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GEOgraphia, Niterói, vol. 19, n. 41, 2017: set.

/dez

GEOgraphia
Niterói, Universidade Federal Fluminense
ISSN 15177793 (eletrônico)
Vol.19, No40, 2017: mai./ago.

NOSSOS CLÁSSICOS

PROBLEMAS TEÓRICOS DA AUTOGESTÃO*

Henri Lefebvre

I. Sobre a Unidade do Movimento Revolucionário dos órgãos oficiais e teóricos de uma forma limitada e que
Trabalhadores o torna insolúvel. Entre instituições e aparatos, trata-se
na melhor das hipóteses pelo caminho de negociações
que terminam em compromissos ou fazem emergir as
Quem iria discordar de que o problema da unidade,
divergências. Especialistas em ideologia se consideram
ou seja, da reunificação do movimento é essencial? Não
especialistas da unidade, sempre prontos a confiscá-la.
é válido adicionar a todo momento as palavras ‘traba-
Como suportes da burocracia política, eles justificam e
lhadores” e “revolucionário” à palavra “movimento”. Na
sustentam essa condição. Eles trazem à investigação
realidade, sem a intervenção ativa da classe trabalha-
sobre a unidade as condições e as circunstâncias da di-
dora revolucionária, não há movimento. A experiência
visão, seus temas, que essencialmente não podem sub-
contemporânea nos mostra bem que pode haver cres-
meter a uma crítica radical.
cimento econômico e tecnológico sem desenvolvimento
social real, sem o enriquecimento das relações sociais. Esses especialistas têm difundido a tese segundo a
Na prática social, isso leva apenas a uma fragmentação qual o movimento dos trabalhadores tem se dividido em
do movimento, deixando estagnados numerosos setores duas tendências: a corrente reformista e a corrente revo-
da realidade social: a vida política, ideológica, cultural e lucionária.
estética. O crescimento quantitativo da produção e da Deixemos de lado a definição exata do termo “cor-
maquinaria técnica pode até certo ponto ser separado rente”, assim como o estudo histórico dessa cisão. Essa
do desenvolvimento qualitativo. Será que o hiato entre tese é em si mesma falsa e tendenciosa. O movimento foi
esses dois aspectos do movimento será preenchido por dividido em três: a espontaneidade anarquista, o prag-
um novo período da história? Podemos ter esperança matismo inteligente e habilidoso daqueles com medo da
que sim. Esse questionamento faz parte da “problemá- reformas, e a vontade revolucionária.
tica” da unidade. Examinemos isso mais de perto. No nível teórico,
Esse problema fundamental é geralmente posto por quando divergências vieram à tona no tempo em que

* Traduzido de : Lefebvre, Henri. 2009. Space, State and World: selected essays (tradução para o inglês de Gerald Moore, Neil Brenner e Stuart Elden). Minneapolis-Londres:
University of Minnesota Press (p. 138-152) e cotejado com o original francês: Lefebvre, H. 1966. Problèmes théoriques de l’autogestion. Autogestion : études, débats, docu-
ments. Cahier n. 1, dez. 1966.. Tradução: Maria Lucia Oliveira. Revisão técnica: Rogério Haesbaert. Agradecemos a Willian Antunes de Sousa pelo trabalho de acesso e envio
dos originais em francês. Na apresentação do texto da edição inglesa, os autores comentam: “Este artigo foi publicado anteriormente às teorizações sobre Estado apresen-
tadas nos escritos de Lefebvre durante os anos setenta, mas apresenta uma de suas principais afirmações sobre a noção de autogestão e, em geral, sobre transformação
política revolucionária. Baseia-se na discussão sobre desaparecimento do Estado (capítulo 2 [da coletânea em inglês]) e também representa um interessante contraponto a
‘Revoluções’ (capítulo 15). Lefebvre contextualiza sua análise no quadro de consolidação do capitalismo industrial no século XIX e no esforço de teóricos como Marx, Lassale
e Proudhon no sentido de compreender suas implicações para a mobilização política anticapitalista. Lefebvre examina várias lutas paradigmáticas, desde a Comuna de Paris
em 1871 e a Revolução Soviética em 1917 à resistência anticolonial na Argélia nos anos 50, antes de colocar a questão fundamental: como acionar as forcas básicas da
autogestão nas condições do capitalismo moderno? Essa exposição propicia uma das discussões teóricas mais importantes sobre a questão, concluindo com quatro teses
sucintas sobre: características básicas, condições de possibilidade, contradições e possíveis implicações da autogestão. Aqui Lefebvre também reitera um aspecto chave do
conceito leninista de autogestão (como foi discutido no capítulo 2). Para Lefebvre, essa noção se refere não ao desaparecimento do Estado como aparato institucional, mas
sim à sua submissão ao controle popular democrático como ‘estado de autogestão’” (p. 138) O livro em inglês dos textos de Lefebvre, “Space, State and World”, encontra-se
disponível on-line em: https://is.cuni.cz/studium/predmety/index.php?do=download&did=88556&kod=JMMZ108.

