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A história oral na investigação das práticas sociais vividas

por trabalhadores em Tapuirama, Uberlândia-MG.

Juliana Lemes Inácio

Mestranda em História no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Este
artigo se refere às reflexões que venho realizando na pesquisa do Mestrado. Esse trabalho é orientado pela Profª Drª
Heloisa Helena Pacheco Cardoso e conta com bolsa CAPES.
julianalemesinacio@yahoo.com.br

Resumo Abstract
O presente artigo aborda discussões a respeito dos This article approaches discussions regarding the
modos de vida de moradores no Distrito de citizens’ way of life of Tapuirama’s District and it
Tapuirama e tem como foco de análise as focus on the experiences of workers from Bahia.
experiências de trabalhadores vindos da Bahia. Through out the spoken history the aim is to
Por meio da história oral, busca-se problematizar analyse the problem brought by the elaborated
os significados elaborados pelos sujeitos para suas meanings to the subjects for their social practices,
práticas sociais, valorizando as suas narrativas na giving value to their narratives in the
composição de outras memórias sobre os viveres composition of other memories on them urban live
urbanos em Uberlândia. in Uberlândia.
Palavras-Chave: História Oral. Memória. Keywords: Spoken History. Memories. Work.
Trabalho.

Antes de iniciar o curso de história, incomodava- sentimentos e atitudes das classes trabalhadoras.
me o fato de tantas pessoas se mudarem para um Algumas discussões apontadas pela História Social
lugar tão pequeno como o Distrito de Tapuirama, – traduzidas nas perspectivas apresentadas por
Uberlândia-MG. Ao entrar em contato com discussões alguns autores como E. P. Thompson, Richard
acadêmicas, as relações de trabalho experimentadas Hoggart, Stuart Hall, Josep Fontana entre outros2 –
pelos sujeitos sociais foram as que me chamaram a têm me auxiliado no enfrentamento de parte de
atenção 1 auxiliando-me na escolha do tema de nosso desafio enquanto historiadores ao indicar mais
pesquisa. As leituras realizadas me instigaram a questões do que sugerir respostas, fazendo-me
problematizar o deslocamento de trabalhadores indagar sobre o que quero com este trabalho e sobre
vindos da Bahia e as maneiras como reconstroem qual a perspectiva política deste.
seus viveres em Tapuirama. Partindo desse lugar comum, por meio do
Nesse sentido, o interesse em pesquisar a cultura contanto com as fontes, com discussões
dessas pessoas compõe uma perspectiva política e de desenvolvidas com professores e colegas, reflito sobre
história preocupada com questões do social, com a dinâmica de relações vividas pela classe

1
Na monografia apresentada como trabalho de conclusão do curso de graduação em História discuti o dia-a-dia de trabalho desses sujeitos,
bem como o modo de vida que levavam na Bahia e a sua opção por se mudar para Minas Gerais. Muitas questões foram suscitadas ao longo
e ao término da pesquisa inicial. Ver: INÁCIO, Juliana Lemes. Trabalhadores nordestinos em Tapuirama: memórias, trajetórias e
viveres (1993-2005). Monografia (Graduação em História) – Instituto de História, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia,
2005. Pesquisa orientada pela Profª Drª Heloísa Helena Pacheco Cardoso.
2
Ver: HALL, Stuart. Notas sobre a desconstrução do popular. In: ___. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte:
UFMG; UNESCO, 2003, p. 231-247; HOGGART, Richard. Quem são as classes trabalhadoras? In: ___. As utilizações da cultura; aspectos
da vida cultural da classe trabalhadora. Lisboa: Editorial Presença, 1973, p. 15-32; Idem. “Nós” e “Eles”. In: ___. p. 87-122; THOMPSON,
E. P. Miséria da teoria ou um planetário de erros; uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981; FONTANA,
Josep. Por uma história de todos; em busca de novos caminhos. In: ___. A história dos homens. Bauru-SP: EDUSC, 2004, p. 439-490.

