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Estado de Bem-Estar Social: Padrées e Crises* JOSE LUIS FIORI** RESUMO, ‘Este artigo recapitula brevemente a trajetéria ¢ os paradigmas histéricos mais conhecidos de protegio social dos “exclufdos” das sociedades capitalistas, para diferencif-los do Welfare State contemporaneo, posterior ao Plano Beveridge. Logo em seguida contextualiza 0 sucesso da nova organizagio piiblica da protegao social, no ambito da “Era de Ouro” do capitalismo, no perfodo que vai de 1950 a 1970. Para, depois de discutir algumas tipologias Presentes na literatura sobre o Welfare, colocar o problema de sua lenta desarticulaco ou redefinigdo no contexto das crises econ6micas € da vit6ria ideolégica do liberal-conservadorismo nos paises centrais ¢ periféricos. Palavras-Chave: Estado de Bem-Estar; protecio social; crise. ABSTRACT Welfare State: Patterns and Crisis This article recapitulates the most known trajectory and historical paradigms of social protection of the “excluded ones” in capitalist societies, differing from the present Welfare State, after the Beveridge Plan. Then it contextualizes the success of the new public organization of social protection, within the capitalist “Golden Age” (1950-1970). After discussing some typologies on the literature on Welfare, it places the problem of its slow inarticulation or * Este texto faz parte da pesquisa apoiada pelo CNPq, “Globalizagéo, Transigao Hegeménica © Soberania”. ** Cientista politico, professor titular do Instiwuto de Economia Industrial da UFRY e do Instituto de Medicina Social da UBR. PHYSIS: Rev. Saide Coletiva, Rio de Janeiro, 72) 129-147, 1997 129 José Luts Fiori redefinition within the context of economic crises and the ideological victory of liberal-conservatism in central and peripheric countries. Keywords: Welfare State; social protection; crisis. RESUME L’Etat Providence: Modéles et Crise Cet article est une recapitulation de la trajectoire et des paradigmes historiques plus comnus de protection sociale des “exclus” des societés capitalistes, pour les différencier de 1’ Etat Providence contemporain, aprés le Plan Beveridge. Puis, article insére le succéss de Ia nouvelle organisation publique de protection sociale dans “I'Age d’Or” du capitalisme, de 1950 a 1970. Aprés discutir quelques typologies de la litérature sur I'Etat Providence, on met le probléme de sa lente désarticulation ou redéfinition dans ie contexte des crises économiques et de la victoire idéologique du liberal-conservatisme aux pays centrales et périphériques. Mots-clé: Fitat Providence; protection sociale; crise. Recebido em 10/10/97. Aprovado em 17/11/97. 130 PHYSIS: Rev. Saide Coletiva, Rio de Janeiro, (2): 129-147, 1997 Estado de Bem-Estar Social: Padrées ¢ Crises “Mais que ser dirigida as vitimas do mercado de trabalho ¢ antes que 0s destinar a transformar 0 trabalho visto como mercadoria em tra- balho visto como a base de um direito de cidadania industrial, 0 significado estratégico das politicas sociais passa a ser hoje o de uma arma para a modernizagao industrial competitiva”. (Claus Offe, 1993) Conceitos e Histérias No campo das instituigdes, nao h4 como recortar e definir “padrdes” sem. recorrer 4 Histéria. Mas sem conceitos claros, a experiéncia histdrica fica temporalmente indeterminada e acaba perdendo-se na multiplicidade infinita dos casos, impedindo a comparagdo entre seus processos e formas e inviabilizando, assim, a organizagSo ¢ a andlise de suas tendéncias através da construgao de tipos ou paradigmas. Uma premissa metodolégica aparen- temente simples, mas cuja imensa complexidade pratica aparece de imediato quando tentamos reunir, sob um mesmo conceito — o da “protegdo social” — instituigGes e praticas tao radicalmente distintas como sdo as Poor Laws ¢ as Friendly Societies inglesas, os seguros sociais compuls6rios alemies, dos tempos de Bismarck, as Caixas de Pensao brasileiras dos tempos de Eloy Chaves, 0 New Deal norte-americano de Roosevelt ou, finalmente, 0 Estado de Bem-Estar Social, a forma moderna mais avancada de exercicio Pliblico da protecSo social. E esta dificuldade cresce ainda mais quando constatamos que 0 préprio Welfare State que poderia servir de baliza ou referéncia “teleolégica” para uma periodizagao e padronizagio das “formas inferiores” ou menos desenvolvidas de prote¢ao social, apresenta uma va- riedade tio grande de trajet6rias ¢ formas no scu processo de construgo © expansio, nos seus graus de profundidade ¢ universalidade, e na sua maneira de enfrentar a crise ¢ transigfo dos anos 80/90, que somos obriga- dos, de antemio, a reduzir as ambigdes analiticas deste artigo, focalizando apenas alguns aspectos do extenso debate que na literatura especializada cerca 0 universo sugerido pelo enunciado das questées que devo discutir. Para isto, considero que o melhor caminho para comegar a organizar 0 debate existente na literatura sobre o assunto é partir da resposta que os especialistas dao & pergunta sobre a existéncia ou nfo de uma descontinui- dade essencial ou qualitativa que diferencie aquilo que se chama de Welfare State das varias formas de politica social que Ihe precederam historicamen- te. Formas de protegio que desde j4 ha que se reconhecer, como um complicador do quadro, que ainda quando tenham sido inventadas, entre os PHYSIS: Rev. Sade Coletiva, Rio de Janciro, 72): 129-147, 1997 131 José Luts Fiori séculos XV e XIX, reaparecem invariavelmente reapropriadas ou reaproveitadas de uma ou outra forma, em maior ou menor extens&o, pelas varias organizagées nacionais do welfare, posteriores A Segunda Guerra Mundial. Mas vamos por partes e comecemos pela questiio conceitual. Aqui é possivel distinguir trés posigdes fundamentais: a primeira, com menor densidade teérica ¢ maior preocupagao historiogrdfica, privilegia a idéia de “protegdo social”, enquanto tal e isoladamente, ¢ por isto tende a sublinhar a evolugao mais do que as descontinuidades na trajetéria que vai das Poor Laws, de 1536 a 1601, até