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BURGESS, Ernest W. O crescimento da cidade: Uma introdução a um projeto de pesquisa.

Tradução de
Raoni Borges Barbosa. Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia, v.1, n.2, p. 61-70,
julho de 2017. ISSN 2526-4702.
Tradução
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/

O crescimento da cidade: Uma introdução a um projeto de pesquisa


The growht of the city: An introduction to a research project

Ernest W Burgess
Tradução de Raoni Borges Barbosa

Resumo: Este artigo busca apresentar a perspectiva teórica e metodológica aplicada pelo
Departamento de Sociologia da Escola de Chicago em seus estudos sobre o crescimento da
cidade. Entende e descreve os processos de expansão urbana em termos de extensão, sucessão
e concentração da malha urbana e de suas atividades, de modo a poder determinar como a
expansão urbana perturba o metabolismo social urbano em situações em que os processos de
desorganização excedem os de organização do social. O artigo discute e diferencia
conceitualmente as noções de movimento na cidade e de mobilidade urbana, definindo a
mobilidade como a medida de expansão e de metabolismo no urbano, suscetível à formulação
quantitativa precisa e passível de ser considerada quase que literalmente como o pulso da
comunidade. Em síntese, a perspectiva teórico-metodológica apresentada e discutida introduz
os projetos de pesquisa em andamento no departamento de Sociologia da Escola de Chicago.
Palavras-chave: Escola de Chicago, crescimento da cidade, mobilidade urbana, expansão
urbana

Abstract: This article seeks to present the theoretical and methodological perspective applied
by the Department of Sociology of the School of Chicago in its studies on the growth of the
city. It understands and describes the processes of urban expansion in terms of extension,
success and concentration of the urban network and its activities, so as to be able to determine
how an urban expansion disturbs the urban social metabolism in situations in which the
processes of disorganization exceed those of social organization. The article discusses
conceptually the differences between the notions of movement in the city and of urban
mobility, defining mobility as a measure of expansion and metabolism in the urban, which is
susceptible to precise quantitative formulation and that can also be considered almost literally
as the pulse of the community. In summary, the theoretical-methodological perspective
presented and discussed introduces the ongoing research projects in the Department of
Sociology of the Chicago School. Keywords: Chicago school, city growth, urban mobility,
urban sprawl

O fato mais notável da sociedade moderna pode ser considerado o crescimento


urbano das grandes cidades1. Na cidade se registra da forma mais evidente possível as
enormes transformações desencadeadas pela atividade industrial na vida social. Nos
Estados Unidos, a transição de uma civilização rural para uma civilização urbana, muito
embora tenha começado mais tarde do que na Europa, ocorreu, senão de forma mais rápida
e completa, pelo menos mais logicamente em relação às características de uma
sociabilidade urbana.
As manifestações peculiarmente urbanas da vida moderna - o arranha-céu, o metrô,
a loja de departamento, o jornal diário e o trabalho social - são caracteristicamente norte-