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trabalhadora. Ao abordar os viveres desses sujeitos Uberlândia e conforme censo demográfico do IBGE
na cidade, questiono sobre os significados atribuídos 2000 3 ele conta com 2.126 habitantes entre
por eles às relações experimentadas, investigando população rural e urbana. O município de
as maneiras como, ao viver e compartilhar práticas Uberlândia possui ainda outros três Distritos:
sociais, eles imprimem seus valores, visões de mundo Martinésia, Cruzeiro dos Peixotos e Miraporanga.
e atitudes: como estas relações se apresentam aos Tapuirama constitui-se em um espaço social onde
sujeitos sociais? muitas vezes trabalho e vida se confundem. A
Trabalhadores vindos de Jacobina-BA têm se agricultura caracteriza a economia do lugar e
deslocado para o Distrito de Tapuirama desde os anos permeia o modo de viver das pessoas. A maioria dos
1990 atraídos por promessas de “melhorar de vida” habitantes trabalha em fazendas na região onde
e pelo convite de familiares que ali já residiam. Desde lidam em lavouras, granjas, galpões de
então, com suas atitudes, valores, modos de viver e armazenamento de grãos, produção de leite, engorda
trabalhar, estes sujeitos passaram a compor o de gado, plantio de hortaliças, reciclagens, extração
cenário urbano da cidade. Por meio da história oral, de resinas entre outros. O espaço urbano do Distrito
tem sido possível problematizar o deslocamento conta com ruas asfaltadas, sistema de água e esgoto,
dessas pessoas, bem como as maneiras como elas energia elétrica e serviços básicos mantidos pela
reconstroem suas trajetórias, significam seus Prefeitura Municipal de Uberlândia, como limpeza
viveres e elaboram outras memórias e histórias de ruas, coleta de lixo e transporte coletivo urbano
sobre a cidade na qual vivem atualmente. através de uma linha que liga o Distrito à cidade.
Empregados pela JPL Resinas (Jurandir Proença No cenário urbano de Tapuirama existem bares,
Lopes Resinas), produtora rural que atua no sacolões, farmácia, escolas de ensino médio e
município de Uberlândia desde 1993, estes fundamental, posto de combustível, igrejas de
trabalhadores vêm trabalhar na atividade de diversas doutrinas, açougues, padarias, centro de
extração de resinas. O processo de trabalho ao qual saúde/PSF, ginásio poli-esportivo e pequenos
eles se dedicam é realizado manualmente em meio comércios que atendem minimamente às primeiras
às florestas de árvore de Pinus e consiste em extrair necessidades das pessoas. O acesso a serviços
a resina através de um pequeno risco feito no tronco bancários, judiciais, ao ensino superior e a hospitais
da árvore – um processo parecido com a extração de não é disponibilizado em nenhum dos Distritos e para
látex das seringueiras. Este material é vendido para usufruí-los os moradores geralmente se deslocam
a fábrica Resinas Tropicais Indústrias e Comércio para Uberlândia.
que possui instalações nas proximidades de Ao produzir narrativas junto aos trabalhadores/
Tapuirama e que prepara boa parte do produto para moradores de Tapuirama, busco compreender as
exportação a países europeus. Na fábrica, depois de suas práticas sociais, as maneiras como significam
extraída pelas mãos dos trabalhadores, a resina é suas experiências e expressam visões de mundo
transformada em duas substâncias, o breu e a delineando outras memórias e histórias vividas na
terebentina, a partir das quais se produz gomas de cidade. Nesse sentido, o diálogo com as fontes orais e
mascar, tintas, ceras, solventes entre outros. com a imprensa local permite perceber as trajetórias
Os trabalhadores a que me refiro vivem nas vividas por essas pessoas inseridas em uma dinâmica
chamadas “vilas dos baianos” localizadas no espaço social maior, possibilitando o entendimento das
urbano do Distrito de Tapuirama, contam com casas relações experimentadas pelos trabalhadores sem
construídas e cedidas a eles pela produtora rural. perder de vista as relações de poder, as tensões sociais
Diariamente, são transportados em um ônibus da e as disputas por pertencimento.
empresa deslocando-se de Tapuirama para a Floresta Com estas preocupações, dedico-me à produção
do Lobo, local de trabalho próximo à Uberlândia. de narrativas. Tenho produzido entrevistas com
O Distrito de Tapuirama dista 38 km de sujeitos sociais que viveram (vivem) diferentes

3
Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico 2000. Dados: BDI 2006. Disponível em: <http://
www.uberlandia.mg.gov.br>. Acesso em: jan. 2007.

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experiências. A perspectiva é ter em mãos um “entrando na história, os historiadores devem
conjunto de enredos que expressem os modos como permitir as fontes entrarem no conto com seus
os sujeitos compreendem as relações vividas, as discursos autônomos”4 leva à reflexão sobre a posição
maneiras como as pessoas reagem ou não às do historiador na produção, utilização das
mudanças nos conflitos e desafios cotidianos. entrevistas e compreensão crítica dos processos
Entrevistei trabalhadores jovens e de mais idade; vividos. Até que ponto temos deixado claro para os
alguns que vivem em Tapuirama há onze anos e leitores as nossas interferências, a nossa
outros há sete meses, trabalhadores que hoje em dia subjetividade e o respeito à subjetividade do
já não se encontram na extração de resinas e narrador, fazendo com que esse diálogo se insira na
moradores “naturais” do Distrito. produção do conhecimento?
No trabalho com a imprensa, investigo os jornais Nessa direção, atentar para o lugar de onde o
Correio a partir de 1993, quando os trabalhadores sujeito fala e quem é este sujeito torna-se essencial
começaram a chegar da Bahia. Este periódico para a compreensão do enredo. Conheci o Sr.
pertence à classe dominante, ou seja, aos grandes Anaílton e a Sra. Ana Paula, sua esposa, por
industriais e produtores rurais da cidade. Além disso, intermédio de um trabalhador que eu já conhecia
ele apóia politicamente os partidos de direita da desde a pesquisa de graduação, o Sr. José Carlos.
cidade. No jornal Primeira Hora, investigo os anos Naquele momento, eu buscava conhecer um
1982 a 1988, período de circulação do periódico e trabalhador que tivesse vivido outras experiências
que consta no acervo do Arquivo Público Municipal de trabalho no Distrito, além da lida com extração
de Uberlândia. Este jornal era ligado a grupos que de resinas. O Sr. José Carlos me indicou o Sr.
apoiavam o governo PMDB na cidade e circulou nos Anaílton, eu fui até a sua residência, apresentei-me
anos 1980 durante o governo do então prefeito Zaire e também a minha pesquisa, e marcamos uma
Rezende, considerado um governo de oposição entrevista.
naquele período. O Sr. Anaílton e a sua esposa trabalham na
Nas narrativas, uma multiplicidade de tensões atividade de extração de resinas, porém em tarefas
sociais e sentimentos são narrados. No entanto, diferenciadas. A Sra. Ana Paula faz a coleta, assim
quando iniciei a pesquisa, pressupostos que trazia como outras mulheres, pois esta é considerada a
comigo me impediam de partir de problemáticas etapa mais leve do processo. O seu trabalho consiste
trazidas pelas fontes orais, ou seja, pelos sujeitos em retirar os saquinhos que ficam presos ao tronco
sociais. Carregava uma visão linear. O passado das árvores para reter a goma de resina e depois
parecia ter mais importância que o presente, pois as levá-los até os chamados carreadores, ou seja, as
questões que eu colocava à pesquisa anulavam a pequenas estradas que cortam a floresta por onde
relação presente/passado explicitada pelos próprios circulam os automóveis e os caminhões que coletarão
sujeitos históricos. Mas, por meio do diálogo com as os latões com os saquinhos. O Sr. Anaílton trabalha
discussões propostas pela História Social e reflexões em uma turma que realiza praticamente todas as
em torno do modo como trabalhamos a história oral etapas da extração de resinas: raspam a casca do
em nossas investigações – através de leituras, de tronco, fazem o corte (a estria) e a raspa de goma de
discussões e de muito ouvir as gravações – passei a resina.
perceber a necessidade de dar mais espaço aos Havia procurado o Sr. Anaílton a fim de
entrevistados nas nossas pesquisas. compreender relações vividas na cidade, no entanto,
Dar mais espaço aos entrevistados significa as experiências de sua esposa, ou seja, da família
problematizar os momentos, os espaços e os eventos como um todo, apresentaram-se como relevantes no
elencados pelos sujeitos. Ao analisar criticamente a seu enredo. Ao longo dessa investigação, percebi que
produção das entrevistas evitamos partir de os sujeitos se referem às relações familiares com
definições e caminhos postos a priori. Compartilhar freqüência, e eu enquanto pesquisadora não podia
com Alessandro Portelli a afirmação de que ignorar este fato, precisava problematizar aquilo