o Plano Beveridge. A segunda posigdo, bem mais precisa no manejo conceitual, trabalha com a idéia de “‘politicas sociais”, usa este conceito indiferenciadamente com 0 de welfare e vé uma nitida con- tinnidade ¢ evolugo dessas politicas, pelo menos a partir da legislaco securitéria alema. Inscrevem-se aqui tanto a visio cldssica de Marshall (1964) sobre a evolugéo em trés tempos — civil, politica e social — da cidadania, quanto o estudo comparativo mais recente de Flora ¢ Heidenheimer (1983), os quais localizam 0 inicio do welfare nos trés tiltimos decénios do século XIX, fenémeno que associam com o nascimento da democracia de massas. Uma terceira posigao que aparece defendida em escritos mais recentes (Esping-Andersen, 1990; Mishra, 1990, entre outros) sustenta, pelo contrério, a existncia de uma ruptura qualitativa entre as politicas sociais anteriores 4 Segunda Guerra Mundial e 0 que veio a ser, a partir do Plano Beveridge, o welfare state contemporaneo. A grande virtude dos estudos mais historiograficos foi a de identificar os padrées ou paradigmas originarios do que poderfamos chamar de interven- g4io social do Estado na histéria da modernidade capitalista que se estende até o fim do século XIX: 0 inglés e o alemfo. Com relacao & Inglaterra, a investigagao hist6rica permitiu identificar as estreitas relagGes nascidas entre a centralizagao do poder que acompanhou o nascimento dos Estados abso- lutistas e a “liberagiio” da forga de trabalho camponesa que acompanhou a mercantilizagao das terras, e a protegao dai advinda, que foi dada aos po- bres. Uma legisla¢éo preocupada explicitamente com a nova questéo da ordem ¢ do disciplinamento do trabalho, mas que deu lugar também a um tipo pioneiro de assistencialismo que nao apenas se difundiu pela Europa, como se manteve presente como uma marca que atravessa a Histdria ingle- sa, chegando até o Speenhamland Act, de 1796, e o Poor Law Act, de 1834. No plano legal, a dissolugao das Poor Laws inglesas sé ocorrerd em 1929. Com relagao 4 Alemanha, os historiadores souberam identificar a estreita associag&o entre a nova legislago bismarckiana e a repressdo/antecipacdo 132 PHYSIS; Rev. Sade Coletiva, Rio de Janeiro, 7(2): 129-147, 1997 Estado de Bem-Fstar Social: Padres e Crises a0 movimento socialista, mas a pesquisa comparada sobre as politicas sociais soube identificar claramente a enorme diferenca que separava o assistencialismo e as varias formas prévias de ajuda muitua do novo sistema securitatio compulsério que nasce nos anos 80 do século passado. O que © distinguia era 0 fato de propor medidas ¢ préticas permanentes; de assen- tar-se sobre um nticleo institucional diferenciado; de concentrar-se sobre trabalhadores masculinos ¢ os obrigar a contribuigao financeira compulséria e, finalmente, de institucionalizar procedimentos completamente diferentes dos que foram utilizados pelo assistencialismo prévio. Nascia ali um novo paradigma, conservador e corporativo, em que os direitos sociais, definidos de forma contratual, vinham outorgados “de cima” por um governo autori- tério que ainda nfio reconhecera os direitos elementares da cidadania poli- tica. Este modelo generalizou-se pela Europa, como no caso do assistencialismo inglés, mas que acabou tendo, também, enorme influéncia na construgio conservadora dos sistemas de assisténcia e protegéio social que se multiplicaram na periferia latino-americana durante o século XX, mas sobretudo depois de 1930. N&o cabem duvidas, entretanto, que s6 os estudos mais recentes (a segunda geragio de estudos comparativos de que nos fala Esping-Andersen) propuscram um conceito capaz de dar conta da complexidade do fenémeno do welfare e, portanto, também de suas diferengas e descontinuidades fun- damentais com as trajetorias e/ou padrées histéricos anteriores, de organi- zagiio das politicas sociais de tipo privado ou governamental, assistencial ou contratual. Para todos eles, o Plano Beveridge, ao legitimar o National Health Service Act, em 1946 criou um sistema nacional, universal e gratuito de assisténcia médica, financiado pelo orgamento fiscal, desvinculado, portanto, da relag&o contratual que havia caracterizado até entdo a esséncia das politicas sociais governamentais. Nascia ali, segundo esses autores, um novo paradigma e s6 ele poderia ser chamado corretamente de welfare. Segundo Esping-Andersen (1991) “o welfare state niio pode ser compreendido ape- nas em termos de direitos e garantias. Também precisamos considerar de que forma as atividades estatais se entrelagam com o papel do mercado e da famflia em termos de provisio social”. Mishra (1990) talvez seja até mais radical: para ele ndéo se pode falar em Estado de Bem-Estar Social antes de 1950. Mirsha associa o novo padrdo ou paradigma a mudangas que ocorrem simultaneamente no plano da regulamentagiio da economia de mercado ¢ afirmagao hegeménica das politicas econémicas ativas de inspiracio keynesiana. Para ele nao h4 como dissociar os servigos sociais universais, PHYSIS: Rev, Snide Coietiva, Rio de Janeiro, 7(2): 129-147, 1997133 José Luls Fiori 0 objetivo de redistribuigdo c interagio das rendas do objetivo maior do pleno emprego que norteou as politicas econémicas nacionais até os anos 80. Claus Offe, em intimeros trabalhos sobre 0 mesmo tema, agrega novas dimensdes ao conceito e a prética do welfare, deixando clara sua inscrigao como pega essencial de um contexto mais amplo que vigiu durante os trinta anos da chamada “era de ouro do capitalismo”. Essas andlises em conjunto permitem identificar pelo menos quatro grandes pilastras sobre as quais se assentaram a viabilidade e o sucesso dos welfare contempordneos: A primeira, constituida pelos fatores materiais ou econdmicos que se manifestaram na forma (a) da generalizagio do paradigma fordista; (b) da existéncia de um consenso suprapartidério em torno aos valores do cres- cimento e do pleno emprego; (c) de um consenso paralelo em torno as politicas keynesianas; (d) da manutengao de um ritmo de crescimento econémico