1
Texto originalmente publicado como Capítulo II, The growht of the city: An introduction to a
research project, do livro The City, organizado por Robert Ezra Park e Ernest Burgess, e publicado
pela primeira vez em 1925 pela University of Chicago Press, em Chicago.
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americanas. As mais sutis transformações na nossa vida social, que em suas manifestações
mais grosseiras são chamadas de "problemas sociais", ou seja, aqueles fenômenos que nos
alarmam e nos confundem, tais como o divórcio, a delinqüência e o descontentamento
social, tem suas mais veementes expressões nos contextos urbanos de sociabilidade. As
forças profundas e "subversivas" que operaram essas mudanças são medidas no
crescimento físico e expansão das cidades. Esse é o significado das estatísticas
comparativas de Weber, Bücher e outros pesquisadores e estudiosos da cidade, do urbano e
do urbanismo.
Os estudos estatísticos, muito embora enfatizem principalmente os efeitos do
crescimento da malha urbana, evidenciaram algumas características distintivas das
populações urbanas em comparação com as populações rurais. A maior proporção de
mulheres para cada homem nas cidades do que na zona rural; a maior porcentagem de
jovens e de pessoas de meia-idade; a maior proporção de nascidos no estrangeiro; a
heterogeneidade ocupacional se acentua com o aumento do crescimento urbano e altera
profundamente a estrutura social da cidade. Essas variações na composição da população
sãofenômenos indicativos de todas as transformações que ocorrem na organização social
da comunidade. Com feito, fazem parte do crescimento da cidade e sugerem a natureza dos
processos de crescimento e complexificação urbanos.
O único aspecto do crescimento adequadamente descrito por Bücher e Weber foi o
processo bastante óbvio da agregação da população urbana. Um processo quase tão aberto,
o de expansão, tem sido investigado de um ponto de vista diferente e muito prático por
grupos interessados em planejamento urbano, zoneamento e levantamentos regionais.
Ainda mais significativo do que a crescente densidade da população urbana pode ser
considerada a sua correlativa tendência para transbordar as áreas geográficas já ocupadas, e
assim se estender por áreas mais amplas, e incorporar essas áreas em uma vida comunitária
maior. Este artigo trata primeiramente, portanto, da expansão da cidade e, em seguida, dos
processos menos conhecidos de metabolismo e mobilidade urbanos que estão intimamente
relacionados com esta expansão da malha urbana.
Expansão como crescimento físico
A expansão da cidade, da perspectiva dos processos de planejamento, de
zoneamento e de levantamentos regionais urbanos, é quase que exclusivamente
considerada em termos de seu crescimento físico. Estudos de tração abordaram o
desenvolvimento do transporte em sua relação com a distribuição da população em toda a
cidade. Nesse sentido, os levantamentos realizados, por exemplo, pela Bell Telephone
Company e outros serviços públicos tem tentado prever a direção e a taxa de crescimento
da cidade para antecipar as futuras demandas de extensão de seus serviços. No plano
diretor da cidade a localização de parques e de bulevares, assim como o alargamento das
ruas de tráfego e o aprovisionamento de um centro cívico, são todos considerados a partir
do interesse em um futuro controle do desenvolvimento físico da cidade.
Esta expansão territorial de nossas maiores cidades desperta foçosamente a nossa
atenção pelo plano para o Estudo de New York e Arredores, e pela formação da
Associação de Planejamento Regional de Chicago, que estende o distrito metropolitano da
cidade a um raio de 50 milhas, abrangendo 4.000 milhas quadradas de território. Ambos
pretendem mensurar a expansão da malha urbana para lidar com as transformações que
acompanham o crescimento da cidade. Na Inglaterra, onde mais da metade dos habitantes
vivem em cidades com uma população de 100.000 habitantes ou mais, a expressiva
apreciação da influência da expansão urbana na organização social é expressa do seguinte
modo por C. B. Fawcett:

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Um dos acontecimentos mais importantes e marcantes no crescimento das


