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INTEGRIDADE

DA
PREGAÇÃO
Associação fie Seminários Teológicos Evangélicos
CONSELHO DELIBERATIVO:
Júlio A. Ferreira
Presidente

Joaquim Beato, Thurmon Bryant, Roberto Grant,


Wilson Guedel lia, V. James Mannoia, David Mein,
Harding Meyer, A. Benjamin Oliver, Paulo Pierson,
Isnard Rocha, Arnaldo Schmidt

Aharon Sapsezian
Secretário geral

Edições da A. S. T. E,
A VENDA
VOCABULÁRIO BÍBLICO, de J .-J . von Alimen
O PROTESTANTISMO BRASILEIRO, de É. Léonard
O CATOLICISMO ROMANO — um simpósio protestante
O PENSAMENTO DA REFORMA, de H. Strohl
PEDRO — DISCÍPULO, APOSTOLO E MÁRTIR, de O. Cullmann

N O PR E LO
A PESSOA DE CRISTO, de G. C. Berkouwer
PSICOLOGIA DA RELIGIÃO, de P. Johnson
DEUS ESTAVA EM CRISTO, de D. M. Baillie
O ENSINO DE JESUS, de T. W . Manson
*

EM P R E P A R A Ç Ã O

A IGREJA NO NOVO TESTAMENTO, de G. Kittel


JESUS DE NAZARÉ, de G. Bornkamm
TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO, de G. von Rad
TEOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO, de A. Richardson
EPÍSTOLA AOS ROMANOS, de F .-J. Leenhardt
O PREPARO DE SERMÕES, de A. W. Blackwood
A FÉ CRISTA, de G. Aulén
A RELEVÂNCIA DOS PROFETAS, de R. B. Y, Scott
FÉ BÍBLICA E ÉTICA SOCIAL, de E. C. Gardner
DOCUMENTOS DA IGREJA CRISTÃ, de H. Betten son
JOHN KNOX
Professor no Seminário Teológico Unido
de Nova York

A
INTEGRIDADE
DA
PREGAÇÃO

Traduzido por
F lávia B razil E steves

A STE
5 Ä O PA V LO
Títwlo do original
THE INTEGRITY OF PREACHING
Abingdon Press, New York,
l.a edição, 1957

Edição em língua portuguesa, com colabo­


ração do Fundo de Educação Teológica,
pela
Associação de Seminários Teológicos Evangélicos
São Paulo
1 964
Í N D I C E

Introdução..................................................... 9
I — Quando é Bíblica a P regação..................... 11

II — A Relevância da PregaçãoB íb lica.............. 27

III — Teólogos e Pregadores ................................ 37


IV — Pregação é E n sin o ....................................... 49

V — Pregação é Pessoal....................................... 59

VI — Pregação é C u lto ......................................... 75

VII — Pregação é Sacramento .............................. 85


N o tas.............................................................. 94
INTRODUÇÃO

Dentre todos os muitos pregadores do evan­


gelho, fiéis e capazes, e que, ãespretenciosamente
de modo geral, foram meus professores de ko-
milética, aquele que de modo imensurável signi­
ficou mais para mim do que qualquer um outro
foi o meu próprio pai, Âbsalom Knox, falecido há
mais de trinta anos. Embora os seus dias tivessem
sido passados em lugares obscuros, era êle um
grande pregador (no único sentido em que êsse
têrmo jamais deveria ser empregado) e ter-se-ia
tornado maior ainda se a morte não o tivesse der­
rubado quando ainda em meia idade. Não teve
êle a vantagem de um curso colegial completo,
muito menos a de um treino em seminário, porém
foi uma das pessoas mais inteligentes, sensíveis e
humanas que jamais conheci e, portanto, uma das
mais cultas. Era muitíssimo bom e reconhecido
como tal por todos quantos o conheciam mas, de
igual modo, era uma pessoa ativa e enérgica,
possuindo talentos de eloquência autêntica — algo
muito raro.
Contudo, ao pensar nele como um pregador,
não são esses os talentos que vêm à mente em pri­
meiro lugar e sim a seriedade com que êle pregava
e a honestidade absoluta com que fazia isso, o tra­
balho cuidadoso e longo que dedicava a fim de
preparar-se para êsse mister (todos nós sabíamos
que diariamente, durante as primeiras horas, não
podíamos “incomodar o papai”), a qualidade bí­
blica da pregação, sua solidez e integridade, a ma­
neira pela qual a mesma respondia à vida da
igreja, o modo pelo qual falava ao coração. Mais
do que qualquer outra coisa, foi a memória de sua
pregação que sugeriu a palavra “integridade”
para o título dessas minhas reflexões com respeito
ao pregador e seu trabalho.
Ao escrever o Capítulo II, extraí-o livremente
de um de meus ensaios — “Autenticidade e Rele­
vância” — publicado há vários anos no The Union
Seminary Review.
Sou agradecido ao Deão James Cannon ãa
Divinity School of Duke University e seus colegas
pelo convite que me fizeram para dar preleções lá,
em junho de 1956, e pelas muitas gentilezas que
me demonstraram durante esse período de prele­
ções. Desejo agradecer também a meu prezado
amigo Paul Scherer por ter lido o meu manuscrito
e ter-me feito muitas críticas construtivas.

JOHN KNOX
C a p ít u l o I

QUANDO É BÍBLICA A PREGAÇÃO? :

Em nossos dias estamos testemunhando uma nova


insistência sôbre o fato de que a pregação deve ser bí­
blica. Nada é mais característico das discussões con­
temporâneas quanto à pregação do que essa ênfase. A
mensagem do pregador precisa provir não de aconteci­
mentos correntes, ou literatura em voga, ou de tendên­
cias prevalescentes de um tipo ou de outro, não de filó­
sofos, políticos, poetas e nem mesmo, em último recurso,
da própria experiência ou reflexão do pregador, mas sim
das Escrituras. Naturalmente não há nada de realmen­
te nôvo com relação a isso. O fato de que é mister repe­
tir tal coisa — e com nova ênfase — significa tão somen­
te que a pregação tem se desviado nesse ponto de sua
própria tradição. Aquilo que estamos asseverando
enèrgicamente, outras épocas tomaram como certo. A
pregação nos primeiros séculos e a pregação em todos
os períodos mais vitais e fecundos da história da Igreja
tem sido bíblica.
Mas quando é bíblica a pregação? Pregadores usam
a Bíblia — e têm sempre usado em uma grande va­
riedade de modos. Nem tôda a pregação que toma forma
de exposição bíblica pode ser chamada bíblica em qual­
quer sentido apreciativo ou realmente autêntico. Na
verdade, como bem o sabemos, a exposição bíblica em si
mesma pode ser muito infrutífera e enfadonha — e por-
12 JOHN KNOX

tanto (atrever-nos-íamos a dizer?) muito não-bíblica.


Em um dos livros de William Law, místico inglês do
século XVIII, há uma história encantadora de um pre­
sente delicado — um comentário bíblico — feito por uma
mulher a um velho pastor chamado John e sua esposa
Betty. O pastor descreve o que sucedeu:
Senhora, a esposa do Juiz de nossa cidade, ouvindo
falar de como Betty e eu amamos as Escrituras, trouxe-nos
certo dia um enorme livro explicativo sôbre o Nôvo Tes­
tamento e nos disse que ficaríamos entendendo muito
melhor as Escrituras lendo naquele livro do que só no
Nôvo Testamento... No outro Dia do Senhor, quando,
de acordo com o que era hábito, dois ou três vizinhos
vieram para se sentar conosco lá pela noitinha,
“Betty”, disse eu, “traga o grande livro da Senhora e
leia o quinto capítulo de São Mateus.” Quando ela ter­
minou, pedi-lhe que lesse o capítulo quinze da Primeira
Carta aos Coríntios. Na manhã seguinte disse eu a Betty:
“Carregue de volta à minha senhora êsse enorme livro
explicativo e diga-lhe que as palavras de Cristo e seus
Apóstolos são melhores por si mesmas e tal como êles as
deixaram.” E, enquanto eu me dirigia às minhas ovelhas,
pensava comigo mesmo: — Êsse grande livro explicativo
parece ter feito tanto bem a êsse livrinho do Nôvo Tes­
tamento ao ser acrescentado e misturado ao mesmo, tal
como um galão de água faria para um copinho de vinho
verdadeiro ao ser acrescentado ou misturado ao primeiro.
Na verdade o vinho todo estaria lá, porém o seu gosto
delicado e o espírito cordial que tinha quando bebido por
si estaria todo perdido e submerso na frieza e insipidez
da água. (!)

Provàvelmente os pregadores terão um prazer todo


especial nesta história e é bem natural que o tenham,
pois que talvez tivessem sofrido mais do que outros por
causa dos comentaristas sem inspiração e sem esclare­
cimento. Entretanto, lembremo-nos de que o pregador
é também um expositor e que um sermão pode esconder
A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO 13

ou deturpar um texto bíblico de maneira tão certa e


completa como qualquer comentário. Não é somente dos
“enormes livros explicativos” dos sábios acerca dos quais
por vêzes pode ser dito que têm sucesso unicamente em
entorpecer “o bom gôsto” do original, diluindo o “seu
espírito cordial”; muitas e muitas vêzes os longos dis­
cursos expositivos dos pregadores têm o mesmo efeito.
Em outras palavras, o uso da Bíblia — e até mesmo o
seu uso em larga escala — não é suficiente para garan­
tir a pregação bíblica eficiente ou mesmo autêntica.
Tudo depende de como nós a usamos.
Dedicaremos vários dêstes capítulos para uma dis­
cussão dêsse “como”; primeiramente, porém, talvez algo
mais devesse ser dito a respeito do “porquê”, pois que
são os elementos no uso da Bíblia para a pregação que
determinam em grande parte como devem ser julgados
os nossos próprios modos de utilizá-la. A meu ver, êsses
elementos podem ser indicados sumàriamente do seguin­
te modo: Usamos a Bíblia na pregação porque é litera­
tura de alta qualidade, porque é nossa literatura e por­
que é, em sentido muito verdadeiro e distinto, a litera­
tura divina. Essas razões encontram-se em ordem
ascendente de importância, mas cada uma delas merece
alguma atenção.
Com tôda a certeza, uma das razoes pelas quais é
apropriado usar a Bíblia na pregação e porque efetiva­
mente nós a utilizamos, é em vista da mesma ser literatu­
ra religiosa de alta qualidade. Talvez não precisemos usar
o primeiro adjetivo, desde que em determinado sentido
tôda a grande literatura pode ser considerada “religiosa”.
Inúmeras tentativas têm sido feitas — e por pessoas
muito mais competentes do que eu — para definir
“grande” literatura e para dizer justamente o que é um
grande livro. É oportuno afirmar que nenhuma dessas
tentativas tiveram perfeito sucesso. O critério de grande
14 JOHN KNOX

arte não pode ser formulado de maneira precisa e exaus­


tiva. Distinguimos o grande livro da maneira pela qual
conhecemos a grande música — pelo modo com que rea­
gimos permanentemente ao primeiro, por tudo quanto
faz e continua a fazer em nós — e a única comparação
objetiva sôbre a nossa impressão dêle é a reação de
outros. A literatura mundial de grande porte é composta
de livros sôbre os quais muitos homens e mulheres, em
muitas gerações, têm dito para si mesmos: “Êste é um
grande livro!” Certamente podemos afirmar com segu­
rança que esses livros tratarão sempre, não de meras
concepções abstratas nem tampouco de fantasias, mas
da experiência humana em sua verdade concreta e exis­
tencial. Procurarão descobrir tudo quanto há de pro­
fundo no homem, as fontes de sua grandeza e de sua
derrota trágica. Colocá-lo-ão em um lugar espaçoso,
concedendo algum senso de significado último e do mis­
tério de sua vida. E farão tudo isso por meio de lingua­
gem simples, clara e comovente. Contudo, por mais que
tentemos formular nossa definição de grande literatura,
não há dúvida que a Bíblia como um todo, bem como
muitas de suas partes tomadas em separado, podem ser
perfeitamente enquadradas como tal. Não é grande li­
teratura apenas, mas em alguns aspectos é incompara­
velmente grande*. É o relato mais realístico, profundo
e comovente do homem que o próprio homem jamais pro­
duziu. A pregação, no entanto, é também profunda e
radicalmente relacionada com o homem, sua necessidade
e sua redenção, sendo que sua eficiência e genuinidade
dependem da compreensão profunda, certa e verdadeira
do pregador relativamente à situação humana. A Bíblia
provê recursos magníficos para essa compreensão. Por
esta razão, se não por outra, o pregador utiliza êsse livro.
Entretanto, uma razão ainda mais potente para o
uso da Bíblia na pregação é a de ser a mesma nossa lite­
A INTEGRIDADE DA PREGAÇAO 1

ratura. Quero dizer com isso, naturalmente, que é a li


teratura da Igreja. Os livros do Antigo Testamento (oi
pelo menos os da Lei e os Profetas) podiam ser encon­
trados por séculos e séculos e em uso familiar entre oí
judeus, antes que êsses mesmos livros fôssem adotadoj
pela comunidade cristã. Desde tempos primordiais tais
escritos foram associados com a vida da Igreja e essa
associação foi feita do modo mais significante e íntimo.
Jesus conhecia tais livros e citou-os, assim como Paulo.
As próprias cartas e outros documentos especificamente
cristãos, de modo especial os Evangelhos que descreve­
ram a carreira de Jesus e registraram suas palavras,
logo conseguiram o mesmo status elevado, desfrutando
desse mesmo uso familiar. Por vinte séculos, a Igreja
— verdadeiramente tôda a Cristandade — está sendo
nutrida com êsses escritos antigos. Imagens e também
concepções bíblicas têm penetrado na urdidura e na com­
posição da cultura ocidental; a linguagem da Bíblia não
somente foi o ingrediente básico na linguagem da li­
turgia e devoção da Igreja, mas também afetou profun­
damente tanto nossa literatura em geral assim como
nossa linguagem comum. Com tôda a probabilidade,
os hinos ensinados por nossas mães eram bons, porém
não é só a sua excelência intrínseca que os torna pre­
ciosos para nós. Amamo-los muito menos por seu con­
teúdo e por si mesmos do que por causa de nossas mães
e, sem dúvida alguma, nossas avós que também gosta­
vam dêsses hinos. De igual modo, a Bíblia conseguiu
obter significado e valor mais elevados pelo uso que a
Igreja faz da mesma. Passagens como o salmo vinte
e três, os primeiros versículos do capítulo cinco de Ro­
manos, ou algumas afirmações de Jesus nos Evangelhos,
têm hoje um valor que não poderiam ter tido quando
primeiramente expressados ou escritos. Por vezes uma
frase bíblica familiar pode evocar todo um mundo de
16 J O H N KNOX

significados passados e, por vêzes, meio esquecidos. Na


verdade, alguns dêsses significados mais profundos mal
podem ser evocados de qualquer outro modo. Contudo,
justamente êsses significados — concretos e existenciais
— a pregação procura comunicar. Não é de se espantar,
pois, que a Bíblia seja usada! Como se poderia fazer de
outra forma?
Mas a terceira razão é realmente a decisiva: é a
literatura de Deus. É, conforme afirmamos, “a Palavra
de Deus." Se não pudesse ser chamada Palavra de Deus,
não só seria altamento dubitativo que fôsse utilizada
para a pregação, mas também que fôsse empregada com
tanta familiaridade — ou até mesmo que existisse algo
como a pregação. Se, na história que teve início com
Abraão e culminou com Cristo e na vida comunal que
pertenceu a essa história ou à qual essa história perten­
ceu (pode-se olhar de dois modos para essa inter-rela-
ção), os homens não tivessem encontrado ali a própria
presença e a ação poderosa de Deus, não haveria nem
Igreja, nem Bíblia, nem tampouco pregação. A Bíblia
é denominada a Palavra de Deus não porque ela seja
composta de palavras de Deus, ou contenha essas pa­
lavras (como se Deus se expressasse por palavras), mas
porque transmite a" nós a presença e a ação poderosa
de Deus. Pois bem, a pregação cristã procura trans­
mitir essa mesma presença e essa mesma ação poderosa.
Tal como a Bíblia em si mesma, a pregação se preocupa
com o evento de Cristo, procurando comunicar sua rea­
lidade e sua relevância, interpretar o seu significado
para os homens de cada geração e para o homem em
todas as gerações. A Bíblia, portanto, não é apenas útil
na pregação; é absolutamente indispensável. É mais do
que um recurso supremamente útil; pertence essencial­
mente à própria fonte da pregação. Não é somente ver­
A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO 17

dadeiro que a pregação devesse ser bíblica; a pregação


autêntica tem de ser assim!
Perguntamos novamente, porém: que é pregação
bíblica? Agora já o suficiente foi dito para indicar que
não se pode definir a pregação bíblica em têrmos de
qualquer conexão mecânica — externa ou meramente
formal — conexão esta feita entre a Bíblia e o sermão.
Não se pode dizer, por exemplo, que a pregação bíblica
seja a simples pregação de um texto bíblico. Lembro-me
de ter ouvido, quando me encontrava no seminário,
acêrca da distinção entre sermões tópicos e textuais.
Talvez esta possa ser uma distinção útil para determi­
nados propósitos, porém de nada servirá com relação a
todos os sermões textuais como sendo bíblicos e todos os
sermões tópicos como não-bíblicos. Todos nós sabemos
ser possível tomar de um texto bíblico e proceder à pre­
gação de um sermão bem não-bíblico. Poder-se-á fazer
isso de várias maneiras. Uma delas é citar algumas
poucas palavras da Escritura como uma espécie de fron­
tispício ornamental para um discurso que, na realidade,
nada deve a qualquer uma dessas palavras ou qualquer
outra parte da Escritura. Recordo-me, por exemplo, de
ter ouvido há vários anos — e confesso, com vergonha,
que eu próprio uma vez preguei — um sermão dêsse tipo
(que foi pregado primeiramente, tanto quanto saibamos,
por Charles Reynolds Brown) sobre a pergunta feita
certa vez a Jacó por Faraó, “Quantos são os dias dos anos
de tua vida?” (Gn 47.8) — sermão êste em torno das
“dimensões da vida.” Nesse caso e em inúmeros outros
semelhantes, é puramente acidental qualquer conexão
entre o sermão e qualquer outra coisa sôbre a qual a
Bíblia esteja realmente interessada a dizer. Ou, então,
pode-se tomar de um texto e depois interpretá-lo mal,
como quando alguém emprega “Examinai as Escrituras”
— a tradução de Jo 5.39 — como texto para um sermão
18 JOHN KNOX

relacionado com o dever da leitura da Bíblia. Outra


alternativa é alguém extrair da Bíblia um texto rela­
tivamente não-bíblico — isto é, um ou dois versículos
que não sejam típicos ou representativos — tratando
depois dos mesmos, talvez de modo íntimo e fiel, mas
sem referência alguma ao que a Bíblia, como um tôdo,
está afirmando. Em uma só palavra, a pregação de um
texto — ou até mesmo o que denominamos pregação
expositiva — como tal não é pregação bíblica.
A pregação bíblica tampouco pode ser definida como
pregação quando tem a Bíblia como seu assunto ou
quando se baseia na Bíblia em grande parte de sua ma­
téria. Cari S. Patton em seu livro The Use of the Bible
in Preaching, parece admitir o fato de que a pregação
bíblica significa pregar acêrca da Bíblia. Êle descreve,
por exemplo:
Não sustenho que tôda a pregação devesse ser bíblica.
Longe disso. A religião está em formação durante todo
tempo. Acontecimentos correntes na vida política, eco­
nômica e internacional apelam fortemente por um comen­
tário e por uma intepretação Cristã pelo profeta Cristão.
Tanto o pensamento científico contemporâneo como o
filosófico movimentam-se freqüentemente, apresentando
novos significados sôbre as crenças e práticas religiosas.
É inútil pretendeV que as únicas coisas sôbre as quais
precisamos falar do púlpito devam ser encontradas na
Bíblia. (*)
A idéia parece ser a de que a pregação pode ser bí­
blica e ocupar-se da Bíblia, ou então ser relevante e tra­
tar do que na realidade está acontecendo no mundo —
porém não ambas as coisas. (Com relação a essa idéia
errônea algo mais será dito no próximo capítulo).
Esta citação e as seguintes são de The Use of the Bifrie in Preaching,
Copyright 1930 por Harper & Brothers e usadas com a permissão dos mesmos.
Reconhecemos que as citações não representam devidamente todo o livro, o
qual tem muitos méritos.
A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO 19

