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Lumbia Lumbia trocou rapidamente a lata de amendoim pela cai- xa de chicletes com a irma Beba. Fazia um bom tempo que estava andando para lé e para c4, e no havia conseguido vender nada. Quem sabe teria mais sorte se oferecesse chi- Cletes? E se nao desse certo também, procuraria o colega Gunga. Juntos poderiam vender flores. A mae nao gostava daquela espécie de mercadoria. Dizia que flor encalhada era prejuizo certo, Sempre amanheciam murchas. Amen- doim e chicletes nao. Lumbia gostava da florida merca- doria em seus bragos. Tinha até um estilo proprio de ven- da, Ficava observando 0s casais. O momento propicto para empurrar 0 produto era quando o casal partia para o betjo na boca, Ele assistia as bocas descolarem para oferecer a CCONCEIGAO EVARISTO flor. As vezes o casal se desgarrava, mas na mesma hora, sem respirar, 0 par se fundia de novo. Lumbia ficava por perto olhando de soslaio para a mulher. E quando notava que ela estava toda mole ¢ 0 homem derretido, © menino se puna quase entre os dois, com a flor em riste, impon- do a mercadoria. O caliente namorado enfiava a mio no bolso, tirava o dinheiro e pegava a rosa, recomegando 0 ca- rinho. As vezes, tdo distraido no beija-betja estava 0 casal que a rosa nao era colhida das miios do menino. E 0 troco honestamente oferecido ao fregués cansava de esperar na mao do vendedor. Lumbia calculando © luero da venda sorria feliz: 4s vezes, o'menino usava outro ardil-para im- pulsionar a venda. Chegava elogiando a mulher, dizia que ela era linda e que os dois iam ser muito felizes. Havia ca- sais que respondiam: — Serd? Estamos terminando agora! (© menino nao se dava por vencido, Muito sério respondia: — Nao ha grande amor sem problemas! Uma flor, uma rosa na despedida de voces, Vencia sempre. Feliz, Lumbia ¢ 0 amigo Gunga depois riam do betjo babado do homem e da mulher, Ele sabia tam- bém que nao era s6 homem e mulher que se beijavam, Ha- vvia 0s casais, em que a dupla era formada por semelhantes. Homem com homem. Mulher com mulher. Esses casais nao se beijavam em ptblico. As vezes faziam um carinho rapido nas maos do outro, Raramente compravam rosas. As mu- heres se aventuravam mais. Compravam e ofertavam para a amiga presente. Lumbid gostava muito de aproximar dos casais semelhantes. Gostava da troca carinhosa que ele as vezes assistia entre esses pares. O beljo era depositado nas sre mos, que escorregavam levemente na direcao da palma da outra pessoa, ou substituido pela leveza de uma flor-sorriso que se abria na intengdo de um labio a outro ‘Lumbié tinha ainda outros truques. Sabia chorar, quando queria, Escolhia uma mesa qualquer, sentava, abaixava a ca- beca e se banhava em légrimas. Sempre comegava chorando por safadeza, mas em meio as lagrimas ensaiadas, 0 choro real, profundo, magoado se confundia, Nas historias, que inventava nos momentos de choro para comover as pesso- as, tinha sempre uma dissimulada verdade. Um dado real da vida dele ou do amigo Gunga se confundia com a invengao do menino, E enquanto chorava o pranto ensaiado para co- mover os compradores, contava ora sobre a surra que ha- via levado da mie, ora pela mercadoria que estava ficando encalhada (e ele precisava retomar pata casa com um bom resultado de venda), ou ainda, pelo dinheiro, fruto de seu trabalho, que tinha sido tomado por um menino maior... E {408 poucos, em meio as verdades-mentiras que tinha inven- tado, Lumbia ia se descobrindo realmente triste, tao triste, profundamente magoado, atormentado em seu peito-cora- cao menino. Havia, porém, uma ocasido em que nada ameacava os dias gozosos do menino: o advento do Natal. A cidade se enfeitava com luzes que brotavam de todos os cantos. Lam- padas como fogueiras incendiérias ateavam um falso fogo iluminario sobre as fachadas dos prédios, sobre as arvores, das ruas, dos jardins ptiblicos e privados. Entretanto, ndo era esse pirotécnico espetaculo que seduzia Lumbid. Nem © personagem Papai Noel gordo e feliz, com 0 seu sortiso envidracado dentro das vitrines. Das arvores de natal, ndo gostava dos pinheiros iluminados e coloridos. Dos presen- tes