populações urbanas dos povos mais avançados do mundo durante as últimas
décadas tem sido o aparecimento de uma série de vastos agregados urbanos ou
conurbações muito maiores e mais numerosas do que as grandes Cidades de
qualquer era precedente. Estas formaram-se geralmente mediante a expansão
simultânea de um número de cidades próximas e vizinhas, cujas malhas urbanas
cresceram para fora de seus limites até que produziram uma coalescência prática
em uma área urbana contínua. Cada uma dessas aglomerações ainda tem dentro
de si muitos núcleos de crescimento urbano mais densos, a maioria dos quais
compreendem as áreas centrais das várias cidades de onde se organizou o
desnvolvimento urbano e essas manchas nucleares conectam-se pelas áreas
menos densamente urbanizadas que começaram como subúrbios de ca uma
dessas cidades. Os subúrbios geralmente são, ainda, um pouco menos ocupados
por edifícios, apresentando, muitas vezes, espaços abertos em grande quantidade.
Estes grandes agregados de moradores da cidade são uma característica nova na
distribuição da população humana sobre a terra. Atualmente há de trinta a
quarenta cidades que contam com mais de um milhão de habitantes, enquanto
que há apenas cem anos, fora dos grandes centros de população dos cursos de
água da China, não havia mais de duas ou três cidades que houvesses
ultrapassado a marca dos um milhão de habitantes. Esses agregados
populacionais são fenômenos de grande importância geográfica e social, que
produzem novos problemas na organização da vida e do bem-estar dos seus
habitantes e nas suas variadas atividades. Poucoshabitantes desses agregados
populacionais desenvolveram uma consciência social proporcional à sua
magnitude, ou se realizaram plenamente como agrupamentos definidos de
pessoas com muitos interesses, emoções e pensamentos comuns 2.
Na Europa e na América, a tendência da grande cidade para se expandir tem sido
reconhecida no termo "a área metropolitana da cidade", que em muito ultrapassa os seus
limites políticos, e, no caso de Nova York e Chicago, por exemplo, ultrapassam até mesmo
as linhas limítrofes dos Estados. A área metropolitana pode ser considerada como um
território fisicamente contíguo em que uma proibição legal é acionada, mas pode, ainda,
ser definida pela facilidade de transporte que permite a um homem de negócios residir em
um subúrbio de Chicago e trabalhar no circuito metropolitano, ao passo que permite à sua
esposa fazer compras no Marshall Field e assistir à grande ópera no Audithorium.
Expansão como um processo
Nenhum estudo que aborde a expansão da malha urbana como processo foi
realizado até então, muito embora os materiais para tal estudo e as indicações de diferentes
aspectos do processo estejam contidos nos procedimentos de Planejamento Urbano,
Zoneamento e Levantamentos Regionais. Os processos típicos da expansão da cidade
podem ser melhor ilustrados, talvez, por uma série de círculos concêntricos, que podem ser
numerados para designar as sucessivas zonas de extensão urbana e os tipos de áreas
diferenciadas no processo de expansão da metrópole.
Este gráfico representa uma construção ideal das tendências de qualquer cidade ou
metrópole para expandir-se radialmente a partir de seu distrito de negócios central - no
mapa "The Loop" (I). Em torno do centro da cidade normalmente situa-se uma área em
transição, em processo de invasão por casas de negócios e de fabricação de luz (II). Uma
terceira área (III) é habitada pelos trabalhadores das indústrias que escaparam da área de
deterioração (II), mas que priorizam a acessibilidade ao local de trabalho. Para além desta
zona é a "área residencial" (IV) de edifícios de apartamentos de classe alta ou de distritos
"restritos"exclusivos de habitação unifamiliar. Ainda mais longe, ultrapassando os limites
da cidade, encontra-se a zona de moradores passageiros - áreas suburbanas, ou cidades

2
Citado do: "British Conurbations in 1921”, Sociological Review, XIV (April, 1922), III-IV.

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satélites, - a uma distância de um passeio de trinta a sessenta minutos do distrito


empresarial central.
Este gráfico evidencia claramente o fato principal da expansão urbana, ou seja, a
tendência de cada zona interna de estender sua área mediante a invasão da próxima zona
externa que lhe abarca. Este aspecto da expansão pode ser chamado de sucessão, um
processo estudado detalhadamente pela ecologia vegetal. Quando este gráfico foi aplicado
à cidade de Chicago, então todas as quatro zonas supracitadas se encontravam em sua
história inicial incluída na circunferência da zona interna, o atual distrito empresarial. Os
limites atuais da área de deterioração não eram, há muitos anos, aqueles da zona agora
habitada por assalariados independentes, e dentro das memórias de milhares de habitantes
de Chicago esta zona abrigava ainda as residências das "melhores famílias". Ao gráfico em
tela dificilmente precisa ser adicionado o fato de que nem Chicago nem qualquer outra
cidade se encaixa perfeitamente neste esquema ideal. Maiores complicações à
representação gráfica do urbano em processo de tranformação são introduzidas pela
dificuldade de situar o lago da cidade, o Rio Chicago, as linhas férreas, as fábricas
históricas na localização do parque industrial, o grau relativo da resistência das
comunidades à invasão, etc.

Além da extensão e da sucessão, o processo geral de expansão do crescimento


urbano envolve processos antagônicos e também complementares de concentração e de
descentralização de fenômenos urbanos. Em todas as cidades há a tendência natural para a
organização do transporte local e externo de modo que estes venham a convergir no distrito
empresarial central. Na seção central de cada metrópole esperamos encontrar as lojas de
departamento, os edifícios de escritórios dos arranha-céus, as estações de estrada de ferro,
os grandes hotéis, os teatros, o museu de arte, e o salão de cidade. Naturalmente, quase que
inevitavelmente, a vida econômica, cultural e política se concentra aqui. A relação da
centralização de fenômenos urbanos com os outros processos da vida da cidade pode ser
mais ou menos avaliada pelo fato de que mais de meio milhão de pessoas entram
diariamente e saem do "loop" de Chicago. Mais recentemente centros de sub-negócios
cresceram em zonas periféricas. Esses "loops de satélite" não representam, ao que parece, o
"esperado" renascimento do bairro, mas um processo de destacamento de várias
comunidades locais em uma unidade econômica maior. A Chicago de ontem, uma