constante e sem precedentes na histéria capitalista; e (¢) 0 que, por causa disto e por sua vez, permitiu ganhos fiscais crescentes que foram alocados por coalizées politicas socialmente orientadas, mesmo quan- do nao fosse © caso de governos controlados diretamente pelos social- democratas. A segunda, constitufda pelo “ambiente” econémico global criado pelos acordos de Bretton Woods e que abria espago para uma conciliagao entre © desenvolvimento dos welfare e a estabilidade da economia internacional, 0 que Ruggie (1982) chamou de embedded liberalism. Nas palavras de Gilpin (1993, p. 33), “seguindo la teoria della politica econémica, i governi avrebbero perseguito politiche macroeconomiche e di welfare allinterno in maniera tale da non contrastare 1é leffi ed erodere la stabilité del sistema econémico internazionale”. A terceira, constituida, inicialmente, pelo “clima” de solidariedade nacio- nal que se instalou logo depois da Segunda Guerra dentro dos pafses ven- cedores ¢ vencidos, e, logo depois, pela solidariedade supranacional gerada pelo novo quadro geopolitico. A nova situagio, ao bipolarizar ideologicamen- te os conflitos mundiais entre duas propostas excludentes de organizacao econémica e social, criaram os estimulos ou receios necessdrios para con- solidar as conviegdes “socialmente orientadas” de todos os governos, af incluidos os conservadores, os democrata-cristaos ¢ os liberais. ‘A guarta, constituida pelo avango das democracias partidérias ¢ de massa que, pelo menos nos paises centrais — onde de fato pode-se falar de welfare —, permitiu que a concorréncia eleitoral aumentasse 0 peso ¢ a importancia das reivindicagées dos trabalhadores — dos seus sindicatos ¢ 134 PHYSIS: Rev. Saide Coletiva, Rio de Janeiro, 7(2): 129-147, 1997 fistado de Ben»Estar Social: Padres e Crises a0 movimento socialista, mas a pesquisa comparada sobre as politicas sociais soube identificar claramente a enorme diferenga que separava o assistencialismo e as varias formas prévias de ajuda miitua do novo sistema securitério e compulsério que nasce nos anos 80 do século passado. O que © distinguia era o fato de propor medidas e praticas permanentes; de assen- tar-se sobre um niicleo institucional diferenciado; de concentrar-se sobre trabalhadores masculinos ¢ os obrigar contribui¢ao financeira compulséria ¢, finalmente, de institucionalizar procedimentos completamente diferentes dos que foram utilizados pelo assistencialismo prévio. Nascia ali um novo paradigma, conservador ¢ corporativo, em que os direitos sociais, definidos de forma contratual, vinham outorgados “de cima” por um governo autori- tario que ainda nao reconhecera os direitos elementares da cidadania polf- tica, Este modelo generalizou-se pela Europa, como no caso do assistencialismo inglés, mas que acabou tendo, também, enorme influéncia na construgio conservadora dos sistemas de assisténcia e protecao social que se multiplicaram na periferia latino-americana durante o século XX, mas sobretudo depois de 1930. Nao cabem diividas, entretanto, que sé os estudos mais recentes (a segunda geracio de estudos comparativos de que nos fala Esping-Andersen) propuseram um conceito capaz de dar conta da complexidade do fenémeno do welfare e, portanto, também de suas diferengas e descontinuidades fun- damentais com as trajetérias e/ou padrées histéricos anteriores, de organi- zagao das politicas sociais de tipo privado ou governamental, assistencial ou contratual. Para todos eles, o Plano Beveridge, ao legitimar o National Health Service Act, em 1946 criou um sistema nacional, universal e gratuito de assisténcia médica, financiado pelo orgamento fiscal, desvinculado, portanto, da relagdo contratual que havia caracterizado até ent&o a esséncia das politicas sociais governamentais. Nascia ali, segundo esses autores, um novo paradigma e s6 ele poderia ser chamado corretamente de welfare. Segundo Esping-Andersen (1991) “o welfare state naio pode ser compreendido ape- nas em termos de direitos e garantias. Também precisamos considerar de que forma as atividades estatais se entrelagam com o papel do mercado e da familia em termos de provisio social”. Mishra (1990) talvez seja até mais radical: para ele nao se pode falar em Estado de Bem-Estar Social antes de 1950. Mirsha associa o novo padrao ou paradigma a mudangas que ocorrem simultaneamente no plano da regulamentagio da economia de mercado e a afirmagio hegeménica das politicas econémicas ativas de inspiragéo keynesiana. Para ele nado ha como dissociar os servigos sociais universais, PHYSIS: Rev. Satide Coletiva, Rio de Janeiro, 72): 129-147, 1997 133 José Lats Fiori 0 objetivo de redistribuigao e interago das rendas do objetivo maior do pleno emprego que norteou as politicas econémicas nacionais até os anos 80. Claus Offe, em intimeros trabalhos sobre 0 mesmo tema, agrega novas dimensées ao conceito e & pritica do welfare, deixando clara sua inscriggo como pega essencial de um contexto mais amplo que vigiu durante os trinta anos da chamada “era de ouro do capitalismo”. Essas andlises em conjunto permitem identificar pelo menos quatro grandes pilastras sobre as quais se assentaram a viabilidade e 0 sucesso dos welfare contemporaneos: A primeira, constituida pelos fatores materiais ou econémicos que se manifestaram na forma (a) da generalizagaio do paradigma fordista; (b) da existéncia de um consenso suprapartidério em torno aos valores do cres- cimento e do pleno emprego; (c) de um consenso paralelo em torno as politicas keynesianas; (d) da manutengio de um ritmo de crescimento econémico constante ¢ sem precedentes na histéria capitalista; ¢ (e) 0 que, por causa disto e por sua vez, permitiu ganhos fiscais crescentes que foram alocados por coalizGes politicas socialmente orientadas, mesmo quan- do nao fosse 0 caso de governos controlados diretamente pelos social- democratas. A segunda, constituida pelo “ambiente” econémico global criado pelos acordos de Bretton Woods ¢ que abria espago para uma conciliagdo entre o