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Marx e Lenin estavam elaborando suas posições dou- transformação da sociedade é uma série de reformas
trinárias, as divergências se referiam essencialmente ao mais a eliminação da burguesia como classe gestora
famoso “período de transição”. Para Marx e Lenin, três dos meios de produção.
aspectos indissolúveis e indissociáveis deviam marcar A “corrente” revolucionária teria razão? Mais preci-
ou mesmo constituir o movimento durante esse período: samente, teria para ela razão ao longo da história? Sim.
a expansão e aprofundamento da democracia, o desa- Seria necessário tomar de assalto o poder, exploran-
parecimento do Estado e a ditadura do proletariado. Para do-se lacunas e brechas no sistema imperialista. Seria
Marx, esse objetivo não era oposto ao dos anarquistas: necessário provocar a maior descontinuidade possível.
o fim do Estado, o fim das hierarquias e instâncias po- Dito isso, é óbvio que nossa era sofre as consequências
líticas, acompanhado pela abolição da propriedade pri- de um certo fracasso da revolução mundial. Ela abalou e
vada dos meios de produção. Entretanto, os anarquistas mesmo fez recuar o capitalismo e sua expressão política,
(bakunianos) pretendiam abreviar o período de transição o imperialismo. Ela não os aboliu, e mesmo impulsionou
ou mesmo saltar essa etapa. A seguir, os revolucioná- a burguesia, provocando uma arrancada de vitalidade no
rios enfatizavam a ditadura do proletariado, separando-a capitalismo. Um movimento dialético – o conflito entre
do aprofundamento da democracia e desaparecimento dois “sistemas” e seu mútuo desafio implica em múlti-
do Estado. Os reformistas davam também ênfase à de- plas conseqüências – foi substituído por um processo
mocracia, deixando de lado a ditadura do proletariado e que poderia ter seguido um ou outro dos “sistemas” em
certamente o desaparecimento do Estado. Reformistas si mesmos. A extensão do movimento revolucionário a
e revolucionários entraram em controvérsias violentas países em que predominam questões agrárias e pro-
e sem saída, colocando em oposição evolução contínua blemas de crescimento industrial pode passar apenas
[gradualismo] e descontinuidade. Em um acordo tácito como uma vitória parcial da revolução. O movimento que
sobre o não desaparecimento do Estado, os primeiros buscava a transformação social foi transformado de tal
admitiam a permanência do Estado nacional constituído, maneira que nem sempre pode ser chamado de “positi-
enquanto os revolucionários apregoavam energicamente vo”. Caiu em contradições (entre soviéticos e chineses)
a transformação do Estado burguês em um assim cha- cujo significado exato ainda não podemos aferir.
mado Estado dos trabalhadores (ou mesmo de “traba-
É preciso render-se às evidências. Entre 1860 e sua
lhadores e camponeses”). A divisão política associou-se
morte, Marx lutou contra a tendência rumo ao socialismo
à quebra da unidade teórica na concepção de movimento
de Estado assumida por F. Lassale. Um texto importan-
em Marx.
te e mal compreendido, a Crítica ao Programa de Gotha
O reformismo se apresentava como uma ideologia (1875), é eloquente a esse respeito. Esse texto configura
realista, uma estratégia gradual contra a visão de trans- uma ideologia específica, raramente estudada como tal:
formação radical das relações sociais. Não há dúvida o lassalismo. Hoje podemos confirmar, depois de um sé-
de que foi um equívoco. Os reformistas não obtiveram culo de luta feroz: o lassalismo sobrepujou o marxismo.
qualquer “reforma estrutural”. Sua pressão, apoiada nos A assim chamada tendência revolucionária e a dita ten-
grandes países industrializados pela classe trabalha- dência reformista são, de fato, nada mais que variações
dora organizada em sindicatos, só conseguiu medidas do socialismo de Estado, ou seja, do lassalismo.
compatíveis com a manutenção das relações de produ-
A “corrente” anarquista foi a primeira a ser refutada,
ção capitalistas e com a propriedade e gestão burguesa
repudiada, rejeitada do caminho da revolução. Foi ataca-
dos meios de produção. Um reformismo sem reformas
da (a história da Guerra Civil Espanhola ainda não está
permitiu o crescimento da mais-valia relativa, mesmo
longe!).
quando a classe trabalhadora obteve escassos benefí-
Essa é a corrente da revolta espontânea. Afirma, pres-
cios do crescimento da produtividade.
supõe, busca isso até o fim. Sob o pretexto de erros his-
Contudo, o reformismo não estava completamente
tóricos e teóricos, a espontaneidade tem sido combatida,
equivocado. Se não tivesse qualquer sentido, teria desa-
inibida. Agora sua ausência é dramaticamente sentida.
parecido. Sua permanência não pode ter sido sem algum
Mesmo que se suponha que não seja suficiente, o ele-
fundamento. Uma ruptura absoluta, um salto da neces-
mento anarquista também é necessário. Se a natureza
sidade para a liberdade, uma revolução total e, simulta-
de um movimento espontâneo não pode ser completa-
neamente, o fim de todas as alienações humanas, é uma
mente antevista, não pode ser presa numa moldura rí-
imagem sem dúvida ingênua que não poderia manter-
gida, não pode ser “estruturada”, se ninguém pode dizer
-se, embora se mantivesse forte por um longo tempo.
de antemão onde começa e onde termina, de forma que
A transformação da sociedade é inicialmente definida
sempre contém um elemento de imprevisibilidade, não é
como um conjunto de reformas, das reformas agrárias à
menos verdade que onde não há espontaneidade, nada
planificação implicando no controle dos investimentos.
acontece. Lênin, que tanto criticava o espontâneo, afir-
Mas, embora necessário, esse conjunto de reformas não
mava, contudo, a existência de um “instinto revolucio-
é suficiente; algo essencial precisa ser acrescentado. A