A história de Patton acêrca de como êle foi iniciado


na pregação “bíblica” é tão viva e divertida como devem
ter sido os seus sermões:
Em certa ocasião, entretanto, talvez há quinze ou
vinte anos, experimentei fazer um sermão bíblico. Su­
ponho que assim fiz porque ninguém havia sido morto
durante aquela semana, a respeito do qual coubesse mm^
pregação, e nada sucedera no Japão ou na Itália, ou tam­
pouco na Liga das Nações que requeresse uma elucida­
ção de minha parte — e eu precisava urgentemente de
um tópico. Estivera lendo a velha história da Tôrre de
Babel. Foi assim que num rasgo de coragem — ou, quem
sabe, de desespero — disse comigo mesmo: “Vou fazer
um sermão extraído disso.” Senti-me um tanto apologé­
tico a êsse respeito. For que arrastar a minha gente mo­
derna e atualizada para aquele passado tão longínquo e
para aquela tôrre inacabada? Entretanto, não consegui
pensar em outra coisa naquela semana e assim teve que
ser aquilo mesmo. Para meu espanto, os comentários
em tôrno daquele sermão quase me levaram a supor que
o pessoal da minha congregação havia passado noites in­
teiras em claro pensando naquela velha história.
Patton mal faz alusão ao conteúdo dêsse primeiro
sermão “bíblico. ” Êle é mais explícito em sua descrição
da segunda tentativa que êle fêz.
Fiz outra tentativa. Tomei o trecho menos indicado
de material homilético que pode ser encontrado em
todo o Antigo Testamento — o quinto capítulo de Gênesis.
Tentei fazer isso de modo um tanto realista. Inda­
guei por que aquêles anciãos puderam viver tanto tempo
e o que es tava errado com a medio na e a higiene atuais
em vista de não podermos competir com os primeiros.
Perguntei como é que se divertiam depois de atingirem
a idade de quinhentos ou seiscentos anos. Levantei a
questão sôbre se êles chegavam a ficar doentes e,
se ficassem, será que teriam artrite (suponho que teria
sido reumatismo ao tempo dêles) por uns dez ou quinze
anos como todo o mundo tem hoje em dia, ou então no
20 JOH]$ KNOX

decurso de uns duzentos anos. Inquiri se as mulheres


chegavam a viver tanto como os homens, e qual a idade
em que qualquer um dêles seria considerado realmente
adulto e pronto para ser independente de seus pais ou
mães. Expliquei, então — e com toda a franqueza — que
espécie de história era aquela, de acordo com o meu pen­
samento: não uma história verídica, mas um lindo trecho
folclórico no qual os hebreus de um período posterior
haviam descrito uma idade de ouro, tempos atrás, quando
o homem era ainda um menino aos cinqüenta anos, tor­
nava-se jovem aproximadamente aos seiscentos ou sete­
centos anos e começava a sentir que a velhice se aproxi­
mava por volta da casa dos novecentos anos. Isso parecia
ser uma novidade para aquela gente. E mostraram-se
mesmo muito Interessados naquilo tudo. De fato, êsse
mesmo sermão chegou a ser requisitado e impresso no
periódico de uma de nossas escolas teológicas. (2)

É oportuno dizer que Patton acrescenta: “Se tais


pregações só fossem interessantes, não nos levariam
muito longe. Contudo, êsse tipo de pregação é informa­
tivo — educativo — de duas maneiras. ” Ao lê-lo, porém,
constata-se que tanto uma como outra dessas “manei­
ras” tem muito a ver com o fato de que as pessoas co­
meçavam a ter idéias mais inteligentes a respeito da
própria Bíblia.
Não culparemos Patton pelos defeitos de compreen­
são que talvez se encontrem nesse seu livro cheio
de vida. Reconheceremos as passagens citadas como
representações satisfatórias do clima teológico de certas
secções do Protestantismo na geração passada. No en­
tanto, tais trechos também servem para nos fazer lem­
brar que a pregação bíblica não pode ser definida como
simples pregação que tem a preocupação explícita e
grande dos componentes bíblicos — pouco importando
quais êsses componentes e como são tratados. Na rea­
lidade, a diferença entre a pregação bíblica e a não-bí-
A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO 21

blica tem muito pouco a ver com a estrutura do sermão


e se sua forma é tópica ou expositiva. A diferença é mais
profunda do que isso. Se fôr possível — como já temos
afirmado — pregar um sermão bem não-bíblico sôbre
um texto bíblico, de igual modo será possível pregar um
sermão bem bíblico sem base em texto algum.
Como, pois, podemos definir pregação bíblica? Muito
do restante dêste livro procurará responder a esta ques­
tão, de modo que não se fará tentativa aqui a êste res­
peito. Estabeleçamos de modo resumido quatro pontos
que não podem ser claramente separados um do outro.
Podemos afirmar primeiramente que pregação bíblica é
a que permanece próxima às idéias bíblicas caracterís­
ticas e essenciais: a transcendência, a santidade, o poder
e soberania, o amor de Deus; sua exigência de justiça
ética; seu julgamento do pecado; a criação do homem,
sua condição de pecador; sua necessidade de perdão e
liberdade; o significado de Cristo como a vinda real de
Deus para nossa história com o auxílio de que precisa­
mos; a eficácia da reconciliação e da redenção, da vida,
do gôzo e da paz na nova comunidade do Espírito que
Deus criou através de Cristo e para a qual podemos
entrar mediante a condição única de penitência e fé.
E, na pregação bíblica, essas idéias não aparecerão sim­
plesmente como tais — não só como largas concepções
gerais — mas sim como parte integrante no contexto
concreto da tradição e da vida eclesiástica. A pregação
bíblica não se preocupa com abstrações. Já era “existen­
cialista” muito antes que os filósofos começassem a em­
pregar êste têrmo. Na verdade, não foi mero acidente
que Kierkegaard, o pai do existencialismo moderno, ti­
vesse sido um pregador bíblico.
Em segundo lugar, pregação bíblica é a que se preo­
cupa essencialmente com o acontecimento bíblico prin­
cipal — o evento de Cristo. O simples tratamento de
22 JOH& KNOX

incidentes na narrativa bíblica ou fragmentos de ensino,


até mesmo quando feitos de maneira fiel e edificante,
não qualificam a pregação como sendo bíblica, a não
ser que esses incidentes e ensinos sejam vistos e apre­
sentados em sua relação com o ato completo da reden­
ção divina que culminou com a vida e morte de Jesus,
a Ressurreição, a vinda do Espírito e a criação da Igreja.
Sinclair Lewis, em Babitt, apresenta alguns comentários
satíricos com relação às várias preleções sôbre “filosofia
e etnologia oriental”, as quais estavam sendo dadas por
“solteironas sinceras”, nas diversas classes de uma es­
cola dominical. As discussões de componentes bíblicos
serão precisamente essas preleções (quer sejam ou não
informativas, quer maçantes como as que Lewis tem em
mente, ou interessantes e até divertidas como as que
Patton por vêzes nos dá) ou então serão meras exorta­
ções moralistas e provàvelmente sentimentais, a não ser
que sua preocupação primária seja o estabelecimento do
significado da nova relação de Deus com os homens tal
como foi cumprido através do evento e incorporado à
Igreja.
A própria palavra “pregar” deveria lembrar-nos êsse
propósito primário e o caráter da pregação. A forma
original inglêsa dessa palavra era prechen, uma deri­
vação imediata do francês antigo prechier (o prêcher
moderno) e finalmente de praeãico, forma latina que
significa declarar em público, proclamar, publicar. Ge­
ralmente se supõe que êsse têrmo latino corresponde ao
grego prophêteao, profetizar. Entretanto, prophêteuo e
prophêteia, tal como aparecem no Nôvo Testamento, são
transliterados regularmente nas versões latinas, apare­
cendo como propheto e prophetia. Praeãico traduz
kêrysso e praedica^°, kerygma; e essas palavras, tanto
gregas como latinas, denotam uma declaração pública,
uma proclamação e, na realidade, um anúncio no sen­
A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO 1 ■ 23

tido mais simples e geral, O kêryx era um arauto e


kerygma as notícias que proclamava. Desde que as no­
tícias são boas, o Nôvo Testamento prefere evangélion
a kerygma. O pregador é o arauto das boas novas. Pro­
clama o ano aceitável do Senhor. Da maneira pela qual
essa função está desenvolvida na Igreja, pregar é estar
convicto, mais do que uma simples proclamação, por­
tanto . Embora o latim praeáico restitua apenas o têrmo
grego único kêrysso, o próprio ato de pregar chegou a
incluir funções originalmente designadas por outros
têrmos, notadamente “profecia” e “ensino.” Mas o
significado fundamental de “pregação” ainda anuncia
algo além daquilo que sucedeu; e o sentido mais compli­
cado e inclusivo do têrmo pode ser verdadeiramente com­
preendido tão somente se aquele significado fundamental
fôr conservado na m ente. Antes de qualquer outra coisa,
o pregador ainda é o anunciador do Evangelho. Sua
mensagem é, pois, determinada primàriamente por um
acontecimento antigo — aquêle que está centralizado
na morte e ressurreição de Jesus Cristo. Somente uma
pregação dêsse tipo é bíblica.
Em terceiro lugar, pregação bíblica é a que dá res­
postas e nutre a vida essencial da Igreja. Isso porque o
acontecimento que proclama é mais do que uma ocorrên­
cia antiga por nós conhecida só por meio de relatos do­
cumentados da mesma, que por um acaso foram escritos
e que sobreviveram também por acaso. Êsse aconteci­
mento e seu verdadeiro sentido estão perpetuados na
nova comunidade do Espírito. Aqui está a realidade da
Ressurreição. O pregador não repete incessantemente
uma crônica antiga; dá o testemunho da qualidade e
significado da nova vida comunitária em que Deus torna
accessível a nós uma nova saúde e salvação. Sua pre­
gação é como se fôra uma elipse que se movimenta em
tôrno de dois focos, um da antiga ocorrência e outro da
24 JOHN KNOX
v
contínua vida nova do Espírito. Desde que só se pode
falar verdadeiramente do evento na luz da experiência
contínua da Igreja e que só se pode, na realidade, inter­
pretar a vida da Igreja à luz do acontecimento relem­
brado, os dois focos tendem a se tornar um único centro.
A verdadeira forma da pregação, porém, é uma elipse e
não um círculo e a tensão entre o acontecimento e o
Espírito é tão importante como a reciprocidade dos mes­
mos. Muitas vêzes a pregação fracassa em vista de
ambos serem identificados de modo por demais fácil, ou
então porque um ou outro é simplesmente ignorado. O
problema básico da pregação é conservar juntos os dois
elementos em sua completa integridade e fôrça distinta,
mas conservá-los juntos.
Finalmente, pregação bíblica será aquela em que o
acontecimento seja recorrente no sentido real da pala­
vra. O Deus que atuou nos acontecimentos através dos
quais surgiu a Igreja, age novamente na palavra do pre­
gador. A pregação do evangelho é, em si mesma, uma
parte do Evangelho. O verdadeiro pregador bíblico não
discute simplesmente acontecimentos do passado (tal
como um professor de história), nem tampouco esboça
meras lições edificantes de sua vida (como um guia mo­
ral ou filósofo). O acontecimento passado chega a su­
ceder novamente em suas palavras inspiradas. A ver­
dadeira pregação é em si mesma um evento — e um
evento de um tipo especial. Nesse evento a revelação de
Deus em Cristo é, na realidade, recorrente. O aconteci­
mento escatológico, que teve início com a vinda de Cristo
e terminará com o julgamento final e com o cumpri­
mento da história, está sendo realizado recorrentemente
ou, se o preferir, de modo contínuo, nos sacramentos e
na pregação da igreja. Se isso não fôr verdade, pouca
importância têm os sacramentos ou mesmo a pregação.
Na verdade, se tudo isso não fôr verídico, os sacramentos
A INTEGRIDADE DA PREGAÇAO 25

e a pregação nao existem de maneira alguma em nenhum


sentido autêntico.
As Escrituras Cristãs chegaram a nós diretamente da
vida da Igreja primitiva e nos foram transmitidas por
meio da vida da Igreja desde então, através de todos os
séculos. Seu valor principal está no fato de que trazem
até nós, em seu caráter concreto, o acontecimento em
que a Igreja começou e que determinou a natureza ini­
cial e essencial da Igreja. Desta maneira, as Escrituras
correspondem à vida da comunidade primitiva em res­
posta a êsse acontecimento como se, ao lê-las, sejamos
postos em contacto com o evento e capacitados a parti­
cipar na vida. A verdadeira pregação bíblica é aquela
que tem êsse mesmo efeito em tôda e qualquer época.
V
,1“
Capítulo IX

A RELEVÂNCIA DA PREGAÇÃO BÍBLICA

Mais para o fim do capítulo anterior apresentei a


pregação como tendo, por assim dizer, a forma de uma
elipse com dois focos — o evento antigo e a vida sempre
nova do Espírito. É necessário dizer mais a respeito da
integridade e distinção de cada uma dessas questões,
assim como acêrca da reciprocidade essencial das
mesmas.
Há poucos anos, ao principiar um relato sôbre sua
experiência religiosa e escrevendo em uma de nossas re­
vistas, uma mulher observou que no começo de sua car­
reira voltara-se contra a Igreja porque lhe parecera que
! a mesma tinha muito pouca relação, quer fosse com o
século primeiro ou com o século vinte para ter signifi­
cação. Não me recordo do título de seu artigo ou até
mesmo de seu próprio nome e não posso lembrar-me de
; nada com respeito ao contexto de sua afirmativa ou
mesmo o curso geral de seu argumento ou confissão;
não me esqueci, porém, da agulhada daquela observação
aberta, a decisão clara de sua saída da Igreja. Será que
alguém pode negar que haja verdade em sua acusação9
E quem discutirá que, tanto quanto seja verdade, é uma
acusação absolutamente rejeitável? Com tôda a certeza
os críticos podem argumentar que temos o direito de
esperar que a Igreja esteja em contacto com a realidade
em qualquer ponto: se não com o nosso próprio século,
28 JOHN KNOX

pelo menos então eom o primeiro século; se não com o


primeiro século, de qualquer modo então com o século
vinte. Ou, para estabelecer o problema do ponto de vista
Cristão, que poderíamos nós dizer com respeito à justi­
ficação de um Cristianismo — ou de uma pregação
Cristã — que fôsse tanto não-bíblica como inaplicável?
Demos ênfase às comparações na observação que
citei, porém não estou certo se a escritora gostaria que
tivéssemos feito tal coisa. Entretanto, tenho certeza de
que o fato de assim fazermos esconde uma parte impor­
tante de seu significado. Essa leitura sugere que talvez
fôsse possível à Igreja entrar em contacto com o primeiro
ou com o século vinte sem ter relação com ambos, que
talvez fôsse possível à pregação ser bíblica sem ser rele­
vante, ou ser relevante sem ser bíblica. Isso, porém, não
é verdade. Nesse caso, pelo menos a relevância e a auten­
ticidade histórica são dois lados de uma só moeda.
Por exemplo, considere-se o pregador que crê que
sua pregação esteja no mais íntimo contacto com o pri­
meiro século — êle está convicto de pregar o “verdadeiro
Evangelho” — quando, na realidade, falta à pregação um
toque qualquer com o século vinte. Não está òbviamente
enganado com respeito à sua conexão com o primeiro
século? Estar em contacto com o primeiro século não
significa a pura e simples repetição das palavras do pri­
meiro século ou freqüentes referências lisonjeiras ao
primeiro século; significa, na verdade, algo mais, tal
como compartilhar da experiência do primeiro século,
conhecendo as fontes de poder que o mesmo conheceu,
possuindo uma vida comum com essa época. Mas uma
Igreja não pode estar em contacto com o primeiro século
nesse sentido sem que seja uma comunidade viva; e uma
comunidade viva, além de estar em relação orgânica com
a vida do passado, pertence orgânicamente à vida de
seu próprio período. Realmente é só num presente vivo
A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO 29

que se pode ter qualquer contacto vital com o passado,


ou que o passado em si pode ser considerado como exis­
tente. Estar em contacto com um passado vivo é mais
do que meramente ter tido um tal passado; é mais do
que saber que alguém o teve, ou continuar freqüente-
mente lembrando a si mesmo e a outros que tem êsse
passado; na realidade, é ser uma continuação viva dêle.
Entretanto, a mesma coisa pode ser dita da Igreja
que não tem conexão real com o primeiro século, mas
pensa que está em relação das mais frutíferas com o
século vinte. Essa Igreja se engana ao supor que uma
sociedade pode ser uma Igreja de qualquer modo, sem
manter um contacto vivo com o primeiro século e todos
os outros desde então. De outra maneira poderá ser
contemporânea, porém não é uma Igreja contemporâ­
nea. Isso devido à razão pela qual a Igreja tem o seu
caráter distinto em todo e qualquer século em virtude
de sua relação com os acontecimentos que ocorreram no
primeiro; e somente nesse caráter tem ela qualquer pa­
lavra importante para dizer ou qualquer serviço real­
mente adequado para executar.
Resumindo, se nós, como pregadores, não estamos
falando às necessidades do mundo contemporâneo, po­
de-se claramente supor que não ouvimos realmente o
Evangelho da Igreja primitiva. Por outro lado, por mais
que tenhamos muita preocupação relativamente ao
mundo contemporâneo, essa ansiedade não é Cristã a
não ser que seja originada da convicção de que um acon­
tecimento ocorreu no primeiro século à luz do qual
somente pode ser compreendido o significado da cena
contemporânea e no poder do qual somente pode ser
concretizada a comunidade que procuramos. Só a au­
têntica pregação bíblica pode ser realmente relevante;
só a pregação essencialmente relevante pode ser real-
mente bíblica.
s

