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Herberto Helder
A MORTE SEM MESTRE

queria fechar-se inteiro num poema


lavrado em língua ao mesmo tempo plana e plena
poema enfim onde coubessem os dez dedos
desde a roca ao fuso
para lá dentro ficar escrito direito e esquerdo
quero eu dizer: todo
vivo moribundo morto
a sombra dos elementos por cima

[ INCLUI CD DE OFERTA ]

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04668.10 1 0

9 789720 046680
ISBN 978-972-0-04668-0
Oo O
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Tudo quanto neste livro possa parecer acidental


é de facto intencional.
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Herberto Helder

A M O RT E
SEM MESTRE

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A Morte sem Mestre


Herberto Helder

Publicado em Portugal por


Porto Editora
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© Herberto Helder
© Porto Editora, 2014

Na sobrecapa: caligrafia de Herberto Helder

1.ª Edição: Maio de 2014

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ISBN 978-972-0-04668-0 Os prejudicados somos todos nós.
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A M O RT E S E M M E S T R E
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nunca estive numa só linha a tão vertiginosa altura,


oh Anjo Príapo, oh Nossa Senhora Côna!
quando nos vimos nus um em frente ao outro,
em nossa primeira noite nos começos do mundo,
numa pensão rasca de um bairro de quinta ordem,
o putedo sai que entra pelos quartos à volta
— peço por isso que um qualquer erro de ortografia ou
sentido
seja um grão de sal aberto na boca do bom leitor impuro.

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o teu nome novo, comecei eu a tirá-lo com uma navalha


da madeira grossa,
e nunca mais saía a única letra até dentro,
a primeira, e já toda a mão me sangrava
com o talho à volta dos dedos,
e a letra e o melhor do meu sangue e a seiva
metiam-se pela ferida como se ela mesma fosse
o meu trabalho apenas,
sangue que escorria pulso abaixo e me escoava:
a própria lavra da escrita —
¿oh quando arranjarei mão que alcance em sangue e força
o fundo final desse começo de ti,
nome terreno,
isso: coisa amada tanto quanto o alvoroço mortal deste fim
de idade:
será que nenhum poder me devasta ainda?

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que um nó de sangue na garganta,


um nó de ar no coração,
que a mão fechada sobre uma pouca de água,
e eu não possa dizer nada,
e o resto seja só perder de vista a vastidão da terra,
sem mais saber de sítio e hora,
e baixo passar a brisa
pelo cabelo e a camisa e a boca toda tapada ao mundo,
por cada vez mais frios
o dia, a noite, o inferno, o inverno,
sem números para contar os dedos muito abertos
cortados das pontas dos braços,
sem sangue à vista:
só uma onda, só uma espuma entre pés e cabeça,
para sequer um jogo ou uma razão,
oh bela morte num dia seguro em qualquer parte
de gente em volta atenta à espera de nada,

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um nó de sangue na garganta,
um nó apenas duro

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