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aglomeração de cidades interioranas e colônias de imigrantes, atravessa um processo de


reorganização urbana pautado em um sistema centralizado descentralizado de comunidades
locais que se coagem em áreas de sub-negócios visivelmente ou invisivelmente dominadas
pelo distrito central de negócios. Os processos atuais do que pode ser considerado uma
descentralização centralizada estão atualmente sendo estudados pelos interessados no
desenvolvimento de redes de lojas, o que, por sua vez, é apenas uma ilustração da mudança
na base da organização urbana3.
O processo de expansão da malha urbana, como vimos, trata do crescimento físico
da cidade e da extensão dos serviços técnicos que tornaram a vida urbana não só habitável,
mas confortável, até mesmo luxuosa. Algumas dessas necessidades básicas da vida urbana
são somente possíveis mediante um desenvolvimento considerável da vida comunitária
humana. Três milhões de pessoas em Chicago dependem, por exemplo, de um sistema
unificado de abastecimento de água, assim como de uma empresa gigante de distribuição
de gás e uma enorme matriz de transmissão de luz elétrica. Contudo, tal como a maioria
dos outros aspectos da vida urbana comunitária, esta cooperação económica é um exemplo
de cooperação sem um mínimo do que o "espírito de cooperação" é comumente definido.
Os grandes serviços públicos fazem parte da mecanização da vida nas grandes cidades e
tem pouco ou nenhum outro significado para a organização social.
No entanto, os processos de expansão urbana e especialmente a taxa desta expansão
podem ser estudados não apenas no crescimento físico e no desenvolvimento do comércio
de bens e de serviços, mas também nas consequentes transformações no contexto da
organização social e nos tipos de personalidade humana que carazterizam o urbanismo. Até
que ponto o crescimento da cidade, em seus aspectos físicos e técnicos, corresponde a um
reajuste natural, porém adequado, na organização social? O que, para uma cidade, é uma
taxa de expansão normal, uma taxa de expansão com a qual as transformações controladas
na organização social podem manter o ritmo com sucesso?
Organização e desorganização social como processos de metabolismo
Essas questões podem ser melhor respondidas, talvez, ao se considerar o
crescimento urbano como resultado de processos de organização e desorganização
análogos aos processos anabólicos e catabólicos do metabolismo no corpo humano. De que
maneira os indivíduos são incorporados à vida de uma cidade? Por qual processo uma
pessoa se torna uma parte orgânica de sua sociedade? O processo natural de aquisição de
repertórios culturais se dá pelo nascimento. Uma pessoa nasce em uma família já ajustada
a um ambiente social específico - neste caso a cidade moderna. A taxa natural de aumento
da população mais favorável para assimilação pode então ser tomada como o excesso da
taxa de natalidade sobre a taxa de mortalidade, mas esta é a taxa normal de crescimento da
cidade? Certamente, as cidades modernas aumentaram e estão aumentando em população a
uma taxa muito mais elevada. No entanto, a taxa natural de crescimento pode ser usada
para medir os distúrbios do metabolismo causados por qualquer aumento excessivo, como
aqueles que seguiram o grande afluxo de negros do sul em cidades do norte desde a guerra.
De modo semelhante, todas as cidades mostram desvios na composição por idade e sexo de
uma população padrão como, por exemplo, a da Suécia, cuja população não foi afetada nos
últimos anos por qualquer grande emigração ou imigração. Também aqui variações
acentuadas, como qualquer grande excesso do número de machos em relação à proporção
de fêmeas, e vice-versa, ou na proporção de crianças, ou de homens ou mulheres adultos,
são sintomáticos de anormalidades no metabolismo social.

3
Ver o trabalho de: E. H. Shideler, The Retail Business Organization as an Index of Community
Organization (in preparation).

