitos sociais e reformas sociais.

A forma de blindar tem diferença entre os governos puro-sangue como foram FHC e será provavelmente
agora o governo Temer e os governos do PT?

O PT aderiu à plataforma contrarreformista fazendo com que a blindagem possa avançar de forma mais clara. Ele
contribuiu para o fechamento das instituições do regime à entrada de setores que defendem o que antes o PT
defendia. E os governos do partido retiraram direitos e realizaram contrarreformas. A diferença é que o PT faz isso
combinando com políticas sociais focalizadas.

Então tem uma diferença com a blindagem ‘puro-sangue’?

Eu não diria que tem uma diferença da blindagem, eu diria que é a forma pela qual a ala esquerda do regime
blindado opera. Ele compartilha com o partido da direita clássica os eixos macroeconômicos do grande capital, mas
combina isso a uma cidadania pelo consumo. Por quê? Porque ele já não pode mais implementar reformas nas áreas
sociais. Porque ele precisa abrir essas áreas para o capital privado ao mesmo tempo em que precisa conter os gastos
sociais para fazer o superávit. E compensa isso abrindo aos setores populares a possibilidade de acesso a bens e
serviços do mercado, o que, aliás, dinamiza a economia beneficiando os próprios setores do capital. A concertação
social não é mais ligada a direitos, mas a celular, televisão de plasma, moto. Mas se tiver um acidente, a pessoa não
vai ter um hospital público de qualidade para atendê-la, seu filho não vai poder entrar em uma escola pública de
qualidade, não vai ter aposentadoria, e os trabalhadores vão poder usar o WhatsApp enquanto passam de duas a três
horas no deslocamento da casa para o trabalho por conta da ausência de reformas na mobilidade urbana, pois moram
longe já que os aluguéis são caros. É uma limitação da cidadania que talvez até ajude a explicar o fato de esses
setores populares não saírem em defesa do PT agora.

Quando esse processo de crise política se acirrou com a abertura do processo de impeachment, muitos
analistas anunciavam que o Brasil iria pegar fogo. Como você avalia a reação até aqui e o que podemos
esperar?

Houve por parte de alguns movimentos sociais, de alguns partidos de esquerda, da própria frente de esquerda que
está se formando nos estados, tentativas de resistência ao golpe e já antecipando a resistência às contrarreformas do
governo interino, agora governo fixo. E nesse processo, aliás, houve uma espécie de volta para as ruas de um setor
que buscou quase que tardiamente uma identidade com o PT ou que já tinha abandonado a militância, mas que,
diante da ofensiva golpista, voltou às ruas e muitas vezes com uma imagem do PT como se o PT golpeado fosse
aquele partido dos anos 1980 ou 1990. É um setor social que tem que ser disputado pela Frente de Esquerda
Socialista. Por outro lado, dois aspectos ajudam a explicar o fato de a resistência até o momento não ter sido ampla,
significativa ou não ter pegado fogo. O primeiro é que as contrarreformas anunciadas ainda não se efetivaram. Os
próprios setores da burguesia estão cobrando do Temer maior celeridade nisso, enquanto ele espertamente esperava
ser efetivado como presidente e acredito que vá esperar as eleições municipais. O segundo aspecto é o fato de que o
próprio PT não resistiu ao golpe. Se ele conseguiria ou não é algo que a gente nunca vai saber. Mas a verdade é que o
PT faz uma resposta muito tímida à ofensiva golpista. Ele prioriza e privilegia os caminhos institucionais para
bloquear o golpe. Tenta fazer acordos, tenta recompor com o PMDB, tenta oferecer cargos, tenta conseguir os votos
necessários na Câmara e os votos necessários no Senado – e tenta sempre com argumentação técnica, jurídica. Não
há dúvidas de que Eduardo Cardozo está léguas à frente da Janaína Paschoal. Mas o fato é que se tratou de um
processo político. O PT até ensaiou uma reação naquela manifestação da Avenida Paulista em que o Lula foi e acho
que se surpreendeu com o número de pessoas que compareceu. Possivelmente, se chamasse outras na sequência,
levaria muitas pessoas às ruas. Eles poderiam tonificar a musculatura das manifestações, se o PT quisesse de fato
convocar suas bases sindicais via CUT, se fizesse discursos, ainda que demagógicos, mas se apresentando como
defensor dos direitos contra o golpe. A gente nunca vai saber se teria conseguido impedir o golpe, mas poderia ter
criado um movimento de resistência. Mas me parece que o PT temeu muito mais a conflagração social que poderia
sair do controle, que poderia ameaçar a própria democracia blindada. O PT prefere a deposição a acirrar o processo
de luta de classes no país.

No pronunciamento do dia 31, Michel Temer afirmou que os alicerces do seu governo serão “eficiência
administrativa, retomada do crescimento econômico, geração de emprego, segurança jurídica, ampliação dos
programas sociais e a pacificação do país”. O que na sua opinião será a ‘pacificação’ do país?

O que o Temer deseja é que essa polarização social que se acirrou já nos últimos dois anos se encerre. Se a gente
quiser ousar na explicação, a opção política da burguesia foi subordinar a economia à política. Eles sabiam que a
própria dinâmica de recuperação da economia seria atrapalhada pelo processo golpista, mas optaram por isso. E
agora têm que inverter. Agora tem que subordinar a política à economia novamente. E tem que ser rápido. Tudo que
o capital deseja é que a classe trabalhadora aceite perder direitos em nome de uma repactuação nacional.

Ou aceitem por medo da ‘pacificação’?

Sim. Se avizinha uma combinação cada vez maior de contrarreformas e recrudescimento policial. Nada do que o
Temer fale pode mudar muito isso porque o fato é que ele foi colocado lá para isso, para realizar o ajuste, as
contrarreformas em uma intensidade maior do que o PT. E, para fazer isso, ele vai ter que realizar os ataques
propriamente ditos e combater as resistências aos ataques. E daí o aumento da repressão, que já vem ocorrendo desde
que ele tomou posse, tende a crescer. Talvez possa ser uma pacificação militarizada. É a paz que se origina da ponta
do fuzil.

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