30 JOHN KNOX

O reconhecimento dessa inter-relação entre auten­


ticidade histórica e relevância faz com que o teólogo e o
pregador bíblicos se aproximem muito mais intimamente
do que parecia, geralmente falando, e seja revelado o
campo comum em que ambos permanecem se cada um
dêles estiver desempenhando a sua própria função. A
diferença entre ambos não é a que um esteja preo­
cupado com a verdade histórica e o outro com o valor
contemporâneo. Ambos estarão interessados nessas
duas coisas, embora uma diferença de ênfase dê a cada
um dêles um papel distinto.
Considere-se primeiramente a introdução estrita­
mente histórica — isto é, a introdução dominada pelo
interesse na história por seu próprio fim. Agora, os fatos
externos da história podem ser estabelecidos ou não, con­
forme fôr o caso, sem referência nenhuma à relevância.
Mas o significado interior da história (e isso nada mais
é do que a realidade concreta) só pode ser apreendido
por alguém que seja sensível ao significado de sua pró­
pria época. Há aqui uma relação mútua, uma espécie
de alternação ou ritmo, o passado lançando luz ao pre­
sente e o presente ao passado; no entanto, desde o início
e em certa medida, devem estar presentes a preocupa­
ção pela relevância *e o interêsse pela autenticidade.
O estudante de história precisa levar consigo, pelo menos,
a capacidade para uma compreensão profunda do pre­
sente se jamais tiver que alcançar qualquer compreen­
são profunda do passado. O livro de Herbert Butterfield,
Christianíty anã History, (3) é um brilhante exemplo
dessa verdade. “É quase impossível”, escreve êle a
certa altura, “apreciar de modo apropriado os desenvol­
vimentos mais elevados na reflexão histórica do Antigo
Testamento, a não ser que seja em outra época que tenha
experimentado (ou que tenha enfrentado) um cataclis-
ma colossal, um período como êste em que vivemos.” E
A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO 31

poder-se-ia acrescentar que, quanto mais profunda­


mente determinado historiador sentir o impacto e o
significado do cataclisma presente, tanto mais profun­
damente autêntica pode ser a sua compreensão do que
os profetas procuram afirm ar. Estamos testemunhando
agora um notável despertamento de interêsse com rela­
ção ao Antigo Testamento. Cometeríamos um êrro se
atribuíssemos isso simplesmente aos Pergaminhos do
Mar Morto ou ao fato de que justamente agora existem
tantos sábios e professores brilhantes nesse campo. O
fator primeiro e realmente decisivo é a história trágica de
nossos próprios dias, a qual tem feito com que o Antigo
Testamento se torne de nôvo relevante e tem, portanto,
possibilitado primeiramente a nossos professores e depois
a nós mesmos a que ouçamos com nova compreensão a
sua voz autêntica.
De igual modo o nosso entendimento do Nôvo Tes­
tamento e dos acontecimentos que o criaram depende,
para sua profundeza e verdade, muito mais de nossa ca­
pacidade de discernimento do significado de nossa exis­
tência presente do que de qualquer equipamento técnico
que porventura tenhamos para o estudo de documentos
antigos ou qualquer grau de aprendizagem e erudição
— valiosos e indispensáveis para determinados propósi­
tos importantes, como, sem dúvida alguma, são tais qua­
lificações. Cristo precisa viver por nós, precisa entrar
em nossa própria existência, precisa encontrar-nos onde
estamos, se é que vamos chegar a conhecer a maravilha
da Encarnação ou o poder — e, portanto, a verdade —
da ressurreição. Milner-White começa uma de suas ora­
ções da seguinte maneira: “Ó Cristo, cujo nascimento
maravilhoso nada significa, a não ser que nasçamos de
nôvo, cuja morte e sacrifício são nada, a não ser que
morramos para o pecado, cuja ressurreição é nula se tu
ressurgires sozinho... ” (4) Seja o que fôr dito da his­
32 JOHN KNOX

tória em geral, não pode haver conhecimento autêntico


da história para a qual o Cristão se volte — aquilo
que os alemães chamam de Heilsgeschichte — sem que
haja êsse tipo de participação; e uma participação que,
preocupada com a autenticidade, deixe de lado tôdas as
considerações de relevância, terminando por perder, não
somente a relevância, mas também a autenticidade.
O anverso, contudo, é também verdadeiro. Consi-
dere-se o caso do pregador que se aproxima da história
bíblica com um interesse primário na relevância. Êsse
alguém está em perigo todo especial de se tornar desco­
nexo. Isso é verdade porque, em grande parte, a rele­
vância da história bíblica jaz no desafio que apresenta
com relação a hipóteses convencionais e modos costu­
meiros de se pensar, enquanto que a atenção para a rele­
vância tende ünicamente para a modernização e a
assimilação. A Bíblia foi feita para responder somente
nossas perguntas — isto é, aquelas que fazemos cons­
cientemente — e evita responder as que são suas em
primeiro lugar, mas que, propriamente falando, tendo
sido apresentadas, provam também ser nossas mais pro­
fundas questões. Os pontos em que a Bíblia é mais re­
levante com relação ao século vinte são precisamente
aquêles em que a mensagem Cristã original era a mais
relevante para o primeiro século — em sua maior parte,
no entanto, estes não são pontos de acordo e conformi­
dade, mas sim pontos de diferença e confronto.
Há uma geração, o modernismo bíblico estava
ocupado em reduzir êsses pontos de confronto, tanto
como o fundamentalismo estava ocupado em multipli­
cá-los — o modernismo negando que a Bíblia e a Igreja
tivessem qualquer coisa a dizer que ainda não conhecês­
semos como sendo verdade, e o fundamentalismo afir­
mando que tudo quanto a Bíblia e a Igreja tinham a
dizer era, em sua maior parte, o que bem sabíamos não
A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO 33

ser verdade. Tanto um como outro tinham falta de re­


levância — o modernismo porque tornou o Cristianismo
fácil demais; e o fundamentalismo, não porque fizesse
o Cristianismo difícil demais, mas porque tornava-o
difícil em lugares errados, O modernista teria reduzido
tôda a oposição essencial da Igreja e do mundo ao status
de diferenças de cultura meramente acidentais entre o
primeiro século e o século vinte; o fundamentalista teria
elevado tôdas as diferenças acidentais de cultura entre
o primeiro século e o século vinte ao status de diferenças
essenciais e permanentes entre a Igreja e o mundo.
A Igreja do primeiro século levanta-se contra o
mundo moderno; os acontecimentos do primeiro século
confrontam e desafiam o século vinte — o têrmo bíblico
severo é “escandalizam” . Qualquer modernista se acha
em perigo de esquecer êsse fato. No entanto, os pontos
em que êles desafiam assim o século vinte são precisa
e unicamente aqueles em que também desafiaram ao
primeiro século; é êsse fato que qualquer fundamenta­
lismo ou dogmatismo tende a ignorar. Somente através
de um esforço fiel e desinteressado para ver o Cristia­
nismo em seu cenário original e de ouvir a sua mensagem
como os seus primeiros ouvintes a escutaram — só atra­
vés de um esforço pela verdade histórica — é que podem
ser discernidos êsses pontos de confronto e, portanto, de
maior relevância. A verdadeira pregação bíblica é a que
discerne tais pontos de relevância e, fazendo isso, re­
cupera o significado autêntico do texto bíblico.
Tanto o teólogo como o pregador bíblicos estão sujei­
tos a perigos característicos. O perigo do sábio é o de
uma especialização estreita demais — isto é, uma espe­
cialização tão limitada que malogre em seu próprio fim.
Já ouvimos, provavelmente ad nauseam, que um espe­
cialista é alguém que “conhece cada vez mais sôbre cada
vez mais” sôbre “cada vez mais coisas.” Isso porque,
34 JOHN KNOX

de verdade nesse epigrama como na grande maioria


de epigramas; porém, se por “especialista” quisermos
significar um sábio competente em qualquer campo,
precisamos reconhecer que deve saber “cada vez mais”
sôbre “cada vez mais”, se na realidade êle tiver que saber
“cada vez mais” sôbre “cada vez menos”; ou, para dizer
a mesma coisa de outro modo igualmente verdadeiro, se
realmente êle está aprendendo “cada vez mais” sôbre
“cada vez menos coisas”, também está aprendendo “cada
vez menos coisas” . Naturalmente, há certa parcela
qualquer que seja o problema especial em que se tenha
empenhado, se tiver algum significado, suas ramifica­
ções são literalmente intermináveis e o contexto em que
pode ser examinado de modo frutífero é literalmente sem
limite. Dêsse modo, o sábio bíblico, preocupado com
problemas técnicos especiais na pesquisa em que supõe
nada ter a aprender do estudo da pregação ou teologia
contemporânea, para não mencionar a filosofia moderna,
a literatura ou a política, não só está enganado, mas
também está a si mesmo pondo um fim à possibilidade
da mais elevada aquisição em seu próprio campo.
Km conexão a isso, o perigo característico para o pre­
gador é o de impaciência prematura com o especialista.
Por vêzes esquece-sé de que é preciso ter ferramentas
para certo trabalho e que, muitas vêzes, leva-se mais
tempo a fazer ou conseguir as ferramentas necessárias
do que realmente fazer o serviço final e mais òbviamen-
te importante. Reli, e não há muito, Robinson
Crusoe, e fiquei impressionado com o quanto de seu
tempo foi gasto em confeccionar ferramentas que não
tinham utilidade alguma como finalidades em si mes­
mas. Passou êle meses inteiros fazendo uma pá, tanto
como podemos passar meses inteiro aprendendo grego.
Talvez a pá e o grego sejam mais do que um degrau re­
movido de aplicabilidade final; porém, para, a realização
A INTEGRIDADE DA PREGAÇAO 35

de determinados alvos últimos e importantes, pode ser


que não sejam só relevantes, mas indispensáveis. Ou
pode ser que a nossa concepção de relevância seja pre­
m atura em si e, conseqüentemente, superficial ou gros­
seiramente utilitária em demasia. Rejeitamos as desco­
bertas do especialista antes que tenhamos tido tempo
de descobrir o quanto tem a contribuir para a nossa com­
preensão de questões muito além dos limites de seu
campo aparentemente estreito; ou, então, rejeitamos
porque de nosso ponto de vista atual é irrelevante tudo
quanto poderia nos ter dado um nôvo ponto de vista do
qual novas cadeias inteiras de relevância teriam sido
reveladas. Ficamos impacientes com nossos dirigentes
especializados porque nem sempre estão nos apresen­
tando uma visão esplêndida das coisas. Ou talvez de-
cidâmo-nos a dispensar completamente os dirigentes,
preferindo a vista que já temos ou a que podemos facil­
mente achar por nós mesmos, ao invés de seguir a trilha
sinuosa através das longas passagens sombrias até atin­
girmos o pico. Rejeitamos completamente tudo isso
porque não nos provê um sermão que, no entanto, se
fôra dado tempo, poderia nos ter fornecido um evangelho!
O processo educacional, o crescimento em direção à
maturidade intelectual, poderia ser descrito — e real­
mente quase ser definido — como o processo de desco­
brir constantemente regiões cada vez mais extensas de
relevância. Entretanto êsse processo não é indolor, nem
tampouco o seu alvo está à plena vista a qualquer mo­
mento . Certamente que uma das marcas do sábio é sua
habilidade de estar interessado por um número surpreen­
dente de coisas, e, como poderá parecer a outros, em
coisas surpreendentemente desinteressantes — e tudo
porque êle aprendeu que muitas vêzes existem possibi­
lidades de relevância em lugares bem insuspeitos e muito
pouco prometedores. Aprendeu êle que se lhe fôr dado
36 JOHN KNOX

tempo, a verdade — qualquer que seja a sua espécie —


tem um modo de se tornar não só interessante, mas im­
portante; que todo o descobridor da verdade, seja qual
fôr o campo, tem algo de significativo a dizer, embora se
deva por vêzes estar pronto a esperar que o significado
se revele a si mesmo; que a verdade é finalmente uma
só e que, portanto, nenhum pedacinho dela, seja qual
fôr o campo, em último recurso pode ser discrepante ou
irrelevante.
Contudo, se é possível dizer de todos os pesquisa­
dores da verdade que êles se acham empenhados numa
tarefa comum e, portanto, estão sob a obrigação de con­
fiança mútua e ajuda, será que, relativamente ao sábio
e pregador bíblicos, tal referência não pode ser feita com
ênfase tôda especial? Êles pertencem e servem a
uma comunidade especial — e essa comunidade é a de
Cristo. Ambos estão procurando conhecer o significado
de sua comunidade — suas origens, sua natureza e sua
tarefa. O teólogo ou pregador que diz ao outro, “Não pre­
ciso de você”, falhou em ver não só a natureza da Igreja
e o significado da qualidade de ser membro da mesma,
mas também a natureza de seu próprio trabalho. ■Em
vista dêle não estar desejoso de receber, verdadeiramente
não pode dar. E, malogrando em contribuir para um
empreendimento comum, está destituído de qualquer
realização significativa de si próprio. A disposição para
aprender de outros — tanto ávida como pacientemente
— não é só uma das graças do amor; é o próprio coração
da sabedoria.
C a p ít u l o III

TEÓLOGOS E PREGADORES

Tendo lançado as bases de alguns princípios gerais


sobre a relação da Bíblia com a pregação, poderemos
discutir agora como êsses princípios podem ser postos
em prática. De modo geral, até aqui estivemos preo­
cupados com o uso da Escritura pelo pregador; consi­
deraremos agora a utilização de determinados textos da
Bíblia em sermões especiais. Será o uso do pregador
limitado à intenção consciente do texto? Se não, até que
ponto ou sob quais condições pode êle partir daquele
sentido original? Pode ser encarado como legítimo o de­
senvolvimento de significados meramente implícitos?
Na Igreja, até que ponto o emprêgo extensivo de um ver­
sículo bíblico, com certo significado, pode justificar o
seu uso continuado com êsse mesmo sentido, conquanto
o estudo histórico tenha deixado bem claro que êsse ver­
sículo possuia significado bem diferente no original?
Será legítimo focalizar a atenção em determinado ser­
mão acerca de um aspecto especial e comparativamente
sem importância do significado de um versículo, mesmo
que seja apresentado um tratamento altamente despro­
porcional no qual o ponto principal do texto receba aten­
ção deficiente ou na verdade nem mesmo apareça?
Embora eu não me aventure a oferecer respostas deta­
lhadas e definitivas a essas diversas questões, elas indi­
cam o problema geral dêste capítulo. De modo nenhum
é um problema simples ou fácil de ser resolvido.
38 JOHN KNOX

O primeiro passo para a solução, porém, está bas­


tante claro: o uso do texto pelo pregador precisa começar
por um conhecimento do significado original do mesmo.
Seja o que fôr que êle fizer com o texto, precisa saber o
que está fazendo; e isso significa conhecer o que o texto,
na realidade, significou para o seu escritor e o que êste
pretendia que o mesmo significasse para seus primeiros
leitores. Por certo é impossível saber o que alguns textos
bíblicos pretendiam transmitir originalmente, quer seja
porque o fraseado original é incerto ou ambíguo ou por
alguma outra razão. Não há, entretanto, desculpa algu­
ma para nossa falha em conhecer tanto quanto possí­
vel, e, na maioria dos casos, o sentido original é
bastante claro se o mesmo fôr pesquisado. Ernest C.
Celwel escreve:
De modo geral, há somente dois métodos de interpre­
tação da Bíblia. São os métodos de “modernização” e “his­
tórico”. Cada um dêsses métodos tem inúmeras modifi­
cações e formas, porém os dois estão separados um do
outro por nm golfo que é tão va&to a ponto de restringir
tôdas as divisões menores. O método chamado de moder-
nizador tem os seus pés plantados solidamente no período
em que o intérprete vive; encontra o significado básico da
Bíblia com referência ao período “moderno” em que, natu­
ralmente, o intérprete está mais interessado. O método
histórico, por outro lado, descobre o significado básico da
Bíblia com referência à situação em que ela foi escrita. (5)
A ênfase nas duas últimas sentenças deveria recair
sôbre a palavra “básico” . Temos já visto que, na reali­
dade, nenhum de nós poderá compreender o que a Bíblia
disse à sua própria época, se não ouvirmos também o que
está falando à nossa. Entretanto, tal como o capítulo
precedente deixou claro, não há dúvida com respeito a
onde começa o processo de compreensão. Principia com
o significado do texto em seu cenário original. O sen-
A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO 39

tido básico, tanto para o pregador e não menos para o


sábio bíblico, é o significado histórico.
Pois bem, todos nós reconhecemos que o pregador
está sob a tentação extraordinária de negligenciar nesse
primeiro passo. Não é êle um historiador preocupado
pela história como um fim em si. Está, sim, preocupado
com o significado do Evangelho para a sua própria época
e sente grandes responsabilidades para com os homens
e mulheres modernos, tanto em sua congregação como
na sociedade em geral, cujos problemas e necessidades
requerem a sua atenção de todos os ângulos. Está sob
a mais urgente pressão de “servir a geração atu al. ” Não
é estranho que grande parte das vezes sua primeira in­
dagação acerca de um texto bíblico seja: “Como posso
empregar êsse texto para ajudar minha gente?” ao invés
de: “Qual o sentido original dêsse texto?”
A tendência para descuidar do sentido original é en­
carecida pelo ponto de vista um tanto comum da natu­
reza da Bíblia como a Palavra de Deus. Como tal, de
acordo com essa idéia, ela não é só infalível, mas também
incalculàvelmente convincente e misteriosamente grávi­
da. Literalmente falando, não há limite ao que o texto
possa significar. Tudo quanto as palavras sugiram ao
intérprete — ou, como êle diria grande parte das vezes,
tudo quanto o Espírito Santo comunique — deve ser tudo
ou, pelo menos, uma parte daquilo que o texto pretenda
transm itir. Em vista do significado que as palavras ini­
cialmente tiveram para seus leitores não determinar ou
limitar em grau algum o significado real das mesmas,
para que se dar ao incômodo de inquirir a êsse respeito?
Dêsse modo, acontece que as próprias concepções do pre­
gador tomam precedência às palavras da Escritura em
si e a própria afirmação do significado ilimitado da Bíblia
passa a ser uma negação da mesma. Talvez nenhum
40 JOHN KNOX

de nós chegaria a se expressar como aquêle pregador que


disse: “Não sou matemático, nem biologista, nem tam­
pouco gramático, mas quando se trata de manejar a
Bíblia eu derrubo verbos, quebro preposições e pulo por
sôbre adjetivos.” Não é sem freqüência, porém, que agi­
mos com igual arrogância, passando, sem consideração
nenhuma por sôbre o significado claramente planejado
do texto, a fim de estabelecer o nosso próprio ponto.
Quando se pensa a êste respeito, é de se espantar que
alguém possa fazer isso sob a impressão de que, despre­
zando o significado original das palavras da Escritura,
de certo modo está exaltando a Palavra de Deus. Se
esta fôsse falada por meio de um evento ou desenvolvi­
mento histórico, torna-se então vital reaver aquêle de­
senvolvimento ou evento tão completa e verdadeiramen­
te como pudermos. Daí a importância do trabalho do
sábio bíblico. Daí também a importância do pregador
começar a empregar determinado texto com uma com­
preensão tão clara quanto possível do seu significado
original.
Não é necessário que se diga aqui muita coisa a res­
peito do método para conseguirmos essa compreensão.
O terreno já foi palmilhado muitas vêzes e é conhecido.
Está claro que é mister que se conheça, se possível, o que
o texto realmente afirma —■ querendo isto dizer que
dever-se-ia conhecer o texto grego ou hebráico. Se o
manuscrito ou outra antiga evidência torna incerto o
fraseado exato, o pregador deveria estar preparado para
considerar as várias possibilidades e chegar a uma con­
clusão inteligente quanto à forma apropriada do texto.
É preciso, então, que êle traduza o texto utilizando-se
dos muitos recursos que o conhecimento moderno põe
à disposição — dicionários, gramáticas, concordâncias,
comentários — de acordo com o limite de suas capacida­
des (e com prática e disciplina essas capacidades podem
A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO 41

ser aum entadas). Caso o pregador não conheça as lín­


guas originais, é mister que dependa inteiramente de
outros, tanto para a determinação do texto correto como
para a sua tradução. Contudo, para êsse pregador, ricos
recursos também estão disponíveis, com o grande nú-
: mero de excelentes traduções modernas, sendo que ao
fazer um acomparação das mesmas, êle estabeleceria,
com vantagem, tanto um texto de maior autoridade como
uma versão mais acurada para sua língua.
Quando alguém traduz um texto ou se decide com
respeito à tradução feita por outra pessoa, começou já
a interpretar. Na verdade a tradução dificilmente po­
derá vir a ser certa e definitiva até que seja completado
— ou pelo menos bem adiantado — o processo de inter­
pretação . Muitas e muitas vêzes não é simples nem tam ­
pouco fácil êsse processo de descobrir o que o texto signi­
ficava em sua origem. É mister que se conheça tão bem
quanto possível o livro bíblico do qual é extraído o texto
— a situação histórica e cultural que é refletida no mes­
mo e para a qual é dirigida; seu propósito geral e o curso
geral de seu argumento; e a relação do texto com êsse
argumento e propósito. É preciso que, tanto quanto
possível, o texto seja visto em sua composição imediata
e total. É necessário colocar-se de modo inteligente no
lugar do escritor e compreendê-lo à luz daquilo que se
conhece acêrca dêle — suas circunstâncias, suas expe­
riências, suas idéias e suas responsabilidades. É preciso
que se entre, de modo imaginário, na situação dos pri­
meiros leitores, sentindo tão concretamente como possí­
vel os interêsses e necessidades dos mesmos. Uma vez
mais podemos lembrar-nos que o moderno conhecimen­
to bíblico tem ricas capacidades para nos ajudar a con­
seguir êsse tipo de compreensão histórica.
Assim, o conhecimento adquirido pelo pregador nem
sempre precisa ser narrado minuciosamente à con­
42 JOHN KNOX

