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RESUMO
ABSTRACT
INTRODUÇÃO
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Uma primeira percepção sem nenhum fundo é inconcebível. Toda percepção supõe um
certo passado do sujeito que percebe, e a função abstrata de percepção, enquanto
encontro de objetos, implica um ato mais secreto pelo qual elaboramos nosso
ambiente. (1945, p.326)
A noção essencial para tal filosofia é a de carne, que não é o corpo objetivo, que não é
tampouco o corpo pensado pela alma (Descartes) como seu, que é o sensível no duplo
sentido daquilo que sentimos e daquilo que sente. (...) Portanto, a filosofia de Freud
não é a filosofia do corpo mas da carne. - O id, o inconsciente, - e o ego (correlativos)
para serem compreendidos a partir da carne.( 1964a, pp.313;324)
Nosso objetivo não é opor aos fatos coordenados pela ciência objetiva outro grupo de
fatos- sejam eles chamados “psiquismo” ou “fatos objetivos, ou “fatos interiores”- que
“lhe escapam”, mas mostrar que o ser- objeto e também o ser- sujeito, este concebido
em oposição àquele e relativamente a ele, não constituem uma alternativa, que o
mundo percebido está aquém ou além da antinomia, que o fracasso da psicologia
“objetiva” deve ser compreendido juntamente com o fracasso da física “objetivista”- não
como uma vitória do “interior” sobre o “exterior”, do “mental” sobre o “material, mas
como apelo à revisão de nossa ontologia, ao reexame das noções de “sujeito” e de
“objeto”. As mesmas razões que impedem de tratar a percepção como um objeto,
também impedem de tratá-la como operações de um “sujeito”, seja qual for o sentido
em que possa ser tomada. (1964a, p.41)
Desta forma, mais do que qualquer outro aspecto de nossa relação com
o mundo, é a percepção que coloca em xeque as noções de sujeito e
objeto, e exige um questionamento sobre a noção cristalizada de
realidade que costumamos possuir. Rojcewicz e Lutgens (1996)
apontam, com razão, o enquadre geral em que Merleau-Ponty
inicialmente concebe sua compreensão do ato perceptivo: a percepção
emerge a partir de e é alimentada por uma relação já estabelecida entre
a pessoa e o mundo.
Ora, aqui os dados do problema não são anteriores à sua solução, e a percepção é
justamente este ato que cria de um só golpe, com a constelação dos dados, o sentido que
os une – que não apenas descobre o sentido que eles têm, mas ainda faz com que
tenham um sentido. (1945, p.46)
Ser uma consciência, ou, antes, ser uma experiência, é comunicar interiormente com o
mundo, com o corpo e com os outros, ser com eles em lugar de estar ao lado deles.
Ocupar-se da psicologia é necessariamente encontrar, abaixo do pensamento objetivo
que se move entre as coisas inteiramente prontas, uma primeira abertura às coisas
sem a qual não haveria conhecimento objetivo. O psicólogo não podia deixar de
redescobrir- se enquanto experiência, quer dizer, enquanto presença sem distância ao
mundo, ao corpo e ao outro, no momento mesmo em que ele queria perceber-se como
objeto entre os objetos. (1945- p. 113)
Mas devemos insistir sobre esse fato que elas [ as análises propriamente
fenomenológicas ] não visam substituir a psicologia. A renovação da qual se trata não é
uma invasão. Trata-se de renovar a psicologia sobre seu próprio terreno, de verificar
seus métodos próprios através de análises que fixem o sentido sempre incerto de
essências fundamentais como aquelas de “representação “ , “lembrança”, etc. (1996
pp.22-23).
No que concerne à consciência, temos que concebê-la não mais como uma
consciência constituinte e como um puro ser-para-si, mas como uma consciência
perceptiva, como sujeito de um comportamento, como ser-no-mundo ou existência...