4
PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. Revista Projeto História, São Paulo, PUC, n. 14, 1997, p. 39

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que as pessoas apontam e não somente as minhas questão de declarar que o ato de deixar a filha aos
preocupações. Por este motivo, retornei a casa do Sr. cuidados da madrinha não é motivo para ela se
Anaílton, desta vez eu queria ouvir o que a sua preocupar, insinuando que isso não diminui a sua
esposa narraria a respeito do seu modo de viver na responsabilidade como mãe, apontando valores que
cidade: permeiam os viveres dos trabalhadores. Na sua
elaboração, a filha fica com a madrinha porque ela
Juliana: Estou procurando entender um pouco é uma boa pessoa, motivo pelo qual a criança esteve
mais sobre o modo de vida dos moradores no com ela desde quando era pequena e aprendeu a
Distrito. Eu quero saber sobre seu dia-a-dia, andar.
quando você chega do serviço... Tendo em mente que uma entrevista trata-se de
Paula: Nossa! O meu dia-a-dia é corrido demais. uma troca entre dois sujeitos6, percebo que as visões
Levanto cinco da manhã, aí tem que fazer de mundo expressadas pela Sra. Ana Paula, devido
marmita né, aí vou pro trabalho, chego as cinco a minha presença e às questões colocadas por mim,
da tarde, aí tem a casa pra organizar, a janta não devem ser ignoradas, mas articuladas ao seu
pra fazer, dever (de escola) pra ajudar menino enredo. Pensando nisso, ao analisar o seu relato,
fazer. É uma luta. visualizam-se brechas para perceber os modos como
Juliana: Com quem sua filha fica? os sujeitos se vêem inseridos na dinâmica social e as
Paula: Com a madrinha dela, mas é uma ótima maneiras pelas quais eles vão dando formas à sua
pessoa. É a segunda mãe pra ela. Pra falar a fala e interpretando as tensões sociais. O modo de
verdade eu acho que ela fica melhor com a vida na cidade se apresenta a Sra. Ana Paula como
madrinha do que comigo. Porque na realidade um modo de luta, em função de superar os desafios
quem criou a minha filha foi ela, porque desde cotidianos. A sua filha, assim como os filhos de tantos
um aninho e meio de idade ela fica com ela. (...) outros trabalhadores nas cidades brasileiras, ficam
Aí ela aprendeu a andar com a madrinha dela, aos cuidados de uma pessoa de confiança por não
nasceu os dentinho com a madrinha dela, então terem onde deixá-las.
pra ela é a segunda mãe. E eu num fico As relações de poder que são impostas aos sujeitos,
preocupada de jeito nenhum porque eu sei que interferem e transformam o seu modo de viver. A
ela está em boas mãos, é uma ótima pessoa. 5 ausência de serviços públicos com qualidade nos
Distritos, bem como em outros setores da cidade, faz
O dia-a-dia “corrido demais” é na memória com que as pessoas criem estratégias em busca de
elaborada pela Sra. Ana Paula, uma luta. Percebi garantir os direitos de trabalhar, manter os filhos
que ao narrar ela estava preocupada em construir na escola e a esperança de um futuro melhor. A
para mim uma imagem dela enquanto mãe, dona memória construída sobre a realidade vivida na
de casa, uma pessoa trabalhadora que procura cidade é permeada por embates que se apresentam
superar as dificuldades vividas. Ao analisar a sua a Sra. Ana Paula no seu viver cotidiano,
fala, notei os modos como os trabalhadores/ evidenciados no deixar sua filha aos cuidados da
moradores de Tapuirama se relacionam com as comadre.
pessoas, especialmente com familiares, ajudando-se A Prefeitura Municipal de Uberlândia mantém
mutuamente, apontando para a existência de um uma creche em Tapuirama. Em 2005, ela possuía
sentimento de pertencimento a um grupo. 40 vagas, quantidade insuficiente para atender a
Além disso, ao narrar, a Sra. Ana Paula sabe de todas as famílias do Distrito que necessitam do
onde e para quem fala e reforça valores e imagens serviço. A inauguração da creche em 1988
elaboradas em função desse lugar. Porém, sem saber compunha os interesses do poder público municipal,
ao certo se podia confiar na entrevistadora, ela faz e em ano eleitoral, a inauguração do prédio foi