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nário”. Ele via na espontaneidade um degrau inicial no Nesse ponto essencial, as ideias de Proudhon os-
primeiro nível de intervenção das massas atuantes, uma cilam. Em seus cursos sobre Proudhon,35 Georges
energia para orientar, a ser submetida às exigências do Gurvitch trouxe à luz essas flutuações. “O Estado, como
conhecimento político, mas sem destruí-la enquanto a propriedade, está em plena metamorfose; a democra-
espontaneidade. Os soviéticos foram uma invenção da cia industrial não exclui, mas completa e reforça a demo-
espontaneidade. Como a Comuna de Paris1. Não seria cracia política” (Information au Manuel d’un Spéculateur,
hoje a primeira tarefa da teoria reabilitar a espontaneida- 1853). A democracia industrial tem como elementos
de? Isso não pode se dar sem uma análise profunda, que constitutivos e pontos de referência as associações de
iria sem dúvida transformar esse conceito embrionário e trabalhadores, bases da constituição social. A democra-
confuso, aderindo mais de perto às suas condições, suas cia industrial irá eliminará o papel dos empregadores nas
manifestações e suas implicações. Se é verdade que a fábricas e no Estado. Fará todos os trabalhadores co-
Sociologia proporciona um conhecimento da liberdade, -proprietários, confiando o poder a seus representantes.
e que a Sociologia tem por objeto a potência criativa da Irá organizar uma propriedade mutualista ou federativa
sociedade (como pensavam, ainda que de modos distin- dos meios de produção. A democracia industrial é assim
to, Gurvitch e Marx), então essa tarefa é incumbência da revelada como “parceira silenciosa do trabalho, através
Sociologia. do trabalho ou colaboração mútua [mutualidade] univer-
Hoje o movimento prático e teórico clama por uma sal”. Existe portanto equilíbrio entre o Estado político e a
concepção unitária que não resulte nem de um cons- sociedade econômica organizada.
trangimento nem da pressão de uma “tendência” sobre Não é nosso propósito aqui retomar a discussão so-
as outras. A base e o cimento dessa unidade não virão bre Proudhon e o proudhonismo. Justiça lhes foi feita há
da corrente a mais combatida, a mais reprimida, a mais alguns anos por Georges Gurvitch e, mais recentemente,
humilhada? por Daniel Guérin4. Podemos afirmar que três orienta-
Ora, a forma adotada hoje pela espontaneidade revo- ções, que mais tarde deverão se cindir e se opor, coexis-
lucionária não é mais o anarcosindicalismo, mas a au- tem, relativamente indiferenciadas, em Proudhon. Alguns
togestão. de seus textos têm a audácia revolucionária de Marx an-
tes de Marx. Outros deslizam na direção do que viria a
se tornar o reformismo. A questão do Estado é funda-
mental. As teses se distinguem em termos de posições
II. Elementos para uma Sociologia da Autogestão
em relação ao Estado e ao problema do Estado. Esse é
o critério. Quando Proudhon, mesmo sem designar as-
Comumente remontamos a teoria “gestionária” a
sim, antecipa a abolição do Estado, aproxima-se singu-
Proudhon e ao proudhonismo. Na realidade, de acordo
larmente do pensamento de Marx. Entretanto, é um erro
com Proudhon, uma sociedade econômica é constituída
teórico e metodológico colocar questões a Proudhon que
espontaneamente e que pode e deve se tornar a socie-
só fariam sentido em um contexto posterior. Seu próprio
dade no seu todo.
relativismo proíbe isso. As ideias são falsas, ele mesmo
Essencialmente oposta à sociedade política, ao
escreve, “se alguém as toma como tendo um significa-
Estado, a sociedade econômica tem “sua própria realida-
do exclusivo e absoluto, ou se alguém se deixa levar por
de”, sua individualidade, sua essência, sua vida, sua pró-
esse significado...” (Philosophie du Progrès, ed. 1946, p.
pria razão”.2 O produtor e a oficina opõem-se ao governo.
51) De um ponto de vista filosófico, ele certamente osci-
O Estado é apenas representante abstrato dos consumi-
lou entre determinismo, pragmatismo e voluntarismo. A
dores, enquanto a sociedade real é um conjunto concreto
crítica que acusa Proudhon de se contradizer corre o ris-
de trabalho e produção. Para além do aparato do Estado,
co de esconder a riqueza de seus argumentos e a com-
na sombra das instituições políticas, a sociedade lenta
plexidade de seu pensamento, tomando como pretexto a
e silenciosamente produz seu próprio organismo, sua
ausência de uma coerência que ele não buscava.
constituição econômica ou mesmo sociopolítica. Em
Sem dúvida ele não concebeu as associações gestio-
vista disso existem duas constituições por natureza in-
nárias que se instalavam em pontos privilegiados, por-
compatíveis. A constituição socioeconômica tende a se
tanto fortes, da sociedade existente, em setores econô-
subordinar e a absorver o sistema politico.
micos e sociais que estavam bem posicionados comm
1
A respeito de estudos recentes sobre a Comuna de Paris, ver artigo de M. Decoufle
em Cahiers de l’ISEA (Agosto 1965): 173-207. Acréscimo da edição inglesa: O título referência ao mercado e à concorrência. Por exemplo, os
do artigo é “A espontaneidade revolucionária em uma revolução popular: O exemplo
da Comuna de Paris”.
bancos. Nesse ponto, as visões de Proudhon não foram