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Normalmente, os processos de desorganização e de organização podem ser


analisados como em uma relação reciprocamente direcionada e como uma cooperação em
um equilíbrio dinâmico da ordem social para um fim vaga ou definitivamente considerado
progressista. Na medida em que a desorganização aponta para a reorganização e para um
ajuste mais eficiente, a desorganização deve ser concebida não como patológica, mas como
normal. A desorganização, como processo preliminar à reorganização de atitudes e
conduta, quase invariavelmente configura o grupo de recém-chegados à cidade, e o
descarte do repertório cultural habitual, e muitas vezes do que lhe foi o código de
moralidade, não raramente é acompanhado de acentuado conflito mental e senso de perda
pessoal. Mais frequentemente, talvez, esta transformação que se dá no indivíduo ocorra
mais cedo ou mais tarde na forma de um sentimento de emancipação e de um impulso para
novas metas.
Na expansão da cidade ocorre um processo de distribuição que desloca, classifica e
re-aloca indivíduos e grupos por residência e ocupação. A diferenciação social resultante
da formação cosmopolita da cidade americana em áreas é segue tipicamente um mesmo
padrão, com apenas algumas pequenas modificações interessantes. Dentro do distrito
central de negócios ou em uma rua contígua situa-se o "tronco principal" de "Hobohemia",
o Rialto mais acabado do ator social migrante e sem teto do Middle West4. Na zona de
deterioração que circunda a seção central de negócios, encontram-se sempre as chamadas
"favelas" e "terras ruins", com suas regiões submersas em pobreza, degradação e doenças e
seus respectivos submundo do crime e do vício. Dentro de uma área em deterioração estão
os distritos das casas de alojamento, o purgatório das "almas perdidas". Perto dali se
encontra o Quartier Latin, onde os espíritos criativos e rebeldes se refugiam. As favelas
também estão superpovoadas ao ponto de transbordarem de colónias de imigrantes - o
Gueto, a Pequena Sicília, Greektown, Chinatown - combinando fascinantes heranças
culturais do velho mundo com suas formas de adaptações americanas. Afastando-se daqui
está o Cinturão Negro, com sua vida livre e desordenada. A área de deterioração, embora
essencialmente um lugar de decadência, de taxas populacionais estacionárias ou
declinantes, é também um lugar de regeneração, como atestam a presença da missão, do
assentamento, da colônia de artistas, dos centros radicais - todos estes obcecados com a
visão de um mundo novo e melhor.

4
Para um estudo des área cultural da cidade, ver: Nels Anderson, The Hobo, Chicago, 1923·

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A zona seguinte é habitada predominantemente por trabalhadores de fábricas e


lojas, por moradores hábeis e econômicos. Esta é uma área de segundo assentamento de
imigrantes, geralmente da segunda geração. É a região de fuga da favela, a Deutschland da
família aspirante de gueto. Deutschland (literalmente "Alemanha") é o nome dado, em
parte por inveja, em parte por escárnio, para aquela região além do Gueto, onde os vizinhos
bem-sucedidos parecem estar imitando os padrões de vida dos judeus alemães. Mas o
morador desta área, por sua vez, olha para a "Terra Prometida" além daquelas fronteiras,
para seus hotéis residenciais, para a sua região de apartamentos, seus "loops de satélite" e
suas áreas de "luz brilhante".
Esta diferenciação em agrupamentos econômicos e culturais naturais conforma e
caracteriza a cidade. A segregação oferece ao grupo e, portanto, aos indivíduos que
compõem o grupo, um lugar e um papel na organização total da vida da cidade. A
segregação limita o desenvolvimento em certas direções, mas o libera em outros. Estas
áreas tendem a acentuar certos traços, de modo a poder atrair e desenvolver o seu tipo de
indivíduos, e assim tornarem-se mais diferenciadas.
A divisão do trabalho na cidade também ilustra processos de desorganização,
reorganização e crescente diferenciação da malha urbana. O imigrante de comunidades
rurais na Europa e na América do Norte raramente traz consigo a habilidade econômica de
grande valor em nossa vida industrial, comercial ou profissional. Contudo, a seleção
ocupacional de maior interesse analítico ocorreu por nacionalidade, fenômeno explicável
mais pelo temperamento racial ou por circunstâncias banais do que pelo lastro econômico
do velho mundo, de modo que se vê como policiais os irlandeses, as sorveterias gregas, as
lavanderias chinesas, os porteiros negros, os zeladores belgas, etc.
Os fatos de que em Chicago um milhão (996.589) de indivíduos empregados
lucrativamente relataram 509 ocupações, e que mais de 1000 homens e mulheres em Who's
Who apresentaram 116 vocações diferentes, oferece uma noção de como na cidade a
minuciosa diferenciação de ocupação "analisa e seleciona a população, separando e
classificando os diversos elementos"5. Esses números proporcionam também uma
indicação da complexidade e da complicação do mecanismo industrial moderno e da