5
Entrevista concedida em 20 ago 2006 pela Sra. Ana Paula dos Santos da Silva, casada, 29 anos, tem uma filha e está em Tapuirama há dez
anos.
6
PORTELLI, Alessandro. Forma e significado na história oral; a pesquisa como um experimento em igualdade. Revista Projeto História, São
Paulo, PUC, n. 14, p. 07-24, 1997.

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notícia de destaque na primeira página do jornal características de atraso – para projetar e reforçar
Primeira Hora . O jornal prioriza noticiar que o
7
a imagem do urbano que desejam 10 . Ou seja, a
governo havia inaugurado 46 creches na cidade imagem de uma cidade progressista e ordeira. No
além da inauguração da creche do Distrito de entanto, essas imagens vão sendo difundidas pela
Tapuirama. Os assuntos ligados às questões sociais, imprensa e algumas vezes são compartilhadas pelas
especialmente àquelas vividas nos Distritos, pessoas e repassadas para familiares e amigos. Ao
geralmente têm sido objeto de preocupação do poder entender os Distritos enquanto áreas rurais, o poder
público municipal em anos de eleições. público municipal justifica a falta de benfeitorias
No entanto, para além da tentativa de garantir urbanas, a falta de vitalização de empregos e direitos
a reeleição do partido político, o qual o jornal apoiava, sociais (creches, escolas, atendimento médico). Mas,
se evidenciam maneiras como vão sendo construídas colocá-lo como cidade implica em pensar que as
as memórias ditas oficiais sobre a cidade . O jornal 8
desigualdades aparecem, bem como as disputas que
se preocupou em frisar que naquela administração se travam para se ter direito ela.
municipal “o homem rural é tratado como cidadão Compreender os sujeitos históricos “como pessoas
de primeira categoria, com direito a todos os vivas, que se fazem histórica e culturalmente, num
benefícios que desfruta a comunidade urbana” 9. O processo em que as dimensões individual e social são
próprio jornal fornece pistas das maneiras como ele, e estão intrinsecamente imbricadas” 11 abre
enquanto agente social, compreende as relações que possibilidades para compreensão das maneiras como
se desenvolvem na cidade. A cidade de Uberlândia é outras memórias e histórias vão sendo construídas
apresentada como o lugar onde o homem rural nas relações vividas na cidade por meio das fontes
desfruta dos mesmos benefícios que a comunidade orais. Essa perspectiva distancia-nos do risco de opor
urbana, pois na sua concepção, nela ele é tratado uma memória a outra, pois visa compreender as
como um cidadão de primeira categoria. O periódico maneiras como as pessoas se relacionam e,
ainda enfatiza que com o prosseguimento do governo relacionando-se, como memórias são
peemedebista na cidade “Tapuirama continuará a compartilhadas por elas, elaboradas na
receber benefícios que a tornará com características multiplicidade de práticas sociais vividas ou outrora
de uma grande cidade”. Nota-se como a imprensa silenciadas.
dicotomiza as relações entre campo e cidade. Os As maneiras como as pessoas elaboram e narram
Distritos são considerados áreas rurais. Por quê? Por as expectativas em torno de como seria o viver no
qual razão distinguem homem rural e urbano? Esse município de Uberlândia antes de sua mudança –
rural não constitui parte do município? aliada às formas como compreendem as trajetórias
Pelo que se pode compreender a partir da análise vividas no seu lugar de origem – expressam a visão
de um conjunto de matérias veiculadas pelo jornal, de cidade elaborada por elas a partir das relações
existe a intenção por parte do poder público experimentadas no presente. Nesse sentido, estes
municipal em cristalizar uma imagem do rural aspectos não poderiam ser negligenciados, pois
enquanto um lugar tranqüilo – e algumas vezes com compõem o enredo de cada trabalhador entrevistado.