gregação durante o seu sermão. Um sermão bíblico não


é preleção sôbre a Bíblia — mesmo que seja preleção
cheia de humor, como alguns dos sermões de Patton que
dariam essa impressão, ou mesmo uma preleção mais
séria. É verdade que os sermões deveriam ser mais re­
veladores quanto à Bíblia em si e os problemas literários
e históricos que a mesma apresenta, do que grande parte
das vêzes dão mostras de ser. Um pregador interessado
em levantar o nível geral do conhecimento da Bíblia que
sua congregação tem, sempre encontrará meios de com­
partilhar diretamente com ela os resultados mais im­
portantes de seus próprios estudos. E Patton tem tôda
a razão ao afirmar que as pessoas estão mais preparadas
para receber informações do que muitas vêzes damos cré­
dito a elas com relação a isso. Ainda assim, pelo menos no
que diz respeito ao sermão, a indicação de uma simples
informação será um interêsse subordinado e incidental.
Porém, isso não quer dizer que a própria posse do conhe­
cimento disponível e relevante tanto literário como his­
tórico seja subordinado e incidental enquanto êle se pre­
para para pregar sôbre certo trecho em qualquer sentido
ou grau. Êsse conhecimento é indispensável. Por piais
que existam modos legítimos ou ilegítimos de se empre­
gar um texto na pregação, não pode haver a utilização
apropriada de um texto que não comece por uma com­
preensão verdadeira, tanto quanto possível, de seu sen­
tido original ou histórico.
Mas, legitimamente falando, que tem a ver o sermão
com o texto? Quais os usos apropriados que podem ser
feitos dêle? Que “partidas” podem ser permitidas do
mesmo? Numa só palavra, que resposta ou respostas
podem ser dadas às questões que foram apresentadas no
início dêste capítulo?
Geralmente constatamos que, se alguém principiar
com um reconhecimento claro do sentido original do
A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO 43

texto, êsse tipo de problema não surgirá. Se o texto fôr


uma parte vital da Escritura e, portanto, realmente valha
a pena ser pregado, sendo constatado o que, na reali­
dade, significa em seu contexto bíblico e histórico, de
modo geral o pregador sentir-se-á movido a pregar êsse
significado. O sermão será um esforço de transm itir e
aplicar o sentido original do texto e não haverá dúvida
quanto à “partida” do mesmo. O próprio entendimento
que alguém tenha do significado do texto original, tal
como vimos no capítulo anterior, envolve um sentido
vivo de sua importância presente e o impulso completo
para usar o texto na pregação provém dessa compreen­
são . Em tais casos, o conhecimento do que o texto disse
à sua geração é o conhecimento do que tem a dizer à
nossa — e o pregador estará interessado em apresentar
e aplicar de nôvo e de modo preciso aquêle significado,
e nenhum outro. Se a grande maioria de nossos sermões
não estão relacionados aos textos dos mesmos, dêsse modo
direto e imediato, temos boa razão para suspeitar da so­
lidez de nossos métodos de pregação.
Quando falamos do “sentido original” de uma pas­
sagem ou de seu significado em seu “contexto original”,
deveríamos ter em mente não apenas as suas re­
lações lógicas dentro da sentença, parágrafo, capítulo ou
livro em que seja encontrado, mas também algo muito
mais rico e muito mais significativo. O “contexto ori­
ginal” não é mera forma de palavras, mas sim a vida
real da antiga comunidade religiosa em que primeira­
mente o texto foi ouvido e conservado. Posso imaginar,
por exemplo, três tipos de sermões acêrca da conhecida
história de Bartimeu no Evangelho, o mendigo cego que
exclamou, quando Jesus passava, “Jesus, Filho de Davi,
tem compaixão de mim!” (Mc 10.46) e a quem Jesus
curou com uma só palavra. Um sermão encontrará
nesse incidente a prova de que Jesus era o Messias — êle
44 JOHN KNOX

foi chamado “Filho de Davi” e demonstrou que merecia


êsse título através de seu ato miraculoso. O propósito
do sermão será o despertamento ou a confirmação da
crença de que verdadeiramente Jesus era o Cristo. O
segundo sermão porá ênfase na compaixão humana de
Jesus. Jesus está passando, preocupado com outras
questões, quando ouve o clamor do mendigo. Êle pára,
pergunta o que o homem deseja e bondosamente vai de
encontro à necessidade dêle . O propósito do sermão
será o de animar semelhante sensibilidade, cortezia e
generosidade. O primeiro desses dois sermões pode con­
siderar-se mais fiel ao texto, sendo, mesmo assim, inapli­
cável e, portanto, por mais verdadeiro que seja, não é
um sermão verdadeiro. Ninguém pode ser convencido
de que Jesus era o Cristo, por um simples incidente do
passado. Uma convicção intelectual baseada em fato
passado dessa espécie não teria significação alguma. O
segundo sermão talvez poderia fazer melhor reinvidica-
ção quanto à relevância; mas certamente que o uso tão
superficial de um texto não pode ser autêntico. Não
foi por causa dessa espécie de significado encontrado
nela que a história chegou a ser relembrada e finalmente
registrada no Evangelho. ^
No entanto, o térceiro sermão não tratará o inci­
dente como um evento passado do qual podemos extrair
lições verdadeiras ou úteis — quer sejam doutrinárias
ou éticas — mas como um acontecimento em nossa pró­
pria história. Somos como o cego Bartimeu. Cristo nos
pergunta: “Que queres que eu te faça?” Somos nós quem
respondemos, ou deveríamos responder: “Mestre, que
eu torne a v er.” E, na medida de nossa fé, somos tira­
dos das trevas para a sua maravilhosa luz. É óbvio que
somente quando o texto é compreendido dêsse modo
chega a ser profundamente aplicável. Mas é bem ver­
dade também que só uma compreensão dessas é històri-
A INTEGRIDADE DA PREGAÇAO 45

camente autêntica. Êsse é o tipo de significado que o


texto possuía desde o princípio. Em vista de responder
dêsse modo às realidades da vida da Igreja primitiva é
que se tornou uma parte de sua pregação e mais tarde
foi incorporado no Evangelho. Êsse uso do texto não é
uma alegorização imaginativa. Descansa sôbre o único
tipo adequado de exegese. Isso porque se não escutarmos
esses textos como se fossem falados a nós, não os ouvi­
mos como o foram na Igreja primitiva e, portanto, não
os ouvimos em seu contexto verdadeiro e original.
Incidentalmente, pode-se assinalar que o reconheci­
mento do fato do terceiro sermão ser o único verdadeiro
sôbre o texto, ajuda a resolver o problema com que a crí­
tica histórica e literária da Bíblia parece, por vezes, con­
frontar o pregador. Uma vez constatado que o signifi­
cado autêntico do texto é o sentido que possuia — e ainda
possui — no contexto da vida da Igreja, tornaram-se
grandemente irrelevantes as indagações relativas a
quem primeiro o pronunciou ou escreveu, ou acêrca de
sua proximidade com algum incidente ou fato real. A
verdade do texto depende inteiramente da autenticidade
com que é estabelecido o significado do evento histórico,
tal como êste era conhecido dentro da Igreja primitiva e
como agora é conhecido ou pode ser conhecido dentro da
vida da comunidade histórica ininterrupta. (6)
Algumas vêzes, porém, verificaremos e também se­
remos movidos a pregar sôbre significados de textos, dos
quais há boa razão para duvidarmos, sôbre o que os es­
critores originais pretendiam ou o que os primeiros leito­
res reconheciam. Nesse caso, a questão de fidelidade está
em sabermos se os significados estão realmente implíci­
tos no texto, se são vistos erroneamente ou se são fran­
camente introduzidos nêle. Se o significado do sermão
não fôr encontrado — quer seja consciente ou implicita­
mente — o uso do texto é ilegítimo, não importando
40 JOHN KNOX

quãolnteligen temente o ministro faça com que as meras


palavras do mesmo sirvam para seu propósito. Muitas
vêzes são flagrantes e inequívocas nossas violações dêsse
princípio de justeza. Ninguém duvidará, por exem­
plo, que esteja implícito na pergunta de Faraó a Jacó:
“Quantos são os dias dos anos da tua vida?” um sermão
sôbre as dimensões da vida, qualquer que seja o seu sen­
tido ou grau. Mas não raras vêzes a questão de fidelidade
é muito mais difícil de responder e grandes exigências
são feitas com respeito a nossos poderes de honesta dis­
criminação. Ainda assim, o princípio permanece, por
mais difícil que seja a aplicação em determinados casos.
Não se pode honestamente dar a aparência de que se
extrai de um texto o que não há nêle. Tampouco não é
direito ou prudente basear um sermão sôbre algum texto
que não possa suportá-lo com firmeza.
Entretanto, é preciso que se reconheça a realidade
— e muitas vêzes a rica variedade — de significados me­
ramente implícitos. O significado completo de uma afir­
mação qualquer é conscientemente apreendida por aque­
les que primeiro a ouvem ou até mesmo por aquêles que
a pronunciam pela primeira vez. O grande pensador ou
poeta está sempre expressando mais do que tem cons­
ciência de ter dito, ê o grande arquiteto está sempre
edificando mais sàbiamente do que imagina. As pala­
vras do profeta hebráico, do salmista, de Paulo, de João
ou até mesmo do próprio Jesus (na realidade, principal­
mente dêle) são mais fecundas além do próprio conhe­
cimento dêles e são verídicas em sentidos que seus ouvin­
tes jamais poderiam ter sonhado. Por vêzes, qualquer
acontecimento ou desenvolvimento nos tempos modernos
não só ilustrará de nôvo ou confirmará um antigo texto,
mas também revelará plenamente novas dimensões de
significado dentro do mesmo. Ocasionalmente, até mes­
mo alguma experiência pessoal de alguém revelará algu­
A INTEGRIDADE DA PREGAÇAO 47

ma capacidade ou aplicação do texto e que o escritor ori­


ginal dificilmente teria estado a par.
Semelhantemente, um incidente na narrativa bíbli­
ca pode ilustrar alguma verdade universal ou eterna
acêrca de Deus, do homem, do dever ou da salvação, sen­
do que todos quanto a registraram — sem falar daque­
les que originalmente testemunharam dêle — nunca
chegaram a pensar. Quando, na crucificação de Jesus
entre dois ladrões. Reinhold Niebuhr vê uma exemplifi­
cação da verdade de que a sociedade convencional tende
a tratar seus criminosos e santos de modo idêntico, não
está empregando mal o seu texto, embora seja quase
certo que êle esteja estabelecendo um ponto que os obser­
vadores da crucificação, nem tampouco os escritores do
Evangelho jamais tivessem pensado. Ainda assim o
ponto é verdadeiro, repetidamente ilustrado, tanto na
história como na vida comum e estabelecido de modo
supremo nas circunstâncias da morte de Jesus para que
o vejam todos quantos têm olhos. Não é introduzida:
encontra-se lá. Do mesmo modo, poder-se-á ver na res­
posta de Jesus a Marta, quando ela solicitou que êle cha­
masse a atenção de sua irmã, ou na resposta do Mestre
ao homem anônimo que se queixava contra seu irmão
com respeito a uma herança — isto é, em ambos os casos
poder-se-á ver na resposta de Jesus um lembrete de que,
quando permanecemos diante de Deus estamos sempre
na posição de acusados e nunca de acusadores. Deus
não ouve nossas queixas contra outros; antes, êle per­
gunta — “E tu? Olha para ti mesmo!” Tal significado
pode ou não ter sido visto nesses incidentes pelo escritor
do Evangelho que os registrou, mas lá está.
Em outras palavras, um sermão não “parte” de seu
texto quando encontra um nôvo significado nêle. O uso
autêntico dum texto não precisa ser “insípido”; a utili­
zação imaginativa não é necessàriamente extravagante
48 JOHN KNOX

e falsa. Na verdade, se nosso uso de certo texto fôr real-


meiUe sem imaginação e enfadonho, não pode ser autên­
tico. Não se pode estabelecer regras rígidas de fidelidade
nesse domínio. Só se pode confiar na inteligência, inte­
gridade, bom gosto e só isso é que satisfaz — contanto
que o pregador sempre comece por uma compreensão tão
clara quanto possível do significado original. Sem essa
compreensão êle se encontra sem leme ou compasso para
empregar a Escritura, por mais inteligente, honesto ou
sensível que seja. Com isso êle achará difícil extra-
viar-se demasiadamente.
C a p ít u l o IV

PREGAÇÃO Ê ENSINO

Já vimos que a palavra “pregação” é derivada do


latim -praedicatio, que por seu turno traduz o grego
kerygma, palavra esta que, em seu sentido mais geral,
significa a proclamação de um fato ou de um aconte­
cimento. É usada regularmente no Nôvo Testamento
para descrever a mensagem e (em sua forma verbal) a
atividade dos evangelistas Cristãos, os quais tinham
“boas novas” supremas para contar, boas novas de que,
em Cristo, Deus visitou e redimiu o seu povo e que a sal­
vação estava sendo oferecida gratuitamente a todos
quantos se arrependessem e pusessem sua confiança nêle.
Os pregadores eram os arautos do reino de Deus. Anun­
ciavam o fato da obra bondosa de Deus em Cristo e cha­
mavam seus ouvintes para reagirem de modo apropriado
em penitência e fé. Eram, como temos visto, os prega­
dores do Evangelho.
Em nossas mentes, a palavra “evangelho” primeira­
mente está associada aos livros no comêço do Nôvo
Testamento; êsse, porém, é um uso derivado e não pri­
mário do têrmo. Nenhum dos Evangelhos foi original­
mente chamado por êsse nome, nem tampouco, na reali­
dade, essa palavra foi muitas vêzes empregada nesses
livros. Lucas emprega freqüentemente a forma verbal
correlata que significa “proclamar boas notícias”, porém
o substantivo “evangelho” não é encontrado em Lucas
ou João e aparece onze vêzes apenas conjuntamente em
50 JOHN KNOX

Marcos e Mateus. Aparece duas vêzes em Atos, uma vez


em I Pedro, uma vez no Apocalipse e em nenhum outro
lugar do Nôvo Testamento, exceto nas epístolas Pauli-
nas — onde é encontrado umas sessenta vêzes! Paulo,
que pode ser suspeito de ter realmente cunhado essa
palavra em seu sentido Cristão, certamente não estava
pensando num livro quando a empregou. Pensava, sim,
no conteúdo da pregação Cristã. Não sabemos ao certo
como o têrmo chegou a designar um livro ou um cânon
de livros. Talvez isso tenha acontecido sob a influência
do primeiro versículo de Marcos, “O princípio do evan­
gelho de Jesus Cristo”, uma frase encontrada na sen­
tença introdutória, tornando-se assim o título do livro
e daí o título de outros livros do mesmo tipo. Pode ser
que isso tenha ocorrido sob a influência de Márcion, o
primeiro a canonizar qualquer um de nossos livros do
Nôvo Testamento e cujas escrituras continham, entre
outros, um documento bem parecido com o nosso Lucas,
mas chamado por Márcion simplesmente de “o evange­
lho” (sem dúvida nenhuma corresponde à “lei” no cânon
judáico, que êle rejeitara) . Como apoio a essa explica­
ção, pode ser citado o fato de que, quando os outros Evan­
gelhos chegaram a ser estabelecidos como canônicos, não
eram denominados.“Evangelhos” de Marcos, Mateus,
Lucas e João. A forma no singular sugere o significado
original da palavra “evangelho” — não um livro, mas
uma mensagem, que poderia ser apresentada de for­
ma diversa por diferentes autores, mas que em si era
necessàriamente singular e única. No princípio de tudo
não havia tais documentos como os nossos evangelhos.
O “Evangelho” da ação salvífica de Deus em Cristo pri­
meiramente não foi uma história escrita num livro, mas
uma proclamação nos lábios dos pregadores primitivos.
C. H. Dodd principia seu pequeno opúsculo The
Apostolic Preaching (7) chamando a atenção para a dis­
A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO SI

tinção entre pregação e ensino feita na Igreja primitiva.


Ensino (didachê), justamente com exortação (paraklê-
sis), em sua maior parte era uma instrução ética e apêlo
endereçado a pessoas já estabelecidas na fé. Pregação
(.kerygma) era primàriamente dirigida a não-Cristãos.
Era proclamação e não instrução ou exortação. Não
pode haver dúvida quanto à solidez dessa distinção —
tudo quanto tem sido dito relativamente ao significado
da palavra “pregação” indicará outro tanto. Contudo,
indago se a distinção entre “pregação” e “ensino” era
tão pronunciada como Dodd dá a entender e, mais par­
ticularmente, se as funções do pregador e do professor
eram, na realidade, tão separadas na vida da comuni­
dade primitiva.
Estudantes da Igreja primitiva estão acostumados
a falar (como, por exemplo, em discussões das origens
e desenvolvimento da tradição do Evangelho) dos “pri­
meiros pregadores e professores Cristãos.” Será que
êles querem com isso dizer duas classes de pessoas, ou
estão êles se referindo a dois tipos de atividades que as
mesmas pessoas poderiam exercer? Seja o que fôr que
signifiquem, é muitíssimo difícil que duas classes sepa­
radas de funcionários existissem, de fato, e uma per­
gunta pode ser feita de modo apropriado com respeito
a quão pronunciadamente as duas funções seriam dis­
tintas uma da ou tra. Não se poderia proclamar as boas
novas de Cristo sem procurar, ao mesmo tempo, explicar
o seu significado e fundamentar o mesmo com argumen­
tos e exemplos, sem esquematizar algumas de suas im­
plicações éticas. E não se poderia, à maneira do profes­
sor, interpretar o significado da vida Cristã em si, sem
trazer constantemente à lembrança de seus próprios
ouvintes, o acontecimento de Cristo. Embora o verbo
“pregar” na mais das vêzes tenha como seu objeto
um termo como “o evangelho” ou “o reino de Deus”,
52 JOHN KNOX

