Você está na página 1de 1

Esfregou as mãos finas, esgaravatou as unhas sujas.

Pensou nas figurinhas


abandonadas junto ao barreiro, mas isto lhe trouxe a recordação da palavra infeliz.
Diligenciou afastar do espírito aquela curiosidade funesta, imaginou que não fizera a
pergunta, não recebera portanto o cascudo.
Levantou-se. Via a janela da cozinha, o cocó de Sinha Vitória, e isto lhe dava
pensamentos maus. Foi sentar-se debaixo de outra árvore, avistou a serra coberta de
nuvens. Ao escurecer a serra misturava-se com o céu e as estrelas andavam em cima
dela. Como era possível haver estrelas na terra?
A cadelinha chegou-se aos pulos, cheirou-o, lambeu-lhe as mãos e acomodou-
se.
Como era possível haver estrelas na terra?
Entristeceu. Talvez Sinha Vitória dissesse a verdade. O inferno devia estar cheio
de jararacas e suçuaranas, e as pessoas que moravam lá recebiam cocorotes, puxões
de orelhas e pancadas com bainha de faca.
Apesar de ter mudado de lugar, não podia livrar-se da presença de Sinha
Vitória. Repetiu que não havia acontecido nada e tentou pensar nas estrelas que se
acendiam na serra. Inutilmente. Aquela hora as estrelas estavam apagadas.
Sentiu-se fraco e desamparado, olhou os braços magros, os dedos finos, pôs-se a
fazer no chão desenhos misteriosos. Para que Sinha Vitória tinha dito aquilo?
Abraçou a cachorrinha com uma violência que a descontentou. Não gostava de
ser apertada, preferia saltar e espojar-se. Farejando a panela, franzia as ventas e
reprovava os modos estranhos do amigo. Um osso grande subia e descia no caldo.
Esta imagem consoladora não a deixava.
O menino continuava a abraçá-la. E Baleia encolhia-se para não magoá-lo, sofria
a carícia excessiva. O cheiro dele era bom, mas estava misturado com emanações que
vinham da cozinha. Havia ali um osso. Um osso graúdo, cheio de tutano e com
alguma carne.

Capítulo VII – Inverno

A família estava reunida em torno do fogo, Fabiano sentado no pilão caído,


Sinha Vitória de pernas cruzadas, as coxas servindo de travesseiros aos filhos. A
cachorra Baleia, com o traseiro no chão e o resto do corpo levantado, olhava as brasas
que se cobriam de cinza.
Estava um frio medonho, as goteiras pingavam lá fora, o vento sacudia os

Você também pode gostar