7
Tapuiarama ganha a primeira creche construída na zona rural. Jornal Primeira Hora. Uberlândia, 16 set. 1988.
8
As discussões apresentadas por Laura A. Maciel e por Marta Emisia J. Barbosa em torno da utilização da imprensa têm contribuído para
o desenvolvimento deste trabalho à medida que a encaram enquanto agente social com interesses definidos na sociedade. A leitura de
seus trabalhos auxilia a perceber como a imprensa tece articulações, age e reage frente às transformações, sendo ainda um dos espaços
privilegiados para a construção de memórias. Ver MACIEL, Laura Antunes. Produzindo notícias e histórias: algumas questões em torno
da relação telégrafo e imprensa – 1880/1920. In: FENELON, Déa R. et al (Org.). Muitas memórias, outras histórias. São Paulo: Olho
D’Água, 2004; BARBOSA, Marta Emisia J. Entre a palavra e a imagem: o sertão da fome. In: ____. Famintos do Ceará – Imprensa e Fotografia
entre o final do século XIX e o início do século XX. Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2004.
[Mimeo]
9
Distrito de Tapuirama tem a primeira creche rural. Jornal Primeira Hora. Uberlândia, 16 set. 1988. (grifos meus).
10
Williams parte de discussões presentes e retorna ao passado inglês em que percebe existir a perspectiva de que a vida no campo está
perdendo suas características para mostrar como o campo tem sido visto com o olhar da cidade. Dessa forma, o autor vai evidenciando
como a dicotomia entre campo e cidade são úteis para promover comparações superficiais e impedir comparações reais. Ver: WILLIAMS,
Raymond. O campo e a cidade na história e na literatura. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 111-117.
11
KHOURY, Yara Aun. Narrativas orais na investigação da História Social. Revista Projeto História, São Paulo, PUC, 2001, p.80.

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Juliana: Quando foi pra você vir pra Tapuirama, motivos que a fez relutar em aceitar a proposta de
você tinha alguma expectativa. Por exemplo, acompanhar o esposo até Uberlândia, lugar que
você ficou sabendo que viria para Tapuirama, prometia trabalho, dinheiro e outras oportunidades.
como você imaginava que seria? Ainda destaca-se nessa narrativa o fato de que
Paula: Pois é, ele (o esposo) veio foi de pressa, né, depois de acomodados em Tapuirama, ao viver e se
a gente tinha acho que nove meses de casado se relacionarem, outras percepções são elaboradas pelos
eu não me engano, aí surgiu. As pessoas falando: trabalhadores sobre a cidade. A Sra. Ana Paula diz
‘ah, a gente vamos para Uberlândia, pro ter conhecido uma cidade que lhe despertou o
Uberlândia, tem um trabalho lá é bom’. Ah! Fez sentimento de medo. Na memória que ela constrói,
aquela coisa, né, ‘bom demais, ganha bem eu vou! a moradia era precária e as pessoas não pareciam
Vamos Anaílton, eu digo vamos’. Aí foi, eu fiquei ser amigáveis com aqueles que vinham de fora.
lá sozinha. Eu estava com dois meses grávida, aí Depois de compreender que iria morar em uma casa
um mês e pouquinho ele ligou: ‘você quer vim de madeira, que antes não se apresentava a ela como
pra cá eu mando dinheiro pra você vim’. Aí eu confortável, o relacionamento com os moradores de
fiquei pensando, ‘ah, eu num vou não. Eu num Tapuirama se mostrou conflituoso “porque os
vou não porque é distante, né’ e eu grávida eu mineiro tinham preconceito”.
num tinha experiência nenhuma de gravidez, Ter claro quem são os sujeitos com os quais
era a primeira. ‘Acho que eu num vou não’ aí a dialogamos auxilia-nos na compreensão dos seus
minha mãe: ‘vai minha menina a gente tem que relatos. A Sra. Ana Paula e o Sr. Anaílton vêm de
estar onde o marido está, vai. Ok, então eu vou’. família humilde. O trabalho encontrado na Bahia
Quando eu cheguei aqui nossa foi uma tristeza, era geralmente nas lavouras familiares em que era
eu cheguei eu morava lá em baixo, aí os necessário produzir para a venda e para o consumo
barraquinho é tudo de pau tipo estes daqui, eu doméstico. Essas pessoas também vêm de
fiquei com medo! Digo eu num vou morar aqui experiências de trabalho com o sisal, em pedreiras,
não, isso aqui se vir uma chuva bem forte vai na construção civil, entre outros, no entanto, um
derrubar, eu quero me embora. ‘Não Paula, em traço que caracteriza muitos dos trabalhadores que
tanto tempo que isso aqui existe e nunca caiu’, eu se deslocaram para Tapuirama, bem como para
falei, ‘então tá, vamo ficar’. Mas eu achava ruim outras cidades no Brasil, é o fato de serem itinerantes.
demais, eu num conhecia ninguém as pessoas Vários sujeitos experimentaram outras experiências
quase não conversavam com a gente. E aquele de serviços em diferentes cidades e também em
preconceito de baiano, né, porque os mineiro Tapuirama.
tinham preconceito, agora acho que eles não tem O Sr. Anaílton diz que quando veio pensava em
mais, mas antigamente eles tinham, aqueles ficar somente três ou quatro meses e retornar, pois
preconceitos bobo. 12 os trabalhos que realizava anteriormente
guardavam esta característica. Além disso, ele,
Um primeiro aspecto relevante que se configura assim como outros trabalhadores, afirma ter ido para
na fala da entrevistada diz respeito aos modos como “todo canto em busca de emprego”. Segundo ele, se
ao narrar os sujeitos vão construindo acostumou com o serviço e por isto está na extração
temporalidades, expressando situações que lhes de resinas até hoje. Porém, ao longo desses onze anos
interessam (e que muitas vezes não coincidem com de moradia em Tapuirama, dois deles foram vividos
as preocupações dos pesquisadores). A maneira distante do trabalho nas florestas de Pinus. Em
encontrada pela Sra. Ana Paula para marcar o tempo determinado momento, o Sr. Anaílton se desligou
em que a família decidiu se mudar da Bahia para da empresa. Trabalhou em lavouras e carvoarias,
Minas Gerais refere-se ao primeiro ano de casada, inclusive no estado de Goiás, apesar de continuar
tempo em que estava grávida pela primeira vez, e residindo no Distrito mineiro, e relatou que pretendia
não a alguma data precisa. A gravidez foi um dos voltar a trabalhar nas florestas de Pinus.