desenvolvimento dos welfare e a estabilidade da economia internacional, o que Ruggie (1982) chamou de embedded liberalism. Nas palavras de Gilpin (1993, p. 33), “seguindo la teoria della politica econémica, i governi avrebbero perseguito politiche macroeconomiche e di welfare allinterno in maniera tale da non contrastare 1é leffi ed erodere la stabilita del sistema econémico internazionale”. A terceira, constitufda, inicialmente, pelo “clima” de solidariedade nacio- nal que sc instalou logo depois da Segunda Guerra dentro dos paises ven- cedores e vencidos, e, logo depois, pela sotidariedade supranacional gerada pelo novo quadro geopolitico. A nova situagio, ao bipolarizar ideologicamen- te os conflitos mundiais entre duas propostas excludentes de organizagao econémica e social, criaram os estimulos ou receios necessdrios para con- solidar as convicgGes “socialmente orientadas” de todos os governos, af incluidos os conservadores, os democrata-cristios e os liberais. ‘A quarta, constituida pelo avanco das democracias partidérias e de massa que, pelo menos nos paises centrais — onde de fato pode-se falar de welfare —, permitiu que a concorréncia eleitoral aumentasse 0 peso e a importancia das reivindicagdes dos trabalhadores — e dos seus sindicatos e 136 PHYSIS: Rey, Sadide Coletiva, Rio de Janeizo, 7(2): 129-147, 1997 Estado de Bem-Estar Social: Padres e Crises partidos — e dos demais setores sociais interessados no desenvolvimento dos sistemas de welfare states. Didspora e Padrdes Se a investigagao mais recente permitiu — como sempre na hora em que a Coruja jé levantou seu véo — esclarecer melhor a complexa rede de determinagdes econémicas, ideolégicas e politicas que definem e diferenci- am o Estado de Bem-Estar Social contemporanco dos sistemas anteriores de organizagao das politicas sociais governamentais, ela também explicitou melhor as diferengas que separam as varias experiéncias nacionais do mesmo welfare state. J4 ndo cabe a menor diivida, por exemplo, de que o modelo norte- americano tem muito pouco a ver com o modelo nérdico, ¢ este com o da Europa continental, e de todos eles com o Japao. Para nao falar de sua diferenga com 0 welfare que foi sendo construido em algumas periferias capitalistas, em particular no caso latino-americano. Para dar conta desta nova dispersio, varios autores construfram, nestes tiltimos anos, tipologias que tentam aglutinar as varias experiéncias cm alguns padrées bisicos, diferenciados por sua forma de financiamento, pela extensfo de scus servi- ¢os, pelo peso do setor piiblico, pelo seu grau de sensibilidade aos sistemas politicos, pela sua forma de organizacio institucional etc. etc. _ A mais antiga, e talvez a mais conhecida delas, foi sugerida por Titmus, jd nos anos 60 e aparece sintetizada de forma critica em Aureliano e Draibe (1989, p. 88): “The residual welfare model of social policy”, 0 padrdo ou modelo residual, “onde a politica social intervém ex-post ¢ possui o caréter tempo- ralmente limitado”. Seria 0 caso contempordnco dos Estados Unidos. “The industrial achievement performance model of social policy”, em geral traduzido como modelo ou padrdo meritocrdtico-particularista, no qual a politica social intervém apenas para corrigir a ago do mercado. “O sistema de welfare, nestes casos, € tio-somente complementar as institui- ges de mercado. A Alemanha talvez fosse, hoje, 0 caso que mais se aproxima deste modelo.” Mais tarde, Ugo Ascoli (1984) tentou aumentar a precisio deste modelo, diferenciando dois subtipos seus: o “corporativo”, no qual 0 peso dos sindicatos ¢ corporagdes na delimitagio e distribuigio dos beneficios é maior do que no “clientelfstico” onde o peso maior se desloca para o sistema partidério e se submete mais diretamente aos ciclos politico- eleitorais. PHIYSIS: Rev, Saside Coletiva, Rio de Janeiro, 7(2): 129-147, 1987 135 Yosé Luts Fiori “The redistributive model of social policy”, ou padréo institucional- redistributivo, “voltado para a produgio e distribuigao de bens e servigos sociais ‘extramercado” os quais so garantidos a todos os cidadaos univer- salmente cobertos e protegidos”. Os paises nérdicos, a Suécia em particular, setiam aqueles que mais se enquadrariam neste padrio. Esping-Andersen também propée uma tipologia para o que chamou de “regimes de welfare states”, que ao fim e ao cabo nao se distingue muito, no essencial, da que jé havia sido proposta por Titmus. Também ele fala de trés grandes grupos, ainda que destaque como seus critérios essenciais de diferenciag&o dos “regimes” a qualidade dos direitos sociais, o grau em que © sistema promove ou reproduz a estratificagao social e a forma em que se telacionam, em cada um dos casos, o Estado, o mercado ¢ as familias: O “welfare state liberal”, “em que predominam a assisténcia aos comprovadamente pobres, reduzidas transferéncias universais ou planos modestos de previdéncia social ¢ no qual as regras para habilitagdo aos beneficios s&o estritas e muitas vezes associadas ao estigma”. Sio seus exemplos tipicos: Estados Unidos, Canada e Austrdlia; Os “welfare states conservadores e fortemente corporativistas”, nos quais “predomina a preservacao das diferengas de status; os direitos, portanto, aparecem ligados a classe e aos status [...] e a énfase estatal na manuten- ¢a4o das diferencas de status significa que scu impacto em termos de redistribuig&o é desprezivel.” Incluem-se aqui, como casos tipicos, Austria, Franga, Alemanha e Ilia; Os “regimes social-democratas”, em que o universalismo ¢ a desmercan- tilizagao atingem amplamente a classe média e “onde todos os segmentos sociais s4o incorporados a um sistema universal de seguros no qual todos sao simultaneamente beneficidrios, dependentes e, em principio, pagadores”. Nao cabe dtividas de que Esping-Andersen est4 falando aqui de um mimero limitadissimo de paises escandinavos. Em nenhum caso a periferia capitalista, ¢ latino-americana em particular, aparece considerada nessas tipologias. Depois do estudo classico de ‘Wanderley Guilherme