(1945 p.404)
Se enfim se admite que as recordações não se projetam por si mesma nas sensações, e
que a consciência as confronta com o dado presente para reter apenas aquelas que se
harmonizam com ele, então reconhece-se um texto originário que traz em si seu sentido e
o opõe àquele das recordações: este texto é a própria percepção. ( 1945 p.29)
E logo a seguir:
Agora se manifesta o verdadeiro problema da memória na percepção, ligado ao problema
geral da consciência perceptiva. Trata-se de compreender como, por sua própria vida e
sem trazer em um inconsciente mítico materiais complementares, a consciência pode,
com o tempo, alterar a estrutura de suas paisagens - como, em cada instante, sua
experiência antiga lhe está presente sob a forma de um horizonte que ela pode reabrir, se
o toma como tema de conhecimento, em um ato de rememoração, mas que também pode
deixar “à margem”, e que agora fornece imediatamente ao percebido uma atmosfera e
uma significação presentes. Um campo sempre à disposição da consciência e que, por
essa razão, circunda e envolve todas as suas percepções, uma atmosfera, um horizonte
ou, se se quiser, “montagens” dadas que atribuem uma situação temporal, tal é a
presença do passado que torna possíveis os atos distintos da percepção e da
rememoração. (1945, p.30)
As diferenças com Freud são muitas, mas nota-se aqui um esforço claro
em ampliar ao máximo o horizonte da experiência de uma consciência
perceptiva. Não é de se estranhar que na década seguinte Merleau-
Ponty viesse a construir uma concepção própria do inconsciente, em
grande medida apoiado nas transformações que ele aqui realiza em sua
teoria da percepção.
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Em outro texto, [Coelho Junior, N. (1991)], desenvolvi com maior profundidade este tema que, no
entanto, recebe aqui uma nova análise no que diz respeito às críticas de Merleau-Ponty à concepção
freudiana do inconsciente. Cf. também a interessante análise de Petra HERKERT (1987) em seu livro
Das Chiasma, onde ele discute a crítica de Merleau-Ponty ao inconsciente freudiano.
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Impossível não ver nestas frases uma forte ressonância com aquilo que
a psicanálise busca entender da experiência de cada ser humano com
sua história, em seus primeiros contatos com o outro e com o mundo e
na renovação destas experiências a cada nova situação de vida. Mas
não precisamos chegar ao final da obra de Merleau-Ponty para
encontrar descrições que possam dialogar de perto com a experiência e
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Cf. COELHO JUNIOR, N. (1991) pp.125-129.
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Inicialmente porque Merleau-Ponty trata aqui de um campo que jamais foi tão próximo
daquele dos analistas, em segundo lugar porque o espaço temático em vias de
elaboração poderia ser situado em uma série vizinha dos fenômenos aos quais os
analistas prestam uma particular atenção : o sonho, a fantasia, o ato falho.( p.1017)
Se o outro deve existir para mim, é preciso que seja primeiro abaixo da ordem do
pensamento. Nessa região o outro é possível porque a abertura perceptiva não
pretende o monopólio do Ser e não institui a luta mortal das consciências. Meu mundo
percebido, as coisas entreabertas diante de mim, em sua espessura, com que prover
mais de um sujeito sensível com “estados de consciência”, têm direito a mais
testemunhas além de mim. (...) O homem pode fazer o alter- ego, cuja feitura é
impossível para o pensamento, porque está fora-de-si no mundo e porque um ek-
stase é co-possível com os outros. E esta possibilidade se cumpre na percepção como
vinculum do ser bruto e de um corpo. Todo enigma da Einfühlung está em sua fase
inicial “estesiológica”, e se resolve aí mesmo porque é uma percepção. Aquele que
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Acho que é possível afirmar que em passagens como esta fica evidente
a grande superfície de diálogo que se abre entre Merleau-Ponty e as
investigações psicanalíticas que procuram dar conta do processo de
comunicação e de percepção presentes na relação transferencial-
contratransferencial.
Então é mesmo verdade que os "mundos privados" comunicam-se, que cada um deles
se dá ao seu titular como variante de um mundo comum. A comunicação transforma-
nos em testemunhas de um mundo único, como a sinergia de nossos olhos os detém
numa única coisa. Mas tanto num caso como no outro, a certeza, ainda que irresistível,
permanece absolutamente obscura; podemos vivê-la, não podemos nem pensá-la, nem
formulá-la nem erigi-la em tese. Toda tentativa de elucidação reinvia-nos aos dilemas.
Ora, essa certeza injustificável de um mundo sensível comum a todos nós é, em nós, o
ponto de apoio da verdade (1964a,. p.27) .