12
Sra. Ana Paula dos Santos da Silva. Entrevistada em 20 ago. 2006.

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O viver precário acompanha a trajetória de Levando em consideração a análise do enredo do
trabalhadores na nossa sociedade e, por isso, eles Sr. Anaílton como um todo, a sua opção por
acabam, muitas vezes, se sujeitando a esse modo de permanecer e trabalhar no município de Uberlândia,
vida, porém sempre com a perspectiva de mudar, e até mesmo a arriscada busca por emprego em
procurando condições mais dignas. Esse movimento Goiás, expressa ainda o seu desejo de pertencer,
das pessoas indica que elas não se adaptam, escolhem assegurar o direito de trabalhar e ter acesso aos
ou justificam esse modo como vivem, mas que, ao direitos sociais. Quando o Sr. Anaílton me falava
contrário, vislumbram outras possibilidades de das notícias que havia recebido de sua mãe, quando
viverem para além do sobreviver. pensou em retornar para sua terra de origem, ele
A manifestação do desejo de retornar ao primeiro ainda completou:
emprego encontrado nas Minas Gerais me fez pensar
sobre tensões presentes nas relações de trabalho “Aí fiquei por aqui um tempo, aluguei uma
experimentadas. A carteira de trabalho assinada casinha. Aí, antes de vencê o aluguel o cara já
constitui-se em algo valorizado por estes sujeitos. Ao me pediu a casa né, antes de vencê o prazo que eu
analisar outras entrevistas notei que isso se deve tinha lá dentro... da casa ele já me pediu. Aí, por
talvez ao fato de que na Bahia a maioria dos serviços aquilo fiquei, fiquei chateado, aí eu comprei uma
executados por eles não assegurava este direito. O casinha pra mim, aí eu achei essa casinha aqui e
registro em carteira é traduzido pelos trabalhadores c o m p r e i ” 14
como segurança, direito, pertencimento. Quanto aos
outros trabalhos realizados pelo Sr. Anaílton no Hoje o Sr. Anaílton vive com a família em casa
Distrito (e até mesmo em Goiás) permanece a dúvida própria. Quando ele saiu da JPL Resinas, pagar
se eles ofereciam ou não carteira assinada, o que aluguel era a alternativa que tinha para garantir a
pode em parte explicar o desejo de retornar para a moradia. A despesa do aluguel era algo novo para o
atividade de extração de resinas na qual, como ele Sr. Anaílton, pois durante todo o tempo vivido em
mesmo diz, era “fichado”. Tapuirama ele teve a casa cedida pela empresa e,
Quando deixou a JPL Resinas, o Sr. Anaílton talvez por este motivo, com o dinheiro recebido na
afirma que pensou em voltar para a Bahia e chegou a rescisão do contrato ele priorizou a compra da sua
conversar com sua mãe por telefone que lhe teria casa própria. Pagar aluguel significou para ele estar
aconselhado “ó meu filho, se causo cê quiser ficar por sujeito à vontade do dono do imóvel. Através da
ai, cê pode ficar, quê a coisa por aqui não tá bão não maneira como ele narra, a instabilidade vivida era
pra serviço” 13 . O Sr. Anaílton, consciente das algo que lhe chateava, pois mesmo tendo o dinheiro
experiências que vivera em Jacobina e sob a para efetuar o pagamento do aluguel não podia
advertência da compreensão de realidade expressada contar com a casa nem fazer planos.
pela mãe optou por permanecer no Triângulo Mineiro. As marcas que os sujeitos imprimem à cidade,
Essa decisão não significa uma reação conformista transformando-a ou sendo transformados nas
ou passiva frente à “frustração” vivida em Tapuirama relações vividas, seja através da luta por possuir
ao encontrar-se desempregado, mas antes a expressão uma casa ou por viver próximo de familiares e
da consciência do lugar que ocupa na sociedade e o amigos, vão dimensionando os modos como eles
receio de que a situação possa se complicar. Dessa compreendem os espaços sociais. Quando perguntei
forma, as reações dos sujeitos frente aos jogos de poder a Sra. Ana Paula o que eles pretendem fazer quando
nos quais estão envolvidos, a desigualdade social e o ciclo da extração de resinas nessa região terminar15,
exploração capitalista, vão sendo caracterizadas. ela narrou o seguinte:

13
Sr. Anaílton da Rocha Silva, 31 anos, casado, tem uma filha, está em Tapuirama há dez anos. Entrevistado em 13 ago. 2006.
14
Sr. Anaílton da Rocha Silva. Entrevistado em 13 ago. 2006.
15
O processo de extração de resinas está interligado ao ciclo natural de plantio, crescimento, produção de material e corte das árvores.
A expectativa é que dentro de aproximadamente dois anos a Floresta do Lobo, lugar onde atuam os trabalhadores contratados pela JPL
Resinas que vivem em Tapuirama, terá a sua fonte esgotada. O produtor rural possui outras frentes de trabalho espalhadas pelo estado
de Minas Gerais e São Paulo. Aqueles trabalhadores que desejarem se mudar para essas regiões possivelmente serão contratados, mas ao
contrário, a expectativa é que eles sejam demitidos.