dos Santos, Cidadania e Justiga (1979) sobre a configuragao e a eficacia das politicas sociais brasileiras desenvolvidas so- bretudo depois de 1930, sé muito mais recentemente novos estudos compa- rativos (Aureliano e Draibe, 1989; Komis, 1994; Soares, 1995, entre outros) tém permitido avancar na construgdo do que poderia vir a ser o padriio periférico de politica social. Estes estudos tem acumulado preciosas informa- ¢Ges sobre organizagio burocratico-institucional e sua articulagéo com os 136 PHYSIS: Rev. Samide Coletiva, Rio de Janeiro, 12): 129-147, 1997 Estado de Bem-Estar Social: Padres e Crises sistemas sindicais politico-partidérios, assim como tém aportado novos € decisivos dados sobre volume de gastos, cobertura, formas de financiamento © gestio etc, Como conclusao preliminar nao 4 dificil generalizar dizendo que todos estes novos estudos confirmam, de alguma maneira, a hipétese central de Santos: “sugiro que 0 conceito-chave que permite entender a politica social pés-30, assim como fazer a passage da esfera da acumulago para a esfera da equiidade, é 0 conceito de cidadania, implicito na prética politica do governo revolucionério, e que tal conceito poderia ser descrito como o da cidadania regulada, Por cidadania regulada entendo 0 conceito de cidadania cujas rafzes encontram-se, nio em um c6digo de valores politicos, mas em um sistema de estratificagio ocupacional, ¢ que, ademais, tal sistema de estratificagdo ocupacional é definido por norma legal. Em outras palavras so cidadaos todos aqueles membros da comunidade que se encontram localizados em qualquer uma das ocupagdes reconhecidas e definidas em lei” (San- tos, 1979, p. 75). Esta definicdo foi confirmada pelos estudos posteriores e situa 0 caso brasileiro muito préximo do tipo que Titmus chamou de “meritocrético- particularista” e Esping-Andersen de “conservador e corporativista”. De tal maneira que a discussao dos casos periféricos latino-americanos deve ine- vitavelmente deslocar-se para os matizes com que se combina em cada pais. © assistencialismo e as intervengdes tépicas de tipo liberal com alguns sis- temas universais de prestagdo de servicos de preservacdo ou mesmo com- plementagdo da renda. Liana Aureliano ¢ Sénia Draibe tentam detalhar com mais preciso 0 caso brasileiro e consideram que o sistema, pelo menos até suas reformas universalizantes dos anos 70/80, é basicamente “seletivo no plano dos beneficidrios, heterogéneo no plano dos beneficios e fragmentado no plano institucional ¢ financeiro”. Mas consideram que as reformas posteriores do regime autoritario e tecnocratico que se instalou em 1964, acaba mudando a face do sistema de protegdo ou welfare como preferem chamé-lo: “neste momento se organizam efetivamente os sistemas nacionais pdblicos ou es- tatalmente regulados, na drea de bens ¢ servigos sociais basicos, superando a forma fragmentada e socialmente seletiva anterior e abrindo espago para certas tendéncias universalizantes”. Mas, apesar disto, as autoras conside- PHYSIS: Rey, Saide Coletiva, Rio de Janeiro, 7(2): 129-147, 1997137 José Luis Fiori ram que mesmo depois das reformas “o principio do mérito constitui a base sobre a qual se ergue o sistema brasileiro de politica social, além do que como a relagao renda-contribuigdo-beneficio segue dominante as politicas sociais, na sua maioria, reproduzem o sistema de desigualdades predominan- te na sociedade” (Aureliano e Draibe, 1989, p.143), aproximando-se forte- mente do modelo meritocratico-particularista de Titmus, com aspectos tanto corporativos como clientelisticos, sobretudo pelo lado de um esquema de assisténcia extremamente denso e paralelo ao nticleo da seguridade. George Kornis, por fim, sintetiza em sua tese de doutoramento o que seriam os tragos centrais do welfare brasileiro, nao muito distante da maioria dos casos latino-americanos: “um financiamento regressivo do gasto social e uma hipertrofia burocrd- tica que eleva em muito 0 custo operacional e favorece a manipulagio clientelistica. Um welfare state, em sfntese meritocrético-patticularista fundado na capacidade contributiva do trabalhador e num gasto piiblico residual financiado por um sistema tributério regressivo. Um sistema ndo- redistributive e montado sobre um quadro de grandes desigualdades e de misérias absolutas [...J” (Komis, 1995, pp.58-59). Talvez faltasse desenvolver um pouco mais, nesta linha de comparagdes ¢ paralelismos, as condigdes em que se deram ou refrataram na América Latina, aquilo que chamamos antes de “grandes pilastras” do welfare nos paises centrais durante os “vinte ¢ cinco anos de ouro”. Neste caso prova- velmente deveriamos ter de explorar de uma forma em que nao faremos aqui: 1) as diferengas materiais e econémicas entre as instituigdes e as politicas keynesianas e as suas congéneres desenvolvimentistas; 2) as distancias entre os impactos diferentes que teveram a ordem politica e econémica mundial sobre os paises centrais, diretamente envolvidos na Segunda Guerra Mundial ou no seu desdobramento, a Guerra Fria; 3) e por fim, o papel que teve na atrofia de nossos welfare states, a predominancia de regimes autoritérios controla- dos por coalizées de poder extremamente reaciondrias, predadoras e unidas internamente. Mas este é assunto para outro artigo. Constituigiio e Expansiio A principal concluséo que se pode extrair deste tema entre os autores que defendem a especificidade estrutural das relagées entre Estado, merca- 138 PHYSIS: Rev. Satde Coletiva, Ro de Janeiro, 7(2}: 129-147, 1997 Estado de Bem-Estar Social: Padroes ¢ Crives do ¢ politica na configuragao histérica do welfare state é de que nao existe nem uma progressao linear, nem uma convergéncia inevitével entre os seus varios tipos nacionais, ou mesmo entre os seus varios padrées de construgao e organizacao do Estado de Bem-Estar Social. & interessante notar, entre- tanto, que respeitadas as individualidades, quase todos os paises, tipos e padrées seguiram uma evolucfio cujos grandes momentos ¢ periodos séo andlogos