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À TRANSFORMAÇÃO DA SOCIEDADE
Rainer Kessler**
O
grande sociólogo alemão Max Weber (1864-1920), na “Anotação preliminar”
a sua obra “Estudos sobre a Sociologia da Religião” (Gesammelte Aufsätze
zur Religionssoziologie), fala de uma “relação de causalidade recíproca entre
ideia e interesses ideais, por um lado, e seus condicionamentos e interesses
econômico-político, por outro lado” (assim a formulação de Otto (2002, p. 64-
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* Recebido em: 20.12.2012. Aprovado em: 15.01.2013. Tradução feita por Haroldo Reimer
e Ivoni Richter Reimer.
** Teólogo e pastor (Mainz, Hamburg e Heidelberg), trabalhou na docência universitária em
Bethel/Bielefeld, Comunidad Evangélica Teológica/Santiago do Chile, universidade de
Marburg, Pontificia Universidad Xaveriana/Bogotá, University of Stellenbosch/África do
Sul, atualmente professor emérito. Autor de vários livros e outras produções intelectuais.
Um grupo étnico chamado “Israel” é mencionado pela primeira vez na estela do faraó
Mernepta, datada do ano de 1208 a.C. Não sabemos nada mais sobre estas pessoas
a não ser que viviam na região de Canaã e que se diferenciavam sensivelmente
Visto que o destaque de minhas exposições baseia na Torá como reação à transformação
da sociedade, quero resumir brevemente a posição dos profetas. Por detrás da
crítica de Amós pode-se reconhecer que o sistema de crédito é a causa principal
A FORMAÇÃO DA TORÁ
Faz parte dos conhecimentos gerais da história do direito o fato que o direito recém
deve ser assentado em forma escrita quando uma sociedade passa por trans-
formações e adentra em situação de crise. Em sociedades tradicionais e es-
táveis existe um direito costumeiro, de acordo com o qual se procede. O que
regula a vida é a noção do que é direito e bom. Mas ela permanece no pano
de fundo. Ela não precisa ser fixada por escrito. Ela pode se estabelecer em
narrativas míticas e épicas. Contudo, ali ela apenas apresenta algo como uma
ética implícita. Um exemplo clássico oriundo do mundo antigo são os épicos
de Homero. Eles contêm um ethos nobre implícito que cunha a sociedade
grega pré-clássica.
Se uma tal sociedade se transforma e se as transformações ligadas com isso forem
sentidas como injustas e hostis à vida, então emerge a crítica. No que se refere
a Israel, já me referi aos profetas. Em relação a Grécia, podemos mencionar
Hesíodo, um contemporâneo dos profetas israelitas do período do reinado.
Também ele denunciava, em sua poesia épica do ensino “Obras e Dias“, o
surgimento de relações sociais injustas e a falta de direito. Logo após ele,
então, apareceram homens como Dráco e Solón, legisladores, que codificaram
o até então vigente direito consuetudinário e, além disso, reagiram aos novos
desenvolvimentos sociais.
O Código da Aliança interliga regras que têm caráter puramente profano, como o direito de
depósito e o direito em caso de lesões corporais, com determinações puramente
religiosas, como as que se referem à construção do altar ou ao calendário das
Praticamente não temos nenhuma informação sobre como as relações sociais em Judá
se desenvolveram após o fim do Estado de Israel, no ano 722 a.C. O fato
de que também os profetas do final do século VII ainda criticam injustiças
sociais é um indício para o fato de que nem a crítica social dos profetas mais
antigos nem a formulação do Código da Aliança tivessem transformado as
relações para melhor. Por isto também não é de se estranhar que, no século
VII, foi realizada uma revisão do Código da Aliança. Ela se encontra no
Livro do Deuteronômio. 4
Eu seleciono apenas três rápidos exemplos para ilustrar no que consiste a revisão do
Código da Aliança por meio do Deuteronômio. No primeiro exemplo, uma
instituição agrária ancorada no Código da Aliança torna-se uma determinação
que trata diretamente do problema da dívida desproporcional. Em Ex 23,10-
11 trata-se de um pousio agrário dos campos que deve acontecer a cada sete
anos. Provavelmente isto é pensado assim que os campos não são plantados
de maneira rotativa, de forma que simultaneamente sempre permanece em
pousio uma sétima parte do total da área cultivável. No hebraico encontramos
a raiz šamat para o pousio. Dt 15,1-11 assume o ritmo dos sete anos e a raiz
šamat. Disto, contudo, ele cria um perdão de dívidas que deve acontecer a cada
sete anos, e exatamente num período igual para todos. Desta forma, o endivida-
mento dos agricultores deve ser restringido. Com isto, o camponês endividado
deve contar com o fato de que, no mais tardar em sete anos, ele pode contar
com a chance de recomeçar.