2
Nota da edição inglesa: Pierre-Joseph Proudhon, General Idea of the Revolution
3
Nota da edição inglesa: Cours de 1952-3, 2:54-55. Georges Gurvitch, Les fon-
in the Nineteenth Century [Ideia geral da revolução no Século XIX], tradução de dateurs français de la sociologie contemporaine: Saint-Simon et Pierre Joseph
John Beverly Robinson (Londres: Freedom Press, 1923), p. 147: “O povo não é Proudhon (Paris: Les cours de Sorbonne, 1955)
apenas uma criação de minha mente, a personificação do pensamento, como disse 4
Nota da edição inglesa: L’Anarchisme (Paris: Gallimard, 1965). Traduzido por Mary
Rousseau, mas uma verdadeira personalidade, que tem sua própria realidade, sua Klopper como Anarchism: from theory to practice. (New York: Monthly Review
própria individualidade, sua própria essência, sua própria vida, seu próprio poder Press, 1970.
racional”.

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Nossos Clássicos

confirmadas pela experiência, ou seja, pela prática social. nada acontece. Entre eles estão zonas frágeis, ou mes-
As associações gestionárias que foram estabelecidas mo lacunas. E é aí que as coisas acontecem. Iniciativas
pelos trabalhadores e que pretendiam instalar-se nos e forças sociais agem e intervêm nessas lacunas, ocu-
“pontos fortes” da sociedade burguesa, fracassaram.. pando-as e transformando-as em pontos fortes ou, ao
Ou entraram em falência, ou, com raras exceções (que contrário, em “outra coisa” diferente daquilo que existe
ainda precisam ser melhor examinadas) foram absorvi- de modo consolidado. Partes fracas, vácuos, são revela-
das pelo capitalismo; elas funcionaram como empresas dos apenas na prática, através da iniciativa de indivíduos
capitalistas sob o rótulo “comunitário” ou “cooperativo”. capazes de tal iniciativa ou das investigações embrio-
Serge Mallet recentemente propôs uma teorização nárias de grupos com capacidade de intervir. Se pontos
que está ligada à mesma hipótese, embora (certa ou fracos podem assim se transformar em pontos fortes no
equivocadamente) sem explicitamente declará-la prou- conjunto da estrutura social, eles podem reciprocamente
dhoniana. resultar de um decréscimo ou colapso do conjunto (de-
sestruturação)6.
Serge Mallet estudou com perspicácia a “nova clas-
se trabalhadora”, aquela das indústrias técnicas de van- Em 1870, Paris era o ponto fraco do império bonapar-
guarda. Ele acreditou ser possível tirarmos conclusões tista. No princípio de 1871, a capital era o ponto fraco
políticas desse estudo socioeconômico. Para Mallet, a da França, devido à industrialização e ao crescimento
nova classe trabalhadora se afasta das “velhas ideolo- do proletariado em decorrência da atividade política, à
gias” que são incapazes de expressar as necessidades oposição a Badinguet7. Em virtude da guerra, da derro-
vividas pelos trabalhadores. Ele identificou o advento de ta, da proclamação da República, do cerco, do armistí-
“um tipo novo e superior de politização, decorrente de cio. Certamente, mas também por causa da segregação
uma afirmação positiva da classe operária”. E isso emer- social conduzida por Haussmann, da realocação de tra-
gindo do movimento sindical. “Nós estamos avançando balhadores para bairros periféricos, do aburguesamento
no problema da participação, da responsabilidade pela [gentrificação] e consequente deterioração comercial do
gestão em si, seja qual for a forma que essa gestão as- centro da cidade. Após 18 de março, o povo assumiu a
suma. ” Do ponto de vista dos trabalhadores, as ques- gestão de seus próprios negócios nos bairros e também
tões discutidas entre empregadores e sindicatos tendem da Prefeitura [Hotel de Ville]. Sob a Comuna, os traba-
a se concentrar “no esquema de controle da organiza- lhadores tentaram conduzir por meio da autogestão as