5
Ver: WEBER, Max. The Growth of Cities, p. 442.

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intrincada segregação e isolamento de grupos econômicos divergentes. Interrelacionada


com esta divisão econômica do trabalho se encontra uma correspondente divisão em
classes sociais e em grupos culturais e recreativos. A partir desta multiplicidade de grupos,
com seus diferentes padrões de vida, a pessoa encontra seu mundo social agradável e - o
que não é viável nos estreitos limites de uma aldeia - pode se deslocare e viver em mundos
sociais amplamente separados e, por vezes, conflitantes. A desorganização pessoal pode
ser apenas a incapacidade de harmonizar os cânones de conduta de dois grupos
divergentes.
Se os fenômenos de expansão e de metabolismo indicam que um grau moderado de
desorganização pode facilitar a organização social, estes fenômenos indicam também que a
rápida expansão urbana é acompanhada por aumentos excessivos de doenças, crimes,
desordens, vícios, insanidades e suicídios, tal como demonstram os indices aproximados de
desorganização social. Mas quais são os índices das causas, e não dos efeitos, do
metabolismo social desordenado da cidade? O excesso do aumento atual sobre o aumento
natural da população já foi sugerido como um critério. O significado deste aumento
consiste na imigração para uma cidade metropolitana como Nova York e como Chicago de
dezenas de milhares de pessoas anualmente. Sua invasão da cidade tem o efeito de uma
onda de maré inundando primeiro as colônias de imigrantes, os portos de primeira entrada,
desalojando os milhares de habitantes que transbordam para a próxima zona e assim por
diante até que o momento da onda tenha exaurido a sua força ao alcançar a última zona
urbana. Todo o efeito é o de acelerar a expansão urbana, de acelerar a indústria, de acelerar
o processo de "junking" na área de deterioração (II). Estes movimentos internos da
população tornam-se os mais significativos para o estudo. Que movimento está
acontecendo na cidade, e como esse movimento pode ser medido? É mais fácil, é claro,
classificar o movimento dentro da cidade do que mensurá-lo. Há o movimento de
residência para residência, de mudança de ocupação, de turno de trabalho, movimento de
ida para o trabalho e de retorno à rsidência, movimento para a recreação e para a aventura.
Estes fenômenos legitimam a pergunta: Qual é o aspecto significativo do movimento para
o estudo das transformações nas sociabilidades urbanas? A resposta a esta questão conduz
directamente à importante distinção entre movimento e mobilidade.
Mobilidade como o pulso da comunidade
O movimento tomado isoladamente não é uma evidência de transformação ou de
crescimento urbano. De fato, o movimento pode ser uma ordem fixa e imutável de
movimento projetada para controlar uma situação constante, como no movimento de
rotina: o movimento significativo para o crescimento urbano implica uma transformação
de um movimento em resposta a um novo estímulo ou situação. A transformação gerada
pelo movimento deste tipo é chamada mobilidade. O movimento da natureza da rotina
encontra sua expressão típica no trabalho. A mudança de movimento, ou mobilidade, é
caracteristicamente expressa na aventura. A grande cidade, com suas "luzes brilhantes",
seus empórios de novidades e pechinchas, seus palácios de diversão, seus submundos do
vício e do crime, seus riscos de vida e propriedade por acidente, roubo e homicídio, tornou-
se a região do mais intenso grau de aventura e perigo, excitação e emoção.
O fenômeno da mobilidade, é evidente, envolve transformação, nova experiência, e
estimulação para o novo. A estimulação induz uma resposta da pessoa a esses objetos em
seu ambiente que proporcionam a expressão para os seus desejos. Para a pessoa, como para
o organismo físico, a estimulação é essencial para o crescimento. A resposta à estimulação
é saudável, desde que seja uma reação integral correlacionada de toda a personalidade.
Quando a reação é segmentar, ou seja, separada e descontrolada pela organização da
personalidade, ela tende a se tornar desorganizadora ou patológica. É por isso que a