No segundo exemplo, a revisão não consiste na mudança de uma instituição agrária numa
instituição econômica de crédito, mas na complementação ou na evidenciação
de uma lei em vigor. Duas leis estão interligadas em Ex 21,2-11. A primeira,
Retomo mais uma vez Max Weber e sua concepção de uma relação casual recíproca.
Eu quis mostrar como o Código da Aliança e mais ainda o Deuteronômio, por
um lado, são definidos pelas condições econômicas da sociedade israelita na
medida em que eles reagem à transformação da sociedade. Por outro lado,
contudo, também eles estão cunhados por determinados conceitos ideológi-
cos. Aqui, eu principalmente destaquei a concepção de direito e justiça e a
forte referência a Deus que simultaneamente interliga o código legal com
a profecia crítico-social. Permanece a pergunta se, por seu lado, a Torá que
estava em formação também teve uma repercussão no desenvolvimento social.
Esta pergunta não é fácil de ser respondida. Faltam-nos muitas informações. Em caso
algum podemos pressupor que o Código da Aliança, o Deuteronômio ou as Leis
Sacerdotais que se acrescentaram mais tarde, especialmente a Lei da Santidade,
em Lv 17-26, simplesmente tivessem sido transpostos em realidade social. Tam-
bém hoje não podemos dizer que, em qualquer nação, os ideais da constituição
ou de leis isoladas correspondam à realidade. Contudo, também seria falso se,
ao revés, pensássemos que a Tora que estava em formação não tivesse tido ne-
nhuma influência sobre a realidade social. É provável que devamos conceber o
todo como um processo de muita longa duração. No transcorrer deste processo,
alguns pontos isolados foram realizados, outros não, e ainda outros era discutíveis
em sua interpretação.
Novamente para isto eu ofereço três exemplos. O primeiro é o mandamento do descanso
no sábado, que expressamente inclui o descanso das escravas e dos escravos.
Aqui podemos estar certos de que o sábado foi preservado no judaísmo do
tempo pós-exílico. O que demonstra isto não é apenas a incompreensão dos
escritores antigos não-judeus, por exemplo, de Tácito (Historia 5,4), para o
qual o sábado é expressão da preguiça dos judeus. Podemos remeter também
para um papiro econômico oriundo do Egito do século III a.C. Nele estão
registradas entregas de telhas de um comerciante judeu para um projeto de
construção egípcio. Diariamente são transportadas em torno de mil telhas.
No sétimo dia, contudo, somente existe o “sábado” (KESSLER, 2009, p.
236). Em todo caso, as discussões de Jesus com seus parceiros de diálogo
judeus (Mt 12,1-8.9-14, entre outros), mostram que a práxis concreta do sá-
bado sempre foi uma questão de interpretação da Torá – como acontece no
Judaísmo até os dias de hoje.
Como segundo exemplo, menciono o perdão de dívidas, reivindicado a cada sétimo
ano. Com certeza ele era praticado no século I d.C. Uma de suas consequên-
cias foi que, bem perto do ano jubilar, praticamente não mais existia crédito.
Visto que isto provoca um sério problema social, o rabino Hillel permite o
Notas
1 A respeito desta interpretação, veja Niemann (1993, p. 83-85).
2 Para a análise de Amós, veja os estudos abrangentes de Fleischer (1989) e Reimer (1992).
Referências