porque estéo determinados pela trajetéria critica do contexto mais amplo — econémico ¢ politico-ideolégico de que j4 falamos — em que se ambientou o welfare. Mas, mesmo quando esta evolugéo obedece uma cronologia andloga, suas caracteristicas e conseqiiéncias tém sido diferentes em cada pais, dependendo, é Sbvio, das regras ¢ formas que se consolidaram previamente. Por isso a literatura especializada dedica uma atengo téo grande a identificagéio do que seriam os fatores ou “varidveis” que condicionaram ou determinaram as diferengas conhecidas na construg&o tanto quanto na ex- Pansfio dos vérios tipos de welfare. Aureliano e Draibe (1989) fizeram a melhor sfntese que conhego do trabalho em que Jens Alber (1982) procurou consolidar um quadro das principais escolas teéricas — os pluralistas ¢ os marxistas — e dos modelos com que procuram explicar a didspora histérica das experiéncias de welfare: funcionalistas e conflitualistas. Em grandes linhas, para marxistas e pluralistas de tipo funcionalista, 0 welfare apa- rece historicamente como exigéncia da industrializagao ou da acumula- go do capital, para uns, seja da moderizagio ¢ urbanizagio para os outros. Enquanto para funcionalistas ¢ marxistas de tipo conflitualistas, 0 welfare aparece como resultado do avango dos direitos dos cidadaos ¢ da democracia, ou como produto da mobilizagio sindical ¢ da luta politica de classes. Sendo que no caso dos conflitualistas, este produto pode ainda haver aparecido historicamente “pelo alto” como obra de elites divi- didas ou fortemente pressionadas, ou ainda pode haver nascido “desde bai- xo”, como resultado das pressées e da forca politica circunstancial da classe trabalhadora. Na verdade, as varidveis ¢ as hip6teses sfio tantas que suas combinagdes posstveis e admissiveis ficam quase infinitas. E o que se pode concluir com algum grau de consisténcia e consenso é que a maioria dos autores recorre, de uma forma ou outra, A varidveis ou fatores que se encontram dentro de alguma das seguintes grandes dimensdes que estariam presentes em quase todas as explicagdes sobre a construgdo e expansao do Estado de Bem- Estar Social: PHYSIS: Rev. Sade Coletiva, Rio de Janeiro, 7(2): 129-147, 1997 139 José Luis Fiori * natureza, forma e ritmo do desenvolvimento econémico; * grau, intensidade ¢ organicidade da mobilizagio da classe operdria; # grau de avango do desenvolvimento politico-institucional; * extensao ou impacto do efeito de difusdo das inovagées ocorridas nos pafses paradigmaticos; * forma peculiar ¢ a intensidade com que se desenvolve a luta politica envolvendo os partidos que tradicionalmente representaram o mundo do trabalho. Esping-Andersen, insatisfeito como tantos outros com a inconclusividade de todos estes modelos e a impoténcia de cada uma destas combinatérias de varidveis, propés recentemente um modelo simplificador onde privilegia como “causas do regime dos welfare states”, trés ordens de fatores: “a natureza da mobilizagao de classe, principalmente da classe trabalhadora; as estruturas de coalizées politicas de classe e o legado histérica da instituci nalizagao do regime” (Aureliano ¢ Draibe, 1989, p. 111). E entre os trés, ele no deixa de sublinhar a importancia decisiva que teve em todos 0s casos hist6ricos conhecidos o tipo de coalizdo politica que propés e sustentou a construgio ¢ expansiio do welfare, seja no caso da alianga “verde-verme- Tho” que comandou © processo sueco, seja no caso de sua variante norte- americana durante o perfodo Roosevelt. Neste nivel de generalidade no é diffcil estender o argumento e propor algumas hipéteses sobre a trajet6ria de expans&o ou atrofia das politicas sociais na periferia latino-americana. Também ali a evolugao das politi- cas sociais passou por ctapas claramente demarcadas pela evolugao do quadro politico-econémico internacional e seus impactos reorganizadores das ordens politicas nacionais. De uma forma ou outra, os principais paises do continente, incluindo os que j4 dispunham de legislagio social avangada para a época, como era o caso do Uruguai e da Argentina, assistiram a uma inflexdo que se seguiu & crise dos anos 30, depois outra no pés-guerra, e mais outra nos anos em que as democracias foram sendo paulatinamente substitufdas pelos regimes autoritdrios em quase todo o Continente. Sendo de destacar que no caso brasileiro, pelo menos, os dois grandes surtos de expansio dos sistemas de protegio social ocorreram durante regimes autoritdrios ¢ sob 0 governo de coalizdes conservadoras. O primeiro, como ja vimos, de natureza mais corporativista, e 0 segundo, mais universalista, ainda que acompanhado de tragos for- temente clientelistas. Mas, deve-se reconhecer, também aqui, a falta de 140 PHYSIS: Rev, Saside Coletiva, Rio de Janeiro, 7(2): 129-147, 1997 Estado de Bem-Estar Social: Padroes e Crises um estudo comparado mais aprofundado sobre as condigées politicas em que se fizeram as opgdes basicas responsaveis pelas caracteristicas — jé co- mentadas — do nosso welfare periférico. Crise e Transigio Exatamente em 1981 a OECD publicou um informe com um titulo emblematico para a época: “The Welfare State in Crisis”. Nele diagnostica- va de forma contundente: “The rapid growth of social programmes in the 1950 and 1960s in OECD countries was closely related to high rates of economic growth and, thus, to the successfiul management of the OECD economies. The lower growth performance of the OECD economies since the early 1970s was bound to disrupt the continuing extension of programmes and the growth of benefits — and in that sense the financial crisis of social security is closely related to high rates of unemployement not only because of the growing burden of unemployement compensation, but because unemployement has an impact on a wide range of social expenditures. Moreover, it begins to be argued that some social policies have negative effects on the economy, even to the extent of partly inhibiting the return to non- inflationary growth” (OCDE, 1981, p. 5). Estavam af