Paulo pode (em Rm 2.21) falar em “pregar que não se


deve fu rta r.” E, embora aparentemente verdadeiro que
“ensino” fosse geralmente endereçado áos crentes, lemos
(em At 13.12) que o procônsul pagão Sérgio Paulo
tTcreu maravilhado com a doutrina (ou ensino) do Se­
n h o r,” Na realidade, há muitas indicações que “ensino"
era um têrmo vasto que podia incluir a proclamação
dos fatos do Evangelho bem como instrução ética e
advertência.
De fato, a distinção entre os ministros Cristãos
primitivos que é mais frequente no Nôvo Testamento,
não é entre “professores” e “pregadores”, mas sim entre
“professores” e “profetas” . Paulo, na lista, primitiva que
possuimos das funções da Igreja e dos funcionários
(1 Co 12.28), fala inicialmente de “apóstolos”, “profe­
tas”, “professores”, nessa ordem. É quase certo que os
“apóstolos” são o grupo limitado dos líderes de autori­
dade em tôda a Igreja — aqueles a quem, assim se cria
— o próprio Jesus, imediatamente depois de sua ressur­
reição, havia comissionado como seus representantes e
os enviara para proclamar o Evangelho e estabelecer
Igrejas. Cem êles outros evangelistas foram associados,
os quais serviam sob as ordens dos primeiros ou que os
acompanhavam em suas viagens — homens como Tito,
Timóteo, Barnabé, Marcos — e estes também, em certas
ocasiões, podiam, talvez, ser chamados “apóstolos” . En­
tretanto, de qualquer modo que sejam definidos, os
“apóstolos” pertenciam à Igreja como um tôdo, e não
às congregações locais. Os ministros locais principais
são os “profetas” e os “professores” . É claro que a pre­
gação será uma das funções mais importantes do após­
tolo — êle é o evangelista por excelência — mas será que
devemos supor que também não houvesse evangelistas
nas Igrejas locais? Será que o Evangelho seria procla­
mado naquele lugar tão somente quando um apóstolo
1. A INTEGRIDADE DA PREGA ÇÀO ' ;' i

autorizado visitante estivesse presente? Fazer uma per­


gunta dessas é quase respondê-la. Cada congregação
Cristã, estabelecida num vasto ambiente pagão, era cons­
ciente de uma constante oportunidade e tarefa evange-
lística. Mas ainda mais importante que isso é o fato
de que as “boas novas” precisam ser, e podem ser, re­
vistas continuamente. O evento de Cristo precisa ser
continuamente declarado — tanto na assembléia dos
santos como na dos descrentes. Aquilo que Dodd deno­
mina pregação apostólica teria lugar em tôda e qualquer
igreja local, dia após dia, semana após semana. Entre­
tanto, não ouvimos falar de “pregadores” em conexão
a isso. A pregação era feita pelos “profetas” e “profes­
sores” . Que podemos saber acêrca dêsses ministros da
Igreja primitiva? ■ A A . , , ::
Os “profetas” certamente devem ser vistos contra
o cenário de fundo da profecia hebraica. Os profetas
aparecem claramente em Israel nos primórdios, tão cedo
como do início da monarquia, porém suas origens são
muito mais antigas. Eram “homens de Deus”, identi­
ficados como tais por um dom pessoal notável. Essas
pessoas são encontradas em tôda a comunidade primi­
tiva. Estão de modo especial sujeitos a transe e êxtase
e sentem serem possuidos pelo mana divino, o Deus mis­
terioso. São “inspirados”. Alguns dos mais antigos pro­
fetas foram homens de inteligência fora do comum e de
poder moral, tais como Samuel e Elias. Alguns dêles
eram dervixes errantes. Amós, Oséias, Isaías, Miquéias
e outros como êles também foram profetas. Êsses ho­
mens de dons pessoais e intelectuais bem extraordinários
tiveram cuidado para se distinguirem do tipo comum:
“Eu não sou profeta, nem filho de profeta” (7.14), afir­
ma Amós. Êles, porém, tinham isto em comum com
outros profetas — e é a coisa essencial — a de que se
54 JOHN KNOX

julgavam (ou eram julgados) como que em contínua


e íntima relação com Deus, recebendo a palavra direta­
mente dêle e também a capacidade extraordinária de
comunicar em um sentido da realidade e do poder teme­
roso do divino. :
Tudo nos faz crer que homens e mulheres dessa es­
pécie foram os profetas da Igreja primitiva. Sem dúvi­
da nenhuma alguns deles eram o tipo do dervixe pri­
mitivo, e alguns desses eram imitações conscientes ou
inconscientes. Luciano, um escritor pagão do segundo
século, escreveu uma sátira divertida a respeito de um
dêles, um homem chamado Peregrinus que alcançou su­
cesso explorando caridade e credulidade dos Cristãos. O
escritor do Didaquê, um manual primitivo da ordem da
Igreja, chama a atenção das congregações para essas
pessoas. As indicações dadas para experimentar os
“profetas” são simples, mas perspicazes. Se um profeta
visitante pedir hospitalidade, deve ter permissão de ficar,
“não mais do que um dia ou, sendo necessário, dois; se,
ção pessoalmente participará da mesma; se o fizer, é um
falso profeta... Nenhum profeta que pedir uma refei­
ção pessoalmente participará da mesma; se o fizer, é um
falso profeta... Se pessoalmente pedir dinheiro ou qual­
quer outra coisa, não se deve ouvi-lo.” O escritor resu­
me: “Nem todo aquele que fala pessoalmente é profeta; é
profeta só se tiver o comportamento do Senhor.” Mas
nao pode haver dúvida de que a maioria dos profetas
provaram ser verdadeiros.
O comportamento não era a única prova; o verda­
deiro profeta deveria “ensinar a verdade. ” Suas palavras
edificarão a Igreja. Paulo também estabelece êsse ponto
ao falar da mais extrema das formas de êxtase em Co­
rinto, aquêles que falam em línguas estranhas. Embora
não coubesse a êle inquirir acêrca da genuinidade e
valor dêsse tipo de falar extásico, não deu ao mesmo o
A INTEGRIDADE DA P REGAÇA O 55

nome de profecia. Essa designação foi reservada para


o discurso inteligente que provasse seu valor pela edifi­
cação da congregação. “Quem fala em outra língua, não
fala a homens, senão a Deus, visto que ninguém o en­
tende, e em espírito fala mistérios. Mas o que profe­
tiza, fala aos homens, edificando, exortando e consolan­
do” (1 Co 14.2-3).
Como, então, os profetas diferiam dos profes­
sores? Eu não creio que as duas classes fossem comple­
tamente distintas uma da outra na Igreja primitiva, ou
que qualquer separação clara, até de função, existisse
entre elas. (8) O termo “professor” designava a catego­
ria mais extensa, mais geral. Os profetas eram todos
professores, porém nem todos os professores eram pro­
fetas — tal como os apóstolos todos podem ter sido pro­
fetas, porém todos os profetas não foram apóstolos. Os
profetas eram professores com um tipo especial de ins­
piração, homens e mulheres dotados de maneira caracte­
rística com um poder misterioso de comunicar a presença
de Deus. O profeta ficava, de modo todo especial, pos­
suído pelo Espírito e era capaz de “ensinar” com um
poder também especial, despertando emoções e movendo
a consciência tão bem quanto iluminando a m ente. Não
se deve supor que o “professor” não tivesse êsses dons
“pneumáticos”; êle também era inspirado “pelo mesmo
Espírito” (1 Co 12.4-11). Entretanto, era menos rica­
mente dotado com respeito a isso, embora em outros
aspectos (tal como, por exemplo, na capacidade de expli­
car de maneira coerente e com persuasão racional) pu­
desse — em determinado caso — ter sido mais dotado
do que muitos dos profetas. Ainda assim, tal como os
profetas, com uma autoridade mais vasta e mais elevada
na Igreja, eram “apóstolos”, também os professores
mais inspirados eram “profetas”. Nada há para
indicar que os vários grupos tivessem coisas dife­
56 JOHN KNOX

rentes a dizer — todos estavam preocupados com o


“evangelho”, a “pregação”, e todos sentiam a responsa­
bilidade de iluminar as mentes e consciências de seus
ouvintes. Todos tinham responsabilidades, tanto evan-
gelísticas como pastorais. Os apóstolos eram professo­
res bem como pregadores, e os profetas e professores
locais todos eram pregadores assim como professores.
Pelo menos os apóstolos e profetas tiveram outras ta­
refas. Assim e que os apóstolos tinham responsabilida­
des administrativas importantes e os profetas aparente­
mente eram responsáveis, de modo geral, pela conduta
do culto normal da congregação. Êsse o significado de
tais termos na Igreja primitiva.
O ministro moderno, tal como o antigo bispo, com­
bina as funções de todos os três tipos primitivos, tanto
quanto um homem pode fazê-lo. Êle é o pastor e o ca­
beça administrativo da Igreja, o líder do culto, e o pre­
gador. Nossa preocupação com respeito a êle está na
última dessas três funções, e nessa capacidade êle
corresponde de modo mais íntimo com o professor.
Sendo dotado de determinado tipo de sensibilidade
e eloqüência, capacitado, acima de outros professores, de
sentir e comunicar a* realidade concreta do Espírito, fi­
cará bem próximo ao profeta primitivo quanto ao tipo
(e, na situação moderna, tanto quanto na antiga, haverá
muitos falsos profetas, pois que há muitos tipos de espí­
ritos, tanto na atualidade como antigam ente). O pre­
gador, no entanto, quer seja ou não profeta, será
professor. A palavra “ensinar”, porém, implica em uma
cadeia sem limites de conteúdo, No sentido antigo está
preocupada com nada menos do que a proclamação e
interpretação do Evangelho — o anúncio da ação de
Deus em Cristo e a introdução de tôda a vasta riqueza
de seu significado para a história humana e para tôda
A INTEGRIDADE DA PREGAÇAO 57
a criatura humana. E o critério de seu sucesso é a edi­
ficação da Igreja, tanto em número como na compreen­
são e devoção.
Não raras vezes os têrmos “ministério de ensino” ou
“sermão de ensino” têm sido usados entre nós num sen­
tido restrito, se não um tanto depreciativo. Pregação é
algo mais do que isso — ou mesmo outra coisa — que
ensino, segundo se supõe. Precisamos compreender que,
a não ser que pregação seja ensino, não é pregação.
Para estar certo, pregação é o ensino altamente distinto
por causa do caráter e significado de seu conteúdo, por
causa de sua determinação no culto, por causa da inter-
-relação pessoal que o pregador mantém com sua men­
sagem, e porque êle está se dirigindo, não somente às
mentes de seus ouvintes, mas também à sua vontade —
a êles verdadeiramente como pessoas completas em si
mesmas. Procura não só convencê-las, mas também le­
vá-las a uma decisão. Consideraremos essas notas de
distinção nos capítulos subseqüentes. O pregador, con­
tudo, é ainda basicamente o professor. Sua responsabi­
lidade primária é para com a compreensão da verdade
e o significado do Evangelho e para a comunicação dessa
verdade e significado (inclusive todas as implicações lhe
é dado constatar) tão clara e persuasivamente quanto
possível. A não ser que o ensino seja êste, é meramente
som — ou, talvez, som e fúria ■ — por mais fervoroso ou
atraente que seja. Quando a pregação deixa de ser
iluminadora, não se torna “profecia”, como, por vêzes,
podemos supor em vão, mas “línguas” — e “línguas”
de um tipo todo característico, irresponsável e sem
sentido algum. De acordo com Paulo, os que falam
línguas estão falando para Deus. A pregação que não
fôr iluminadora — quer seja porque é ininteligível, irre­
levante ou trivial — não fala a Deus nem tampouco ao
homem.
58 JOHN KNOX

Já definimos o “ensino” nessa conexão de maneira


muito extensa, como estou certo de que deveríamos fa­
zê-lo; poderemos, porém, terminar esta discussão de ma­
neira apropriada, lembrando que até mesmo no sentido
mais estreito em que comumente é empregado o têrmo
quando falamos de “sermões de ensino” — mesmo nesse
sentido, o ensino tem a maior importância. Ouvimos
freqüentemente falar do “analfabetismo” das congrega­
ções de modo geral — homens e mulheres que são inte­
ligentes com relação a outros assuntos e que, porém, são
completamente simples ou desesperançadamente confu­
sos em seu pensamento com respeito à Igreja e sua fé.
Por que é isto verdade? Sem dúvida nenhuma podem
ser encontradas muitas causas; entretanto, não será que
uma das mais significativas seja a falha da pregação
da Igreja no sentido de ser realmente educativa? Muitas
e muitas vêzes essa falha aparecerá no caráter acidental
dos assuntos de pregação — o pregador sem fazer es­
forço aparente para tratar de modo compreensivo du­
rante um período extensivo com os temas importantes
da fé e vida Cristãs, quer seja pela sequência ao ano
litúrgico da Igreja ou de qualquer outro modo. Contudo,
a falha poderá também se manifestar no nível constan­
temente elementar da pregação — os mesmos temas
sendo manipulados de modo idêntico ano após ano, o
pregador aparentemente não tendo nenhuma expecta­
tiva de que sua congregação possa crescer em compreen­
são . Há grande sabedoria em não se dar carne a pessoas
que só estão prontas para o leite; mas algo está errado
quando uma congregação fica permanentemente numa
dieta de leite.
Será que não precisamos confessar que o que mui­
tas vezes está errado em tais casos é que o pregador mes­
mo só toma leite?
C a p ít u l o V

PREGAÇÃO É PESSOAL

.■ Chegamos a constatar que tôda a pregação, além de


qualquer outra coisa, é ensino, òbviamente, porém, nem
todo o ensino — até mesmo o ensino com respeito a um
assunto religioso — é pregação. Num de nossos semi­
nários há um “sermão” especial feito anualmente por
um sábio visitante. Há alguns anos o assunto dêsse
sermão foi “O Texto Ocidental de Atos.” Bem, nenhu­
ma falta foi encontrada no pregador nessa ocasião es­
pecial, tendo suas próprias características tradicionais;
os que dentre nós temos trabalhado com problemas de
crítica textual sabemos o quão fascinante êsse asunto
pode ser. Entretanto, poder-se-ia imaginar o pastor de
uma congregação anunciando êsse tema para o seu ser­
mão de domingo de manhã? E, contudo, por vezes nós
agimos tão erroneamente “pregando” sôbre a autoria dos
Hebreus, ou o número de Isaías, ou mesmo sôbre a orga­
nização do trabalho missionário de nossa denominação,
ou até a constituição das Nações Unidas. Sermão não é
preleção, isso é bem certo. Mas em que é êle diferente? O
que, além de seu conteúdo geralmente religioso ou até
mesmo Cristão, distingue a pregação de outros tipos de
ensino? Os capítulos restantes dêste livro preocupar-
-se-ão com esta m atéria. A resposta, assim o creio, está
na natureza pessoal da pregação e na relação que a mes­
ma tem com o culto normal, de um lado, e com o Espírito
e o evento de Cristo, de outro.
60 JOHN KNOX

Podemos começar, então, por dar ênfase ao caráter


pessoal da pregação. O pregador é uma pessoa dirigin­
do-se a outras pessoas. Seu discurso vai direta e imedia­
tamente a um grupo de ouvintes, sendo tirado da expe­
riência e compreensão pessoal. Qualquer professor se
dirige a um grupo de ouvintes, naturalmente, mas po­
derá estar falando menos como uma pessoa a outras
pessoas do que como um especialista sôbre o assunto de
sua preleção a uma audiência presumivelmente interes­
sada em aprender mais acêrca daquele assunto. O pre­
gador não é um especialista em religião dando informa­
ções a aprendizes interessados, mas sim alguém que
está repartindo algumas de suas experiências mais inti­
mas e profundas com outras pessoas. Pregação não é
discurso sôbre religião; é uma pessoa religiosa falando.
Êsse caráter pessoal da pregação é que torna tão
importante a integridade moral do pregador. Argumen-
ta-se muitas vezes que a validez e eficácia dos sa­
cramentos da Igreja não são elevadas nem tampouco de­
terioradas pelo caráter moral do sacerdote que está ofi­
ciando . Seria muito mais árduo estabelecer êste ponto
com respeito à pregação. O grau de nossa boa qualidade,
como pregadores, depende — não completamente, mas
(não cometa êrro!) primàriamente — no grau de nossa
bondade como homens. E que não haja má compreen­
são sôbre o que desejo dizer com “o grau de nossa bon­
dade . ” Quero significar com isso o quão honestos somos,
o quão íntegros e sinceros, o quão livres de orgulho, fal­
sidade, pretensão, complacência própria ou preocupação
com os nossos próprios problemas. Quero também dizer
com isso o quão penitentes somos, com que paixão ou de­
sejo procuramos a Deus, quão prontos estamos a nos sub­
meter à sua vontade, quão preocupados estamos em agra­
dar-lhe, quão constantemente compreendemos nossa ne­
cessidade de perdão, quão fielmente dependentes de sua
A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO 61

graça, quão insubmissos em nossa disciplina, quão incon-


tidos em nossa devoção. Quero dizer o quão genuinamen­
te preocupados estamos cora outros, quão prontos a com­
preendê-los e ajudá-los, quão pacientes com êles e quão
amorosos e sensíveis aos anseios mais profundos dos mes­
mos, porque nós próprios estamos vivendo verdadeira e
profundamente. Ninguém dentre nós estará pronto a rei­
vindicar que, nesse sentido, somos boas criaturas; entre­
tanto, travamos conhecimento com homens como êsses
e todos nós sabemos que essa bondade é a qualificação
mais importante que o pregador tem mais do que qual­
quer montante de conhecimento e eloqüência que por­
ventura possua.
Na realidade, o conhecimento ou eloqüência podem
ser, tal como a riqueza, uma armadilha para pegar e des­
truir nossas alm as. É tão difícil para o assim chamado
grande pregador entrar no reino do céu como para qual­
quer outro homem ou mulher de sucesso — talvez até
mais difícil. As tentações para o orgulho são quase que
irresistíveis, e desde que o pregador esteja numa situa­
ção em que precise parecer humilde a fim de ter uma
base socialmente aceitável para o seu orgulho, o pecado
mais grosseiro da hipocrisia é tudo, menos inescapável.
Ao homem de muitos talentos, assim como para o homem
de grande riqueza, Jesus diz: “Se quiseres ter vida, deixa
todo o apoio que tens em tua riqueza, renuncia a todo o
teu orgulho nela e no poder que isso te concede; vem,
toma a tua cruz e segue-me” e, tal como o outro fêz, êste
muitas vêzes “vai-se com tristeza”, pois que a riqueza
não é apenas o nosso único bem ou aquilo que há de
mais íntimo, ou mesmo aquilo em que possamos ter
maior orgulho. Além disso, pode-se solucionar o proble­
ma da riqueza — ou pelo menos escapulir dêle — desem­
baraçando-se do mesmo; não se pode, contudo, desper­
diçar os próprios talentos. É pecado exibi-los ou expio-
62 JOHN KNOX

rá-los egoisticamente, porém de igual modo é pecado


enterrá-los.
E, naturalmente, o homem de um único talento pode
ser tão orgulhoso dêste seu talento e tão egocêntrico no
uso que fizer dêle como o homem de dez talentos seja
dos seus. O homem rico pode estar em perigo todo
especial de cobiça, porém os pobres não estão isentos
disso. Ocasionalmente o homem rico não só é mero par­
ticipante de sua abundância, mas, na realidade, consagra
a abundância em si e, por vêzes, antes de dar todo o seu
sustento, a viúva pobre junta as suas duas moedas. Pode
ser certo que “todo o poder corrompe”, porém não é ne­
cessário que se possua riqueza para ser corrompido pela
mesma; basta ser somente ambicioso, invejar de outros
a posse de bens. Cobiça significa ambição, inveja, e o
orgulho tanto pode torcer como destruir a alma humana
com poucos dons, tanto como a do homem com muitos
talentos. Não há pregador tão verdadeiro e tão honesto
que não sinta freqüentemente como Paulo, o temor de­
sesperado: “ai de mim se não pregar o Evangelho.”
Êsse é um temor saudável e muito realístico, de modo
* especial, quando nos tornamos mais velhos e os músculos
de nossa disciplina tenderem a se enrijar e os pulsos
de nossa devoção baterem mais vagarosamente. Quando
se olha para isso, de certa maneira, não será de se es­
tranhar que por menor prospecto que tenhamos de des­
frutar dêste mundo, de algum modo, mais precioso se
torna para nós? Parece mais fácil ao jovem entregar
tudo do que ao ancião entregar o pouco que lhe resta.
Isto é tão verdadeiro com ministros como para outros.
Demas não foi o último ministro a abandonar o seu
chamado, “tendo amado êste mundo presente.” A
“deserção” não precisa ser aberta e, geralmente falando,
não o é. A grande maioria dos Demas prosseguem com
as atividades de sua profissão e provàvelmente êles mes-
A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO 63