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estimulação pela estimulação, como ocorre na busca incansável do prazer, participa da


natureza do vício.
A mobilidade da vida urbana, com seu aumento no número e na intensidade dos
estímulos, tende inevitavelmente a confundir e a desmoralizar a pessoa. Pois um elemento
essencial nos costumes e na moralidade pessoal é a consistência, a consistência do tipo que
é natural no controle social do grupo primário. Onde a mobilidade é maior e onde, em
conseqüência, os controles primários se desetrturam completamente, como na zona de
deterioração da cidade moderna, desenvolvem-se áreas de desmoralização, de
promiscuidade e de vício.
Em nossos estudos da cidade se constata que as áreas de mobilidade são também as
regiões em que se encontram fenômenos como delinqüência juvenil, gangues de meninos,
pobreza, criminalidade, deserção da esposa, o divórcio, crianças abandonadas, o vício.
Estas situações concretas mostram por que a mobilidade é talvez o melhor índice do
estado do metabolismo da cidade. A mobilidade pode ser pensada em mais do que um
sentido fantasioso, como o "pulso da comunidade". Como o pulso do corpo humano, é um
processo que reflete e é indicativo de todas as mudanças que estão ocorrendo na
comunidade, e que, portanto, é suscetível de análise em elementos que podem ser
indicados numericamente.
Os elementos que entram na mobilidade podem ser classificados em duas partes
principais: (1) o estado de mutabilidade da pessoa, e (2) o número e tipo de contatos ou
estímulos em seu ambiente. A mutabilidade das populações da cidade varia com a
composição por sexo e idade, o grau de desapego da pessoa da família e de outros grupos.
Todos esses fatores podem ser expressos numericamente. Os novos estímulos a que uma
população responde podem ser medidos em termos de mudança de movimento ou de
contatos crescentes. As estatísticas sobre o movimento da população urbana só podem
medir a rotina, mas um aumentodo movimento da população em uma razão maior do que o
aumento do número da populacão pode mensurar o fenômeno da mobilidade. Em 1860, as
linhas de carro de cavalo da cidade de Nova York transportaram cerca de 50.000.000 de
passageiros6; Em 1890 os trolleycars (e algumas carroças sobreviventes puxadas a cavalo)
transportaram cerca de 500.000.000; em 1921, as linhas suburbanas elevadas, sybterrâneas,
de superfície, elétricas e de vapor levaram um total de mais de 2.500.000.000 de
passageiros. Em Chicago, o total de percursos anuais per capita na superfície e nas linhas
elevadas foram de 164 em, 1890; de 215, em 1900; de 320, em 1910; e de 338, em 1921.
Além disso, os passeios per capita em linhas de vapor e eléctricos suburbanos quase
dobraram entre 1916 (23) e 1921 (41), e o uso crescente do automóvel não deve ser
negligenciado7. Por exemplo, o número de automóveis em Illinois aumentou de 131.140,
em 1915, para 833. 920, em 19238.
A mobilidade pode ser medida não só por essas mudanças de movimento, mas
também pelo aumento dos contatos entre as pessoas. Embora o aumento da população de
Chicago em 1912-22 fosse inferior a 25% (23,6%), o aumento das cartas entregues aos
habitantes de Chicago dobrobrou sua quantidade (49,6%) - (de 693.084.196 para
1.038.007.854)9. Em 1912, Nova Iorque tinha 8.8 telefones por cem habitantes; já em
1922, 16.9 por 100 habitantes10. Boston tinha, em 1912, 10.1 telefones por cem habitantes;
mas dez anos depois, dispuinha de 19.5 telefones por 100 habitantes. Na mesma década, os

6
Adaptaddo de: W. B. Monro, Municipal Government and Administration, II, 377.
7
Ver: “Report on the Chicago Subway and Traction Commission”, p.80; e o “Report on a Physical Plan or a
Unified Transportation System”, p.391.
8
Dados compilados pela indústria automobilística.
9
Estatísticas da Divisão de Serviços Postais, Correios da Cidade de Chicago.
10
Determinado pelo: Census Estimates For Intercensual Years.