repostos os termos de um debate que comegara antes, nos anos 60/70, sobre a crise de governabilidade dos Estados pressionados, segundo os conservadores, por um excesso de demandas democriticas ¢ por um Estado de Bem-Estar Social cada vez mais extenso, pesado e oneroso, 0 responsavel central, segundo eles, pela pr6pria crise econémica que avangou pelo mundo todo a partir de 1973/75. Na verdade, as criticas precederam as crises. No € 0 caso de recapi- tular aqui o que foi o nascimento tedrico/ideolégico da nova direita ¢ da nova esquerda nos anos 60, Varios foram os que j4 mapearam adequadamente os seus pontos de convergéncia critica por detrds de suas enormes divergéncias propositivas. Mas, com relacdo ao tema de nosso interesse, neste artigo, cabe relembrar sucintamente que os novos conservadores viram no welfare state uma pega central no seu diagnéstico da crise dos Estados democré- ticos que j4 vinkham formulando desde a segunda metade dos anos 60. Na mesma época em que a nova esquerda, em nome de um projeto de apro- PHYSIS; Rev. Saside Coletiva, Rio de Janeiro, 12): 129-147, 1997 141 José Luts Fiori fundamento da “democracia participativa” também viu no Estado de Bem- Estar Social uma pega central do imenso e anénimo aparelho de Estado responsdvel por um gigantesco trabalho de “cooptagio” ¢ desativagio da classe trabalhadora. Seja como for, a verdade € que as idéias neoconservadoras é que aca- baram politicamente vitoriosas, difundindo-se de forma implacdvel por todo o mundo a partir de sua vit6ria no eixo anglo-saxiio. E foram elas, portanto, que animaram os projetos neoliberais de reforma dos Estados que acabam atingindo em cheio os Estados de Bem-Estar Social, desacelerando sua expansdo ou desativando muitos de seus programas. Depois de uma década e meia de hegemonia liberal-conservadora, entretanto, sio muitos os autores que consideram que a destruiggo foi menor de que 0 que vem sendo apre- goado. Mas a verdade é que se a desmontagem dos welfare states no ocorreu de forma abrupta e estrondosa, sio iniimeros os sinais que indicam uma lenta transformago ou transigéo de quase todos os casos ou tipos em diregiio as formas mais atenuadas ou menos inclusivas de cobertura dos varios sistemas que compuseram 0 welfare em seu periodo dureo. Lenta desativagio que acompanhou os processos de ajuste macroeconémico ¢ reestruturagao industrial dos paises centrais, ¢ os processos de estabilizagao e desindustriatizagao dos pafses periféricos. As reformas neoliberais adquiriram varias formas ¢ matizes, mas al- guns elementos estiveram presentes em todas elas: assim foi com a “remercantilizagao” da forga de trabalho, a contengao ou desmontagem dos sindicatos, a desregulacio dos mercados de trabalho e a privatizagao de muitos dos servigos sociais que estiveram previamente em mios dos Estados. Reformas que se sucederam em tempos de enorme fragilizagio das forgas politicas de esquerda e que acabaram promovendo cortes substantivos nos programas de integracdo de rendas, com redugdo simul- tanea dos demais programas de protegao social a nfveis minimos e preferentemente direcionados a piblicos segmentados e especificos das populagdes mais pobres. Tudo feito com o objetivo declarado de enco- rajar a responsabilidade pessoal ou coletiva pela prépria auto-assisténcia feita através do mercado, Como resultado, a tendéncia na maioria dos paises tem sido a segmentagdo crescente dos esquemas de welfare, acompanhada de um maior papel dos grupos privados e de uma assinagao de maior autonomia ¢ poder aos setores voluntirios e outros tipos de organizagées privadas ou filantrépicas. 142 PHYSIS: Rev. Sasde Coletiva, Rio de Janeiro, 7(2): 129-147, 1997 Estado de Bem-Estar Social: Padres ¢ Crises Dilemas e Cendrios Hoje parece claro que da metade da década de 90 para cf de fato ocorreu uma confluéncia e sucesso de acontecimentos situados nos planos econémico, politico e ideolégico mundiais que acabaram abalando, de forma aparentemente definitiva, as bases em que se sustentavam as pilastras do welfare state dos anos 50/80, obrigando-o a alguma forma de reorganizacio, independentemente de quais sejam os seus governos. Refazer aqui a histéria desses acontecimentos € tio impossivel quanto desnecessdrio. Basta entre- tanto recapitular os aspectos mais relevantes dessa transigao mundial para comentar brevemente os seus impactos mais visiveis sobre 0 espago naci- onal das politicas sociais neste final de século. Mantendo a mesma ordem com que reconstrufmos previamente a “ambientagio” do embedded liberalism favordvel 4 consolidagao dos welfare states, h4 que se reconhecer hoje: 4) que no plano material ou econdmico: - 0 consenso que existe é rigorosamente contrario As idéias de cres- cimento e pleno emprego substituidas pelas idéias-forga da estabili- dade ¢ dos equilibrios macroeconémicos; as politicas keynesianas, por isto mesmo, esto em baixa e foram abandonadas por quase todos os governos, com excegao, talvez, dos Estados Unidos; © paradigma fordista é cada vez mais substituide pelas idéias de flexibilizagdo e segmentagiio dos processos produtivos proprios a que vem se chamando de toyotismo; com raras excegées, 0 desemprego cresce no mundo inteiro e vem se alterando radicalmente o mix entre trabalho qualificado e desqualificado nos varios mercados nacionais; - em quase todos os pafses se polarizam cada vez mais as relagdes entre mercados “primarios” ou globalizados, e “secundarios”, frag- mentando fortemente o mundo do trabalho e fragilizando invariavel- mente o mundo dos sindicatos; - por fim, o crescimento das economias se desacelerou de forma geral como resultado de politicas deflacionistas que acabam afetando a propria capacidade fiscal dos Estados. ii) que no plano geopolitico - o fim da Guerra Fria e a insolvéncia do socialismo real desfizeram as bases em que se sustentou, por medo ou por célculo estratégico, PHYSIS: Rev. Saide Coletiva, Rio de Janeiro, 12), 129-147, 1987 143 José Luts Fiori a solidariedade entre os pafses centrais e de