mos não sabem quão distantes estão de Cristo e quão


frias e mortas tornaram-se as brasas que uma vez ardiam
sôbre o altar de seus corações.
Como qualquer um que esteja em conexão com a
educação teológica, muitas e muitas vezes tenho tido que
tratar com um estudante que luta contra o que parece
ser um chamado para o ministério. Uma de suas queixas
mais freqüentes é: “Não sou suficientemente bom para
ser um ministro.” A resposta invariável a essa queixa
é: “Mas ninguém é ou pode ser. Na verdade, a pessoa
que mais clara e certamente seja imprópria para o mi­
nistério seria aquela que pensasse ser suficientemente
boa para isso. ” Sem dúvida nenhuma, isso é a verdade
em tôda sua clareza e, no entanto, é algo de sólido o senti­
mento instintivo do estudante quanto a uma conexão es­
pecial entre a bondade espiritual e o trabalho do ministé­
rio. Com tôda a certeza, o estudante de medicina é menos
propenso a dizer: “Não sou bastante bom para ser mé­
dico”; ou o estudante de direito: “Sou moralmente inca­
paz de ser advogado.” Na realidade, seria difícil — e uma
presunção intolerável — estabelecer como que uma
prova moral adequada para o candidato ao ministério,
pois que o tipo de bondade que estamos abordando não
pode ser medido em têrmos legais. Entretanto, há pro­
vas de caráter que o ministro precisa enfrentar — nos
lugares secretos de seu coração, se não fôr em outra
parte qualquer — e o verdadeiro sucesso de seu minis­
tério está, em primeiro lugar, nesse encontro que tiver
com êles.
Quando me recordo dos homens que mais me têm
ajudado no ministério, não penso naqueles que são bem
dotados, mas sim nos que são bons. Alguns dentre os
bons também eram dotados, mas o pensar em seus ta­
lentos é um fato quase que incidental. Quer tenha co­
nhecido os mesmos, recentemente ou há anos, lembro-me
64 JOHN KNOX

de modo particular o que êles foram e não o que disse­


ram. Tanto no púlpito, como fora dêle, o que, na rea­
lidade deram a mim, foi o que tinham de si mesmos.
Êsse caráter essencialmente pessoal da pregação
pesa com a mesma importância no que diz respeito à
preparação do pregador para pregar. A resposta à pro­
vocante decisão de, se é melhor alguém escrever os seus
próprios sermões ou dizê-los sem anotações, ao acaso,
está nesse ponto. O método que determinado pregador
adota não tem, realmente, importância, enquanto não
fôr violada a natureza da pregação como comunicação
pessoal, querendo isso dizer, enquanto o sentido de con­
tato pessoal entre pregador e ouvintes fôr mantido entre
ambas as partes. O pregador bem sucedido que escreva
seus sermões é capaz, enquanto escreve, de se colocar
a si mesmo através da imaginação, na presença de sua
congregação e na situação do culto, pondo deste modo
no manuscrito, o que, na realidade, êle se sentir movido
a dizer quando fôr o momento dêle falar. No entanto,
o sermão formal — quer seja ou não escrito — poderá,
na verdade, separar o pregador de sua congregação, tor­
nando-se mais uma barreira do que um meio de comu­
nicação. Ao ouvir determinado pregador, muitas vêzes,
certamente, você pensou: “Se tão somente êle jogasse
fora êsse sermão e falasse realmente para nós, certas
coisas começariam a acontecer!” ■
A esta altura tratamos daquilo que talvez seja o pro­
blema supremamente difícil e importante na arte ou
técnica da pregação — isto é, o problema de como fazer
o preparo necessário, sem perder a realidade da comuni­
cação pessoal. Agora não haverá disputa com relação
à necessidade de preparação — ainda mais que a pre­
paração precisa incluir não só mera leitura e reflexão
de um tipo que, geralmente falando, seja de auxílio (em­
bora essa espécie de preparo para a pregação seja im­
A INTEGRIDADE DA PREGAÇAO 65

portante e, muitas vêzes, negligenciada), mas também


a composição mais ou menos detalhada do que se deseja
dizer em cada ocasião particular. Na verdade, não tería­
mos a confessar que uma das razões pelas quais nossa
pregação não seja mais eficaz é porque não damos aten­
ção suficiente e séria para a preparação de nossas mensa­
gens. Todos nós reconhecemos que esta não é a causa
mais profunda da derrota e que essa não seria, de forma
alguma, uma causa, se não houvesse outras mais profun­
das. Quero dizer que, se estivéssemos certos com res­
peito à substância de nossa pregação, não precisaríamos
ficar tremendamente perturbados com sua forma e seu
estilo. Poderia bem ser que não falássemos de acôrdo
com os modelos mais aprovados da arte de homilética,
porém falaríamos de modo suficientemente eficiente.
Paulo nos diz que não sabia muito acêrca das regras de
oratória, e que muitos o encaravam como um pregador
pretencioso; no entanto, quem pode duvidar da efi­
ciência de Paulo como pregador do Evangelho? Ainda
assim, mesmo que Paulo não tenha sido um mestre de
estilo, não há dúvida alguma que dispendeu muito tempo
pensando arduamente no que diria em sua pregação e
que muitas e muitas vêzes, deu séria atenção ao modo
pelo qual pregaria. Certamente tudo isso é verdade se êle
teve tanto cuidado com seus sermões como com suas
epístolas.
A verdade da questão é que podemos facilmente dis­
tinguir de maneira bem clara entre substância e estilo,
quer seja na pregação ou em outro domínio análogo.
A capacidade de pensar e sentir, bem como a habilidade
de expressão andam muito mais juntas do que muitas
vêzes podemos supor. Não há dúvida alguma que isso é
certo com relação a nosso pensamento. Pensamos com
palavras. Aquêle que não pode escrever ou expressar-se
claramente não tem, tampouco, o pensamento claro. O
66 * JOHN KNOX

cuiso de composição em inglês de que melhor me recor­


do tinha como texto um livro denominado Sentences and
Thinking. (9) O livro era bom. O título era perfeito!
Nossos sentimentos poderão ser tão profundos a ponto
de causarem lágrimas, porém o mesmo não se pode dizer
das palavras. Mas quando somos assim tão inarticula-
dos, certifiquêmo-nos que seja devido à profundidade de
nossos sentimentos e não devido à pobreza, inatividade
e falta de cultura de nosso discurso. Afinal de contas,
os grandes poetas conseguem expressar alguns de seus
pensamentos mais profundos. E embora se creia que até
mesmo êles podem dizer somente uma parcela do que
sentem, suspeita-se que podem sentir mais profunda­
mente, em parte devido a poderem dizer tanto. A
maestria da técnica de expressão e capacidade para dis­
cernimento e verdadeira emoção vão juntas, qualquer
que seja a arte; e tão relacionadas estão como causa e
efeito que, muitas vezes, é impossível dizer com qual delas
começa o círculo. O pregador, então, que luta para
adquirir um estilo adequado, quer seja escrevendo ou
re-escrevendo o sermão no seu escritório, ou dizendo re­
petidamente suas sentenças e parágrafos para a floresta
ou para o mar (tal como, assim nos é dito, fazia Demós-
tenes), está fazendo* algo mais do que polir a superfície
de sua pregação; tôda a sua substância, em maior ou
menor grau, está envolvida.
Todos nós, alguma vez, já agüentamos o pregador
que não se prepara para pregar. Pode ser que se o prega­
dor de alguma seita “primitiva” que segue de modo muito
literal a injunção do Evangelho de que não se pode
pensar de antemão o que se deva dizer e que se deve
depender completamente na promessa de que o Espírito
dará, tanto a mensagem como as palavras apropriadas,
quando a hora chegar. Ou, então, êle poderá ser uma
espécie de pregador mais admirável — e, infelizmente,
A INTEGRIDADE DA PREGAÇAO 67

menos rara — que se apoia somente em certa loquaci­


dade natural ou adquirida. Mas, quer seja tíe um tipo ou
de outro, sabemos bem como não é edificante o discurso
de um pregador sem preparo prévio, especialmente se
êle tiver que falar, domingo após domingo, para as mes­
mas pessoas. Lembro-me do que meu pai contava
acerca de um pregador de seu conhecimento, que se ga­
bava de nunca ter preparado um sermão, mas que, quan­
do chegava o momento dêle falar, dizia êle que era como
se um grande funil tivesse sido colocado no alto de sua
cabeça e o Senhor derramasse as palavras que devesse
falar. Meu pai prosseguiu, dizendo que tendo mais tarde
ouvido êsse mesmo pregador, decidira que o funil deve­
ria ter sido colocado de cabeça para baixo com o peque­
no orifício para cima. Muitos pregadores são sofistica­
dos demais para crerem no funil, mas na realidade
seguem a mesma linha, sendo igualmente irresponsáveis
e ineficazes. .
E, no entanto, quase tão ruim como a falta de pre­
paro é o preparo que unicamente chama atenção para
êsse ponto. O sermão não deve ser parecido com algo
tremendamente elaborado para que a atenção do ouvin­
te seja sempre distraída daquilo que está sendo dito para
o modo inteligente — ou até mesmo bonito — com que
o pregador o está dizendo. De fato, um sermão desses
não aparecerá de maneira alguma, ideaimente falando.
O propósito e a natureza real da pregação são malogra­
dos e violados peio sermão que atrai atenção para si mes­
mo por sua habilidade, tanto como pelo sermão que cha­
me atenção para si mesmo por sua má qualidade.
Naturalmente é um sermão; mas, quanto menos cons­
pícuo fôr, melhor é . Sob o aspecto humano, os elemen­
tos essenciais na situação da pregação são o pregador-
e a congregação; o sermão não é um terceiro elemento,
mas sim a ação de um dos elementos sôbre o outro, ou,

s a B U K ) COBCOBDfc
« JOHN KNOX

melhor talvez, o movimento de um dos elementos em


direção ao outro. Se o sermão aparecer em cena como
um elemento, de maneira tal que o pregador não esteja
pensando na congregação e o que deseja dizer a seus
ouvintes, mas sim no sermão que êle preparou na se­
mana anterior, cujas palavras estão diante dêle num
manuscrito ou mesmo foram memorizadas e, se a con­
gregação tiver a impressão de estar ouvindo, não ao pre­
gador, mas êsse mesmo sermão — desta forma a pre­
gação não está sendo realizada. Sermão não é ensaio
literário; é ato oral de comunicação. E mesmo assim
precisa ser preparado cuidadosamente, não só planeja­
do em seu esboço de linhas gerais, mas preparado até em
sua linguagem. Portanto, será que não se pode concor­
dar em que o problema central na técnica de pregação
está no modo de fazer êsse preparo sem prejudicar o ca­
ráter pessoal e direto da pregação em si mesma?
Não tenho solução a propor. Na realidade, é plau­
sível que o problema seja solucionado individualmente
pelo pregador e que duas soluções dificilmente sejam
idênticas. Entretanto, o alvo preparado é bem claro; é
um homem preparado e não um sermão. O sermão pre­
cisa ser um elemento na disposição pessoal do homem
para o momento da*pregação. Não se deve pensar que
o sermão realize o trabalho do pastor, ou que mesmo
seja um mero instrumento com que êle o faz. O melhor
sermão é o próprio homem realizando o seu trabalho.
O sermão é o pregador pregando — uma ação, não uma
coisa. É um ato de expressão e de comunicação pessoal,
não um depósito de experiência e reflexão prévias, É
êsse fato que torna tão difícil a pregação de um sermão
antigo. O sermão é uma criação pessoal, íntima, perten­
cendo essencialmente ao próprio momento da pregação.
A antecipação do momento precisa dominar completa-
mente a disposição com que o pregador se prepara para
A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO 69

pregar. Quanto mais êle puder antecipar aquêle mo­


mento de modo verdadeiro, fecundo e vivo, mais inten­
samente êle pode experimentá-lo de antemão e tanto
mais apropriado e eficaz pode ser o seu preparo. Êle
estará preparando não um sermão, mas a si próprio; ou,
para talvez expressar melhor o que desejamos dizer, o
preparo de um sermão seu, na verdade, será um preparo
de si próprio, e seu preparo próximo será, em parte,
o preparo de um sermão.
Portanto, o sermão é uma expressão humana. Não
é o arejamento da opinião do pregador — até mesmo
opiniões acerca de assuntos importantes — mas a par­
ticipação de suas convicções mais sérias e íntimas. É
mais do que isso; êle se atreve a crer — e, na verdade, não
pode deixar de crer — que tudo quanto declara tem
vindo a êle, para êle mesmo, como sendo a Palavra de
Deus. Dêsse modo, tem êle o fardo de um senso único de
responsabilidade, elevado por um único senso de privi­
légio. “Falou o Senhor Deus, quem não profetizará?”
(Am 3.8). “Ai de mim se não pregar o Evangelho”
(1 Co 9.16). De certa maneira o artista se encontra na
mesma relação com seu trabalho. Pense em Ghiberti e
as portas do batistério florentino nas quais êle trabalhou
por cinquenta anos consecutivos. Aquelas portas gran­
diosas não foram tanto sua obra como o foi sua vida.
O trabalho do pregador é pessoal dessa mesma maneira
íntima e necessária. Deu-se-lhe algo — a êle, única
e pessoalmente — que precisa procurar declarar.
Êle foi admitido “ao lugar mais secreto do tabernáculo
do Altíssimo” e sabe que ouviu lá uma palavra que nin­
guém mais ouviu em sua particularidade e concretiza­
ção. Com respeito a êsse senso especial de vocação êle
não falará muitas vezes, ou mesmo talvez nunca chegue
a se referir. (Note a aversão com que Paulo toca nesse
ponto em 2 Co 12) . É significativo demais, sagrado de­
n JOHN KNOX

mais e íntimo demais para si mesmo. Entretanto, êle


leva êsse gôzo e pêso em seu coração e isso dá signifi­
cado, não somente a seu ministério de pregação como um
tôdo, mas para tôda e qualquer ocasião em que êle pregar.
No entanto, a pregação é pessoal, não só porque
provém dêsse senso de vocação profundamente pessoal
e porque quando está sendo realizada o pregador é uma
pessoa real procurando expressar o que para êle, como
uma pessoa, é o mais importante e o mais profundamen­
te verdadeiro, mas também em vista de ser endereçada
a pessoas.. De certo modo, isso não precisa ser mencio­
nado, pois que a própria palavra “pessoa” implica rela­
ções com outras pessoas. Falar a outros como uma
pessoa é, por definição, falar-lhes como pessoas. Por
algum tempo fui capelão de uma instituição educacional
onde recebíamos a visita de muitos pregadores; era digno
de nota o número de vêzes em que o pregador parecia
estar sob a impressão de que, numa universidade, a con­
gregação era composta de estudantes e não pessoas,
sendo que o sermão se tornava preleção sôbre religião, ou
qualquer outra coisa, menos uma proclamação do julga­
mento e do amor de Deus e um convite ao arrependi­
mento e obediência. Em outras palavras, o pregador
tinha a prevenção de falar como uma pessoa, de ma­
neira proveitosa e produtiva, devido à sua falsa suposi­
ção de que não estávamos preparados para ouvir como
pessoas.
Isso não significa que tudo quanto foi dito provei­
tosamente para alguns, possa ser dito com igual eficácia
a todos. É bem possível que o bom sermão que o prega­
dor visitante tivesse dado à sua própria congregação na
semana anterior, não fôsse apropriado para a capela do
colégio, embora seja bem possível que o fôsse. Mesmo
assim, divergem em diferentes ocasiões a linguagem e a
forma e, até certo ponto, a substância da genuína co-
A INTEGRIDADE DA PREGAÇAO 71

municaçao pessoal, Aqui o que alcança o próprio cora­


ção de um grupo pode ser simplesmente inteligível para
outro. O que fala decisivamente às necessidades sen­
tidas por alguns, só servirá para confundir a outros. De
modo inverso, o que é muito relevante e útil para uma
congregação, pode ser óbvio demais para ser interessante
ou realmente de auxílio para outra. Entretanto, com
respeito a isso, devemos dizer que tudo quanto é falado
de coração — simples, direta e honestamente —■ com
tôda a probabilidade alcançará outros corações. Pessoas
humildes e simples podem aprender verdades tão pro­
fundas quanto qualquer sábio, contanto que sejam ver­
dades conhecidas concretamente através da experiên­
cia, mais do que meras abstrações — e, de qualquer modo,
são estas as únicas verdades que pertencem devidamente
à pregação. Por outro lado, a integridade, simplicidade
e sinceridade não ofenderão de modo algum aos mais
iluminados, pois que, ser simples, não significa necessà-
riamente ser superficial ou óbvio. E uma congregação,
por mais bem educada ou sofisticada que seja, será
melhor servida, quer ela saiba ou não (e provàvelmente
ela o saberá) com o pastor honesto, mas relativamente
sem talentos, que conhece e fala às profundas necessida­
des pessoais de seus ouvintes, do que com o especialista
brilhante de uma simples arte, por mais inteligente que
■seja ou por mais engenhosamente construído e impecá­
vel que seja o ensaio que êle entrega como sermão, no
domingo de manhã.
O que estamos fazendo aqui é repetir simplesmente
o fato de que a pregação precisa ser relevante, com a
qualificação de que por “relevância”, nesse sentido, que­
remos significar relevância à vida pessoal dos ouvintes
de alguém. A pregação é dirigida a indivíduos e precisa
ter como alvo o encontro de suas necesidades pessoais.
Êsses indivíduos são, naturalmente, membros de comu­
72 JOHN KNOX

nidades — da Igreja, da nação, da família, e assim por


diante, Não se pode falar a êles sem tomar em consi­
deração a composição do grupo ou existência corporada
em que estão envolvidos. Mas é mister que se fale a êles.
O contexto mais vasto só preocupa se afetar a êles. Cada
ouvinte, em sua própria situação pessoal, é o foco de
atenção necessário do pregador.
Para se certificar, precisa êle estar ciente da litera­
tura contemporânea, dos desenvolvimentos científicos
contemporâneos e do pensamento contemporâneo, tanto
teológico como filosófico. Êle precisa compreender ao
máximo o espírito de seus dias. Isso é certo, porém, só
porque o seu povo é afetado pessoal e individualmente
por esses fatores. São irrelevantes as citações de lite­
ratura, as alusões à tecnologia, até mesmo as discussões
teológicas e, portanto, pior do que inúteis, a não ser que
iluminem a situação pessoal do ouvinte, ajudando-o a
melhor compreender a si mesmo, a ver o seu dever mais
claramente, a conhecer de modo mais real o significado
do Evangelho e a aprender verdadeiramente o auxílio
que Deus lhe oferece em Cristo. Sermões “aprendidos”
podem ser tão ruins como os inteligentes.
De igual modo, determina-se a relevância das dis­
cussões de acontecimentos atuais e fatos políticos e eco­
nômicos correntes por sua referência à vida pessoal dos
membros da congregação. Há cêrca de trinta anos,
quando eu me encontrava no seminário, constantemente
ouvíamos que o pregador deveria ser um profeta — não
no sentido daquele termo que consideramos no capítulo
anterior, mas sim em sentido bem diverso. O “profeta”
era um pregador cujos sermões eram quase que inteira­
mente descrições e denúncias dos males sociais — guerra,
injustiça na indústria, descriminação racial e coisa se­
melhante. De modo geral, essas fulminações “proféti­
cas” do pregador eram dirigidas não só aos males, mas
A INTEGRIDADE DA FREGAÇAO n
também à sua congregação — como se tais homens e
mulheres fossem mais responsáveis por aquêles males
do que êle próprio! Geralmente falando, também, êle
nada tinha a propor, quer fôsse como solução para
aquele mal em larga escala, ou como forma de vida para
o indivíduo em presença do mesmo m al. E quando, de­
pois de tôda a sua paciência, o povo começava a ficar
cansado de ir à Igreja para ser alimentado e, ao invés
de pão, receber pedras (e pedras atiradas nêles), deci­
dindo-se a querer outro pregador, o “profeta” estava
convicto de ser um mártir pela verdade, uma vítima da
reação econômica e política. Na realidade, na grande
maioria das vêzes o seu sofrimento sobreveio porque ma­
lograra em falar como pessoa para outras pessoas, fa­
lhara no modo de lidar com as pessoas onde elas se en­
contravam (para usar uma frase corrente) em têrmos
de sua própria situação existencial, isto é, falhara real­
mente em pregar.
Não precisamos dizer que não se pode pregar dessa
maneira sem levar em consideração os fatos econômicos
e políticos que condicionam a vida dos homens e também
os fatos econômicos e políticos com que êles se defron­
tam. Há um julgamento de Deus contra as ordens
injustas deste mundo, tão certo como contra os pecados
individuais, sendo que, portanto, precisamos almejar por
uma sociedade nova e melhor, e não pura e simplesmen­
te pessoas regeneradas. Entretanto, a discussão de fatos
sociais (ou quaisquer outros) é algo apropriado e que
auxilia na pregação, somente quando serve para ilumi­
nar o estado assim como o dever de cada ouvinte. Para
cada pregador do evangelho social que é rejeitado por
sua congregação, outro pode ser encontrado e que esteja
tão preocupado pela justiça social e tão sincero ao
expressar esta sua participação era atos e palavras que
a congregação continua a ser leal a êle. A diferença
74 JOHN KNOX

está — nem sempre, naturalmente, mas muitas vêzes —


no fato que num caso os males sociais e objetivos são
tratados no verdadeiro contexto pessoal da pregação,
enquanto que no outro isso não acontece.
Não podemos nos esquecer — com o perigo de per­
dermos nossas almas — que é fácil racionalizar aqui e
supor que estamos sendo verdadeiros a nosso chamado
quando, na realidade, nossa atuação é tão desonesta
como covarde. O martírio — algo para se deplorar sem­
pre (mesmo quando é o seu próprio!) — por vêzes não
pode ser evitado. A vida Cristã não é uma escapatória
da responsabilidade social; o Evangelho não é narcótico.
O pregador que não é sensível à injustiça social, ao com­
promisso dos não privilegiados, a cada exemplo de desu­
manidade do homem para com o homem, e que não tra­
ta realisticamente com tais condições em sua pregação,
não é um pregador no real sentido da palavra. Sua pre­
gação não é realmente importante, por mais popular
que possa ser no decorrer de determinado tempo. En­
tretanto, “realismo" nesse sentido designa um tipo de
compreensão não só das condições que alguém está des­
crevendo, mas também das pessoas a quem se está diri­
gindo, e, para que a discussão de alguém seja relevante,
é mister que seja relevante a eles.
Nesse sentido, como em qualquer outro, a pregação
é pessoal.
Capítulo VI