ção e da organização da produção”5. empresas que tinham sido abandonadas pela burguesia
de Versalhes, um projeto que não chegou a obter êxito.
É cedo ainda para condenar decisivamente essa hi-
Nos P.T.T., Theisz previa uma autogestão ou cogestão,
pótese. Podemos, porém, supor que essas visões não
ainda pouco distintas entre si.8 Infelizmente, a burgue-
têm sido confirmadas ao longo do tempo. Teria Serge
sia e seu Estado, e as relações capitalistas de produção,
Mallet sucumbido à tentação de extrapolar a partir de
permanecem fortes fora de Paris. Em Versalhes, Thiers
suas brilhantes análises, de saltar do socioeconômico
consegue rapidamente reconstituir o aparelho de Estado
ao ideológico e ao político?
e o exército, sob o beneplácito de Bismarck.
Nossa hipótese aqui é completamente diferente. A
Em 1917, durante o colapso do czarismo, os pontos
experiência (a prática social) mostra, em nossa opinião,
fortes tradicionais de sua estrutura sociopolítica, isto é, o
que associações gestionárias - em sua forma mais cla-
exército e a aldeia, transformaram-se em pontos fracos.
ra e interessante, chamada autogestão - aparecem nos
Eles juntaram-se nessa situação às empresas capitalis-
pontos fracos da sociedade existente. Em cada socie-
tas que uma burguesia enfraquecida não tinha conse-
dade, podemos perceber os pontos fortes, o todo que
guido consolidar. Os setores fracos se juntaram. Os so-
constitui seu contexto, ou, se preferirmos, sua estrutura.
vietes de soldados, de camponeses e de trabalhadores
Sabemos que o todo social tem uma coesão, uma co-
uniram-se em um imenso movimento, o da revolução. É
erência. O Estado existente é baseado nesses pontos
preciso lembrar que Lênin, ao proclamar o slogan -“todo
fortes. Os homens do Estado ocupam-se em colmatar
poder aos sovietes” - não os viu como corpos represen-
as fissuras por todos os meios disponíveis. 11. Assim
que esses pontos fortes estão consolidados, reforçados, 6
Essa concepção poderia ser generalizada sem, entretanto, pretender dar conta
de todos os fatos sociológicos e culturais. Os grupos “anômicos” – em que uns
destroem e outros ajudam a transformar a sociedade – não são constituídos nesses
5
Ver “Les Nouveaux comportements politiques de la classe ouvriere” (Paris: PUF, vacúolos do tecido social? Não se poderia argumentar que ideias, representações,
1962), 52-55, um texto em que a posição teórica de Serge Mallet se exprime com imagens, e mesmo mitos, todos esses fenômenos da consciência social surgem
muita clareza. Acréscimo da edição inglesa: Serge Mallet foi anteriormente um para preencher ou tentar preencher os vazios, em vez de serem o resultado pleno
membro do PCF que, durante os anos sessenta, passou a ser um dos teóricos ou representarem a armadura social bem estruturada?
liderando o PSU, uma organização socialista dissidente que promoveu autogestão
em fábricas e apoiou as revoltas estudantis em maio de 1968. Foi um defensor e
7
Nota da edição inglesa: Badinguet era um nome satírico para Napoleão II. Isso
teórico da autogestão. Ficou muito conhecido na esquerda francesa e europeia aparentemente se refere ao nome de um homem cuja identidade ele usou durante
por suas ideias sobre a transformação das políticas da classe trabalhadora em sua fuga da captura em 1846.
desenvolvimento, o capitalismo “tecnocrático”. Lefebvre refere-se a uma coletânea
de entrevistas editadas por Leo Hamon. O estudo mais detalhado e amplamente 8
Nota da edição inglesa: Albert Theisz (1839-81), revolucionário francês na Comuna.
discutido de Mallet foi “La nouvelle classe ouvrière” (Paris: Seuil, 1963); traduzida P.T.T.: Postes, Telecommunications et Telediffusion - nome atual para esse serviço
para o inglês por A. Shepherd e B. Shepherd como “The New Working Class”. de utilidade pública.
(Nottingham: Spokesman, 1975).