expostos nas vitrines, principalmente os embrulhados, tinha vontade de apanhé-los ¢ amassé-tos. Ficava irritado, sabia que tudo eram caixas vazias, $6 havia uma coisa que es CONCEIGKO EVARISTO menino gostava no Natal. Um tinico signo: 0 presépio com a imagem de Deus-menino. Todos os anos, desde pequeno, ‘em suas andangas pela cidade com a mae e mais tarde so- zinho, buscava de loja em loja, de igteja em igreja, a cena natalina. Gostava da familia, da pobreza de todos, parecia a sua, Da imagem-mulher que era a mae, da imagem-homem. que era 0 pai. A casinha simples e a caminha de palha do Deus-menino, pobre, s6 faltava set negro como ele, Lumbié ficava extasiado olliando o presépio, buscando e encontran- do 6 Deus-menino. Houve um ano em que uma not 140 Huminado, uma tradicional casa especializada em ven- das de iluminérias, abajures, etc., ia armar um presépio no interior da loja, Seria o maior € o mais bonito da cidade. E foi. Lampadas piscas-piscas, estrelas pendentes por fios finos quase invisiveis iluminavam magicamente a paisa- gem, como se fosse um céu aberto sobre a manjedoura em que estava o Deus-menino. Animais pastavam mansamente sobre a relva, rios amenos cortavam os vales, que citcun- davam a cabana natalina, Os Reis Magos, os dois brancos, caminhavam um pouco abaixo da estrela-guia, O Rei Ne- ff0, aquele que parecia com o tio de Lumbié, caminhava sozinho um pouco atts, mas com passos le quem tinha a certeza de que iria chegar. A mae e o pai de Jesus piedosos resguardando © Deus-menino. Toda a cidade comentava a beleza e a semelhanga do presépio com a cena biblica que mento de Jesus. Lumbia atento ouvia todos os comentarios ¢ aguardava a oportunidade de visitar a Belém. instalada no interior da loja Casardo Tuminado. Havia, en- tretanto um problema, Estava proibida a entrada de crian- as sozinhas € para ele era quase impossivel esperar pelo dia em que a mae pudesse levé-lo, acompanhé-lo até la. Na semana anterior Gunga, Beba, Beta, e outros jé haviam feito Igumas tentativas va la corteu: a loja Casa Lomas Enquanto isso, o tempo corria. Lumbia ja tinha visto to- dos 0s presépios das redondezas. Em cada um seu coragao batia descompassadamente quando fitava o Deus-menino. ‘Tinha feito varias tentativas de entrar no Casardo, o vigilan- te vinha ¢ 0 enxotava, O menino nao desistia, ficava ron- dando de longe, adivinhando a beleza de tudo, do outro lado da calgada. Era um entra-e-sai intenso. A televis4o € um jornal tinham falado sobre o presépio, que tinha sido feito por um grande artista. dia caminhava para seis da tarde, vinte e trés de dezem- bro, © menino aguardava ali desde as nove da manha. Em sua viagem costumeira do subsirbio para 0 centro da cidade, se distanciou de Gunga e da irma. Tinha flores nas mos, r0- sas amarelas. Havia combinado com 0 amigo que venderiam flores, mas aquelas ele daria para o Menino Jesus ¢ também poria algumas nas maos do Ret Baltasat. Fazia frio, multo frio, era um dia chuvoso. Tinha a roupa colada sobre o fragil cor- po a tremer de febre. A loja jé estava para fechar. As vendas tinham cessado desde o dia anterior. O Casardo Iluminado abrira naquele dia s6 para visitacao piblica ao presépio. Pre-~ ‘cisava chegar até 14. Como? Ja tinha feito varias tentativas, sendo sempre expulso pelo seguranca, la arriscar novamente. Em dado momento aproximou-se devagar. Ninguém na por- ta. Mordeu os labios, pisou leve e, apressado, entrou, 1d estava o Deus-menino de bracos abertos. Nu, pobre, vazio € friorento como ele. Nem as luzes da loja, nem as falsas estrelas conseguiam esconder a sua pobreza e solidao. Lumbié othava, De bragos abertos, 0 Deus-menino pedia por ele. Eré queria salr dali, Estava nu, sentia frio, Lumbid focou na imagem, a sua semelhanga. Deus-menino, Deus- menino! Tomou-a rapidamente em seus bragos. Chorava € ria, Era seu. Saiu da loja levando 0 Deus-menino, O segu- ranga voltou. Tentou agarrar Lumbia, O menino escorregou pulando na rua ess CONCEIGKO EVARISTO sinall! O carro! Lumbis! Pivete! Crianga! Eré, Jesus Me- nino. Amassados, massacrados, quebrados! Deus-menino, Lumbia morreu!

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