PREGAÇÃO Ê CULTO

Não nos voltamos contra o caráter pessoal da pre­


gação, mas damos a êste caráter uma nova ênfase e um
significado ainda mais distinto quando reconhecemos a
conexão íntima e necessária entre pregação e culto.
Esta é uma segunda distinção entre pregação e outros
tipos de ensino religioso. Na Igreja primitiva os profetas
e professores eram os líderes de seu culto, e isso de igual
modo é bem verdadeiro relativamente à Igreja moderna.
Além do mais, comumente, desde o princípio também o
culto providenciou a situação para o pregador falar. Por
vêzes, para se certificar, o culto tem sido subordinado ao
sermão — o tôdo à parte — pensando-se dêle como sim­
ples moldura para o discurso do pregador. Hinos, con­
fissões, até mesmo orações foram concebidas como sim­
ples preparação do caminho para o sermão; dessa ma­
neira é que se foi perdendo o senso de realidade e
importância do culto comum. Tudo isso é de se deplorar,
tanto no interesse da verdadeira pregação como por
quaisquer outras razões. Mesmo assim, ainda é verdade
que o culto — nem sempre, mas muitas vêzes — precisa
de um sermão tanto quanto o sermão precisa do culto.
Êles se interpretam reciprocamente. Um é mais signifi­
cativo porque o outro está presente.
Mas êste não é o caminho mais certo para se des- ■
crever a conexão entre pregação e culto. A inter-relação
é mais íntima e profunda. A não ser que concebamos
76 JOHN KNOX

a pregação como sendo em si um ato de culto, perde­


mos o que há de mais essencial nela e o que a distingue
mais radicalmente de outras espécies de ensino, quer
religioso ou secular. A realidade do assunto não é que a
pregação seja simplesmente encaixada no contexto de
um culto ou que seja mais eficaz quando tiver êsse tipo
de moldura . Não pode ser pregação, na realidade, a não
ser que seja naquele contexto. Se o contexto de culto
não fôr encontrado, o verdadeiro sermão cria-o. A pre­
gação contribui ou providencia um meio de culto — ou
de maneira nenhuma é pregação.
Êsse caráter da pregação se manifesta no período
preparatório. O sermão é uma oferta a Deus — ou antes,
é o pregador oferecendo-se a si mesmo a Deus - e o pre­
paro é um ato disciplinado de devoção. Pregar é, na
realidade, orar com outros, levar a outros em oração;
preparar-se para pregar é, sem dúvida nenhuma, sob um
aspecto importante, orar por outros e por si mesmo para
o bem de outros. Pergunto-me se a vida devocional par­
ticular da maioria dos pregadores não está grandemente
associada com a pregação deles e sua respectiva prepa­
ração. Certamente esperar-se-ia que assim não fôsse.
Quando o pregador se confronta com a oportunidade de
pregação é que sentirá mais agudamente a sua fraqueza,
o seu vazio, o seu pecado. É então que ver-se-á orando
com o mais profundo anseio: “Envia a tua luz e a tua
verdade, para que me guiem e me levem ao teu santo
monte” (SI 43.3). E será no decorrer de seu trabalho
preparatório que êle será mais movido à adoração, à
gratidão e ao louvor.
O reconhecimento que o preparo para pregar equi­
vale ao preparativo de uma oferta a Deus, colocará em
sua verdadeira perspectiva a importância dêsse preparo.
Alguém que suba ao púlpito sem estar preparado não só
desperta um certo descontentamento por parte de seus
A INTEGRIDADE DA PREGAÇAO 77

ouvintes; sente-se culpado da mais grosseira irreverência


com relação ao próprio Deus. Lemos no Antigo Testa­
mento acêrca da maneira meticulosa com que tanto os
sacrifícios como os sacerdotes precisavam ficar prontos
para os serviços do templo. Com que cuidado ambos de­
veriam ser escolhidos e preparados! Ficamos cientes de
nossa liberdade diante dêsses regulamentos; todo o siste­
ma de sacrifícios animais ficou abolido em Cristo, o qual,
como o grande Sumo-sacerdote, ofereceu o seu próprio
sangue. Mas será que Deus é menos santo do que no pas­
sado, ou será que temos mais merecimento para nos apro­
ximar-nos dêle? Será que o culto público da congregação
é ainda tão sacro, um evento tão momentoso como sem­
pre o foi? O pregador é sacerdote, assim como profeta e
professor. Possui uma oferta para levar. Essa oferta não
é um animal; é, em primeiro lugar, êle próprio. Êle se
apresenta como “sacrifício vivo.” Sua oferta, tal como
o cordeiro no altar, precisa ser “santa e aceitável.” Será
que, então, poderá ser algo improvisado e casual? O
“culto”, afirmamos, tornou-se mais “espiritual” . Mas
será que, por causa disso, deverá ser tomado menos a
sério? E, no entanto, alguns dentre nós, habitualmente
não nos achamos preparados para pregar. Tenho ouvi­
do pregadores gracejarem até com respeito à sua falta
de preparo, tendo feito já referência ao pregador que se
gaba de sua capacidade de sair-se bem sem nenhum pre­
paro. Como é que podemos ser tão grosseiramente pre­
sunçosos9 Como é que nos atrevemos a tanto? Pregador
sem preparo é sacerdote infiel. E, a não ser que o pre­
paro do pregador tenha principiado, continuado e ter­
minado em oração e louvor, êle não está preparado, por
mais sábio, “belo” ou inteligente que seja o seu sermão •
e por mais tempo e fidelidade com que tenha labutado
no mesmo..
78 JOHN KNOX

Pensemos em culto como algo que inclui várias dis­


posições ou movimentos — adoração e ação de graças,
confronto com a vontade de Deus, confissão de pecado,
procura de perdão e outra ajuda que precisarmos, afir­
mação da fé, consagração e vida. A pregação participa
em cada uma dessas ações. Naturalmente não quero
dizer que cada sermão envolva todos êsses movimentos
em igual medida ou com igual clareza, ou que estejam
envolvidos na pregação em qualquer ordem regular,
como pode acontecer numa liturgia. No entanto, prega­
ção sempre incluirá, pelo menos, tôdas essas disposições
e de tempos em tempos uma ou mais constituirão a in­
tenção total e o efeito do sermão. Certamente é difícil
imaginarmos um verdadeiro sermão que não transmita
um senso da realidade, de modo bem concreto, a majes­
tade, o mistério de Deus e o reconhecimento de nossa
dependência dêle, e que não leve os ouvintes a adorá-lo
e glorificá-lo por sua bondade soberana. De semelhan­
te modo, dificilmente pode ser verdadeira a pregação
que não confrontar os homens com a lei de Deus em
Cristo, dirigindo-os ao arrependimento, confissão do
pecado e obediência renovada. E a natureza básica da
pregação como a proclamação do Evangelho faz com que
seja uma afirmação de fé — sendo esta a razão pela qual
sempre andam juntos os estudos da pregação apostólica
e dos credos mais primitivos.
Pois bem, é muitíssimo importante reconhecer que
a fé e a necessidade pela qual a pregação é uma confis­
são, são uma fé e necessidade comuns. Na confissão de
pecado o pregador está confessando o seu próprio pe­
cado assim como o da congregação, e na confissão de
fé o pregador está confessando a fé, tanto sua como da
congregação. Nesses dois pontos êle se encontra não
acima, mas dentro da comunidade e compartilha ple­
namente com a mesma. Certa ênfase é apropriada para
A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO 79

cada um dêsses pontos, pois que freqüentemente são


negligenciados.
Notamos então, em primeiro lugar, que a fé acerca
da qual o pregador fala e que êle declara, é uma fé co­
mum, O pregador Cristão não é “franco atirador.” Ê
um porta-voz para a comunidade Cristã e se encontra
em posição de grande responsabilidade com respeito à
sua tradição. Sua autoridade é a da verdade tal como
é conhecida, não simplesmente em sua própria experiên­
cia, mas na experiência da Igreja. Quando muito, será
mero ator e de maneira nenhuma pregador, a não ser
que declare as suas próprias convicções pessoais; porém
não é um pregador Cristão a não ser que suas convicções
pessoais sejam as de um Cristão. Além do mais, as con­
vicções de um Cristão não são simplesmente quaisquer
convicções particulares que pessoas sinceras de boa von­
tade — também membros da Igreja — tenham por acaso,
mas são as de uma comunidade histórica. A mensagem
Crista não é apenas qualquer espécie de mensagem que
o pregador individual, por mais sincero e devoto que seja,
tenha vindo a aceitar. É uma mensagem confiada ao
pregador e que êle precisa transmitir fielmente, sem ter
diminuído a outros. É uma confissão de fé da Igreja.
Essa fé não pode ser formulada rigidamente. O que
foi dito num capítulo anterior com respeito à relevância
da pregação bíblica precisa ser lembrado aqui. Pode-se
destruir uma fé antiga pela insistência em preservá-la
imutável numa nova época, tanto como procurando uma
completa reconstrução da mesma. A fé da Igreja, como
a própria Igreja, é algo de vivo. Não podemos recons-
trui-la sem destrui-la; mas, por outro lado, não é possí­
vel malograrmos em deixá-la crescer. Não podemos pôr
uma cêrca a seu redor. O pregador que repete meras
afirmações antigas, sem estar de modo algum novamete
cônscio de sua verdade para com êle e sua geração é tão
8» JOHN KNOX

infrutífero e tão infiel ao Evangelho como o é o pregador


que pensa que os têrmos antigos são (se porventura em­
pregá-los) um meio meramente conveniente de explorar
suas próprias noções particulares ou de ir ao encontro
das expectativas da gente que acorre para ouvi-lo. Con­
tudo, é óbvio que ambos estão errados. A pregação é
uma confissão pessoal e viva da fé antiga da Igreja.
Ora, para dizer a mesma coisa de modo um tanto
diferente, pregação é uma interpretação que vem de
dentro da vida da Igreja — a espécie de coisa que dirige
o crente ouvinte, o qual embora compartilhe no Espírito,
não possui os dons de discernimento e expressão do pre­
gador para dizer “Amém” . Êsse “Amém” significa: “O
Senhor disse o que sei ser verdadeiro, ainda que talvez
não pudesse tê-lo dito. O senhor apontou para realida­
des em minha própria experiência como um participan­
te da vida da Igreja. O senhor está falando a mim, porém
mais profundamente ainda para mim. O senhor está
confessando a minha fé.” O pregador — e isso não é
menos verdadeiro do que para o Evangelho — não pode
fazer uma cerca à sua volta; é mister que fique livre
para apresentar o significado do Evangelho como o signi­
ficado que veio diretamente para êle, A não ser que sua
pregação faça vir à tona uma tal reação na Igreja, em
vista de ser uma resposta às realidades na vida da Igreja
e uma proclamação do evento que deu margem ao mes­
mo e determinou o seu caráter — repito: a não ser que
isso seja verdade, sua pregação cessou de ser uma pre­
gação autênticamente Cristã. E não deveríamos ficar
surpresos se essa congregação se rebelar ou, então,
morrer.
Mas se o pregador precisa confessar a fé da Igreja
e não apenas a sua, precisa então confessar os seus pró­
prios pecados e não, simplesmente, os da congregação.
O pregador se apresenta, então, cem tanta necessidade
A INTEGRIDADE DA PREGAÇAO gl

de perdão como qualquer um dos ouvintes. Natural­


mente que êsse é um terreno comum, e nas orações em
que êle dirige a congregação êsse fato é geralmente re­
conhecido de maneira plena. O sermão por vêzes, porém,
malogra em revelar essa consciência. O pregador fala
não como se êle estivesse escutando a Palavra de Deus,
mas como se êle, na realidade, fosse o próprio Deus fa­
lando. Seus modos sugerem que êle está contando às
pessoas de alguma eminência ética o que elas devam
fazer. Há alguns anos Reinhold Nietauhr publicou um
artigo com respeito a “Pregação Moralística”, definida
como “sustentando elevados ideais de fraternidade e
amor para com os homens e as nações na suposição de
que nada mais do que sua reiteração continuada afetará
finalmente a realização dos mesmos.” (10) Essa prega­
ção consiste principalmente em exortações para que pra­
tiquemos as virtudes Cristãs e em figuras vagas de quão
perfeito tudo seria se as praticássemos. O pregador
“moralista” crê aparentemente que os requisitos éticos
de Deus são padrões perfeitamente praticáveis — um
tanto difíceis, mas certamente não impossíveis. Pode­
riam ser cumpridos se tão somente colocássemos um
pouco mais de esforço nêles. Sua pregação consiste em
falar acerca do amor sem qualquer sinal de que se está
ciente, quer seja da impossibilidade de fazermos aquilo
que o amor pura e simplesmente requer em algumas
situações ou da impossibilidade de sabermos o que requer
em outras. A conclusão de cada sermão é: “Já lhes
tenho dito o que fazer. Fazei-o agora!”
Quase não é necessário apontarmos a falsidade, o
enfado e a futilidade dessa espécie de pregação; e o pre­
domínio da mesma pareceria ser indicado pela própria
conotação que a palavra “pregar” adquiriu em nossa
linguagem comum. Os pais são aconselhados a não
“pregarem” a seus filhos. A crítica que possivelmente
82 JOHN KNOX

causa mais devastação com respeito a uma novela ou


peça é a de que a mesma “prega um sermão. ” Essa má
reputação de uma importante palavra Crista, a qual
bàsicamente significa o anúncio das supremas boas no­
vas, poderá ser atribuída em parte ao espírito de nossa
época que — se me fôr dada a permissão de “pregar” um
pouquinho — é mais rebelde contra a autoridade moral
do que deveria ser. Entretanto, será que podemos negar
que reflete também falhas na própria pregação? Vale
notar que embora as palavras “pregar”, “pregador” e
“sermão” continuem a ter sua dignidade própria, em
certos meios populares são usados, por vezes, com sen­
tido de humor) e até pejorativo. É certo que não nos
cabe corrigir a semântica dessas palavras, mas convém
indagar das razões dessa depreciação. Nós que prega­
mos, poderemos de maneira apropriada perguntar até
onde a culpa está em outros — em sua falta de serie­
dade ou sensibilidade, ou talvez mesmo em sua perver­
sidade — e até onde está em nós mesmos. E, quando ti­
vermos feito isso, somos obrigados a reconhecer que uma
parte da resposta indubitavelmente está no “moralismo”
fácil e superficial de muitas de nossas pregações.
Entretanto, a pregação pode ser dêsse tipo somente
enquanto não fôr confessional. O pregador que, de
fato, tem procurado cumprir com a lei de Cristo e que
fala de sua experiência, saberá muito bem a realidade
e poder do pecado na vida humana, bem como as limita­
ções implícitas em nossa finitude. Verdadeiramente, se
êle tiver algo de verdadeiro ou que sirva de ajuda para
dizer acerca do dever de outros, é porque êle próprio tem
sido confrontado e confundido pelas tremendas dimen­
sões de seu próprio dever. Êsse alguém vê a si mesmo e
a seus ouvintes como se estivessem num terreno comum
absoluto — sob um requisito moral completamente aci­
ma do poder de qualquer um dêles para cumprirem e,
A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO #3
sendo assim, necessitados de perdão, direção e ajuda acir
ma do poder de qualquer um dêles para suprir. A pre­
gação ética eficiente, tal como a pregação doutrinária
eficaz, é a pregação confessionária.
Alguns anos atrás ouvi, em apenas uma hora, dois
sermões por dois estudantes de teologia sôbre a ética Cris­
tã do am or. O primeiro dêles era um apêlo convencional
para que a congregação e os homens geralmente falando,
tanto individual como coletivamente, seguissem o ca­
minho do amor. Assinalou que se tão somente fizéssemos
isso, a humanidade ficaria desembaraçada de tôdas as
suas dificuldades. O outro pregador, tomando essencial­
mente o mesmo tema, apresentou em termos muito rea­
listas e pessoais o que envolveria seguir o caminho do
amor num mundo como o nosso. Poder-se-ia sentir du­
rante todo o seu sermão os seus esforços sinceros, mas
finalmente insucedidos para escapar dos requisitos dêste
amor ou para cumpri-los; assim, ao falar de sua própria
experiência, êle esquadrinhou profundamente nossos
corações.
Essa atitude confessionária também determinará o
caminho para alguém proclamar o “evangelho social. ”
Já fiz referência às, assim chamadas, denúncias proféti­
cas de males sociais expressas pelo pastor de tal modo
como alguém que pensa que sua congregação seja a prin­
cipal responsável pelos mesmos. Essas fulminações
fúteis seriam evitadas se o pregador reconhecesse não
somente a sua própria implicância nesses males sociais,
mas também a inevitabilidade dessa implicância, tanto
para si mesmo como para os outros. Todos nós estamos
envolvidos nas iniqüidades maciças e nas desumanida­
des da vida social, política e econômica — não sem culpa
e, no entanto, não inteiramente culpados e de qualquer
modo completamente incapacitados para nos libertar­
mos. É importante que tanto nós como nossas congre­
«4 JOHN KNOX

gações estejam cientes da larga escala de tais injustiças


e desajustamentos sociais, estando sensíveis ao enorme
sofrimento humano e perda que os mesmos acarretam .
É importante reconhecermos não só nossa própria im­
plicância nêles, mas, de igual modo, nossa responsabili­
dade pelo alívio dos mesmos tanto quanto fôr possível.
Mesmo quando admitimos completamente a solidez e
recalcitrância dos males sociais e nossas próprias limi­
tações tanto em bondade como em sabedoria, ainda
assim é mister reconhecermos que poderíamos fazer
muito mais do que fazemos. Ê absolutamente essencial
que vejamos e confessemos nosso dever e nosso pecado
nessa dimensão — que nos arrependamos não só de
nossos pecados individuais, mas dos maiores e que não
são menos nossos porque compartilhamos dêles com
outros. O pregador, porém, só nos pode levar a fazer
isso se êle também se arrepender — e não ficar simples­
mente indignado! Em outras palavras, o problema social
pode ser discutido de modo apropriado e frutífero na
pregação só na disposição de um culto comum. Nossa
sociedade está enfêrma e culpada; todos nós comparti­
lhamos nessa enfermidade e culpa; não podemos nos
curar; somente Deus pode nos perdoar e renovar
nossa vida,
Não é fora do comum que o sermão seja precedido e
seguido por orações. Isso, porém, não é suficiente: o
sermão precisa ser uma oração em si mesmo. A verda­
deira pregação é muito próxima à oração, a obra do pro­
feta à obra do sacerdote.
Capítulo VII