certa forma, ainda que em menor grau, destes com alguns paises periféricos situados em zonas de importancia estratégica; - no seu lugar vém surgindo, com forga crescente, blocs regionais organizados cm tomo & supremacia econémico-monetéria de trés paises que passam a competir entre si segundo as velhas regras que orientaram, desde sempre, a guerra entre os povos com “vocagio” imperial; iii) que no plano politico-ideolégico interno a cada pais ~ desapareceu o fantasma socialista; - enfraqueceram-se os sindicatos ¢ os partidos ligados ao mundo do trabalho; - fragmentaram-se os interesses internos a classe trabalhadora; - diminuiu cnormemente a possibilidade de divergéncias no plano das politicas econémicas que possam afetar a credibilidade internacional dos governos € de suas economias candidatas aos investimentos dos capitais globalizados; + em simultaneo com a diluigio dos fatores de solidariedade nacional, © que sc assiste é 0 avango de forgas desintegradoras sob o coman- do conservador e subserviente a um sistema de decisées que escapa completamente as instituigdes representativas prdprias dos sistemas democraticos classicos. Devo sublinhar aqui o processo econémico da globalizagao como 0 epicentro material dessas transformagdes globais cujos impactos diretos sobre a via- bilidade do welfare state podem ser sintetizados das seguintes maneiras: (a) em primeiro lugar, as modificagées da estrutura produtiva e ocupacional a que fiz referéncia acabam alterando a base socioeconémica do welfare na medida em que alteram a configuragio e o fluxo dos riscos. Além, € claro, de aumentar as tensdes sobre os equilfbrios financeiros dos sistemas, na medida em que diminuem o néimero dos contribuintes ao mesmo tempo em que aumentam as exigéncias no 4mbito das prestagdes; (b) em segundo lugar, as populagdes agora desocupadas de forma per- manente se cruzam em varios espagos com o crescente movimento de imigragio desencadeado pelas transformagées econémicas e politicas, so- bretudo na Europa do Leste; (c) em terceiro lugar, a interdependéncia crescente, por op¢do ou impo- sigiio, ao condicionar de forma cada vez mais estreitas 4s gestées 144 PHYSIS: Rev. Saide Coletiva, Rio de Janeiro, 7(2): 129-147, 1997 Estado de Bem-Estar Social: Padres e Crises macroeconémicas nacionais, também acaba limitando os espagos auténomos de decisdo dos governos no plano das polfticas sociais. O caso europeu é& ilustrativo, pois ali as decisées de Maastrich vém impondo normas cada vez mais estritas com relagdo até ao nivel de gastos e organizagao das politicas sociais; (d) em quarto lugar, 0 fendmeno da competi¢ao global ou sistémica, inaugurado pela desregulagiio dos mercados nacionais transformou os gastos com politica social em custos que oneram a competitividade das empresas capazes de participar da competigao global. Fenémeno que fechasse de maneira perversa e circular contra os préprios trabalhadores, que vém sendo postos na disjuntiva de perder seus empregos ou abrir mio de seus sistemas de protegao; (©) em quinto lugar, o fenémeno da polarizagao dos mercados de trabalho, mencionado anteriormente, vem expandindo o mundo dos “sem-classe” ou da “subclasse” que ficam cada vez mais exclufdos dos mercados de trabalho €, como conseqiiéncia, de qualquer sistema de protegdo, sobretudo porque aparecem cada vez mais corporativizados;. (£) em sexto lugar, ¢ por fim, todos esses fatores conjugados néio apenas diminuem a possibilidade de qualquer tipo de solidariedade interna (que nio seja o de natureza étnica ou religiosa), como tornam cada vez mais proble- mética uma ago estatal que nao seja vetada pelos seus altos custos do ponto de vista da competitividade sistémica. ‘Com tudo isto fica extremamente dificil prever os horizontes possiveis ou cenrios obrigatérios que se anunciam no fim desta mutagao por que vém passando todos os tipos e padrics de welfare construidos depois da Segunda Guerra Mundial. Talvez 0 que se possa afirmar com toda certeza é que existe um claro trade off entre as politicas e processos globalizantes e as politicas dos welfare states mais igualitérios. Neste sentido, o sistema liberal americano deve ser o menos afetado pela globalizagao, enquanto os japone- ainda nio parecem ter claro se conseguirio resistir a presses contrérias ao sen sistema tradicional “empresarial-familiar” de protegao social. Entre os dois, os europeus sio certamente os que mais perderio 4 medida que avancem as desregulages ¢ as integragées dos mercados. Por fim, como é sabido, esses mesmos processos, idéias e reformas chegaram também, ainda que de forma tardia (com excecgao do Chile) @ pesifexia latino-americana. Nestes casos, os processos de reforma dos sis- temas de proterao social ainda esto em curso, mas nao h4 como desconhe- cer que seu impacto sobre sistemas muito mais precétios e sobre sociedades PHIYSIS: Rev. Saide Coletiva, Rio de Janeiro, 7(2): 129-147, 1997145 José Lufs Fiori muito mais desiguais, deverd ser enorme. Ainda mais quando se tem presen- te que o proprio proceso de reorganizagao da economia mundial afeta essas periferias de maneira a exponenciar seus tragos anteriores mais perversos do ponto de vista social. Ali, as crises fiscais e financeiras dos Estados adquirem cardter crénico e vém sendo enfrentadas pelo receituério neoliberal com a proposta pura e simples de cortes cada vez mais profundos no gasto puiblico, sobretudo os de natureza social. De maneira tal que é possivel prever uma “transigdo” dos welfare states mais desenvolvidos para formas inferiores de atengio, situadas em algum ponto entre modelo liberal norte-americano e o modelo corporativo alemio. No caso dos pafses periféricos, fica dificil imaginar que seja um cendrio resultante da liberalizagao radical de sistemas que j4 eram basicamente de tipo liberal e assistencial, ainda quando contivessem “ilhas de universalidade”. Referéncias Bibliograficas ALBER, J. Dalla carita allo stato sociale. Bologna: 1 Mulino, 1986. 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