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tativos ou destinados a eleger representantes, mas sim do a discrepância entre o controle técnico do mundo ex-
como grupos de trabalhadores associados, gerindo livre terior e a estagnação das relações práticas, entre o poder
e diretamente seus interesses? Uma conjuntura surpre- sobre a natureza material e a miséria da “condição hu-
endente. Nunca antes tinha sido possível a generaliza- mana”? Pouco importa a terminologia. Ela será superada
ção da autogestão até esse ponto. Nunca antes fora tão por aquela que for mais consistente com os fatos e que
difícil concretizá-la. Hoje temos de certa forma um en- permita sua previsão.
tendimento melhor de suas causas e razões históricas.
O exemplo recente da Argélia confirma essa tentativa
de análise. Onde se erige a autogestão? Nos domínios III. A Problemática da Autogestão
abandonados pelos colonizadores. A autogestão coloca
em questão a sociedade como um todo e os aparelhos Sabemos que autogestão nasce espontaneamente,
herdados da era colonial ou que foram estabelecidos no mas não nasce em qualquer lugar ou de qualquer forma.
tempo da independência. Ao contrário. Talvez tenhamos tido êxito em localizar
seu surgimento, em definir algumas de suas condições.
Seria de grande interesse teórico e prático desvendar
Autogestão requer uma conjuntura, um lugar privilegia-
os pontos fracos do atual Estado e sociedade franceses.
do.
Onde estão situados? Nas universidade, entre os estu-
dantes? Na vida rural das regiões ao Sul do Loire? Nos Não cabe imaginarmos um caminho perfeito, traça-
novos conjuntos habitacionais urbanos? No setor pú- do previamente rumo à autogestão. Em qualquer lugar
blico (estatizado) da economia? Essas afirmações têm e momento em que a autogestão espontaneamente se
que ser articuladas com extremo cuidado. Uma análise manifesta, ela traz consigo a possibilidade de sua gene-
dupla é necessária: seja uma análise das tentativas de ralização e radicalização; mas, ao mesmo tempo, mos-
autogestão que surgem aqui e ali, seja uma análise da tra e cristaliza diante dela as contradições da sociedade.
sociedade francesa em sua totalidade. Aberta a perspectiva ótima e máxima, surge a fratura da
sociedade como um todo, a metamorfose da vida. Mas
As implicações teóricas dessa análise são as se-
por mais que a autogestão se consolide e se estenda,
guintes: cada sociedade tem sua estrutura, ou seja, uma
falta ocupar os pontos fortes da estrutura social que se
coesão ou coerência global. Entretanto, é impossível
erigem contra ela. De setor privilegiado, é preciso se tor-
atribuir-se um caráter definitivo a essa coesão: ela nem
nar união, globalidade, “sistema”. Um caminho difícil, ao
apresenta nem se representa em um único nível, em um
longo do qual pode acontecer da autogestão entrar em
único plano. Uma representação unitária iria ignorar as
conflito consigo mesma. Ao administrar-se um domínio
características de precariedade e de equilíbrio momen-
ou uma empresa, e com mais razão ainda um ramo in-
tâneo de uma situação, algo em que Georges Gurvitch
dustrial, não há necessidade de competências, especia-
insiste tão enfática e acertadamente. Ela iria supor aca-
listas, contabilistas, técnicos? Assim, no interior da auto-
bado e completo o trabalho de integração para o qual as
gestão tende a se constituir uma burocracia que a nega
instituições são empregadas. No âmago dessas estrutu-
por essência, e que ela deve atenuar sob pena de negar
ras agem forças e tendências à desestruturação. Ao lado
a si mesma.
ou mesmo no seio de setores fortes, cada sociedade tem
seus fracassos e deficiências, suas lacunas. Sem isso a A principal contradição que a autogestão introduz e
sociedade iria se manter consolidada para sempre. Ela suscita é sua própria contradição com o Estado. Em es-
não teria mais problemas, não haveria mais história. As sência, a autogestão questiona o Estado enquanto poder
relações jurídicas dão forma às relações de produção, si- constrangedor erigido sobre a sociedade como um todo,
nalizando suas dificuldades e tentando consolidá-las. Da capturando e absorvendo a racionalidade que é inerente
mesma forma, instituições políticas colmatam os pontos às relações sociais (à prática social). Uma vez brotan-
fortes como parte de uma estratégia global, aquela da do ao nível do solo, em uma fissura, essa planta humilde
classe dominante ou das frações de classe que estão começa a ameaçar o robusto edifício do Estado. Isso é
no poder. O mesmo acontece com as ideologias. Mas a bem conhecido pelos homens do Estado. A autogestão
conjuntura intervém na estrutura, esta pode enfraquecer tende a reorganizar o Estado em função de seu desen-
e ser alterada rumo a uma reestruturação. volvimento, ou seja, tende a engendrar o seu desapare-
cimento. A autogestão revive todas as contradições no
Como os esforços de autogestão emergem? Essa é
seio do Estado, e especialmente a suprema contradição
uma questão de intervenção da liberdade criativa, como
que pode expressar-se, apenas em termos gerais, filosó-
diria Jean-Paul Sartre? Ou de uma efervescência da
ficos, entre a razão do Estado e a razão humana, ou seja,
consciência social, como sugere Georges Gurvitch? Ou
a liberdade.
é o caso de esforços humanos, quando é objetivamente
possível, para assumir a organização da vida diária, para Generalizando-se, transformando-se em um “siste-
apropriar por si mesmos sua própria vida social, abolin- ma” na escala da sociedade como um todo – unidades