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números de Chicago aumentaram de 12.3 para 2 1.6 telefones por 100 habitantes. Mas o
aumento do uso do telefone é provavelmente mais significativo do que o aumento no
número de telefones. O número de telefonemas em Chicago aumentou de 606.131.928, em
1914, para 944.010.586, em 192211, um aumento de 55.7 por cento, enquanto a população
aumentou apenas 13.4 por cento.
Os valores fundiários, na medida em que refletem o movimento na cidade,
proporcionam um dos índices mais sensíveis de mobilidade. Os mais altos valores de terra
em Chicago estão no ponto de maior mobilidade na cidade, na esquina das ruas State e
Madison, no Loop. Uma contagem de tráfego mostrou que durante o período do rush
31.000 pessoas por hora, ou 210.000 homens e mulheres em dezesseis horas e meia, passou
pelao esquina sudoeste. Por mais de dez anos os valores de terra no Loop foram
estacionários, mas ao mesmo tempo duplicaram, quadruplicaram e até mesmo
sextuplicaram nas áreas estratégicas dos "loops de satélite"12: um índice preciso das
transformações ocorridas. As investigações até o momento parecem indicar que as
variações nos valores das terras, especialmente quando correlacionadas com as diferenças
de aluguéis, oferecem talvez o melhor indicador de mobilidade e, portanto, de todas as
transformações que ocorrem na expansão e no crescimento da cidade.
Em linhas gerais, tentei apresentar a perspectiva teórica e os métodos de
investigação que o departamento de sociologia emprega em seus estudos sobre o
crescimento da cidade, ou seja, descrever a expansão urbana em termos de extensão,
sucessão e concentração; determinar como a expansão perturba o metabolismo quando a
desorganização excede a organização; e, finalmente, definir a mobilidade como medida de
expansão e de metabolismo, suscetível à formulação quantitativa precisa, para que possa
ser considerada quase literalmente como o pulso da comunidade. Em síntese, estas
afirmações introduzem qualquer um dos cinco ou seis projetos de pesquisa em andamento
no departamento de Sociologia da Escola de Chicago13. O projeto, no entanto, no qual
estou diretamente envolvido, se organiza como tentativa de aplicar esses métodos de
investigação a uma seção transversal da cidade - colocar esta área, por assim dizer, sob o
microscópio, e assim estudar mais detalhadamente e com maior controle e precisão os
processos que foram descritos de forma mais geral. Para este propósito, a comunidade
judaica de West Side foi selecionada. Esta comunidade inclui o chamado "Gueto", ou área
de primeiro assentamento, e Lawndale, o chamado "Deutschland", ou área de segundo
assentamento. Esta área tem certas vantagens óbvias para o estudo dos processos de
expansão, de metabolismo e de mobilidade, pois ilustra a tendência de expansão radial do
centro de negócios da cidade. E compõe atualmente um grupo cultural relativamente
homogêneo. Lawndale constitui em si uma área em fluxo, com a maré de migrantes ainda
fluindo dentro do gueto e uma saída constante para regiões mais desejáveis da zona
residencial. Nesta área faz-se também possível estudar como o resultado esperado da alta
taxa de mobilidade em desorganização social e pessoal é contrabalançada, em grande parte,
pela organização comunitária eficiente da comunidade judaica.

11
Retirado de Estatísticas preparadas por R. Johnson, supervisor de trânsito, Illinois Bell Telephone
Company.
12
Durante os anos de 1912-23,o valor fundiário aumentou em Bridgeport de $600 para $1,250; no distrito
Division-Ashland-Milwaukee, de $2,000 para $4,500; no "Back of the Yards," de $1,000 para $3,000; em
Englewood, de $2,$00 para $8,000; em Wilson Avenue, de $1,000 para $6,000; mas o valor fundiário
decresceu no Loop de $20,000 para $16,$00.
13
Ver os seguintes estudos: Nels Anderson, The Slum: An Area of Deterioration in the Growth of the City;
Ernest R. Mowrer, Family Disorganization in Chicago; Walter C. Reckless, The Natural History of Vice
Areas in Chicago; E. H. Shideler, TM Retail Business Organization as an Index of Business Organization; F.
M. Thrasher, One Thousand Boys' Gangs in Chicago: a Study of Their Organization and Habitat; H. W.
Zorbaugh, The Lower North Side: a Study in Community Organization.

Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia v1 n2 julho de 2017 ISSN 2526-4702

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