PREGAÇÃO Ê SACRAMENTO

No capítulo anterior consideramos a pregação como


oferta a Deus. O pregador é um sacerdote representando
e falando por seu povo, confessando tanto a sua fé como
o seu pecado. Mas a verdadeira pregação é também o
dom de Deus para nós. É até mais do que isso; é Deus
na realidade se entregando a nós, Paulo reconhece tanto
a profecia como o ensino como sendo dons do Espírito
e o autor aos Efésios pode falar de apóstolos, profetas,
evangelistas, pastores e professores como sendo “dons”
de Deus à Igreja, Assim é que as palavras do pregador
são mediadoras no sentido completo da palavra, não
somente reunindo e levando a Deus as necessidades da
congregação, mas também chegando a ser um meio de
comunicação de Deus conosco e, na verdade, de sua ação
salvífica.
É freqüentemente expressa no Nôvo Testamento a
compreensão de pregação como sendo uma ação do Espí­
rito. Marcos registra que os discípulos de Jesus foram
ensinados, em conexão com sua própria defesa do Evan­
gelho diante de “governadores e reis”: “Não vos preo­
cupeis com o que haveis de dizer, mas o que vos fôr con­
cedido naquela hora, isso falai; porque não sois vós os
que falais, mas o Espírito Santo” (13.11). Essa pres­
crição pode ser encontrada em Mateus (10.19) virtual-
mente nas mesmas palavras. Lucas escreve de modo um
tanto diferente, porém para o mesmo efeito: “Assentai,
86 JOHN KNOX

pois, era vossos corações de não vos preocupardes com o


que haveis de responder; porque eu vos darei bôca e sa­
bedoria a que não poderão resistir nem contradizer todos
quantos se vos opuserem” (21.14-15). E, mais tarde,
em Atos (2.4), o mesmo escritor descreve os discípulos
falando “segundo o Espírito lhes concedia que falassem.”
Seguramente êle está se referindo ao milagre das lín­
guas, porém teria dito a mesma coisa da profecia em
geral e, de fato, muitas vêzes o faz em relação a isso.
Além de representar de modo consistente tôda a prega­
ção Cristã como sendo um dom espiritual, Paulo pode
falar de sua própria pregação como sendo “não em pala­
vras ensinadas pela sabedoria humana, mas ensinadas
pelo Espírito” (1 Co 2.13).
Já fizemos referência ao pregador moderno que, to­
mando literalmente a injunção do Evangelho, recusa-se
a fazer qualquer preparo especial para a pregação, mas
se apóia no Espírito a fim de que lhe sejam providencia­
das as palavras apropriadas. E vimos que seus ouvintes
tendem muito mais a ficarem chocados com o que falta
ao primeiro do que por aquilo que o Espírito providencia.
Seja qual fôr a verdade e importância que a inspiração do
Evangelho tivesse em seu contexto original, é óbvio que
não é regra praticável a ser seguida por um professor de
responsabilidade da congregação. De acordo com todos
os três Evangelhos, o contexto original estava relaciona­
do com um interrogatório diante do magistrado, quando
o Cristão é mandado a fim de fazer a sua defesa. Numa
situação como essa, foi talvez a experiência da Igreja pri­
mitiva, que uma explicação bem pessoal e espontânea
— sem dúvida nenhuma sem ser preparada e sem ter
sido ensaiada — seria mais eficiente em vista de ser in­
confundivelmente mais sincera do que qualquer argu­
mento cuidadosamente elaborado. Isso é compreensível;
na verdade, qual o pregador que não se viu ocasional­
A INTEGRIDADE DA PREGAÇAO 87

mente em situações quando a mensagem que êle próprio


preparara para dar estava completamente fora de lugar
e quando êle teve que simplesmente se esquecer da­
quilo que tão cuidadosamente havia planejado e fala­
do — como costumamos dizer, vindo do fundo do cora­
ção — seguindo então livremente conforme a direção do
Espírito? No entanto, se há situações ocasionais de pre­
gação dêsse tipo, sabemos que há um número conside­
ravelmente maior quando, se não tivermos “meditado de
antemão”, vêmo-nos sem absolutamente nada que seja
útil ou apropriado para dizermos.
Isso não significa que o pregador devesse depender
do Espírito ocasionalmente e mais freqüentemente em si
mesmo. Longe disso; o Espírito precisa dizer-nos sempre
“o que falar” se nossa pregação fôr genuína. A pregação
precisa vir sempre do “fundo do coração” — querendo
isso dizer (bastante paradoxalmente), que não pode ser
sempre nossa própria expressão deliberada, mas uma
reação à inspiração do Espírito. É possível que, por vezes,
a inspiração e a reação sejam súbitas e momentâneas.
De repente alguém ouve e precisa falar. Tais momentos
de êxtase vêm para a maioria de nós — embora seja pre­
ciso reconhecer que os mesmos raramente coincidem com
as ocasiões formais de pregação. Contudo, de modo
geral, a inspiração é menos dramática e irresistível,
porém compassivamente periódica ou persistente; e a
reação de alguém, embora ainda uma verdadeira reação
(e não algo que se inicia) é feita de modo mais gradual.
O Espírito permanece à porta e bate — bate silenciosa
mas constantemente ou regularmente. Não chega a ser
ouvido completamente a não ser que se ponha à escuta
de modo deliberado. O preparo para pregar é essa ação
de ouvir ou de tentar ouvir. A maioria dos bons sermões
ficam por meses a fio em processo de criação, até anos
talvez. De início não se está certo de ter ouvido alguma
JOHN KNOX

coisa. Gradualmente a pessoa chega a certificar-se.


Finalmente, a batida requer nossa atenção plena e então
sabemos que chegou o momento de responder à mesma.
A porta precisa ser aberta. O sermão sôbre o texto ou
tema indicado precisa ser pregado. Talvez o pregador
dedique uma semana inteira para escutar aquilo que o
Espírito está procurando transmitir. O sermão é sua
resposta — sem dúvida nenhuma uma resposta autên­
tica pelo tempo requerido para fazê-lo. Na realidade a
criação, seja qual fôr o campo, nunca é algo de súbito,
ainda que por vêzes pareça ser assim. Poderá parecer que
ouvimos de súbito, mas ouvimos somente se tivermos
estado à escuta, e não teríamos começado a escutar se
já não tivéssemos começado a ouvir. De comêço a fim
a verdadeira pregação é obra do Espírito. É Deus à nossa
procura e nos encontrando.
Entretanto, a pregação é esta ação de Deus não só
do modo geral que tenho procurado descrever — o modo
em que tôda a obra fecunda é ação divina — mas tam­
bém num sentido Cristão mais específico. É vital e
essencialmente relacionada com a comunidade Cristã e
com o acontecimento no qual a comunidade teve o seu
soerguimento. Afirmar como o fizemos, que é uma res­
posta do Espírito e, portanto, num sentido muito real
a criação deste último, é afirmar virtualmente essa co­
nexão, pois que “o Espírito”, no sentido Cristão, é aquele
em cuja vinda o antigo evento consistia essencialmente
e em cuja presença contínua a vida da Igreja também
consiste essencialmente. Embora essa inter-relação
tanto da comunidade como do evento, tenha sido fre-
qüentemente aludida no decorrer destes capítulos, é
apropriado que concluamos nossa discussão consideran­
do-a novamente e de modo resumido — fazendo especial
referência à natureza da pregação como a obra do Espí­
rito, como o ato revelador de Deus.
A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO 89
Primeiramente, então, deveríamos reconhecer que
quando dizemos que a pregação é movida pelo Espírito,
queremos significar com isso que essa inspiração provém
da vida da comunidade. Não há dúvida nenhuma que
vem de Deus — mas vem de Deus tal como êle é concre­
tamente conhecido na Igreja. Dizer que a mensagem
do pregador é dada a êle pelo Espírito equivale afirmar
que lhe é dada como participante na vida divina comum
que constitui a natureza essencial da Igreja Cristã. É
um fato surpreendente que o primeiro sermão Cristão
registrado — o de Pedro em Pentecostes — foi ocasionado
pela necessidade de explicar, de responder com relação
aos fenômenos da nova vida da comunidade. Coisas es­
tranhas estavam sucedendo e os de fora começavam a se
perguntar o que significariam. Devido ao fato de que
o Espírito viera — isto é, a Igreja começava a existir ple­
namente — é que Pedro foi movido a falar; foi somente
por esta razão que êle teve algo para falar. É verdade
que seu sermão, em grande parte, constituiu uma re­
cordação da vida, morte e ressurreição de Jesus, porém
êsse acontecimento foi lembrado a fim de que respon­
desse pela existência dessa nova comunidade com sua
vida distinta e intrinsecamente significativa. Sem
aquela "nova criação” — a criação da Igreja — Pedro
nunca teria tido oportunidade para pregar nem tam ­
pouco um texto sobre o qual falar.
Essa mesma identidade do Espírito que inspira o
pregador com o Espírito que constitui a Igreja, é reconhe­
cida tàcitamente quando o autor de I João, ao falar dos
"muitos falsos profetas”, insta para que a Igreja "prove
os espíritos se procedem de Deus” (4.1). Com que cri­
tério podem ser provados os espíritos de seus profetas e
professores a não ser por seu próprio Espírito, o Espírito
da própria Igreja? Com tôda a certeza podem existir
provas éticas mais objetivas a fim de que sejam elimina­
90 JOHN KNOX

dos os charlatães ou os mais óbvios logradores de si mes­


mos. Porém, em último recurso, a prova precisa ser es­
piritual. A não ser que a congregação constate que as
asseverações do profeta chamam e apelam para as pro­
fundezas de sua própria experiência compartilhada, não
se pode estar seguro que êle seja movido pelo Espírito.
Caso contrário, é mister que se chegue à conclusão que
êle possui um espírito estranho ou maligno, ou nenhum
espírito. Suas palavras precisam ir ao encontro de seus
membros em seu nível mais profundo e mais autêntico,
em sua consciência de seu pecado, de sua separação e de
sua finitude, de sua necessidade de perdão e cura, e da
realidade de salvação que Deus providenciou em Cristo
— a realidade do amor perdoador e sanador de Deus que
é pôsto constantemente à disposição através da própria
vida da comunidade divinamente concedida. O escritor
aos Efésios pode falar do profeta como o dom de Deus
para a Igreja, porém é de igual modo tão certo que os
próprios dons do profeta foram conferidos a êle através
da Igreja e somente em consideração a isso é que podem
ser reconhecidos como dons do Espírito.
Entretanto, se a pregação deve tudo à comunidade,
deve também tudo ao evento. A mensagem do pregador,
embora lhe tenha sido comunicada através da vida da
Igreja, foi concedida primeiramente em alguns aconte­
cimentos antigos. Como tantas vêzes temos lembrado
a nós mesmos, o pregador é o mensageiro do Evangelho
— as boas novas dêsses acontecimentos. O kerygma era
no princípio — como ainda o é — a proclamação da vida,
morte e ressurreição de Jesus, do significado salvador
que aquêle evento provou ter e tudo quanto ainda se
espera dêle. É mais do que isso, porém. Tal como a pre­
gação não discute tanto ou descreve a vida da comuni­
dade Cristã como expressa e transmite o seu significado
concreto, assim a pregação faz mais do que contar no-
A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO 91

vamente e explicar o antigo evento. O Espírito faz com


que o antigo evento, num sentido muito real, seja um
acontecimento que ainda está sendo realizado, e a pre­
gação é um meio da ação do Espírito para realizar isso.
Na pregação, quando realmente é pregação, o aconte­
cimento é continuado e recorrente. A ação reveladora
em Cristo está sendo realizada ainda ou chega a ser no­
vamente realizada.
É freqüentemente trazido à tona no Novo Testamen­
to êsse caráter da pregação como sendo, não um simples
relatório do evento, mas êle próprio uma parte dêle. Em
Rm 1.16 Paulo escreve: "Não me envergonho do Evan­
gelho porque é o poder de Deus ‘para a salvação’.” Por
"Evangelho” Paulo significa, naturalmente, a pregação;
e seu ponto não é simplesmente que o evento proclama­
do na pregação é o “poder de Deus” salví fico, mas que
a pregação em si mesma participa dêsse “poder” . A pre­
gação é uma extensão do evento em si e não meramente
de seu conhecimento. Assim também em 1 Co 1.21,
Paulo fala de "pregação” como sendo o meio através do
qual Deus “salvará aos que crêem.” Cristo crucificado
e pregado é “o poder de Deus e sabedoria de Deus. Se­
melhantemente, em Lc 4.18, a citação de Cristo do pro­
feta Isaías, “O Espírito do Senhor está sôbre mim, pelo
que me ungiu para evangelizar os pobres”, parece fazer
com que a pregação do Evangelho seja um elemento do
próprio Evangelho em si. Isso é ainda mais claro nas
palavras de Jesus aos discípulos de João, em Lc 7.22:
“Ide e anunciai a João o que vistes e ouvistes: os cegos
vêem, os coxos andam, os leprosos são purificados, os
surdos ouvem, os mortos são ressuscitados, e aos pobres
anuncia-se-lhes o Evangelho.”
O acontecimento com o qual o pregador está preo­
cupado é bem antigo, sucedido na Palestina no primeiro
século, sendo muito importante que seja lembrado como
92 JOHN KNOX *

tal. Entretanto, não é só isso — o mesmo ainda está su­


cedendo, ou se repete constantemente, e uma das manei­
ras de sua contínua recorrência é a pregação em s i. Aqui
está a prova final da pregação Crista, se fôr pura prega­
ção, genuinamente Crista: Será que, na verdade, trans­
mite a ação salvífica de Cristo? Tal como Deus usou a
vida, morte e ressurreição de Jesus, assim também, quer
seja de modo subordinado, está êle usando a pregação do
ministro acêrca daquela vida, morte e ressurreição como
o meio de seu poder e amor? Está Cristo dizendo nova­
mente: “Vinde a mim?” e, tendo mesmo ascendido, está
êle atirando-nos para si? Será que, de fato, vêmo-lo
morrer por nossa causa, e verdadeiramente em nossas
mãos? Estará êle se mostrando, até mesmo a nós, vivo
após a sua paixão, ressurreto para a nossa redenção?
Visto que a pregação está malogrando, aqui está o ponto
inicial de sua falha — não que falhe em ser suficiente­
mente aprendida, ou suficientemente divertida, ou su­
ficientemente resumida, ou suficientemente “moderna”
— e esta falha está em que o poder e ação de Deus não
estão sendo comunicados com eficiência nela. Êsse é o
ponto inicial da derrota, pois que, falhando aqui, a pre­
gação está malogrando como pregação. Um homem
expressa suas opiniçes — verdadeiras ou falsas, interes­
santes ou não — relativamente a assuntos de importân­
cia ou sem importância nenhuma. Deus, entretanto, não
está agindo. Algo está sendo dito, mas nada está acon­
tecendo. O acontecimento decisivo e salvador de Cristo
não está sendo recorrente. O Espírito — o “poder glo­
rioso” de Deus — não está presente.
Nossa afirmação aqui focaliza a natureza sacramen­
tal da pregação. Isso porque a inter-relação dupla com
o evento para o qual estamos agora apontando como .
essencialmente pertencente à pregação constitui, de
igual modo, a natureza essencial da Eucaristia. É certo
♦ A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO 93

ver na Ceia do Senhor um memorial de Cristo; tudo


quanto está sendo íeito é “em lembrança’' dêle, e falhar
em lembrar dêle, seria perder o significado total do sacra­
mento. Contudo, isso não é dizer que o ato de lembrar
seja no sentido total. Seja qual fôr a sua profissão,
nenhum corpo de Cristãos em grande número encara a
Ceia do Senhor como sendo apenas um memorial, um
lembrete de algo que aconteceu há muito tempo. Algo
está sucedendo agora; o antigo evento está sendo reali­
zado nesse instante. O que Deus fêz em Cristo está
sendo realizado agora. Assim acontece com o sacramen­
to. Assim também sucede com a pregação. Êste é o
significado do Espírito que toma as palavras de Cristo
e a ação de Deus — e é assim que as palavras são nova­
mente faladas, a ação está sendo feita novamente.
Se alguém perguntar “como podem ser essas
coisas”, é mister que se responda que êste é o único mi­
lagre final e inescapável no Cristianismo — essa con-
temporaneidade do que aconteceu há muito tempo, essa
atualidade, no presente, do que é também lembrado no
passado. Êste é o milagre da Ressurreição. Mas ainda
que não possa ser explicado e sendo, portanto, um mi­
lagre, constitui a própria existência da Igreja e é, pois,
indubitável. É o milagre da própria vida distinta da
Igreja. Os sacramentos só são sacramentos reais e a pre­
gação só é real se tão somente êste milagre fôr reali­
zado neles.
NOTAS
1. Devo a meu amigo, o Rev. George F, Woods, do Downing College,
Cambridge, o ter chamado minha atenção para essa passagem. É encontrada
em W orks (Londres, Impresso por j . Richardson, 1762, c provavelmente re-edi-
lado por G, li lore ton, 18931, VII, 186.
2. Chicago, Willet Clark and Company, 1936, Os vários trechos citados
foram usados com a permissão de Harper & Brothers, atuais editores,
3. Nova Iorque, Charles Scribner's Sons, 1950,
4. A Cambridge Bede Book (Nova Iorque, Longmans Green & Company,
1936), pág, 15,
5. The Study oj the Bible (Chicago, University of Chicago Press, 1937),
págs. 103 era diante. Copyright 1937 pela Universidade de Chicago. A citação
foi permitida pela University of Chicago Press.
6. Uma discussão mais completa dêste principio de interpretação è encon­
trada em meu livrinho Criticism and Faith (Nova Iorque e Nashville, Abingdon,
1952), especiaimente o capitulo final "Crítica Histórica e Pregação,”
7. Chicago, Willet Clark & Company, 1937.
8. Vide o artigo muito útil The Christian Teacher in the First Century,
per Floyd V. Filson, Journal o) Biblical Literature, LX, 317, 28.
9. Norman Foerstef e John M, Steadman (Boston, Houghton Mifflin
Co., 1923).

10. The Christian Century, LXI1I, 985 e seguintes.


Este livro foi composto e
impresso nas oficinas da
IM P R E N S A M E T O D IST A
Estrada do Vergueiro, 1301
São Bernardo do Campo,
Est. de S. Paulo

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