Pois se para ele [Merleau-Ponty] não há universo simbólico distinto e se não há lugar
para constituir o inconsciente como depósito de significantes, não é porque ele pense
que de significação em configuração possamos esperar discernir progressivamente o
sentido — de fato, aí não encontramos o que os constitui — mas, sem dúvida, porque
essa potência simbólica que Freud localizou, com o nome de inconsciente, em um
domínio separado (da mesma forma que o considerava cortado da consciência de seus
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pacientes), ele o vê em atividade como o outro lado (Husserl) e não a outra cena
(Freud) de nossa existência (1968, p. 97.)
por exemplo, nos satisfazer com homologias entre de uma parte, inconsciente
(paradoxalmente agora, uma palavra que nos tranqüiliza), invisível e latente, e de outra
parte, visível, percebido e manifesto. [Afirmando ainda:] Haveria aí, não apenas
homologias superficiais, mas verdadeiros contra-sensos em relação tanto à psicanálise
como ao pensamento de Merleau-Ponty .( 1972, p. 72).
O enigma reside no fato de que meu corpo é ao mesmo tempo aquele que vê e que é
visto. Ele que olha todas as coisas, também pode olhar a si e reconhecer no que
está vendo então, o "outro lado" de sua potência de ver" (1964 b., p. 18.)
Definir o espirito como outro lado do corpo - Não temos idéia de um espírito que não
estivesse de par ("doublé") com um corpo, que não se estabelecesse sobre esse solo.
(...) Há um corpo do espírito e um espírito do corpo e um quiasma entre os dois (1964a,
pp. 312-313).
Com isso, é preciso que fique claro que Merleau-Ponty não supõe um
mundo onde distâncias não existem. Não há a defesa de uma "geléia
geral", pura indiferenciação que nos remeteria à concepção da grande
unidade originária, na forma do uno primordial, de onde tudo nasce e
para onde tudo volta. Se ver é tocar à distância, se busco com meu
corpo tocar e ser tocado é porque a distância existe, a diferença é um
fato. No entanto, o que pode tornar o ver e o tocar significativos e
carregados de sentidos é a simultaneidade de diferenciação e
indiferenciação, esta como presença do mesmo "elemento" ("carne") no
corpo e no mundo. Escreve Merleau-Ponty: "Em vez de rivalizar com a
espessura do mundo, a de meu corpo é, ao contrário, o único meio que
possuo para chegar ao âmago das coisas, fazendo-me mundo e
fazendo-as “carne” (1964a, p. 178)
Ou ainda:
O visível pode assim preencher-me e ocupar-me só porque, eu que o vejo não o vejo
do fundo do nada, mas do meio dele mesmo, eu, aquele que vê, também sou visível; o
que faz o peso, a espessura, a "carne" de cada cor, cada som, de cada textura tátil, do
presente e do mundo, é que aquele que os apreende sente-se emergir deles por uma
espécie de enrolamento ou redobramento, profundamente homogêneo em relação a
eles, que é o próprio sensível vindo a si e, em compensação, o sensível está perante
seus olhos como seu duplo ou extensão de sua "carne" (1964a, pp. 152-153)
dobradiça (ainda que ela seja invisível ou oculta) do plano das relações
inaugurais entre corpo e mundo. Nem na absoluta diferenciação, que
implica em polaridades irremediavelmente separadas, nem na completa
indiferenciação, que pressupõe a eliminação dos "lados", a eliminação
de um e outro. Assim, o "enigma" presente na situação clínica encontra-
se, em parte, nessa ambigüidade constante que nos faz deslizar de um
"lado" para o "outro lado", e depois deste para aquele. Em alguns
momentos é possível situar-se no entre, no quiasma; algo torna-se
apreensível, mas não enquanto emergindo de uma plena visibilidade, e
sim justamente, enquanto emergindo do entrelaçamento de visível e
invisível. Não há visibilidade pura. Nem tampouco, pura invisibilidade.
Nada está absolutamente oculto e nada se mostra em sua totalidade,
como uma visibilidade absoluta. O visível não é o oposto do invisível. O
invisível não é ausência de visibilidade. Ou como escreve Merleau-
Ponty:
Melhor que falar do ser e do nada, conviria falar do visível e do invisível, repetindo que
eles não são contraditórios. Diz-se invisível como se diz imóvel : não para aquilo que é
estranho (étranger) ao movimento, mas para aquilo que o mantém fixo. É o ponto ou
grau zero da visibilidade; a abertura de uma dimensão do visível (1960 a, p. 30).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: