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Revista

de
Informação
Legislativa
Brasília • ano 46 • nº 184
Outubro/dezembro – 2009

Subsecretaria de Edições Técnicas do Senado Federal


Revista
de
Informação
Legislativa
Fundadores
Senador Auro Moura Andrade
Presidente do Senado Federal – 1961-1967
Isaac Brown
Secretário-Geral da Presidência – 1946-1967
Leyla Castello Branco Rangel
Diretora – 1964-1988

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Subsecretaria de Edições Técnicas
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Diretora: Anna Maria de Lucena Rodrigues

Revisão de Originais: Angelina Almeida Silva, Cláudia Moema de Medeiros Lemos


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Revista de Informação Legislativa / Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas –


Ano 1, n. 1 (mar. 1964). – Brasília : Senado Federal, Subsecretaria de Edições
Técnicas, 1964.
Trimestral.
Ano 1-3, n. 1-10, publicada pelo Serviço de Informação Legislativa; ano 3-9,
nº 11-33, publicada pela Diretoria de Informação Legislativa; ano 9- , n. 34- , publicada
pela Subsecretaria de Edições Técnicas.
1. Direito – Periódico. I. Brasil. Congresso. Senado Federal, Subsecretaria
de Edi­ções Técnicas.
CDD 340.05
CDU 34(05)
“Jardim Espacial”, de Sueli Fiori Castilho, é uma
pintura em óleo sobre tela de 1,10 x 0,77m.
Revista
de
Informação
Legislativa
Brasília · ano 46 · nº 184 · outubro/dezembro · 2009

Da cláusula rebus sic stantibus à onerosidade


Maria Antonieta Lynch excessiva 7
O Brasil como cliente do sistema de solução de contro-
Jorge Fontoura vérsias da OMC 21
O Brasil é dualista? Anotações sobre a vigência de
André Lipp Pinto Basto Lupi normas internacionais no ordenamento brasileiro 29
Dos casos em que é desnecessário homologar uma
Marcela Harumi Takahashi Pereira sentença estrangeira 47
A culpabilidade compartilhada como princípio miti-
Cláudio Alberto Gabriel Guimarães gador da ausência de efetivação dos direitos humanos
fundamentais 55
Pena de multa criminal, execução e legitimidade ativa
Valter Foleto Santin do Ministério Público 67
Da solidariedade à contingência. Diferentes visões do
Leany Barreiro Lemos moderno Estado de Bem-Estar 77
Evolução do controle da atividade administrativa pelos
José de Ribamar Barreiros Soares Tribunais 93
Sávio de Aguiar Soares Tópicos em direitos morais de autor 105
Organização Mundial do Comércio. Novo ator na
Marco Aurélio Gumieri Valério esfera internacional 121
D’Aquino Filocre Revisita à ordem pública 131
Interpretação conforme à Constituição. A lei funda-
Julio de Melo Ribeiro mental como vetor hermenêutico 149
Legitimação da Defensoria Pública para propor Ação
Antonio Carlos Fontes Cintra Civil Pública 171
Novos modelos contratuais para uma nova matriz
Nunziata Stefania Valenza Paiva energética. Aspectos jurídico-econômicos para produ-
ção de biocombustíveis no Brasil 191
O método de construção da teoria da justiça e a posi-
Roberto Bueno ção original 207
Cristina de Cássia Pereira Moraes e Os caminhos da cidadania. A legislação brasileira
Rildo Bento de Souza referente à pessoa idosa (1988-2003) 227
A proteção dos conhecimentos tradicionais e expres-
Patrícia Pereira Tedeschi sões de folclore 245
Federalização dos crimes graves contra os direitos
Ana Fabiola de Azevedo Ferreira humanos. Estudo sobre a ponderação de princípios no
controle abstrato de constitucionalidade 253

Os conceitos emitidos em artigos de colaboração são de responsabilidade de seus autores.


Da cláusula rebus sic stantibus à
onerosidade excessiva

Maria Antonieta Lynch

Sumário
1. Babilônia. 2. Direito Romano. 3. Idade
Média – séculos XII e XIII. 4. Idade Moderna.
5. Idade Contemporânea – Estado Social. 6.
Revisionistas e antirrevisionistas. 7. O Código
Civil de 1916. 8. Anteprojeto do Código de Obri-
gações. 9. O Código Civil de 2002 e o Código do
Consumidor. 10. Conclusões.

De uma forma geral, quando do estu-


do dos institutos jurídicos, é importante
conhecer e tentar entender as suas raízes
e o seu desenvolvimento, pois, salvo raras
exceções, os fenômenos jurídicos emanam
do social e da necessidade da autorregula-
mentação.
Assim sendo, ao analisá-los, consegui-
mos entender a essência deles, o que, no
presente trabalho, vai-nos permitir visuali-
zar a evolução da cláusula rebus sic stantibus
até a teoria de imprevisão, bem como os
contornos da teoria de onerosidade exces-
siva, dando, porém, ênfase às codificações
privadas pátrias.

1. Babilônia
Na história encontramos os princípios
da tangibilidade contratual desde, pelo
menos, 2.300 anos antes de Cristo, pois,
já naquela época, o homem condicionava
Maria Antonieta Lynch é Pós-doutora pela seus acertos a eventos futuros capazes
Universidade Robert Schumam – Estrasburgo – de modificá-los. Esse fato se verifica nas
França. Doutora em Direito. Professora Adjunta escrituras feitas em pedra, decifradas da
da UFPE. escrita cuneiforme por Bonfante, no sécu-

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lo passado. Referimo-nos ao mais antigo dispõe a respeito de uma estipulação feita
legado jurídico que a ciência arqueológica por alguém no sentido de pagar deter-
decifrou, que é o Código de Hamurabi.1 minada soma ao estipulante ou a Tício,
prevenindo que a Tício só se pode pagar,
2. Direito Romano assim se fazendo válido o desate obrigacio-
nal, se permanecer no mesmo estado que
O sistema romano, quanto à questão de
tinha quando se estipulou. Verifica-se que
ter sido o berço da cláusula rebus sic stan-
há uma vinculação entre a estipulação e a
tibus, primitivamente denominada rebis sic
permanência objetiva do estado.
se habentibus, suscita dissenso doutrinário,
O que interessa deixar assente é que,
havendo quem afirme e quem negue tal
já no classicismo romano, o princípio da
fato. Porém, se, antes de Roma ser Roma
fidelidade ao contrato não era invulnerável,
e antes do ius romanum ser o inspirador de
rendendo-se à base objetiva do contrato
nosso direito, já existia a ideia da condicio-
concluído.
nalidade contratual, por que essa não teria
Se as fontes jurídicas dos romanos não
surgido no pensamento jurídico romano?
elevaram a um princípio de aplicação geral
No plano filosófico, apontamos nas li-
a estreita conexão entre as modificações
ções morais deixadas pelos estoicos Cícero
do estado de fato, dentro do qual se rea-
e Sêneca os mais prístinos vestígios de que
liza a avença, e a persistência do vínculo
o princípio da fidelidade ao contrato não
consensual, o que é incontestável é que
era invulnerável se alteradas as condições
a consciência moral deles percebeu essa
subordinadas às quais se concluiu (SIDOU,
correlação.
1962, p. 8). E são nessas soluções morais
que os fervorosos adeptos da ancianidade estipuló. Pero si se hubiese dado en adopción, o hubie-
romana se apoiam. se sido desterrado, o deportado, no se le podrá pagar;
Com isso, constata-se que os romanos, já porque tácitamente parece que se comprendió en la
no I séc. antes de Cristo e no II da nossa era, estipulacion, si permaneciese en el mismo estado. § 1.
Si mandase a mi deudor que pagase a Ticio, y después
davam margem à vulneração do contrato prohibi a Ticio que cobrase, y el le pagase el deudor
admitindo a quebra do princípio pacta sunt ignorándolo, juzgue que se librará de la obligación,
servanda. Assim temos que a consciência si Ticio no recibiese lo que se le dió com intención de
moral dos romanos não ficou estranha à co- hacerlo suyo, no siendo asi; porque cometerá hurto,
permanecerá del deudor lo que pagó; por lo cual segun
nexão entre as mudanças do estado de fato derecho no se puede librar de la obligacion el deudor.
e a persistência do vínculo obrigacional. A Pero es conforme à equidad que se le dé excepcion, si
mutabilidade contratual já se encontrava estuviese pronto á cederme la condiction furtiva que
nas práticas romanas. le compete contra Ticio como se observa cuando el
marido manda á su fdeudor que pague á su mujer lo
Quanto às fontes jurídicas, há textos que le habia de dar á él; porque en este caso porque el
versando soluções relacionadas ao tema, dinero no se hace de la mujer, no se libra de la obliga-
que constituem o objeto da cláusula. Como cion el deudor; pero se le há de dar excepcion contra el
exemplo, temos o texto de Africano2, que marido, si le cede la condiction que le compete contra
la mujer. Tambien me competerá la accion de hurto
1
Lei 48 do Código de Hamurabi: “Se alguém tem despues del divorcio en el caso propuesto, cuando me
um débito a juros, e uma tempestade devasta o campo importase que el dinero no haya sido intercepado. §
ou destrói a colheita, ou por falta d’água não cresce o 2. SE le pidió al señor por la accion de peculio, fué
trigo no campo, ele não deverá nesse ano dar trigo ao condenado, y pagó. Respondí, que quedaron libres
credor, deverá modificar sua tábua de contrato e não los fiadores, que dió el siervo; porque una misma
pagar juros por esse ano”. cantidad se puede pagar por muchas causas: es prueba
2
Digesto livro XLVI, título III, 38. Africano, lib. de esto, que habiéndose dado fianza de estar á lo que
7 de las Cuestiones: “Ley XXXVIII. Cuando alguno se pronunciase en la sentencia, y pagando el deudor
estipuló que se le habia de dar a el o a Ticio, mas que fué condenado, éste y sus fiadores no solo se
bien se há de decir que e Ticio se le puede pagar, si livran de la accion que resulta de la sentencia, sino
permanece en el mismo estado que tenia cuando se tambien de la que resultó de la estipulacion; y mas bien

8 Revista de Informação Legislativa


De fato, a cláusula não tinha a atual di- primeiros delineamentos nítidos sobre a
mensão, mas a construção de seus pilares cláusula rebus sic stantibus.
básicos pode, sem dúvida, ser atribuída Deles partiu a ideia de que se, de um
aos romanos. Sem margem a discussões, lado, há para o devedor a obrigação de ser
a certeza é de que a prática do princípio fiel à fé jurada, de outro, há para o credor a
exonerativo era conhecido já no período de ser respeitada a justiça. Temperar a força
clássico do Direito Romano. obrigatória do contrato pela consideração do
justo foi para os autores cristãos uma cons-
tante. O equilíbrio das prestações representa
3. Idade Média – séculos XII e XIII
corolário necessário da justiça contratual.
Após o período romano de iniciação Foram os tribunais eclesiásticos que,
estrutural, a cláusula foi esquecida du- sempre dispostos a favorecer as soluções
rante longas décadas, retornando com os de equidade, aplicaram nos contratos
canonistas medievais, que, sendo legítimos sucessivos a doutrina da mudança das cir-
representantes do cristianismo, não podiam cunstâncias, por considerarem contrário à
suportar a concepção de que o contrato moral cristã o enriquecimento de um dos
valia apenas pela sua forma, nada signifi- contratantes às custas do outro.
cando a vontade. Foi então que tivemos os As novas ideias tinham o apoio de Santo
Agostinho (Sermões ao povo, Sermão 133),
lo prueba, que si el poseedor de la herencia pagase Santo Tomás de Aquino (Suma Theológi-
creyendo que es heredero, no se libra el heredero; lo ca), Santo Ambrosio, Santo Antonino de
cual se dice porque el que dá en su nombre la cantidad
que no debe, la puede repetir. § 3. El que prometió un
Florença e Graciano (Decretum Gratiani).
siervo, si diese aquel á quien se le dejó la libertad bajo Os canonistas medievais (FONSECA, 1943,
de condición, tengo por mas probable que no se há de p. 194), apoiados por Graciano e Santo
esperar á que se verifique la condición, sino que puede Tomás de Aquino, nos séculos XII e XIII,
pedir el acreedor, y le compete condiction, pero si en el
interin faltase la condiction, se libra del mismo modo
imaginaram como estando subentendida
que si alguno, pendiente la condición, paga por error, y em todos os contratos a cláusula pela qual
antes de usar da condiction, se verificase la condición. os contratantes se obrigavam a executar o
Pero no se puede decir de modo alguno que si muerto ajuste somente desde que subsistissem, até
Estico faltase la condición, se libra el deudor, aunque
si viviendo él faltase, se libraria, cuando en este caso
o fim, as condições econômicas existentes
en tiempo alguno hicieses el siervo perfectamente mío, ao tempo de sua celebração.
no siendo asi, será lo mismo que si me entregases el Entretanto, com os pós-glosadores (séc.
siervo del cual no tienes el usufruto, y muriese antes XIV a XVI) e com a escola de Bolonha, é que
que este se extinguiese, te parecerá que te libraste de
la obligación por esta paga; lo que de modo alguno se
foi erigida de maneira mais clara e precisa
há de decir: del mismo modo que si dieses el siervo uma doutrina geral sobre a cláusula. Como
común, y muriese. § 4. Si alguno fué fiador del que representantes de uma época posterior do
estuvo ausente por causa de la república, y volvió á pensamento temos Bartolo, Baldo, Alciato,
ella, de cuja acción se livró, y después pasase un año,
acaso se librará el fiador? Juliano decia, que no: lo que
Graciano, entre outros.
es cierto, si no pudo pedir el fiador. Pero en este caso Finalmente, o entendimento da promes-
por el edicto se debe restituir la acción contra el mismo sa projetada no futuro e na dependência do
fiador, el mismo modo que contra el fiador que dió status quo que até então era regra moral,
muerte al siervo prometido. § 5. El que fué tu fiador
para con Ticio, dió prenda por su obligación: después
converter-se-ia em regra jurídica, quando
te instituyó heredero él mismo: aunque no estés obli- Graciano, monge e professor de direito
gado por causa de la fianza, esto no obstante, quedara da Escola de Bolonha, tornou pública sua
obligada la prenda. Pero si el mismo diese otro fiador, coleção de leis – as Decretais ou Decretas
y de este modo te instituyese heredero, dice, que mas
bien se há de juzgar que, disuelta la obligación de aquel
Gratiani (1141 a 1155) –, uma das princi-
á quien se fió, se librará también el fiador”. (CUERPO pais fontes do Corpus Canonici e nas quais
DEL DERECHO CIVIL I, 1874, p. 1046) à cláusula foi reservada atenção especial.

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Também Bartolo (1314-1357) contribuiu na completa obscuridade, banindo-se
com a doutrina, uma vez que a ele se atribui significativamente das codificações e das
famosa fórmula3 propagada através dos construções doutrinárias de então.
séculos, que Africano escrevera no Livro Nas relações particulares, a cláusula foi
7 de seu Quaestionum e fora recolhida no sendo afastada pelo liberalismo do século
texto citado do Digesto. XIX; o Código Civil Francês e outras leis
É indiscutível que os pós-glosadores nele inspiradas se desenvolveram impreg-
aplicaram a cláusula e que o seu emprego nadas nas ideias de liberdade, de força
na prática forense era habitual, mesmo vinculatória para as partes, e de longevi-
carecendo esta de conteúdo definido. A dade, não permitindo sequer a menção do
cláusula era, porém, aplicada desorde- princípio exonerativo.
nadamente. Não havia, ainda, fixação de Esse foi o período do liberalismo, no
seu conteúdo, gerando possíveis abusos qual valia o que estava escrito, por com-
de aplicação. Movido ou não por uma preensão de que os homens eram livres e
reação contra o mau emprego da cláusula, iguais entre si, quando na realidade eles
Alciato (1482-1550) construiu a primeira não eram tão iguais assim. Aquela época
determinação teórica sobre o assunto. A foi marcada pela estabilidade econômica,
construção doutrinária de Alciato assinala logo os contratos livremente pactuados
o início do período áureo da cláusula que, vincularam as partes por longos anos,
dos fins do século XVI aos do século XVIII, permitindo o desenvolvimento econômico
foi objeto de uma copiosa literatura com a equilibrado e seguro. Assim, como resposta
qual ficou em definitivo fixada a sua pre- à não necessidade, a teoria exonerativa foi
cisão doutrinária. ignorada por doutrinadores como Pothier,
A cláusula foi, entretanto, esquecida Laurent, Demelombe, Cujas, Domat, Tro-
uma vez mais devido ao aparecimento da plong, entre outros.
teoria nominalista, da pacta sunt servanta, e Mesmo assim, foi, ainda no fim do séc.
da autonomia da vontade. XVIII, admitida em alguns dispositivos
legais como o Código Bávaro de 1756 e o
Landrecht prussiano de 1794. A primeira
4. Idade Moderna
edificação legislativa explícita do princípio
Desde o começo da Idade Moderna, exonerativo surgiu no Código Bávaro, deno-
foi a cláusula perdendo progressivamente minado Codes Maximilianeus bavaricus civilis.
seu vigor, sobretudo a partir do séc. XVIII, Publicado em 1956, esse corpo legislativo
com o florescimento das ideias individua- abrigou todos os costumes locais não sendo
listas, sofrendo severas restrições, afogada aplicável, porém, na totalidade do território.
que se encontrava pelo grande princípio Ao código bávaro seguiu-se o Landrecht
da autonomia da vontade. Ao chamado Prussiano cuja data, 1774 para uns autores,
“mundo da segurança”, do fim do séc. XIX, 1794 para outros, é irrelevante. Com efeito,
corresponderá um Estado mantenedor das só há interesse em conhecer que há um de
regras do jogo de negócios privados cujo seus dispositivos, no qual se estipula não
conteúdo cabia às partes contratantes, ex- poder ser recusado por mudança de cir-
clusivamente, preencher. cunstâncias o cumprimento de um contrato,
Assim, a cláusula ficou esquecida até exceto no caso de efetiva impossibilidade.
os últimos anos do século XIX, jazendo A conflagração mundial de 1914, alte-
rando profundamente o ritmo dos negó-
Cláusula Rebus sic stantibus – abreviação da
3

fórmula: Contractus que habent tractum sucessivum et


cios, ensejou instante propício a longa e
dependentiam de futuro, rebus sic stantibus intelliguntur. diuturna aplicação da cláusula, tanto mais
(FONSECA, 1943, p. 14) que admitidos os seus princípios básicos

10 Revista de Informação Legislativa


em textos legais de países, onde mesmo, principal da Revolução Francesa, deu lugar
como na França, sempre fora repudiada às ideias solidárias, reverenciando o grupo,
pela doutrina. e que não mais valorizava ao extremo a
figura única e ímpar do indivíduo isolada-
mente. Foi por essa razão que o princípio
5. Idade Contemporânea – Estado Social
pacta sunt servanda voltou a perder seu ca-
No fim do séc. XIX e começo do século ráter absoluto que, outrora, no século XVIII,
XX, em virtude das guerras, revoluções e materializara-se no Código de Napoleão.
mudanças súbitas das condições sociais e Exaltaram-se as noções de segurança, equi-
econômicas, produziram-se grandes dese- líbrio e estabilidade, que se materializavam
quilíbrios, impossibilitando em múltiplas na rigidez contratual.
ocasiões o cumprimento das cláusulas Nos novos tempos, não podia ficar o con-
obrigacionais pactuadas no ante-guerra. trato indiferente aos anseios da justiça comu-
Assim, a esquecida revisionabilidade que tativa, que buscava a distribuição harmônica
outrora fora relegada ao abandono volta, e dos bens na sociedade. A teoria da cláusula
paira sobre as relações. rebus sic stantibus foi reavivada, saindo das
O alvorecer do séc. XX altera os insti- sombras do esquecimento e ocupando posi-
tutos jurídicos concebidos para o liberalis- ção iluminada na doutrina jurídica.
mo. Dos escombros da 1a Grande Guerra, Pretendia-se, com tal cláusula, a inser-
ponto culminante da longa sucessão de ção nas convenções de princípio implícito,
crises econômicas e sociais, renasceria um segundo o qual, a obrigatoriedade do cum-
Direito interessado nos efeitos sociais dos primento das obrigações, consagrada pelo
contratos, antes que, somente, na sua estru- princípio romano pacta sunt servanda, condi-
tura formal. É a falência do individualismo cionava-se à manutenção das circunstâncias
jurídico, substituído, mediante portentosa imperantes quando da contratação. Escapu-
legislação extraordinária ou especial, por lindo, assim, da esfera da exigibilidade do
uma generalizada socialização do Direito. credor, certas situações de inadimplência
Para atender a situações anormais e justificadas pela alteração, sem culpa do de-
graves, foram adotadas leis especiais, entre vedor, das condições fáticas asseguradoras
as quais se citam como exemplos as leis do do cumprimento da obrigação pactuada.
inquilinato francesa, italiana e inglesa, que Daí a cláusula em apreço, literalmente
congelaram alugueres e prorrogaram coer- traduzida por “estando assim as coisas”,
citivamente contratos de locação, depaupe- condiciona a execução das obrigações à
rando a autonomia da vontade das partes. manutenção do status quo da época da
Dentro desse contexto, o Direito brasilei- contratação.
ro sofre também transformações, resguar- Retoma o revisionismo contratual sua
dando assim fins contratuais mais sociais, importância e com ele seus requisitos
abandonando o voluntarismo. Vale-se o ampliam-se, tornando-se um elemento
Direito de numerosos mecanismos, entre coadjuvante à paz social.
eles, a reedição, sob fundamentações as Assim, foi conferida à cláusula rebus sic
mais diversas, da cláusula rebus sic stantibus, stantibus roupagem nova, apesar de não
rebatizada com a pouco elegante expressão ter havido, propriamente, radical refor-
“teoria da imprevisão ou superveniência”. mulação.
Todo esse processo de transformação
tem profunda repercussão na Teoria dos
6. Revisionistas e antirrevisionistas
Contratos.
Com o desenvolvimento histórico, o Para verificar-se qual é a posição da
homem entendeu que o liberalismo, ideal cláusula rebus sic stantibus no direito bra-

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sileiro, é necessário analisar os três setores laissez-passer. Assim sendo, não havia preo-
da atividade construtiva de nossa cultura cupação com o problema da imprevisão.
jurídica, ou seja, estudar a doutrina, a le- Segundo Francisco Campos (1956, p. 6):
gislação e a jurisprudência. “O direito civil moderno, legislado todo
Se está fora de dúvida que, seguindo ele para uma fase de relativa estabilidade
o mutismo da época, os nossos civilistas política e econômica, para um mundo an-
do passado ignoraram, deliberadamente terior às grandes revoluções técnicas que
ou não, a cláusula rebus sic stantibus, certo tornaram ainda os povos mais afastados
também é que esta passou a ter um estudo do globo vizinhos e solidários do ponto de
consciente e frutificante nas letras jurídicas vista político e econômico, e, além disso,
nacionais, sobretudo a partir da segunda inspirado no dogma de mais absoluta li-
vintena deste século (SIDOU, 1984, p. 78). berdade contratual ao serviço do egoísmo
Podem-se detectar três correntes de individual nas competições econômicas,
opinião na doutrina brasileira: a dos an- pôde, durante largo período de tempo,
tirrevisionistas, a dos revisionistas e a dos graças, exatamente à pequena amplitu-
moderados. de e à reduzida duração e profundidade
A primeira é fruto da posição doutri- das perturbações políticas e econômicas,
nária de juristas como Castro Magalhães, manter a rigidez da concepção romana
Orozimbo Nonato, Carvalho Santos, Pontes do contrato.”
de Miranda e outros. Por razões idênticas O Código de 1916 foi duro nas disposi-
ou diferentes raciocínios, esses juristas ções que tratam da execução das obrigações
acabaram por reforçar o pensamento do contratuais não possuindo regras específi-
francês Ripert que não admitia a revisão ou cas relativas à imprevisão, orientado que foi
resolução do contrato pela superveniência por princípios individualistas. Mas também
de circunstância imprevista. Na mesma não assimilou, ipsis verbis, o princípio por
direção, Pontes de Miranda, inarredável força do qual o contrato é lei entre as partes.
quanto a “quem contrata deve acarretar Assim, verificamos que o código não se
com as conseqüências das mudanças opõe expressamente à cláusula.
desfavoráveis das circunstâncias, como se O sistema jurídico brasileiro aceitava
aproveitaria das mudanças favoráveis”. a cláusula, mas não havia uma só norma
Adeptos da tese revisionista, vários no Código Civil de 16 que literalmente a
autores se posicionavam de forma favorá- consagrasse.
vel em nosso Direito, podendo ser citados Havia, entretanto, disposições que aco-
como exemplos Artur Rocha em 1932 e lhiam o sentido da mesma. Essas, não eram
Abgar Soriano em 1940. raras, devendo-se registrar principalmente
No que tange à corrente moderada, des- leis extravagantes, cujo texto é evidente
ponta Arnoldo Medeiros da Fonseca. homologação à doutrina da cláusula.
O Código Civil não foi, portanto, ex-
pressamente favorável à imprevisão, mas
7. O Código Civil de 1916
a legislação extravagante posterior à crise
O Código Civil de 1916 foi um código econômica dos anos de 1930 veio a atender
liberal. Surgiu numa sociedade de nível às novas situações. Sendo, pois, criadas
econômico pouco adiantado que ainda ig- medidas de emergência4.
norava a questão social e vivia um mundo
estável, com moeda firme, em que os contra- 4
Assim, por exemplo, a primeira disposição legal a
se referir à cláusula rebus sic stantibus na sua exposição
tos não deveriam sofrer maiores alterações
de motivos foi o Decreto 19.573, de 07.01.1937, que
independentemente da vontade das partes. permitiu a rescisão da locação do funcionário público
Era o mundo dos fisiocratas, do Laissez-faire, civil ou militar, no caso de remoção ou redução dos seus

12 Revista de Informação Legislativa


Diante da legislação especial posterior Anteprojeto do Código de Obrigações
ao Código de 16, a nossa doutrina e a juris- de 1941:
prudência brasileira têm considerado que é “Art. 322. Quando, por força de
aplicável no Brasil a teoria da imprevisão. acontecimentos excepcionais e im-
Assim, enraizada nos princípios gerais previstos ao tempo da conclusão
do Direito, é irrelevante a circunstância de do ato, opõe-se ao cumprimento
um determinado Código Civil (como é o exato esta dificuldade extrema, com
caso do Código de 16) não ter contemplado, prejuízo exorbitante para uma das
em texto expresso, a teoria da imprevisão partes, pode o juiz, a requerimento
(THEODORO JÚNIOR, 1993, p. 153). do interessado e considerando com
equanimidade a situação dos contra-
8. Anteprojeto do Código de Obrigações tantes, modificar o cumprimento da
obrigação, prorrogando-lhe o termo
A teoria da imprevisão sempre foi
ou reduzindo-lhe a importância.”
atual, tanto que a sua existência no direito
A imprevisão, segundo o Anteprojeto
brasileiro como princípio geral deduzido
do Código das Obrigações, consiste no
das normas já existentes fez com que o
desequilíbrio das prestações recíprocas
Código de Obrigações expressamente a
nos contratos de prestações sucessivas ou
ela se referisse.
diferidas, em consequência de aconteci-
Efetivamente, o anteprojeto que mere-
mentos ulteriores à formação do contrato,
ceu aplausos dentro e fora do país permitiu
independentemente da vontade das partes,
a revisão judicial do contrato em casos
de tal forma extraordinários e anormais que
excepcionais, considerando a teoria da
impossível se tornara prevê-los razoável e
imprevisão uma conquista definitiva do
antecedentemente.
direito moderno, embora em verdade se
São acontecimentos supervenientes que
esteja apenas ressuscitando velha e conhe-
alteram profundamente a economia do con-
cida cláusula rebus sic stantibus, em tempos
idos considerada implícita nos contratos de imóveis destinados a fins comerciais e industriais. Pode-
execução retardada. Foi elaborado por três mos dizer que os princípios dessa lei por si só importam
juristas: Orozimbo Nonato, Philadelpho na aceitação da cláusula. Trata-se efetivamente da reno-
vação judicial do contrato de locação em que, não ha-
Azevedo e Hahnemann Guimarães.
vendo acordo das partes, nem motivo considerado justo
pela lei para que não seja renovado o contrato, o juiz
vencimentos, em virtude das modificações decorrentes
da Revolução de 1930. É interessante notar que a expo- fixa novo aluguel, desde que o locatário preencha certos
sição de motivos considera a hipótese como verdadeira requisitos. Nessa lei, o artigo no 31 consagra a teoria da
força maior e esclarece que a lei não vem restringir o imprevisão de modo mais explícito preceituando: “Se
direito de propriedade, mas obedece a um alto pen- em virtude da modificação das condições econômicas
samento de equidade, que o direito moderno acolhe, do lugar, o valor locativo fixado pelo contrato amigável,
subordinando, cada vez mais, a exigibilidade de certas ou em conseqüência das obrigações estatuídas pela pre-
obrigações à regra rebus sic stantibus. Posteriormente, o sente lei, sofrer variações além de 20% das estimativas
Decreto 23.501 de 27.01.1933, que impôs a nulidade da feitas, poderão os contratantes, findo o prazo de três
cláusula ouro, importou em nova intervenção do Estado anos do início da prorrogação do contrato, promover a
e limitação da autonomia da vontade dos contratantes. revisão do preço estipulado”. Admite-se, pois, assim,
Os trabalhos preparatórios desse decreto revelam aliás havendo modificação das condições econômicas, a
que o legislador entendeu ser o seu dever intervir nos revisão, após três anos das locações em que haja fundo
contratos sempre que o interesse social viesse a exigi-lo. de comércio. A atual legislação locativa (Lei 8245/91)
Embora tal decreto não tivesse consagrado a cláusula contempla duas hipóteses revisionistas: a prevista no
rebus sic stantibus, reconheceu a licitude da intervenção artigo 4, parágrafo único, que assegura ao locatário
estatal nos contratos, mesmo quando em oposição às – empregado transferido por ato do empregador –, o
cláusulas contratuais. Outro diploma legal importante direito de realizar a denúncia ante tempus do contrato,
com referência à teoria da imprevisão é a chamada Lei com a isenção da multa contratual e aquela estabelecida
de Luvas (Decreto 24.150 de 20.04.1939) que previu e no artigo 19 que assegura o direito de revisão do aluguel
regulamentou a renovação dos contratos de locação de após decorrido o prazo de três anos.

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 13


trato, de tal forma perturbando o seu equilí- Constituem elementos básicos desse
brio como inicialmente estava fixado, que se Anteprojeto:
torna certo que as partes jamais contratariam “a) aplicação somente aos contratos
se pudessem ter antevisto esses fatos. de execução diferida ou sucessiva;
Se, em tais circunstâncias, o contrato b) onerosidade da prestação capaz
fosse mantido, redundaria num enrique- de gerar grande prejuízo para a parte
cimento anormal em benefício do credor, obrigada e, reversivamente, lucro
determinando um empobrecimento da exagerado para a parte credora;
mesma natureza em relação ao devedor. c) resolução do contrato decretada
Consequentemente, a imprevisão tende a pelo juiz, como princípio, admitida a
alterar ou a excluir a força obrigatória dos revisão do esquema por iniciativa do
contratos. réu, dentro do prazo de contestação,
Em 1963, ocorreu a segunda tentativa de face ao que o contrato poderá conti-
reforma do Código, cabendo a Caio Mário nuar os respectivos efeitos;
da Silva Pereira a tarefa de elaborar novo d) exclusão dos contratos aleatórios e
Anteprojeto de Código de Obrigações, os de execução momentânea;
que também não entrou em vigor, mas e) inaplicação aos contratos unilate-
que assim se pronunciava a respeito do rais, cabendo entretanto ao juiz, em
revisionismo: seguimento ao mesmo mecanismo
Anteprojeto do Código de Obrigações processual, reduzir a prestação one-
de 1965 rosa, quando unilateral”. (SIDOU,
“Art. 358. Nos contratos de execução 1984. p. 102)
diferida ou sucessiva, quando, por O anteprojeto apresentou intuitos reso-
força de acontecimento excepcional e lutórios, mais que revisionistas.
imprevisto ao tempo de sua celebra-
ção, a prestação de uma das partes
9. O Código Civil de 2002 e o
venha a tornar-se excessivamente
onerosa, capaz de gerar para ela
Código do Consumidor
grande prejuízo e para a outra parte Na década de 70, surge novo Anteproje-
lucro exagerado, pode o Juiz, a re- to do Código Civil, da lavra dos Professores
querimento do interessado, declarar José Carlos Moreira Alves, Agostinho de
a resolução do contrato. Arruda Alvim, Sylvio Marcondes, Ebert
A sentença, então proferida, retrotrai- Chamoun, Clóvis do Couto e Silva e Tor-
rá os seus efeitos à data da citação da quato Castro, sob a supervisão de Miguel
outra parte. Reale. Depois da tramitação natural de uma
Art. 359. A resolução do contrato po- obra desse vulto e importância, o trabalho
derá ser evitada, oferecendo-se o réu, transformou-se no Projeto de Lei n. 634, de
dentro do prazo de contestação, a mo- 1975, que findou no Código Civil de 2002.
dificar com equanimidade o esquema O novo Código, consubstanciando uma
de cumprimento do contrato. tendência e atendendo à realidade socio-
Art. 360. Aos contratos aleatórios não econômica, norteia a revisão das regras
tem aplicação a faculdade de resolu- nos contratos e a garantia de sua execução
ção por onerosidade excessiva. equitativa, bem como elenca regras sobre
Art. 361. Não se dará, igualmente, a resolução dos negócios em virtude da
esta resolução nos contratos em que onerosidade excessiva, dando-lhes estrutu-
uma só das partes tenha assumido ra e finalidade sociais. Desta feita, o texto
obrigação, limitando-se o Juiz, nesse permite tanto o reajustamento do contrato
caso, a reduzir-lhe a prestação.” como a sua resolução por via judicial, no

14 Revista de Informação Legislativa


caso de agravamento extraordinário da analisar a teoria da onerosidade excessiva
onerosidade da prestação de uma das par- nos parâmetros do Código de Proteção e
tes, com extrema vantagem para a outra, em Defesa do Consumidor5 (Lei 8078/90), e
virtude de acontecimento imprevisível. embora o Código não faça referência ter-
O Código concretiza, pois, no nosso minológica alguma à teoria da imprevisão,
entender, a teoria de imprevisão, nos se- não podemos deixar de considerar que dela
guintes termos: em nada se afasta.
“Art. 477. Nos contratos de execução Diferente é a posição do CDC que, mais
continuada ou diferida, se a prestação de uma década antes, traz, sim, um insti-
de uma das partes se tornar exces- tuto revisional e não resolutório em sua
sivamente onerosa, com extrema essência, sendo inclusive mais amplo que
vantagem para a outra, em virtude a imprevisão e que, no nosso entender, não
de acontecimentos extraordinários deve sequer ser analisado no âmbito central
e imprevisíveis, poderá o devedor da imprevisibilidade.
pedir a resolução do contrato. O CDC rompe com a tradição do direito
Os efeitos da sentença, que a decretar, privado, cujas bases estavam assentadas
retroagirão à data da citação. no liberalismo que reinava na época das
Art. 478. A resolução poderá ser grandes codificações europeias do séc. XIX,
evitada, oferecendo-se o réu a mo- para relativizar o princípio da intangilibili-
dificar eqüitativamente as condições dade do conteúdo dos contratos, alterando
do contrato. sobremodo a regra milenar expressa pelo
Art. 479. Se no contrato as obrigações brocardo pacta sunt servanda, e para enfati-
couberem a apenas uma das partes, zar o princípio da conservação do contrato.
poderá ela pleitear que a sua pres- (NERY JÚNIOR, 1998, p. 345)
tação seja reduzida, ou alterado o A proteção contratual no CDC está
modo de executá-la, a fim de evitar baseada nos princípios da transparência,
a onerosidade excessiva”. da boa-fé, da equidade. As partes devem
Miguel Reale, na exposição de motivos atuar na relação com sinceridade, lealdade,
do anteprojeto dirigida ao Ministro da seriedade e veracidade, devendo haver
Justiça, justificou a teoria como sendo um equilíbrio nas prestações, respeitando-se o
dos tantos exemplos de atendimento da princípio da equivalência contratual.
socialidade do direito, que tem por objetivo No capítulo correspondente à matéria, o
imbuir nos contratos estrutura e função CDC trata da possibilidade da revisão das
social. Assim, a teoria seria um instrumento cláusulas contratuais diante da onerosidade
representativo do social no ordenamento. excessiva decorrente de fatos supervenien-
As condições para a aplicação da teoria tes. A onerosidade excessiva é um dos
são: elementos considerados como requisito
a) Ser o contrato de execução continuada fundamental para a aplicação da teoria de
ou diferida; imprevisão e agora, ao que parece, é tratada
b) A prestação de uma das partes se individualmente, dissociada desta.
tornar excessivamente onerosa em benefí- Há visivelmente um ponto de similitude
cio da outra; que se origina a partir deste requisito, pois
c) Essa situação ter decorrido de aconte- se almeja, em ambas situações, proteger o
cimento extraordinário e imprevisível; contratante diante do agravamento pecu-
d) A resolução será sempre por sentença niário de sua obrigação, ou seja, diante da
judicial. onerosidade excessiva. E também é per-
Embora a denominação dada pelo Có- 5
De ora em diante, por brevidade, referido apenas
digo Civil ao instituto tenda a nos levar a como CDC ou Código do Consumidor.

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 15


ceptível que a onerosidade excessiva, em As causas supervenientes – entendidas
ambos casos, é qualificada, ou seja, vem como aquelas ocorridas após a celebração do
acrescida de algum outro requisito. pacto – situadas fora das estipulações con-
O que se questiona, entretanto, é saber tratuais podem causar quebra do equilíbrio
se o CDC, ao tratar da onerosidade exces- contratual inicialmente estabelecido entre as
siva, simplesmente consagra a teoria da partes, interferindo de tal forma, que podem
imprevisão, carente de preceitos legais, ou ocasionar a quebra da comutatividade.
dispõe sobre um novo instituto com alcance Assim, em virtude desses fatos superve-
mais amplo que teve apenas inspiração na nientes, o CDC aceitou, como fundamento
imprevisão? para a revisão das cláusulas contratuais, a
Dispõe o CDC no art. 6, V, ser direito onerosidade excessiva decorrente da super-
básico do consumidor: “revisão em razão veniência de fatos que tiveram lugar após
de fatos supervenientes que as tornem a conclusão do contrato.
excessivamente onerosas”. Também é necessário diferenciar a super-
O dispositivo supra, sem dúvida, é um veniência da imprevisibilidade. O CDC exige
dos primeiros mandamentos no sentido de que os fatos sejam supervenientes, mas não
restabelecer o equilíbrio contratual, permi- que sejam imprevisíveis. Logo, mesmo sendo
tindo a revisão contratual que foi alterada previsível o fato, a sua superveniência, alia-
em decorrência de fato superveniente que da à quase impraticabilidade da prestação,
tornou excessivamente onerosas as presta- permite a revisão do contrato para adequá-lo
ções devidas pelo consumidor. ao que foi avençado pelas partes.
A essência do instituto é a mesma da Conforme o artigo, a onerosidade ex-
teoria da imprevisão, qual seja, a tangibili- cessiva que fundamenta a revisão requer
dade contratual. Por isso é que chegam até apenas a presença de um acontecimento
a confundir-se. superveniente, que provoque a alteração
Da necessidade de evitar essa confusão radical das condições econômicas nas quais
nasce a importância da análise de seus re- o contrato foi celebrado, não fazendo refe-
quisitos, pois ali encontraremos as proprie- rência alguma a previsibilidade ou não do
dades específicas de cada um, que levam a fato, requisito necessário para aplicação da
sua distinção. teoria da imprevisão.
As primeiras considerações devem Em síntese, a tangibilidade contratual,
recair na análise de superveniência. Ao fundada na onerosidade excessiva, é con-
normatizar a possibilidade de revisão do sequência apenas de fatos ulteriores à con-
conteúdo contratual, o legislador do CDC tratação, isentos de quaisquer qualificações.
exigiu que a alteração do ambiente, na épo- Mister não é, portanto, nem a imprevisibili-
ca da execução do contrato, seja decorrente dade nem o nexo causal entre a onerosidade
de fatos supervenientes. excessiva e os fatos supervenientes.
Trata-se de segurança à circunstância A onerosidade excessiva disposta no CDC
de que a mesma situação fática que se pode, portanto, na verdade, compreender
apresentava no momento da contratação fato superveniente ensejador da aplicação da
deverá ser mantida até o término do pacto, teoria, porém seu campo de aplicação é muito
ou seja, é contemplada a base da teoria da mais vasto, uma vez que pode comportar
imprevisão ou a rebus sic stantibus. tanto a imprevisão como a previsão.
Os contratantes vinculam-se à situação Outra diferença que deve ser bem com-
existente no momento da contratação e o preendida quando da análise dos institutos
que foi contratado está a salvo de qual- é a que existe entre a desproporção e a
quer fato superveniente e alheio a sua onerosidade excessiva. O inciso V assegura
vontade. ao consumidor o direito de postular a modi-

16 Revista de Informação Legislativa


ficação de cláusulas contratuais que impor- A teoria da imprevisão visa reajustar as
tem em prestações desproporcionais. prestações de modo que possibilite o adim-
Sem embargo da omissão da lei, parece- plemento de maneira suportável, evitando
nos que a prestação a que esteja contratu- o descumprimento contratual.
almente obrigado o consumidor se torna Os fatos supervenientes podem até
desproporcional quando não está em cor- ser previsíveis, contanto que sejam in-
respondência com o real valor do produto calculáveis e configurem álea econômica
ou do serviço. extraordinária.
Será desproporcional a prestação que Não sendo possível a repactuação por
inclua percentual relativo à inflação bem mútuo consenso ao atingido pela onerosida-
acima da taxa oficial, ou preveja taxa de de excessiva, só resta a alternativa de buscar
juros muito além do nível fixado em lei. judicialmente a tutela do seu direito.
Será prestação desproporcional a que leve A possibilidade de revisão contratual
a um total várias vezes superior ao valor por desequilíbrio total da equação econômi-
do produto ou do serviço. ca estabelecida pelos contratantes é ponto
Traduzindo-se a desproporcionalidade pacífico na doutrina e na jurisprudência
à linguagem monetária, verificamos que brasileiras. O direito prevê a possibilidade
significa um aumento exagerado do valor de o prejudicado com as modificações ajui-
da obrigação. O aumento exagerado do zar ação visando reequilibrar a obrigação.
valor pecuniário da prestação devida é, por- Poderá então o juiz acolher o pedido e al-
tanto, elemento essencial para o exercício terar o conteúdo do contrato, restaurando
do direito de revisão contratual. o equilíbrio desfeito.
Desnecessárias são maiores observações Um último ponto que merece destaque
acerca do desequilíbrio contratual como é o relativo ao campo de aplicação e aos
requisito, pois implícito se encontra na efeitos da imprevisão e da teoria da onero-
onerosidade excessiva. sidade excessiva do CDC. Assim como na
Evidente é constatar que, se há um teoria da imprevisão, a alterabilidade só
aumento excessivo para uma das partes, pode ocorrer quando se tratar de contratos
não é uma situação gratuita, desprovida de comutativos de execução periódica e nos
encargos e gravames, que desequilibram a de execução única, mas diferida. Contudo,
equivalência do pacto, posto que nenhum a aplicação dos dispositivos consumeristas
ser normal e em sã consciência se obriga restringe-se à revisão do conteúdo contratu-
além de suas possibilidades. al, excluindo a possibilidade de resolução.
Ainda devemos observar que as altera- Concluímos, pois, que o CDC ampliou o
ções supervenientes devem ser de um porte campo de aplicação da onerosidade excessi-
que escapem à álea que está normalmente va, a partir do momento em que restringiu
presente em qualquer negócio jurídico. certos requisitos, porém limitou os efeitos
O que ocorre é uma quebra da comuta- à revisão. E mais, o recurso revisional é
tividade do contrato. As prestações perdem um permissivo unilateral, pois apenas o
a equivalência que ambas as partes tinham consumidor pode dele se beneficiar, não se
em mente no início e que foi determinante estendendo o direito ao fornecedor porque
para a formação da relação jurídica. a lei assim dispôs.
Necessário é o real desequilíbrio das
partes, não configurando apenas a difi-
10. Conclusões
culdade no adimplemento, visto que todo
contrato que não seja aleatório tem uma Não obstante a incerteza relativa ao mo-
margem de ganho e perda em razão do mento da origem da ideia da revisão contra-
momento em que foi celebrado. tual, é fato que, já no Código de Hamurabi,

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 17


há 2300 anos a.C., havia previsões relativas relação contratual. Revista dos Tribunais, v. 670, ano
à alteração do conteúdo dos contratos, 80, ago. 1991.
caso houvesse modificação das condições CUERPO DEL DERECHO CIVIL I. Tomo primero que
iniciais que estimularam o acordo. comprende las Instituciones de Justiniano y el Digesto
É também indiscutível que a trajetória o Pandectas, vertidas al español por el licenciado D.
Bartolomé Rodriguez de Fonseca y parte por el letrado
histórica da cláusula é bastante acidentada
D. José Maria Ortega. Barcelona: Establecimiento Tipo-
ao longo dos tempos. gráfico de Narciso Ramirez y Compañia, 1874.
No Brasil, o Código Civil de 1916 não
FONSECA, Arnoldo Medeiros de. Caso fortuito e
positivou a revisão contratual, o que só
teoria da imprevisão. 2 ed. Rio de Janeiro: Imprensa
foi possível em decorrência do trabalho da Nacional, 1943.
jurisprudência.
GUEIROS, Nehemias. A justiça comutativa no direito
O Código de 2002, imbuído de novos
das obrigações. Recife: Officinas Graphicas do Jornal
princípios, trouxe de forma explícita a do Commercio, 1940.
revisão contratual, mas não a identificou
JOSSERAND, Louis. Derecho civil: teoria general de
claramente como imprevisão, no que pode
las obligaciones. Revisado e completado por André
ser confundida com a revisão contratual Brun. Tomo 2, v. 1. Buenos Aires: Bosch y Cia. Edi-
do CDC, possível em função da teoria da tores, 1950.
onerosidade excessiva.
JUNGMANN, Renato. A superveniência de aconteci-
Assim, temos que os contornos da im- mento imprevisível como causa da revisão dos con-
previsão, trazidos pela codificação civil, são tratos. Revista da ordem dos Advogados de Pernambuco,
distintos dos da teoria de onerosidade exces- Recife, 5-6-7, p. 129-155, 1964.
siva elencados no código do consumidor. LARENZ, Karl. Derecho de obligaciones. Traducción
A teoria de onerosidade excessiva é um de Jaime Santos Briz. Madrid: Editorial Revista de
instrumento mais amplo que a imprevisão, Derecho Privado, 1958.
e que com ela não se confunde, coadunan-
______. Base del negocio jurídico y cumplimiento de los
do, contudo, com os novos paradigmas contratos. Traducción de Carlos Rodrigues. Madrid:
contratuais, mas estando restrita à seara Editorial Revista de Derecho Privado, 1956.
consumerista.
LEITE, Gonçalo Rollemberg. O contrato e a teoria da
imprevisão. Revista da Faculdade de Direito de Sergipe,
Aracajú ano 2, n. 2, p. 51-97, 1954.
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reito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial, São Paulo, NERY JÚNIOR, Nelson et al. Código brasileiro de defesa
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CAVALCANTI, Francisco de Queiroz Bezerra. Notas Générale de Droit et de Jurisprudence, 1952.
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______; RIPERT, Jorge. Tratado práctico de derecho civil
Advogados de Pernambuco, Recife, ano 22, v. 22, n. 81 –
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del Dr. Mario Diaz Cruz com la colaboración del Dr.
COSTA, Judite H. Martins. A teoria da imprevisão e Eduardo Le Riverend Brusone. Tomo 6, Cultural S.
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18 Revista de Informação Legislativa


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Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos S.A, 1962. Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial, ano 19, n. 74,
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Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 19


O Brasil como cliente do sistema de
solução de controvérsias da OMC

Jorge Fontoura

La solidarité c’est la façon la


plus inteligente de l’ égoïsme
André Malraux

Entre as variadas visões que se tem


do Brasil no imaginário europeu, há o
recorrente estereótipo do país no qual os
sentimentos prevalecem sobre a razão.
Pode soar belo como poesia, porém, como
economia, é péssimo. Crê-se também ser
o Brasil um país de paradoxos, o que, ao
contrário da primeira imagem, é verdade
inconteste.
Bem a propósito de tais devaneios,
quando consideramos a perspectiva do
Brasil como ator global, de imediato nos
encontramos em face de imenso paradoxo,
desdobrado em dilema de personalidade.
Na qualidade de ator global, opõem-se dois
Brasis inconciliáveis, tanto nas negociações
diplomáticas quanto nos árduos caminhos
da inserção internacional: o país tido como
rico entre os países pobres e pobre entre
aqueles ricos.
No que concerne ao tema do presente ar-
tigo, tal paradoxo de personalidade ganha
contornos precisos, a considerar a leitura
irretorquível dos números. E os números
Jorge Fontoura, doutor em direito, membro- não são opiniões: posto que não participe-
consultor do Conselho Federal da OAB, é profes- mos, senão com cerca de um por cento do
sor titular do Instituto Rio Branco e professor do comércio internacional, somos dos mais
programa de doutorado do UniCEUB. importantes clientes do Sistema de Solução
Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 21
de Controvérsias da Organização Mundial sa, em sua participação comercial. Desde
do Comércio, em Genebra. Estamos em logo, pode-se auferir que o país dispõe de
número de casos atrás tão-somente dos economia versátil e de grande vitalidade,
Estados Unidos, da União Europeia, com absolutamente competitiva, e em plenas
suas vinte e sete soberanias, e do Canadá. condições de fazer face ao enfrentamento
Partícipes diretos, como demandantes político e jurídico que a inserção inter-
ou demandados, em trinta e oito casos, nacional requer. Afinal, na rationale do
empatamos com a Índia, porém somos mais grande mercado, para entrar é necessário
pró-ativos, pois atuamos como propositores conflitar, ainda que pelos meandros sutis
de panels em número maior de demandas. da controvérsia comercial internacional. Di-
Assim, o Brasil aparece na qualidade de versificada em variado leque de categorias,
primeiro em meio aos países em desenvol- desde as mais previsíveis commodities até
vimento. Como autores, desde o início do produtos industriais de alto valor agrega-
primeiro caso, WT/DS 4, de abril de 1995, já do, a pauta brasileira de comércio exterior
temos agregada bastante experiência, com vai literalmente do aço às aeronaves. Ao
24 contenciosos. Fomos demandados em 14 considerarmos o conteúdo da agenda de
casos, não só por países industrializados, contenciosos em Genebra, realizamos de
como Estados Unidos, Canadá e Japão, bem imediato o caráter variegado e abrangente
como por países de economias emergentes, das postulações, com todas as conclusões
como Filipinas (consulta referente a coco que se podem formular. Lidamos com
ralado, WT/DS 22) e Índia (consulta refe- commodities, como era de se esperar, mas
rente a direito antidumping sobre sacos de também conflitamos no caudaloso setor de
juta, WT/DS 229), em que não se chegou a agroalimentação. E vamos além, no domí-
solicitar, todavia, a abertura de panel. Em nio seletivo de contraditórios industriais e
um balanço eloquente per se, o Brasil atuou, de produtos de alto valor agregado, como
diretamente ou como terceira parte, em 87 se afigurou o emblemático caso de conces-
feitos, em um rol de 399 notificados à OMC são de subsídios estatais à fabricação de avi-
desde sua instalação em 1995. Para efeitos ões de transporte de passageiros de médio
de comparação, cumpre verificar os núme- porte, envolvendo as empresas brasileira
ros totais de casos dos membros mais ativos e canadense, respectivamente, Embraer e
no sistema de solução de controvérsias da Bombardier, casos Aeronaves WT/DS 46,
OMC: os Estados Unidos participaram di- DS70 e DS222, Canadá versus Brasil e Brasil
retamente em 199 casos; as Comunidades vs. Canadá, devido à representação diplo-
Europeias, por sua Comissão, em 146 casos; mática que vige no sistema OMC, em que
e o Canadá, bem mais abaixo, apresenta Estados subrogam-se nos eventuais direitos
47 casos. Podemos verificar que, além das de seus jurisdicionados.
controvérsias envolvendo diretamente o De fato, a OMC só concebe legitimidade
Brasil, como reclamante ou reclamado, te- ad causam para Estados, conforme ocorre
mos interesses em algumas disputas entre no estrito âmbito do direito internacional
outros países. Em alguns casos, esse inte- público, a cercear a possibilidade de indi-
resse se concretiza com a participação do víduos, de empresas ou de organizações
Brasil no contencioso em vestes de terceira não-governamentais nela demandar in
parte, atualmente em expressiva ocorrência pectore. Não obstante sejam as contendas
de quase meia centena de casos. comerciais comumente entre empresas e
Há na leitura desses números parado- não entre Estados, vigora, por conseguinte,
xais, no entanto, fiel projeção do que seja a prática da representação diplomática, na
o Brasil de tantas nuanças, como realidade qual os Estados, sujeitos plenos de direito
fragmentada e como potencialidade difu- internacional, representam seus jurisdicio-

22 Revista de Informação Legislativa


nados. A aceitação, ainda que isolada, de como a questão das “bananas”, Comunida-
parecer (amicus curiae) de organização não- des Europeias – Bananas, WT/DS27.
governamental, no caso Estados Unidos da Outro fator causador da peculiar posi-
América versus República de Camarões, ção do Brasil na cena comercial internacio-
WT/DS58, tem ensejado uma série de pro- nal diria respeito à competitividade das ex-
cedentes críticas, tendo em vista sua notável portações, malgrado os fatores tidos como
impropriedade, em face da natureza de empecilhos para melhor inserção interna-
que devem ser possuidores os partícipes cional e acesso a novos mercados. Entre tais
formais das relações jurídicas encetadas fatores, arrolam-se a insegurança jurídica
perante o macro fórum genebrino. e a decantada ineficiência estatal latina
É importante observar que, além de geradora de formidáveis obstáculos físicos
Estados, apenas blocos econômicos com e entraves burocráticos ao livre comércio e
personalidade jurídica podem litigar. Vale aos investimentos. Não há como deixar de
dizer, zonas de livre comércio, sem políti- considerar que o breve percurso histórico
ca externa comum, como o NAFTA, não que permite afirmar ser o Brasil um país
disporiam de legitimatio ad causam perante bem posicionado como contendor interna-
o sistema de solução de controvérsias da cional deve-se mais ao esforço isolado de
OMC. As Comunidades Europeias dis- instituições e de funcionários abnegados do
põem da específica faculdade de agir, por que à iniciativa metódica e ordenada, com
serem portadoras de personalidade jurídica qualidade e eficiência. Tampouco à orga-
internacional, conforme se reconhece aos nização setorial dos agentes econômicos
blocos econômicos que sejam minimamente envolvidos nos contenciosos, tanto na OMC
uniões aduaneiras, perfeitas ou não, com quanto no MERCOSUL. A atuação pontual
razoável coordenação de política comer- de setores, provendo meios hábeis a dar
cial e macroeconômica, e política externa sustentação às ingentes necessidades das
integrada. Vale salientar ser o MERCOSUL, atuações técnicas em contenciosos, ainda
formalmente, pessoa jurídica de direito que verificadas em alguns casos, não pode
público externo, conforme consignado no ser tomada como regra.
art. 30 do Protocolo de Ouro Preto, de 17 Malgrado todas as situações adversas,
de dezembro de 1994. Tal personalidade as expressivas vitórias que o Brasil tem
jurídica exerceu-se em seguidas oportuni- conquistado demonstram que o comércio
dades, como no Tratado de Madri, de 17 de internacional vem vivenciando, de fato,
dezembro de 1995, celebrado entre o bloco clima de “adensamento de juridicidade”,
sul-americano e a Comissão Europeia, em na expressão consagrada de Celso Lafer,
nome de suas Comunidades. Logo, em tese, com manifesta prevalência de aspectos
nada impediria litigância em bloco por jurídicos sobre aqueles políticos, afastando-
parte do MERCOSUL em fóruns comerciais se a deletéria ideia de ser a OMC mero
internacionais, desde que alcançadas as ci- clube de ricos, em detrimento de países
tadas coordenações ademais de conjunções emergentes, mantenedora de privilégios
de vontades políticas, o que corresponde a e de distorções imemoriais do comércio
atributo de inexcedível importância, ainda internacional, como OMC-Organization
não devidamente valorizado e observado Mondiale du Caviar, na blague consagrada
pelos “sócios de Assunção”. No que con- pelos seus críticos.
cerne ao bloco europeu, tem-se verificado Da mesma forma, vencemos controvér-
efetiva atuação coletiva das Comunidades sia sobre produção açucareira contra as
Europeias, protagonistas de casos de gran- Comunidades Europeias, caso WT/DS 266,
de relevância e abrangência, alguns em contra quem também obtivemos sucesso, no
oposição aos Estados Unidos da América, caso WT/DS 269, que implicava restrições

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 23


de Bruxelas às carnes de frango cortadas e Embora o Brasil tenha muito a fazer
salgadas, produto dos mais concorrenciais pela sua inserção na economia global, o
de nossa pauta de exportações. Ainda acachapante contraste entre nossa mínima
como exemplo recente, temos o sucesso participação no comércio externo e a ingen-
brasileiro no contencioso comercial contra te atuação nas disputas da OMC mostram,
os Estados Unidos, sobre produção algo- com clareza didática, quão grande são as
doeira, caso WT/DS 267, com importantes potencialidades e responsabilidades do
consequências para países em via de desen- país, a par de outros desafios que têm sido
volvimento, muitos deles beneficiários de assumidos. Com efeito, a primeira página
novas políticas a serem constritivamente do Financial Times, de 26 de junho de 2001,
observadas pelos países desenvolvidos ou traz com grande destaque a foto do então
de industrialização acentuada. Embaixador brasileiro José Alfredo Graça
Com todos os limites que costumam Lima, falando a jornalistas na OMC, após a
eivar as instituições humanas, e com todas desistência norte-americana do contencioso
as injunções que se verificam a partir do com o Brasil, em função de patentes de re-
fisiologismo das instâncias de poder, a médios destinados ao tratamento da AIDS.
OMC é, de fato, significativo momento de Tanto a manchete da matéria quanto o texto
imposição de potestas jurídica, obrigando em si não deixam dúvida quanto às dificul-
os países, na expressão de Delmas Marty, dades que têm sido enfrentadas pelo Brasil
a pluralismo jurídico ordenado (In: Le Droit na macropolítica comercial internacional:
Internationale en Devenir. Éssais Écrits au “US RETREAT DEALS FRESH SETBACK
Fil des Ans. Paris: Presses Universitaires TO DRUGS GROUPS”. E prossegue, em
de France, 1990). Dispondo de aparato texto de aberturta da matéria: The USA
virtualmente cogente e sugestivamente government yesterday dropped its complaint
sancional, sem ser impositivo consoante a against Brazil’s patent law at the World Trade
forma clássica de Municipal Law, o modelo Organization, dealing a fresh blow to the posi-
OMC é inovador na gestão e pacificação tion of leading pharmaceutical companies in the
de conflitos comerciais. Em lugar do tradi- developing world.
cional direito de coordenação das relações Com longo caminho a percorrer, o
de Direito Internacional Público, surge Brasil deverá assimilar rapidamente as
um direito metavinculante, ou, mais pro- necessidades ditadas pelo fortalecimento
priamente, de voluntarismo subordinado, da competitividade de qualquer Nação
em que, na ausência da pacificação pelos com aspirações de crescimento e de desen-
meios político-diplomáticos convencionais, volvimento. Com relevo no que tange ao
busca-se a construção do consenso com conhecimento, à informação, à inovação,
base em relatório jurídico sancionador, à agilidade e à qualidade de produção. A
que comina obrigação de cumprimento a Embraer, notabilizada nos contraditórios
quem violou o direito e possibilidade de da OMC, é exemplo poderoso do que se
retaliação em caso de descumprimento. De pode fazer: a mais bem sucedida empresa
natureza impositiva sob condição, sempre subtropical no processo de integração às ca-
declaratório e eventualmente constitutivo, deias produtivas desenvolve tecnologia, in-
o relatório só não será implementado me- terpreta de forma expedita as necessidades
diante querer consensual de todos os mem- do mercado mundial, assegurando bilhões
bros da Organização, a partir da inventiva de dólares em sua carteira de encomendas
fórmula do consenso invertido, adotado já firmes, destinadas a dezenas de países, dos
na constituição da prestigiosa organização mais diversos continentes.
multilateral, em 1994, na célebre conferên- A natureza não dá saltos. O bom desem-
cia do Marrocos. penho brasileiro em suas postulações junto

24 Revista de Informação Legislativa


à OMC não é de geração espontânea, mas Presidente da CNI em seu artigo que, se
fruto de consequente esforço de instituições o Brasil quiser e puder pensar estrategi-
governamentais e de seus funcionários, alia- camente, deverá reavaliar suas posições,
das à produção acadêmica das melhores. buscando desenvolver plano de ação para
No plano político, vale relevar que os dois que o país aperfeiçoe seu desempenho em
últimos Ministros de Relações Exteriores setores tradicionais de seu parque produ-
do Brasil, embora partícipes de governos tivo, desbravando novas áreas promissoras
antagônicos, Celso Lafer e Celso Amorim, nas quais pode ser muito competitivo.
são profundos conhecedores e estudiosos A mais importante disputa dos últimos
dos meandros da OMC, junto à qual foram anos foi certamente a arbitragem pelo
atores diplomáticos importantes. Ainda no artigo 22.6 do Entendimento Relativo às
plano político, é de destacar-se a atuação do Regras e Procedimentos para Solução de
Itamaraty, que criou em 2002 uma Coorde- Controvérsias da OMC no “caso do algo-
nação Geral de Contenciosos, chefiada, com dão”, solicitada pelos EUA após o Brasil ter
continuidade e eficiência, por experimenta- pedido que o Órgão de Solução de Contro-
dos partícipes em litigâncias internacionais. vérsias da OMC autorizasse a suspensão
Ademais disso, o Ministério de Relações de concessões ou dispusesse de outras
Exteriores do Brasil dispõe de massa crítica liberalidades compensatórias. De fato, o
acadêmica das mais competentes, a partir Brasil solicitou autorização para “retaliar”
de consistente trabalho realizado ao largo os EUA em cerca de US$ 2.6 bilhões, valor
dos anos no Departamento de Direito In- que inclui tanto os subsídios acionáveis
ternacional da Universidade de São Paulo, (Marketing Loan e countercyclical payments)
no qual têm atuado importantes figuras do como os subsídios proibidos, na forma de
universo jurídico brasileiro e internacional. garantias de crédito à exportação.
É exemplo-mor de tais estivas a laureada Como os EUA objetaram esse pedido,
atuação profissional de Luiz Olavo Bap- um painel de arbitragem foi composto com
tista (vários anos membro e presidente do vistas a definir o valor das contramedidas
Órgão de Apelação da OMC), frutificada a serem autorizadas. Em 31 de agosto de
no trabalho de inúmeros alunos, que, após 2009, laudo arbitral estipulou o valor da
a Academia, acabaram por se consagrar retaliação à qual tem direito o Brasil (cerca
como importantes estudiosos do comércio de US$ 300 milhões) por conta do continu-
internacional e de seus meandros, reco- ado descumprimento dos EUA, ademais de
nhecidos como autoridades mundiais em autorizar a chamada “retaliação cruzada”,
OMC, como Victor do Prado, na direção da a ser aplicada em propriedade intelectual
OMC na Suíça, Maristela Basso e Welber ou serviços. Trata-se de um dos casos mais
Barral, no Brasil, e Elizabeth Accioly, em complexos em que o Brasil não só partici-
Portugal. pou como obteve vitória contundente no
Armando Monteiro Neto, como Pre- sistema OMC. O valor arbitrado, referen-
sidente da Confederação Nacional da ciado ao ano de 2006, quando atualizado
Indústria, CNI, sempre enfatizou em seus para 2009, pode fazer chegar o valor a cerca
artigos e conferências que o Brasil ainda se de US$ 800 milhões, o segundo maior em
apoia muito em seu mercado interno, não toda a história da OMC. Quanto à cross-
investindo na especialização propiciada retaliation, sabe-se que, em princípio, as
pelo comércio externo. E, ainda, os níveis contramedidas devem dar-se geralmente
médios de educação podem melhorar no mesmo setor da disputa original (bens),
muito, bem como as taxas de poupança, embora o Brasil tenha sinalizado, já no
com o realinhamento das altas taxas de pedido de 2005, no caso do algodão, não
intermediação financeira. Alude ainda o considerar prático ou eficaz retaliar ape-

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 25


nas dessa forma. Pleiteou o Brasil, assim, contra os subsídios agrícolas estaduniden-
autorização para retaliar em propriedade ses. Trata-se do caso DS365, no momento
intelectual e serviços, o que redundaria em suspenso e ainda não retomado. Há, ainda,
resultados bem mais significativos. Após as outros casos em que o Brasil atua como
autorizações concedidas pelos árbitros nos terceira parte e que estão na perspectiva
casos Bananas (Equador versus CE) e Jogos mais imediata das atenções do MRE, como
de Azar (Antigua e Barbuda vs. EUA) para o caso da China contra os EUA sobre me-
retaliação no setor de propriedade intelec- didas que dificultam as exportações de
tual – autorizações que, na prática, nunca frangos e do Canadá contra a Coreia por
chegaram a ser aplicadas –, cabe agora ao medidas sanitárias contra a importação de
Brasil, sob critérios mais estritos impostos carne de gado.
pelos árbitros, advogar permissão para Por derradeiro, mas não com menor im-
efetuar a “retaliação cruzada”. Iniciado portância, vale referir o caso que tem como
com consultas, em setembro de 2002, o em- contendores EUA e CE e cujo objeto da
blemático caso algodão, sete anos depois, disputa são os subsídios à indústria aero-
chegou a sua fase derradeira, quando se náutica (Boeing vs. Airbus) – aqui também
verificará, finalmente, se os longos e cus- somos terceiros interessados, o que pode ter
tosos anos de complexo litígio, conduzido implicações diretas também nos negócios
com brilhantismo pelo Itamaraty, redun- conduzidos pela Embraer.
darão em benefício concreto ao país e ao Quanto a casos ainda virtuais, o Brasil
setor cotonicultor afetado, quer seja por preparou estudos sobre a possibilidade de
cumprimento norte-americano mediante questionamento da sobretarifa estaduni-
eliminação dos subsídios proibidos ou pela dense à importação de etanol. Aparente-
remoção dos efeitos adversos dos subsídios mente, continuam a ser feitas gestões nos
acionáveis, o que é improvável, quer seja níveis comerciais e político, de modo a
pela aplicação de retaliação. buscar uma diminuição ou eliminação da
Outro tema da ordem do dia, por assim tarifa. Nesse mesmo espectro, medidas co-
dizer, recém-encaminhado por decisão da munitário-europeias e suíças, que impõem
justiça brasileira, refere-se ao rumoroso critérios ambientais e laborais à importação
caso da importação de pneumáticos re- de etanol, também estão sendo estudadas
moldados. Graças à decisão do Supremo com cura pelo governo brasileiro.
Tribunal Federal, STF, que julgou improce- Tudo isso mostra que a agenda de
dentes as liminares concedidas permissivas contenciosos do Brasil está andando em
de importação de pneus usados, e também ritmo regular, sem vinculação direta ou
à proibição da importação de pneus nas proporcional, até agora, com as dificul-
mesmas condições provenientes dos países dades enfrentadas nas frustradas nego-
do MERCOSUL, pôde o Brasil, em 25 de ciações de Doha. Ainda é cedo para dizer
setembro de 2008, notificar ao órgão de que o retardo nas negociações venham a
Solução de Controvérsias da OMC o cabal desencadear mais painéis. Por um lado,
cumprimento da decisão nesse caso, que podem-se esperar mais pressões dos setores
fora favorável ao Brasil no aspecto ambien- atingidos para que se abram painéis e que
tal, mas desfavorável no que tange à dis- casos que estavam “na gaveta”, vinculados
criminação das importações comunitárias ao sucesso da rumorosa Rodada (como
perante as permitidas do MERCOSUL. questões referentes a algodão, bananas e
No que concerne a outros casos em antidumping), possam ser reabertos; por
andamento, Brasil e Canadá, tradicionais outro, a experiência acumulada pelo Brasil
contendores no macro foro comercial in- nos últimos anos também remete à cautela
ternacional, atuam desta feita lado a lado, e a um cuidadoso estudo acerca da viabili-

26 Revista de Informação Legislativa


dade de novos painéis, em especial diante é forma indevida de tratar-se uma disputa
da recalcitrância dos EUA em curvar-se comercial entre Estados amigos, por mais
sem tergiversações às decisões da instância árdua que ela seja. Nesse passo, cita-se o
máxima do contencioso comercial inter- exemplo da relação bilateral das mais con-
nacional. Sabe-se que, embora o sistema solidadas entre Canadá e Estados Unidos,
de solução de controvérsias da OMC já não isenta de duríssimos embates comer-
possa se estimar indene a críticas quanto ciais, não comprometedores de alianças po-
à sua eficácia, é preciso sempre considerar líticas e formidáveis interações econômicas.
o custo/benefício das demandas, mercê A visão deturpada de conflitos comerciais
de seus altos custos e de seus resultados pode residualmente contaminar o caráter
distendidos no tempo. De forma geral, a amistoso que deve presidir e conformar as
cautela preside a decisão em ir-se ou não relações internacionais de todos os matizes.
à OMC, não apenas para o Brasil, mas em Quanto à específica clivagem da atuação
relação a todos os demais partícipes. do Brasil junto ao Órgão de Solução de
Resta enfatizar ao fim e ao cabo a natu- Controvérsias da OMC, deve-se verificar
reza salutar dos diferendos comerciais que em conclusão ser o país portador de plenas
hoje polulam entre países. Só povos amigos condições para prosseguir em sua breve e
praticam comércio e não há conflitos comer- exitosa trajetória de contendor comercial
ciais sem comércio ou potencial comércio. internacional, a estreitar sua integração
Logo, a expressão “guerra comercial”, tão ao mundo, para exercer o papel que lhe é
cara aos meios jornalísticos e congressuais, destinado na economia mundial.

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O Brasil é dualista?
Anotações sobre a vigência de normas internacionais no
ordenamento brasileiro

André Lipp Pinto Basto Lupi

Sumário
1. Introdução. 2. A doutrina brasileira e o
enquadramento da prática nacional entre o
monismo e o dualismo. 3. O “debate originário”
sobre dualismo e monismo. 4. O marco inicial da
vigência do tratado internacional. 4.1. Vigência
de tratados no ordenamento brasileiro. 4.2.
Acordos executivos. 4.3. O costume. 5. A norma
internalizada e os fatos internacionais posterio-
res à sua vigência. 5.1. Efeitos da denúncia sobre
o tratado vigente internamente. 5.2. A vigência
internacional do tratado para outro Estado Parte.
5.3. Acordos cuja vigência está subordinada à
observância da reciprocidade. 6. Conclusões.

1. Introdução
Tema dos mais constantes na lista das
publicações brasileiras sobre Direito Inter-
nacional, a relação do Direito Internacional
com o Direito Interno provoca distintos
debates, teóricos e práticos. Quanto à te-
oria, uma análise da doutrina evidencia
séria discordância entre os autores, cujas
leituras dos textos clássicos sobre o assunto
André Lipp Pinto Basto Lupi é Professor de nem sempre são convergentes. No mais das
Direito Internacional da Universidade do Vale vezes, esse desafino dá-se no plano descri-
do Itajaí (programas de Mestrado em Ciência tivo; são tentativas distintas de classificar
Jurídica, graduação em Direito e graduação em as posturas adotadas pela nossa legislação
Relações Internacionais). Doutor em Direito
e jurisprudência. À moda dos debates
Internacional pela Faculdade de Direito da Uni-
versidade de São Paulo, com estágio doutoral no doutrinários, dois rótulos identificam as po-
Institut Universitaire de Hautes Études Internatio- sições em oposição: dualismo e monismo.
nales de Genebra. Bacharel e Mestre em Direito No curso dos anos, essas fórmulas foram
pela Universidade Federal de Santa Catarina. modificadas, relativizadas, modalizadas.

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 29


Surgiram expressões como “monismo Deve-se fazer algumas ressalvas antes
moderado” e “dualismo radical”, dentre de adentrar no tema específico. Este tra-
outras. O aprofundamento da análise re- balho se insere num conjunto maior de
vela, porém, um conjunto tão variado de pesquisas sobre o tema das relações entre o
situações práticas e soluções jurídicas em Direito Internacional e o Direito brasileiro.
cada Estado que mesmo essas modalizações Foram reservados para outros relatos al-
parecem tornar-se pouco úteis, pois elas guns problemas conexos ao aqui abordado,
simplificam excessivamente o problema. como, por exemplo, o da processualística
Esta é razão de muitos para condenar ao de internalização e o da hierarquia das
ostracismo tais expressões, preferindo abor- normas internacionais. Este artigo enfatiza
dar o tema de modo mais pragmático. Não as questões relativas à vigência, entendida
obstante, elas permanecem no repertório esta como o aspecto temporal da validade
linguístico dos jusinternacionalistas e, com e condição de aplicação da norma (Cf.
isso, compõem a sua forma de compreender SERRANO, 1999; FERRAZ JR. 2001). Prio-
a realidade normativa que lhes incumbe riza, como objeto de análise, as posições
descrever e sistematizar.1 Destarte, parece do Poder Judiciário, embora preocupe-se
interessante rever esse debate doutrinário à igualmente com manifestações dos outros
luz da indagação sobre sua aplicabilidade à poderes e da doutrina.
posição prevalecente na jurisprudência dos
tribunais brasileiros.
2. A doutrina brasileira e o
A intenção deste artigo é a de responder
à questão do seu título. Para tanto, o primei- enquadramento da prática nacional
ro tópico apresenta as variações nas classifi- entre o monismo e o dualismo
cações doutrinárias, que justificam a eleição A doutrina brasileira esforça-se se-
do problema central deste trabalho. No guidamente para classificar a orientação
passo subsequente, explica-se o dualismo, preponderante das autoridades judiciárias,
na sua versão clássica, tal como defendida legislativas e executivas do País. Os autores
por Triepel, Santi Romano e Anzilotti. Para buscam apoio no texto constitucional, que
melhor visualização das distâncias perante pouco fala sobre as relações entre o Direito
a corrente adversária, incluiu-se uma breve Internacional e o Direito brasileiro. Seguem
explicação do monismo kelseniano. Delimi- seu curso pincelando alguns dispositivos
tada a expressão-chave desta investigação, da legislação nacional e buscando noutros
verifica-se, a seguir, a correspondência dos autores do passado e nalguma casuística re-
postulados do dualismo com as posições cente os elementos que eles tentarão ordenar
adotadas pelos tribunais pátrios. Tópicos pela referência ao dualismo ou monismo.
consecutivos apresentam a análise do mo- Francisco Rezek (2005, p. 5) afirma
mento de entrada em vigor e dos eventos nortear-se o Judiciário brasileiro pela ideia
que afetam a vigência da norma internacio- do “monismo nacionalista”, segundo o
nal, em particular a suspensão, a denúncia qual é no texto da Constituição que se deve
e a revogação do tratado. buscar o “exato grau de prestígio a ser
atribuído às normas internacionais escritas
1
Como exemplo da atualidade do debate entre
monismo e dualismo, pode-se citar a crítica desenvol- e costumeiras.”2
vida por um dos principais autores de Direito Interna- Em oposição, Celso de Mello (2000, p.
cional dos EUA, à jurisprudência da Suprema Corte 119) dizia que o Brasil era, ao menos em
daquele país: HENKIN (1997,p. 515-518); também
parte, dualista. Segundo ele:
pode-se citar o relato do maior projeto de pesquisa
em andamento sobre a matéria: FOOTER (2001, p. 249-
252); bem como os trabalhos da INTERNATIONAL 2
O autor deixou clara, em outras obras, sua aver-
LAW ASSOCIATION (1998, p. 659-683). são a essa posição: REZEK (1997, p. 54-59.

30 Revista de Informação Legislativa


“A Constituição Federal de 1988 ado- salta aos olhos. Tem-se a impressão de que o
ta o dualismo ao fazer a incorporação debate entre monismo e dualismo no Brasil
do Direito Internacional no Direito desprendeu-se das questões que lhe deram
Interno, pelo menos em um setor origem. Por conta da elevada importância
determinado, ao estabelecer que os prática do problema das antinomias, quis-se
direitos do homem consagrados em desenvolver argumentos a partir daquelas
tratados internacionais fazem parte posições teóricas para enfrentar o tema do
do Direito Interno.” conflito entre norma internacional e norma
Carlos Husek (2007, p. 31) anota a exis- interna. O distanciamento do problema
tência de certa oscilação. Para ele, originário permitiu novas matizações dos
“em determinadas matérias somos conceitos, criando novas oposições e dando-
monistas, em outras nem tanto e ain- lhes novas feições. Não há nada a lamentar
da sobram aquelas que nos firmamos aqui, nem se prega a nostalgia das obras dos
pelo dualismo. Algo nos parece certo, grandes autores do Direito Internacional
pelo menos numa primeira análise: do século XX. Mesmo assim, dificilmente
não somos monistas com primazia se poderá encontrar alguma base segura
na ordem interna.” fora das raízes desse debate, nas obras de
Em livro monográfico sobre o assunto, Triepel, Anzillotti, Santi Romano e Kelsen.
Mariângela Ariosi (2000, p. 211) afirma A eles convém retornar brevemente, pelo
adotar-se aqui o “monismo moderado que a isso se dedica o próximo tópico.
nas questões de conflito entre tratado e lei
interna”. Para ela, há também certa flutu-
ação, porém entre outras duas categorias:
3. O “debate originário”
monismo radical e moderado. O primeiro sobre dualismo e monismo
seria aquele em que tem primazia o Direi- A discussão central deste artigo tem
to Internacional; o segundo resolveria as suas raízes no famoso livro de Carl Hein-
antinomias entre normas internacionais e rich Triepel, Völkerrecht und Landesrecht
nacionais pela aplicação do princípio lex (1899). Muitos anos depois, esse trabalho
posteriori derogat priori, ou seja, conferiria foi objeto de uma revisão e apresentação
paridade hierárquia aos tratados em relação resumida perante a Academia de Haia.
às leis internas. (Idem) Triepel defende o voluntarismo e o dualis-
Boa parte da doutrina, porém, observa mo, baseado na teoria da vontade coletiva
com pesar a adoção que identifica como (Vereinbarung), inspirada por uma analogia
dualismo ou monismo nacionalista na a um instituto do Direito alemão. Para ele,
jurisprudência brasileira, defendendo a uma norma jurídica é sempre o conteúdo
mudança para o monismo com primazia de uma vontade superior que se impõe,
do Direito Internacional.3 com o efeito de limitar as esferas das von-
Na evidente incerteza relativa ao pró- tades humanas que lhe são submetidas.
prio significado das expressões emprega- No Direito Internacional, não podendo a
das, deve-se buscar conformar um acordo vontade de um obrigar vários, tem-se que
semântico para prosseguir nessa investi- a vontade fundamentadora das normas só
gação. Todos os autores citados conhecem pode ser uma união das vontades de cada
profundamente a prática de nossas autori- Estado, constituindo uma “Vereinbarung”,
dades e todos apoiam-se em boa doutrina união de vontades diferentes destinada
para categorizá-la. Contudo, a divergência a satisfazer interesses comuns (TRIEPEL,
3
Neste sentido: HUSEK (2007, p. 31); MELLO
1899, p. 50-79).
(2000, p. 118-120); LITRENTO (1997, p. 97-104); ARAÚ- A diferença no fundamento da obri-
JO (2000, p. 45-50). gação (vontade coletiva dos Estados ou

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 31


vontade de um Estado singular) implica vários dos seus argumentos estão atrelados
distinção de sistemas jurídicos, revelada a outros anteriores. Em uma brevíssima
nos seus principais aspectos: quanto aos síntese, lembra-se da pureza metodológica,
sujeitos, num caso os Estados, noutro os das relações de validade entre as normas,
poderes internos do Estado e as pessoas do necessário fundamento de validade de
sob sua jurisdição; quanto às fontes, trata- uma norma noutra norma, da remissão à
do e costume no Direito Internacional, leis norma fundamental e da estrutura escalo-
e costumes no Direito Interno; quanto às nada do ordenamento jurídico (KELSEN,
relações, entre Estados, ou entre o Estado e 1991). Dessas premissas aqui lembradas
seus cidadãos, ou dos cidadãos entre si. Em emergem os corolários constituintes do
fórmula sintética, afirma Triepel, Direito monismo kelseniano.
Internacional Público e Direito interno “são Como visto, a questão da separação ou
dois círculos em contato íntimo, mas que unidade das ordens jurídicas internacional
não se sobrepõem jamais.”4 Ilustra bem essa e interna depende, nesse debate clássico, da
posição a figura trazida por Bobbio (1999, resposta a outro problema fundamental:
p. 166), em sua teoria do ordenamento, de qual é o fundamento de obrigatoriedade de
dois conjuntos intocáveis, incomunicáveis, cada uma dessas ordens jurídicas? Também
caracterizando uma situação de exclusão por aqui começa Kelsen. Para ele, ambos os
total. sistemas têm a mesma norma fundamen-
As consequências práticas da tese du- tal. Portanto, compõem o mesmo sistema
alista são explicadas posteriormente por jurídico.
Triepel. Em primeiro lugar, não pode haver A relação entre o fundamento de vali-
nulidade da norma de Direito interno por dade da ordem jurídica estatal e da interna-
incompatibilidade com a norma de Direito cional passa pelo exame dos âmbitos de va-
Internacional, porquanto emanam de von- lidade do ordenamento interno. Quanto ao
tades diferentes e destinam-se a sujeitos âmbito territorial, o ordenamento interno é
diferentes. “A lei interna contrária ao Di- delimitado pelo Direito Internacional, que
reito Internacional vincula os sujeitos tanto reconhece e define o território do Estado e
quanto a lei conforme ao Direito Internacio- sua personalidade jurídica. Consequente-
nal”, assevera. Os juízes “são obrigados a mente, também é o Direito Internacional
aplicar o direito interno, mesmo contrário o definidor do alcance do ordenamento
ao Direito Internacional.”5 jurídico interno quanto às pessoas a quem
O dualismo teve Hans Kelsen como seu se dirige. Pelo princípio da efetividade, o
principal adversário.6 Em vários escritos, Direito Internacional encarrega-se ainda de
Kelsen contesta o dualismo, apontando o determinar a vigência do ordenamento jurí-
que considera serem inconsistências lógi- dico estatal, visto como um todo (KELSEN,
cas dessa teoria. Como se sabe, a obra de 1926, p. 249-262). Finalmente, quanto aos
Kelsen requer uma análise sistemática, pois conteúdos, o Direito Internacional limita a
produção normativa interna, impondo-lhe
4
No original: “le droit international public et le certas finalidades e proibindo certos conte-
droit interne sont... des systèmes juridiques distincts. údos (Idem, 1998). Desse modo, a própria
Ce sont deux cercles qui sont en contact intime, mais qui
ne se superposent jamais.” (TRIEPEL, 1923, p. 83).
existência do Estado define-se pelo Direito
5
Na língua original: “La loi interne contraire au Internacional e, portanto,
droit international lie les sujets autant que la loi confor- “a norma fundamental de diferentes
me au droit international.” Em seguida, “...les juges. Ils ordens estatais (...) é uma regra do
sont obligés d’appliquer le droit interne, même contrai-
re au droit international.” (TRIEPEL, 1923, p. 104).
Direito Internacional positivo, e uma
6
Os próprios dualistas assim o identificam. Vide, regra que, na sua fórmula abstrata,
a propósito, TRIEPEL (1923, p. 84-87). vale para todos os Estados, regra

32 Revista de Informação Legislativa


que institui as autoridades jurídicas podem não prever a necessidade de um
superiores e delimita a esfera de ação procedimento interno para a vigência da
de cada uma delas.”7 (KELSEN, 1926, norma no seu território. (Idem)
p. 314-317) Dionisio Anzilotti responde a Kelsen em
Em decorrência da unidade entre os dois seu próprio campo de combate. O italiano,
sistemas, a incompatibilidade da norma juiz da Corte Permanente de Justiça Interna-
interna com a internacional resulta numa cional, aceita parte das premissas kelsenia-
antinomia. Sua solução depende de uma nas. Cita Triepel, para dele discordar quanto
tomada de posição: a primazia do ordena- à tese da Vereinbarung, porque ela não resiste
mento internacional ou do ordenamento in- a um exame empírico mais rigoroso. Por
terno. Sabe-se que Kelsen (1926, p. 321-326) outro lado, reconhece que todas as normas
preferia a primeira, embora não julgasse jurídicas internacionais encontram guarida
ser a segunda impossível do ponto de vista sob o princípio pacta sunt servanda, pois o
lógico. Era politicamente indesejável, mas Direito Internacional deriva dos acordos
não cientificamente equivocada.8 Assumin- entre os Estados, expressos (tratados) ou
do a primazia do ordenamento internacio- tácitos (costume). Assim, embora comparti-
nal, a norma interna incompatível deve lhe postulados do voluntarismo dualista de
ser anulada por um órgão competente ou, Triepel, confere-lhes novas cores. O Direito
isto não sendo possível pela constituição Internacional tem sua unidade garantida
estatal, gerar-se-á uma violação do Direito pela derivação da obrigatoriedade de uma
Internacional e advirá a responsabilidade mesma norma fundamental. Porém, ao con-
do Estado, com aplicação das sanções cabí- trário de Kelsen, Anzilotti (1999, p. 41-48)
veis (KELSEN, 1926, p. 314-317). enuncia essa norma expressamente – pacta
Quanto à vigência, Kelsen afirma que não sunt servanda –, não obstante reconheça o
existe transformação necessária do Direito caráter não-empírico de sua proposição.
Internacional em Direito Interno. A norma O efeito disso sobre a discussão relativa
pode ser recebida intacta pelo ordenamento ao dualismo se sente no capítulo seguinte
interno. A vigência pode inclusive coincidir, do Curso do autor italiano. Ele propõe a
concedendo efeito direto às normas interna- questão em termos kelsenianos: reside a
cionais. Prova disso é que as constituições força do Direito numa ou em várias normas
fundamentais? Responde-a a seu próprio
7
O trecho, no original: “Ce qui est ainsi défini, modo, rejeitando Kelsen. O Direito Inter-
ce n’est pas seulement l’existence internationale ou nacional e o Direito interno têm normas
juridique de l’État; c’est encore – du point de vue de
la primauté du droit international – l’État en général,
fundamentais distintas. Ambas as ordens
c’est-à-dire la donnée fondamentale qui est à la base pressupõem uma à outra, mas as regras de
du système du droit interne en son entier. Mais alors, cada uma derivam sua validade de normas
on aperçoit également que la norme fondamentale fundamentais peculariares a cada sistema.
des différents ordes étatiques – qui, du point de
vue de la primauté de l’ordre étatique, apparaissait
A norma somente possui força jurídica na
comme une norme hypotéthique – est une règle du ordem à qual pertence. Para outra ordem
droit international positif, et une règle qui, dans sa ela pode ser, quando muito, um fato rele-
formule abstraite, vaut pour tous les États; règle qui en vante. (ANZILOTTI, 1999, p. 42-45)
institue les autorités juridiques supérieures et délimite
la sphère d’action de chacune.”
Como consequência, normas interna-
8
Nestas páginas, ele se refere à superioridade cionais são produzidas entre Estados para
moral do objetivismo, atrelado que está ao pacifismo e relações entre si, não interferindo na obri-
à negação do imperialismo. O objetivismo identifica-se gatoriedade das normas internas. A vigên-
com a primazia da ordem internacional e favorece o
desenvolvimento de uma civitas maxima, um Estado
cia e a validade de normas internacionais
universal, por ele qualificado como o objetivo último definem-se pelo Direito Internacional e a de
de todo esforço político. normas internas, pelo Direito Interno, não

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 33


obstante ser admissível que o legislador in- São instituições que diferem não só quanto
terno queira adotar mecanismos que façam às fontes, mas também por terem esferas
coincidir a validade e a vigência interna com de eficácia distintas. Tão forte assoma a
a internacional.9 Toda recepção de uma nor- dessemelhança que a separação é elevada
ma alheia ao sistema requer um ato de esta- à categoria de princípio fundamental. Há
belecimento de normas, uma transformação. mais: como ambos são originários, ainda
Mudam o valor formal, os destinatários e que um pressuponha o outro em certa me-
o conteúdo da norma (ANZILOTTI, 1999, dida, os dois ordenamentos, internacional
p. 62-63). Enfim, surge uma nova norma, e interno, podem cada qual negar valor
dentro do sistema que recepciona. E sua ao outro ordenamento. (ROMANO, 1939,
vigência e sua validade são determinadas p. 51)
conforme esse sistema. Isto caracteriza um As contradições entre ambos os orde-
importante ponto do dualismo. namentos podem existir na prática. Porém,
A seu próprio modo, Santi Romano para S. Romano (1939, p. 46),
sustentou também a tese dualista nas suas “esta contradição não retira eficácia a
principais obras na área, L’Ordinamento nenhum dos dois [ordenamentos] (...)
Giuridico (1918) e Corso di Diritto Interna- Desta forma pode acontecer que um
zionale (1939). Sua fundamentação, classi- Estado aja de um modo que poderá
ficada como antiformalista (NÓBREGA, ser legítimo pelo seu ordenamento,
2008), remete a outros pontos de partida. mas antijurídico pelo ordenamento
S. Romano parte da ideia de comunidade: internacional, e vice-versa: numa e
onde há comunidade organizada, existe na outra hipótese surgirão as res-
uma instituição. Um ordenamento existe ponsabilidades sancionadas no orde-
onde haja instituição e garantias para a namento violado, que assim poderá
ordem. O Direito Internacional, segundo manifestar a sua eficácia sem ter em
esse autor, somente pode derivar da comu- conta a ordem que o contraria.”10
nidade internacional, que não é formada Revistas, nesse panorama, as teorias que
exclusivamente por Estados, mas por todas originaram a cisão entre dualistas e monis-
as entidades aceitas pela própria comunida- tas, forjando, pelo contraste, a imagem de
de. Logo, mesmo com uma forma distinta cada qual, pode-se estabelecer, num esforço
dos ordenamentos estatais, há um Direito de síntese, que são postulados do dualismo,
Internacional (ROMANO, 1939, p. 1-11; com suas respectivas consequências: a) a
2008, p. 96-105). cisão rigorosa entre o Direito Internacio-
O dualismo encontra-se em Santi Ro- nal e o Direito Interno; b) a independência
mano como pedra angular de sua teoria, do momento inicial de vigência interna-
radicada na relação inextricável que esta- cional da norma internacional do marco
belece entre Direito e comunidade. Se vêm correspondente no ordenamento interno;
de comunidades diferentes, são direitos de c) a independência da vigência da norma
outras ordens. O Direito Internacional é o internalizada dos fatos transcorridos nas
Direito da comunidade internacional e o relações entre os Estados; d) a definição
Direito Interno o da comunidade estatal. da hierarquia da norma internacional no
9
No original, o trecho a que se refere é o seguinte: 10
No original: “Però questa contradizione non
“D’une manière analogue, les conditions de validité toglierà efficacia nè all’uno nè all’altro. (...) Cosicchè
et la durée des normes internationales dépendent può darsi che uno Stato agisca in un modo che potrà
exclusivement du droit international, et les conditions essere legittimo pel suo ordinamento, ma antigiuridico
de validité et la durée des normes internes dépendent pel l’ordinamento internazionale, e viceversa: nell’una
exclusivement du droit interne, même si les normes e nell’altra ipotesi sorgeranno le responsabilità sancite
internes trouvent leur occasion et leur raison d’être dall’ordinamento violato, che così potrà manifestare la
dans un rapport international”. (Idem, p. 56) sua efficacia senza tener conto di quello contrario.”

34 Revista de Informação Legislativa


plano interno pelo próprio ordenamento do O Congresso brasileiro não participa das
Estado; e) a divergência de norma interna negociações, nem mesmo pela via indireta
superior com norma internacional inferior de prefixação dos limites e objetivos do País
gera consequências apenas perante o Direi- numa determinada negociação. Até a assi-
to Internacional. natura, tudo cabe ao Presidente. Somente
A seguir, neste artigo, conforme a após a aposição da firma e a remessa do
delimitação acima exposta, explorar-se-á ato por mensagem presidencial, caberá ao
em profundidade o enquadramento da Congresso Nacional apreciar as obrigações
prática brasileira nas três primeiras dessas a serem contraídas. Esse passo está regula-
afirmações. do pelo artigo 49, I. Diz o dispositivo em
questão que o parlamento “resolve defini-
4. O marco inicial da vigência tivamente” sobre a aprovação de tratados,
do tratado internacional quando implicarem ônus ao patrimônio
nacional, mas silencia quanto aos efeitos
4.1. Vigência de tratados da aprovação congressional.13
no ordenamento brasileiro Não obstante autorizadas vozes em
A sistemática de internalização dos contrário,14 o entendimento prevalecente
tratados no Brasil segue um trâmite entende que o Congresso apenas aprova
constituído pela prática das autoridades o tratado, devolvendo a matéria ao Poder
nacionais, sob a pálida luz de alguns pou- Executivo, como, aliás, sói acontecer com
cos dispositivos constitucionais sobre o o processo legislativo ordinário. Os atos
assunto. Na Constituição vigente, são os definitivos concernentes à vigência do
artigos 49, inciso I, e 84, incisos VII e VIII, tratado incumbem ao Executivo, que o ra-
os que instruem sobre as competências do tifica no plano internacional e promulga-o
Presidente da República e do Congresso mediante Decreto Presidencial para que
Nacional na contração de obrigações inter- gere efeitos internamente.15 Os dois atos são
nacionais pelo País. Segundo se depreende perfeitamente distintos e não se afetam reci-
do artigo 84, a representação do Brasil nas procamente. Pode haver tratado ratificado
relações internacionais se faz pelo Presi- não promulgado. Nesta hipótese, o Brasil
dente, a quem incumbe negociar e assinar está obrigado perante os demais Estados
tratados.11 Obviamente, pode ele delegar Partes, se o tratado já viger também para
tais funções.12 eles, porém os juízes não podem aplicá-lo.
Há precedente jurisprudencial muito claro
11
O dispositivo citado tem a seguinte redação:
“Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da dente a possibilidade de delegação, seja pelo Direito
República: VII – manter relações com Estados estran- Internacional, na Convenção de Viena sobre Direito
geiros e acreditar seus representantes diplomáticos; dos Tratados de 1969, artigos 7o e 8o, seja pelo Direito
VIII – celebrar tratados, convenções e atos internacio- interno, em que se admite a competência derivada
nais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional.” dos ministros para exercer, por delegação, atos da
12
A questão se pôs na impetração de mandado de competência do Presidente. No caso do Ministro das
segurança por parlamentares contra a assinatura do Relações Exteriores, a autorização consta do Decreto
acordo de salvaguardas tecnológicas sobre o uso da no 2.246, de 6 de junho de 1997.
base de Alcântara pelo Ministro das Comunicações. 13
In verbis: “Art. 49. É da competência exclusiva
O STF não se pronunciou sobre a questão específica do Congresso Nacional: I – resolver definitivamente
da representação, posto que julgou haver ilegitimi- sobre tratados, acordos ou atos internacionais que
dade ativa dos impetrantes. STF. Medida Cautelar no acarretem encargos ou compromissos gravosos ao
Mandado de Segurança n. 23914/DF. Rel. Min. Maurício patrimônio nacional.”
Corrêa. Decisão de 08.05.2001. [Todas as referências 14
Para Paulo de Barros Carvalho (2008, p. 102-
à jurisprudência neste artigo valem-se das seguintes 117), o Decreto Legislativo introduz de pleno direito
abreviações dos nomes dos tribunais: STF – Supremo o tratado no ordenamento interno. Posição semelhante
Tribunal Federal; STJ – Superior Tribunal de Justiça; defendeu Magalhães (2000, p. 69-81).
TRF4 – Tribunal Regional da 4a Região]. Todavia, é evi- 15
Sobre o tema, vide MEDEIROS (1995).

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 35


a esse respeito, com endosso da doutrina16 trabalho. Primeiro, mostra que os tribunais
e da consultoria jurídica do Itamaraty ainda buscam orientação nas teorias dua-
(ACCIOLY, 2001, p. 219-223). Nessa célebre listas e monistas, embora preservem certa
decisão, o STF considerou que o Decreto liberdade para aplicá-las. Segundo, regis-
Legislativo não tem o condão de tornar vi- tra as tentativas de aduzir adjetivos para
gente um tratado no Brasil, o que só ocorre acrescentar premissas ou consequências
depois da promulgação e publicação do aos conceitos primários (v.g. “dualismo
Decreto Presidencial no Diário Oficial da extremado”). Terceiro, motivo pelo qual foi
União. Lê-se no acórdão: referida, nega vigência interna ao tratado
“Não obstante a controvérsia dou- antes de sua promulgação.
trinária em torno do monismo e do A hipótese inversa, de promulgação
dualismo tenha sido qualificada por do tratado antes da vigência internacio-
Charles Rousseau (Droit Internatio- nal, revela-se bastante remota. Faltar a
nal Public Approfondi, p. 3/16, 1958, promulgação depois da ratificação pode
Dalloz, Paris), no plano do direito ocorrer por lapsos no trâmite burocrático,
internacional público, como mera mas promulgar sem ratificar geraria uma
‘discussion d’école’, torna-se neces- ordem de execução de algo que ainda não
sário reconhecer que o mecanismo de existe. Ao menos é o que se conclui da lição
recepção, tal como disciplinado pela doutrinária pátria. No parecer de Accioly
Carta Política brasileira, constitui a (2001), a promulgação é
mais eloqüente atestação de que a “o ato jurídico, de natureza interna,
norma internacional não dispõe, por pelo qual o Governo de um Estado
autoridade própria, de exeqüibilida- afirma ou atesta a existência do trata-
de e de operatividade imediatas no do, com o preenchimento das forma-
âmbito interno, pois, para tornar-se lidades exigidas para sua conclusão,
eficaz e aplicável na esfera doméstica e ordena sua execução dentro dos
do Estado brasileiro, depende, essen- limites da competência estatal.”
cialmente, de um processo de integra- Mais adiante, reprisa as duas funções
ção normativa que se acha delineado, do ato sob comento, dizendo com ele se
em seus aspectos básicos, na própria pretender “certificar a existência do ato
Constituição da República. (...) Sob tal promulgado e determinar que o mesmo
perspectiva, o sistema constitucional seja cumprido”(Idem). Antes da vigência
brasileiro – que não exige a edição de internacional, o ato não é válido, incorren-
lei para efeito de incorporação do ato do a promulgação num erro quanto ao seu
internacional ao direito interno (visão pressuposto. Pela posição de Accioly, tal
dualista extremada) – satisfaz-se, ato seria próximo ao de sancionar uma lei
para efeito de executoriedade do- antes da aprovação do Senado. Assim, não
méstica dos tratados internacionais, obstante formule seu raciocínio com base
com a adoção de iter procedimental na clara distinção entre efeitos internos e
que compreende a aprovação con- internacionais do tratado, uma premissa
gressional e a promulgação executiva dualista, sua conclusão final faz crer que
do texto convencional (visão dualista a ratificação compõe o procedimento de
moderada).”17 internalização, tornando-o dependente
A argumentação acima transcrita com- daquela para sua adequada conclusão.
prova pontos importantes já trazidos neste No rigor do dualismo, deveria presu-
mir-se a geração de efeitos internos pela
Ver BAPTISTA (1996, p. 73).
16