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Nossos Clássicos

de produção, unidades territoriais, compreendendo ins- Em si mesmo e através de si mesmo, o conceito de


tâncias e níveis ditos superiores – a autogestão não pode autogestão tem consequentemente importância crítica,
evitar uma colisão com o “sistema político-estatal”, não decisiva. Uma vez concebendo-se a autogestão, uma
importa qual seja o “sistema”, e desde que ainda exista o vez pensando-se em sua generalização, contesta-se ra-
sistema estatal e político. A autogestão não pode esca- dicalmente a ordem existente desde o mundo da merca-
par dessa obrigação brutal: constituir-se como um poder doria e o poder do dinheiro até o poder do Estado.
que não seja estatal. O verdadeiro caráter das instituições e também do
Ela deverá confrontar um Estado que, embora en- mundo da mercadoria é revelado diante dessa reflexão.
fraquecido, mesmo abalado, mesmo desaparecendo no Por outro lado, quando alguém contesta as instituições
sentido de Marx, poderá sempre tentar se reafirmar, con- estatais e burocráticas, ou o mundo generalizado da mer-
solidar seu próprio aparelho, transformar a autogestão cadoria, como não evocar o que poderia substituí-los?
em uma ideologia do Estado para, na prática reprimi-la. Uma vez que a autogestão apareça espontaneamente,
Sendo burguês ou não, o Estado por essência opõe um uma vez concebida em pensamento, seu princípio abala
princípio centralizador ao princípio descentralizador da o sistema inteiro, ou os sistemas, a ordem estabelecida.
autogestão, que se move da base ao topo, do elemento à Mas esse princípio é imediatamente posto em questão
totalidade. Por essência, o princípio estatal tende a limi- e tudo busca aniquilar. Se tentarmos agora sistematizar
tar o princípio da autogestão, a reduzir suas aplicações. essas reflexões, proporemos as seguintes formulações:
Essa não será uma das principais contradições da nossa a) A autogestão nasce e renasce no seio de uma so-
história, um novo momento dialético recém começado? ciedade contraditória, mas que tende, através de várias
A autogestão precisa também confrontar e resolver ações (do Estado, das técnicas e das burocracias e tec-
os problemas da organização do mercado. Nem em seus nocracias) na direção de uma integração global e de uma
princípios, nem em sua prática, ela nega a lei do valor. coesão altamente estruturada. A autogestão introduz e
Ninguém pode em seu nome pretender “transcender” o reintroduz a única forma de movimento, de contestação
mercado, a rentabilidade dos negócios, as leis do valor eficaz, de desenvolvimento efetivo numa tal sociedade.
de troca. Só o estatismo centralizado tem tido essa am- Sem isso, há apenas crescimento sem desenvolvimento
bição excessiva. (cumulação quantitativa da produção, estagnação qua-
É apenas em uma concepção estreita que a autoges- litativa da prática e das relações sociais). Nesse senti-
tão tende a dissolver a sociedade em unidades distintas, do, a ideia de autogestão coincide com a de liberdade.
as comunas, as empresas, os serviços. Em uma con- Autogestão é a essência teórica da liberdade, hoje con-
cepção ampliada, as modalidades de autogestão podem centrada e identificada com uma noção prática e política.
ser propostas e implementadas em todos os níveis da b) Autogestão nasce dessas contradições, como ten-
prática social, incluindo os organismos de coordenação. dência a resolvê-las e superá-las. Nasce da forma atual
O princípio da autogestão reaviva a contradição entre e universal (embora não excluindo outras formas) da luta
valor de uso e valor de troca. Tende a restituir a primazia de classes. Acrescenta às contradições da sociedade em
ao valor de uso. Este “é” o valor de uso dos seres huma- que nasce uma contradição nova - essencial, principal,
nos em suas relações práticas. Ele os valoriza contra o superior - com o aparelho de Estado existente, que se
mundo da mercadoria. Ele coloca em questão o mundo pretende sempre o único organizador, racional, unifica-
da mercadoria, sem contudo negar que esta tem leis que dor da sociedade.
devem ser administradas, e não negligenciadas. Limitar c) A autogestão, portanto, tende a solucionar a tota-
o mundo das mercadorias não significa livrar-nos delas lidade das contradições diversas. superadas numa to-
por um processo mágico. Trata-se de realizar projetos talidade nova, porém através de um paroxismo teórico e
de planificação democrática, priorizando as necessida- prático em que o conjunto dessas contradições é impul-
des sociais formuladas, controladas e administradas por sionado até o limite, até seu termo dialético. Isso pres-
seus interessados. supõe um momento histórico, uma conjuntura favorável.
A organização do mercado e a planificação demo- d) A autogestão precisa ser estudada em duas formas
crática não acontecem sem riscos. O princípio da auto- diferentes: como meio de luta, abrindo caminho, e como
gestão envolve a recusa à “cogestão” exercida com um meio de reorganização da sociedade, transformando-a
aparelho econômico, um planejamento burocrático. E de baixo para cima, da vida cotidiana ao Estado.
incompatível com a recaída no capitalismo que ocorre
Seu princípio implica sua extensão a todos os níveis
quando é acordada com os “trabalhadores” uma partilha
da sociedade. Dificuldades e obstáculos correm contra
que logo a seguir lhes é negada9.
esse processo e são maiores à medida que se coloquem
9
Sobre cogestão na Alemanha, ver sugestões interessantes nas novas séries de
“Allemagne d’Aujourd’hui” [Alemanha hoje], no. 1, 1966. A agenda de cogestão de “cogestionárias” entre os “gaullistas de esquerda”.
“Gaullistas da Esquerda” expressa-se na emenda introduzida na lei de finanças de
12 de julho de 1965, a pedido de Louis Vaillon e que pretende oferecer vantagens
fiscais às empresas que distribuem ações aos empregados. Exprime intenções