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“Eu num sei se a gente vai continuar, mais eu Interessou-me neste artigo apontar modos como
penso que vamo continuar porque a casa é da a história oral tem contribuído com o
gente né, a gente já comprou uma casa aqui então desenvolvimento dessa pesquisa na compreensão da
pra vendê de novo e ir pra lá (para Bahia) e sabe realidade vivida por estes trabalhadores na cidade.
que lá não vai dar certo, já desacostumou de lá, Assim, julgo ser relevante frisar a produção das
não tem o trabalho suficiente que a gente quer fontes orais, a influência do entrevistador e do
né, então acho que é capaz de ficar por aqui entrevistado na pesquisa. Nesse sentido, é
mesmo, é capaz que arruma outro serviço né?” 16
importante ressaltar que quando fazia a pesquisa de
graduação tinha a preocupação de entrevistar um
O desejo de continuar em Tapuirama, expressado trabalhador baiano da extração de resinas que não
pela fala da Sra. Ana Paula, é mesclado ao sentimento residisse mais nos alojamentos da empresa. Por
de pertencimento. Ter a casa própria é a tradução intermédio de alguns amigos, conheci o Sr. Adonel e
das suas expectativas de futuro. Na memória que sua família. Produzimos duas entrevistas, uma
elabora, voltar para a Bahia não seria seguro, pois naquela ocasião e outra no curso de mestrado quando
não encontrariam trabalho suficiente. Quando a voltei até a sua residência com outras preocupações.
questionei sobre as expectativas que traziam consigo Assim como o Sr. Anaílton, o Sr. Adonel
quando se mudaram ela frisou: vivenciou diferentes experiências de trabalho nas
mais diferentes cidades e estados brasileiros, já
“Era, melhorar de vida, a gente tinha acabado de trabalhou em Goiás, Minas Gerais, Bahia, São Paulo
casar e num, a gente num tinha tudo, então eu e Mato Grosso em construções civis, barbearias, corte
queria comprar uma televisão, queria comprar de madeira, entre outros. Nesses lugares, o Sr.
som, né queria comprar a casa. Porque quando a Adonel afirma não ter permanecido muito tempo.
gente casou eu fui morar na casa do meu sogro, Em Tapuirama, talvez o fato de ter a carteira
ele tinha duas casa ele deu uma pra gente, então assinada e ter construído a casa própria o tenha
eu queria comprar uma casa e a gente conseguiu, influenciado a permanecer. Quando voltei a
eu comprei tudo o que a gente queria televisão, entrevistá-lo pela segunda vez, o questionei sobre o
som né... a casa que era o mais importante” 17 tipo de relacionamento que ele mantém com os
familiares que ficaram na Bahia, ele afirmou:
A Sra. Ana Paula valorizou as relações estabeleci-
das em Uberlândia em detrimento daquelas vividas Juliana: O senhor nunca voltou lá?
na Bahia. Em Tapuirama, ela via possibilidades de Adonel: Já veio um deles, já veio deles aqui, já
“melhorar de vida”. Essa melhora de vida é veio sobrinho, já veio primo, veio sobrinho dela
traduzida pela possibilidade de comprar uma ai (da esposa) até em lugar de sobrinho meu. Mais
televisão, um som e uma casa. Essas experiências eu mesmo nunca fui não. Nunca fui porque a
trazem a dimensão das relações de classe vividas da dificuldade é grande, eu imagino se eu tirar vale
maneira como a sociedade brasileira e o sistema da firma pra ir eu fico devendo né, se eu pegar
capitalista se organizam ao optar por não disputar um férias pra ir eu perco de pagar, que a minha
com os trabalhadores no seu lugar de origem. casa eu deixo pra passar sempre de seis em seis
Por que escolher trabalhadores vindos de fora? A mês eu pago né, esse mês eu já tô, esse ano eu já
que estes trabalhadores estão sujeitos fora de sua tô atrasado, né porque eu tirei minhas férias eu
região de origem? Estas são algumas questões que me tive que fazer outras coisas ai num deu pra, pra
movem na pesquisa, mas que, no entanto, não serão pagar eu deixo de seis em seis mês então eu sempre
discutidas neste texto devido ao fato de estarem em pagar minha casa nas férias no décimo né. 18
análise, em discussão e em processo de amadureci-
mento.

16
Sra. Ana Paula dos Santos da Silva. Entrevistada em 20/08/2006.
17
Idem
18
Sr. Adonel Ventura de Lima, 53 anos, casado, tem quatro filhos, está em Tapuirama há dez anos. Entrevistado em 09 set. 2006.