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GEOgraphia, Niterói, vol. 19, n. 41, 2017: set./dez

em questão os níveis superiores da sociedade, as ins- Tratar-se-ia então de um caso particular daquilo que
tâncias. Henri Desroche denomina “ucoopia”, ou seja, uma uto-
Nunca podemos esquecer que a sociedade constitui pia socializadora e praticante ou praticada? Sim, se por
um todo e que não consiste em uma soma de unidades esse vocábulo entende-se que a teoria e a prática, em
elementares. Mesmo radicalizada, uma autogestão que um dado momento e em uma dada conjuntura, tentam o
se instaure apenas em unidades parciais, sem alcançar impossível para preparar, através da combinação entre
o global, está destinada ao fracasso. Mesmo o global pensamento e ação, o momento desconcertante e a con-
incorpora o nível das decisões estratégicas, da política, juntura que irá transformar esse impossível em possibi-
dos partidos. lidade. Não, se Henri Desroche entende por esse termo
engenhoso uma simples versão moderna da utopia e da
Em relação à autogestão radicalizada e generalizada,
ucronia. Além disso, Desroche tem firmemente assinala-
é conveniente rever conceitos e práticas da representa-
do como a perspectiva e a prospectiva socialistas estão
ção, eleição, delegação de poderes, o controle da demo-
vinculadas ao conceito de autogestão radicalizada e ge-
cracia “pela base”.
neralizada. Na conclusão de seu estudo, em que pesem
Com o Estado sendo incapaz de coexistir pacifica-
algumas reservas, ele não volta a aceitar a definição pro-
mente com a autogestão radicalizada e generalizada,
gramática de um socialismo através de uma densa rede
esta deve submeter o Estado ao controle democrático
de organismos de base mais equipamentos eletrônicos?
“da base”. O Estado da autogestão, isto é, o Estado em
A rede de organismos de autogestão no interior das uni-
cujo âmago a autogestão é elevada ao poder, só pode ser
dades de produção e dentro das unidades territoriais as-
um Estado em eliminação. Consequentemente, o partido
seguraria a expressão das necessidades sociais e o con-
da autogestão só pode ser o partido que conduz à meta e
trole social da produção. Sem essa rede, a eletrônica e a
ao fim da política, através da democracia política.
cibernética aplicadas à gestão da economia concedem
poder aos tecnocratas, programadores das máquinas e
se servindo desses meios para manipular os homens.
Conclusões (provisórias) Sem máquinas, a democracia corre o risco de ser con-
fundida com desorganização econômica e social; corre o
O princípio da autogestão seria um ideal cujo cerne risco de não superar a democracia política, de não reali-
racional e conteúdo são claramente derivados do ideal zar as possibilidades da autogestão10.
democrático? Sem dúvida, mas autogestão não é apenas
um ideal. O fato de que a cada momento, a cada oportu-
nidade favorável, ela entra em prática, é uma experiência
fundamental de nosso tempo.
O projeto da autogestão generalizada é uma ideo-
logia? Melhor seria vermos isso através de um entendi-
mento teórico, tão livre de ideologia quanto possível, em-
bora essa “liberação” não passe de um limite. Podemos
ver nisso a forma atual da ciência da liberdade.
Seria a autogestão uma utopia? Não, se essa ideia
não evoca a imagem de uma explosão espontânea, uma
efervescência inflamando o conjunto da sociedade, tanto
como a de uma longa sequência, de um longo processo.
A autogestão poderá ser apenas um elemento de uma
estratégia política, mas será o elemento essencial sem
o qual o resto não terá valor e que valoriza o resto. O
conceito de autogestão, hoje, é a abertura na direção do
possível. É ao mesmo tempo o caminho e o fim, a força
que pode suportar o peso colossal que se exerce sobre a
sociedade e que pode superá-lo. Mostra o caminho prá-
tico para mudar a vida, que permanece sendo a palavra
de ordem, o objetivo e o sentido de uma revolução. 10
Ver H. Desroche, [ “Voyages en ucoopies . . . ,”] Esprit, February 1966, 222-245, que
Apenas através da autogestão os membros de uma contém referência a um artigo de Henri Lefebvre no jornal Le Monde, 29 de janeiro
de 1964. [esse texto de Lefebvre foi intitulado “S’agit-il de penser’]. Acréscimo da
livre associação podem ter em mãos as suas próprias vi- edição inglesa: A parte citada por Desroche diz respeito à famosa sugestão de Lênin
sobre o socialismo constar dos sovietes mais a eletrificação. A atualização por
das, de forma que ela passe a ser sua obra. Isso também Lefebvre em 1964 enfatizou organizações de base mais do que sovietes, modernos
equipamentos eletrônicos mais do que eletrificação, e territórios também como
se chama: apropriação, desalienação. sítios de produção.

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