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O Sr. Adonel extrapola a questão colocada a ele. trabalhadores que hoje lutam por pertencer à cidade
Ou seja, para além de afirmar nunca ter voltado à através da garantia da moradia.
Bahia nesses dez anos vividos no município de Preocupada com o papel político do historiador,
Uberlândia, de informar que já vieram sobrinhos e procuro pôr em movimento a relação presente,
primos para visitá-lo e de dizer que mantém contato passado e futuro em história com a perspectiva de
regular com os familiares através de telefonemas, contribuir minimamente para a construção de uma
ele colocou questões que lhe interessavam. A partir sociedade mais justa e igualitária. No entanto, não
de uma questão aparentemente simples, o Sr. Adonel tenho a pretensão de esgotar a temática ou de dar
direcionou a conversa para outro aspecto da respostas fechadas às questões postas ao longo da
realidade na qual ele está inserido. O motivo pelo pesquisa.
qual ele não vai a Bahia visitar os familiares expressa Nesse caminhar, o entendimento da noção de
práticas sociais vividas. Ao relatar que a cultura enquanto modo de luta 20 , um campo de
“dificuldade é grande” ele transmite o entendimento disputas e de relações conflituosas tem me auxiliado
das maneiras como as relações sociais se apresentam na percepção da importância de se compreender as
a ele. O dinheiro das férias e do décimo terceiro estão práticas sociais vividas pelos sujeitos. A história oral
sendo utilizados para pagar o financiamento da casa se apresenta como um instrumento metodológico
conseguida através do programa de habitação da relevante para a compreensão das experiências
Prefeitura Municipal de Uberlândia. E “a dificuldade culturais vividas – e a sua problematização, para
grande” se materializa no risco de ficar devendo para historiadores conscientes dos nossos lugares e das
o patrão ou atrasar as parcelas do imóvel. nossas preocupações – aponta caminhos para
Quando o questionei sobre a possibilidade de enxergarmos na cultura possibilidades de mudanças.
voltar para a Bahia, se o serviço na extração de
resinas terminar, ele disse:
Referências:
É sair assim, pra trabalhar né mais pra ir embora
daqui e largar casa aqui (inaudível) não. Eu BARBERO, Martín Jesús. Ideologia: os meios como
trabalho aí em algum lugar, ela trabalha na discurso do poder. In: ____. Ofício de cartógrafo:
travessias latino-americanas da comunicação na
prefeitura ela (a esposa trabalha nos serviços de
cultura. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p.45-107.
limpeza urbana), sabe? A num ser que mandem
ela ir embora aí quem sabe a gente pode até sair BARBOSA, Marta Emisia J. Entre a palavra e a
pra outro lugar né, mais eu num tenho vontade imagem: o sertão da fome. In: ____. Famintos do Ceará
de ir embora mesmo do estado não. 19 – Imprensa e Fotografia entre o final do século XIX e o
início do século XX. Tese (Doutorado) – Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2004.
A análise da composição do seu enredo me faz
[Mimeo].
perceber que a segurança do emprego que a esposa
possui na Prefeitura Municipal de Uberlândia aliada DISTRITO de Tapuirama tem a primeira creche
à conquista da casa são elementos dos quais o Sr. rural. Jornal Primeira Hora. Uberlândia, 16 set.
Adonel se utiliza para marcar e diferenciar as 1988.
relações vividas na cidade e como significa o seu
FONTANA, Josep. Por uma história de todos; em
pertencimento a ela. Ter assegurado os benefícios
busca de novos caminhos. In: _ _ __. A história dos
que um emprego fixo oferece – tais como a
homens. Bauru-SP: EDUSC, 2004, p. 439-490.
possibilidade de pagar as prestações da casa, apesar
das dificuldades presentes em sua memória – HALL, Stuart. Notas sobre a desconstrução do
constitui parte dos sonhos e desejos de muitos popular. In: ____. Da diáspora: identidades e

19
Sr. Adonel Ventura de Lima. Entrevistado em 09 set. 2006.
20
Ver reflexões em torno do termo cultura apresentadas em THOMPSON, E. P. Costume e Cultura. In: _______. Costumes em comum;
estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

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mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG; Déa R. et al (Org.). Muitas memórias, outras
UNESCO, 2003, p. 231-247. histórias. São Paulo: Olho D’Água, 2004,p.14-40.

HOGGART, Richard. Quem são as classes PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral
trabalhadoras? In: _ _ __. As utilizações da cultura; diferente. Revista Projeto História, São Paulo, PUC,
aspectos da vida cultural da classe trabalhadora. n. 14, 1997, p. 25-39.
Lisboa: Editorial Presença, 1973, p. 15-32; Idem.
“Nós” e “Eles”. In: _ _ __. p. 87-122; PORTELLI, Alessandro. Forma e significado na
história oral; a pesquisa como um experimento em
INÁCIO, Juliana Lemes. Trabalhadores nordestinos igualdade. Revista Projeto História, São Paulo, PUC,
em Tapuirama: memórias, trajetórias e viveres. n. 14, 1997, p. 07-24.
Monografia (Graduação em História) – INHIS,
Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, TAPUIRAMA ganha a primeira creche construída
2005. Pesquisa orientada pela Profª Drª Heloísa na zona rural. Jornal Primeira Hora. Uberlândia, 16
Helena Pacheco Cardoso. set. 1988.

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE. THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos


Censo Demográfico 2000. Dados: BDI 2006. sobre a cultura popular tradicional. São Paulo:
Disponível em: http//www.uberlandia.mg.gov.br. Companhia das Letras, 2005.
Acesso em: jan. 2007.
________. Miséria da teoria ou um planetário de erros;
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WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade na história
MACIEL, Laura Antunes. Produzindo notícias e e na literatura. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro:
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telégrafo e imprensa – 1880/1920. In: FENELON,

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