STF. Carta Rogatória n. 8279-4. Relator. Min. Cel-


17 norma promulgada ainda não ratificada,
so de Mello. Diário da Justiça, 14.05.1998. p. 34. porquanto a ordem do Presidente da Re-

36 Revista de Informação Legislativa


pública contida no Decreto bastaria para prevalecente: a) os acordos, protocolos e
tanto, sem qualquer condição que a sus- ajustes que secundam tratados já aprova-
pendesse. Faltam neste ponto elementos da dos pelo Congresso Nacional; b) e os atos
prática governamental ou jurisprudencial da rotina diplomática. Mesmo neste último
que corroborem uma ou outra alternativa caso estará vedada a forma simplificada se
(a de aplicar-se o tratado internamente a execução do tratado demandar dotação
mesmo sem a ratificação, ou a contrária). orçamentária alheia àquela alocada às
De todo modo, se perante esta primeira relações exteriores ou gravame sobre bem
questão o dualismo parece enquadrar-se à público. Aduz-se que os atos devem ainda
prática brasileira, há outros pontos sobre ser reversíveis, isto é, que o Governo possa
a internalização que merecem cuidadosa desonerar o País de sua obrigação sem a
análise e serão a seguir abordados. necessidade do período requerido para a
eficácia da denúncia de um tratado.21
4.2. Acordos executivos A simplicidade do procedimento não
A aplicabilidade da teoria dualista à conduz, contudo, à eficácia imediata de
sistemática brasileira pode ser posta em tais acordos, simultânea à sua vigência in-
dúvida pela realização dos chamados ternacional. Suponha-se que tenha havido
acordos executivos, porquanto nestes não a troca dos instrumentos de ratificação na
há intervenção do Poder Legislativo na forma prevista no tratado, cumprindo-se a
formação do vínculo convencional. Deve- condição para o início da exigibilidade das
se investigar se a supressão de parte do obrigações nele previstas para os Estados
trâmite interno permite aproximar os dois signatários. No plano doméstico, dependerá
planos de vigência. de ato interno a vigência das normas nele
Segundo a prática brasileira, os acordos contidas. A esse respeito, vale a lição de
executivos diferem dos demais tratados Rezek, que anota ser “ostensivo” o nosso
por não serem submetidos ao Congresso ordenamento jurídico, requerendo-se norma
Nacional. A sua possibilidade jurídica foi interna publicada para que autoridades pú-
objeto de acesas discussões doutrinárias no blicas possam aplicar os comandos do trata-
País, marcadas pelo célebre debate entre do. Não há, a rigor, internalização de acordo
Haroldo Valladão (1950, p. 95-108)e Hilde- executivo. Em regra, cumprindo-se os atos
brando Accioly (1953, p. 58-63).18 Se hoje a internacionais necessários à vigência inter-
questão encontra-se adormecida, pode-se nacional, o acordo será publicado no Diário
radicar sua solução numa interpretação Oficial. Essa publicação não acompanha
extensiva do artigo 49, I, da Constituição.19 Decreto presidencial de promulgação, ato
Com efeito, atualmente todos os tipos de reservado aos tratados aprovados pelo Con-
tratados devem ser submetidos ao Con-
metade dos tratados por ele contabilizados no período
gresso Nacional, com poucas hipóteses
de 1988 a 1995 não foram submetidos ao Congresso.
de exceção.20 São elas, segundo a doutrina 21
Esta é a posição de Rezek (2004, p. 133-138), fre-
quentemente referida por outros autores. O gravame
18
Ver: BARBOSA (2004, p. 353-361); REZEK (2004, sobre bem público não consta do texto desse autor.
p. 133-138). Foi aqui aduzido porque se encontra inserto na mes-
19
Vide nota 13, supra. ma lógica e vem comprovado pela prática. Ilustra-o
20
Embora sejam poucas as brechas para o recurso o parecer da Câmara dos Deputados (2001, p. 14) de
aos acordos executivos, numericamente se pôde com- rejeição ao acordo sobre a base de Alcântara. Tolfo
provar em acurada pesquisa que elas são amplamente (2006) considera que os acordos executivos violam o
utilizadas. Cachapuz de Medeiros (1983, p. 130-145; princípio da separação dos poderes, revelando uma
1995, p. 431-432) demonstrou que perto de um terço hipertrofia do Poder Executivo, e argumenta que, na
dos tratados eram feitos com a forma simplificada, sem própria Constituição, artigos 68, §1o, e 49, XI, há fun-
submissão ao Congresso, proporção que aumentou sob damento para sustentar que nenhum acordo executivo
a égide da Constituição de 1988, pois aproximadamente pode ser válido no Brasil.

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 37


gresso. Falta-lhe, portanto, ordem expressa internacional. Muito pelo contrário, trata-se
de cumprimento. Por consequência, acordos de caso de evidente independência entre os
desse gênero não podem ser aplicados pelo dois planos de vigência. Logo, não há, em
Poder Judiciário para fundamentar reclamos relação aos demais tratados, consequência
de particulares.22 Essa conclusão se vê cor- distinta para a questão enfocada.
roborada pela jurisprudência, não obstante
sua rara discussão em sede judicial. 4.3. O costume
Na extradição n. 905/BE, o STF apreciou O Direito Internacional Público não re-
pedido de extradição em desfavor de na- sume suas fontes aos tratados. Reconhece
cional belga envolvido com tráfico interna- também a validade de normas consuetu-
cional de drogas. Amparava-se o pleito no dinárias e princípios gerais de Direito para
tratado de extradição entre os dois países, de produzirem normas obrigatórias. O costu-
1953. Nesse documento, todavia, não estava me, segundo o artigo 38, 1, b, do Estatuto
arrolado o crime objeto do pedido; ele so- da Corte Internacional de Justiça, forma-se
mente foi incluído por ocasião da celebração pela combinação de dois elementos, prática
de acordo por troca de notas. A corte deveu e opinio juris.24 (SALIBA, 2008, p. 749)
então decidir sobre a viabilidade de acordos No Brasil, a invocação de normas dessa
executivos acrescerem obrigações interna- natureza perante os tribunais tem rara ocor-
cionais para o País, com vigência interna. No rência. Em um tema, porém, apresentam-se
seu voto, o relator, Min. Joaquim Barbosa, como o único fundamento possível: a imu-
repassa a polêmica sobre acordos executivos nidade do Estado estrangeiro.
para firmar seu argumento de que tais atos Sabe-se que a jurisprudência brasileira,
não podem ser válidos na ordem interna. É seguindo padrões observados noutros
certo que, no caso sob comento, três óbices países, adotou posição mais flexível,
matizaram a decisão: 1) não havia no tratado autorizando o processamento do Estado
previsão de complementação por troca de estrangeiro não somente no caso de renún-
notas; 2) não foi publicado o acordo por tro- cia expressa, mas também quando o ato
ca de notas na imprensa oficial; 3) o acordo, ensejador da controvérsia puder ser carac-
no dizer do relator, “acrescentou sentido” terizado como um ato de gestão. (SALIBA,
ao tratado original.23 2005, p. 23-33)
Apesar da supressão de parte do trâ- O ponto de relevo para a discussão
mite reservado aos tratados em geral, a sobre o dualismo é que os tribunais não
vigência interna dos acordos executivos demandaram ato interno para aplicar a
não se alinha automaticamente à vigência norma consuetudinária à querela entre o
cidadão e o Estado estrangeiro; não o fi-
22
O autor afirma-o categoricamente: “Em caso zeram quando se adotava no País a teoria
algum esses acordos [executivos] pretendem produzir
absoluta, fundada numa sólida regra do
efeito sobre particulares, mas, por imperativo do di-
reito público brasileiro, a divulgação oficial se impõe direito das gentes, como exemplifica a céle-
para que a própria ação de funcionários públicos da bre disputa imobiliária entre Síria e Egito,25
área, no sentido de dar cumprimento ao avençado, nem quando se alterou a tendência das
seja legítima”. (REZEK, 2004, p. 138)
cortes, orientada por um alentado voto do
23
STF. Extradição 905, da Bélgica. Tribunal Ple-
no. Relator Min. Joaquim Barbosa. Julgamento de Ministro Rezek na Apelação 9.696, no qual
24.02.2005. p. 33-40. Não obstante a inaplicabilidade listou os precedentes da prática dos Estados
do acordo executivo, o Tribunal deferiu o pedido,
fulcrado no artigo 6.3 da Convenção contra o Tráfico Sobre o costume, ver LUPI (2007, p. 53-138).
24

Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, 25


STF. Ação Cível Originária n. 298, do Distrito
de Viena, 1988, que prevê a possibilidade de a própria Federal. Tribunal Pleno. Relator Min. Soares Munoz.
Convenção servir de base para pedidos de extradição Julgamento de 14 de abril de 1982. DJ, 17.12.1982. p.
não fundados em tratados bilaterais. 13201.

38 Revista de Informação Legislativa


e deles inferiu a opinio juris prevalecente, denúncia ao depositário ou à contraparte.
para admitir processar o Estado estrangeiro Em razão da premissa dualista, esse ato
por reclamação trabalhista.26 não deveria repercutir na ordem interna
A norma costumeira aplica-se, assim, sem nova manifestação do Poder Executivo
independentemente de qualquer ato inter- para esse fim, notadamente a revogação
no. Sua recepção ocorre por via jurispru- expressa do Decreto de promulgação.
dencial. Os tribunais recolhem das provas Mas contrariando o dualismo, o Judiciário
da prática internacional a substância do sentiu-se à vontade para negar vigência ao
costume e conferem-lhes sentido, direta- tratado denunciado, independentemente
mente, sem intermediação, nem consulta de ato revocatório.
ao Poder Executivo. No RMS 8799/61, o STF analisou o in-
Em conclusão, quando se toma apenas deferimento de mandado de segurança a
a indagação sobre o momento inicial de vi- importador que pretendia beneficiar-se de
gência do tratado na ordem interna e sua re- isenção tributária decorrente do Tratado
lação com os atos internacionais tendentes de Comércio e Navegação firmado com a
a dar-lhe vigência no plano internacional, Argentina e vigente internamente desde
parece adequado afirmar-se que o Brasil 1943 (Decreto 5.331/43). Apoiando-se em
filia-se ao dualismo, posto que existe total parecer da Procuradoria Geral da Repú-
independência entre os atos e seus efeitos blica, o STF manteve a decisão recorrida,
em cada um dos planos de existência da porque o Brasil denunciara dito tratado em
norma convencional. Dificultam a coe- 1957 (nota 66, de 12 de setembro de 1957).
rência dessa descrição a incorporação das Lê-se no parecer usado de fundamentação
normas costumeiras e a subordinação dos para o acórdão:
efeitos do tratado internalizado e promul- “Evidente que o juiz não podia con-
gado à ratificação. Ainda assim, no cômpu- ceder segurança contra pagamento
to geral, talvez haja mais compatibilidade de importação, alegando-se contra a
do que discrepância. Contudo, passado o tributação a existência de um acôrdo
momento inicial, isto é, na execução e nas internacional sôbre determinadas
possibilidades de suspensão e extinção da mercadorias, quando se verifica que
vigência internacional do tratado, a res- tal acôrdo já está denunciado e ain-
posta necessita ser reavaliada. É o que se da, com a agravante, do impetrante
demonstrará a seguir. nem sequer provar que a mercadoria
que pretende a isenção, seria da-
5. A norma internalizada e os fatos quelas compreendidas no acôrdo já
internacionais posteriores à sua vigência denunciado.”27
5.1. Efeitos da denúncia sobre o tratado Três anos antes, o STF havia determi-
vigente internamente nado que o benefício previsto no acordo
deveria continuar a ser deferido aos impor-
O primeiro exemplo aqui colacionado, tadores de produtos argentinos até a data
para demonstrar como fatos alheios ao em que a denúncia surtisse seus efeitos
plano puramente interno de vigência da de acordo com o artigo XIX do Tratado.28
norma podem afetá-la, trata de denúncia de Repara-se, outrossim, ser a vigência do
tratado firmado pelo País. A hipótese é a de
que o Brasil decida não mais fazer parte de 27
STF. Recurso em Mandado de Segurança 8799/SP.
um tratado e comunique formalmente sua Tribunal pleno. Relator Min. Goncalves de Oliveira.
Julgamento: 02/08/1961. DJ 15-09-1961, p. 1947.
26
STF. Apelação Cível n. 9696. de São Paulo. Tribu- 28
STF. Recurso em Mandado de Segurança 5990/ SP.
nal Pleno. Relator Min. Sydney Sanches. Julgamento Tribunal Pleno. Relator Min. Luis Gallotti. Julgamento:
de 31de maio de 1989. DJ, 12.10.1990. p. 11045. 29/10/1958.

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 39


ato internacional a condição dos efeitos no endereço eletrônico do Senado
internos, afastando-os à sombra do cance- Nacional boliviano - www.senado.
lamento daquela sem que exista um meca- bo - em 20.10.2005), veja-se que antes
nismo interno de recepção do ato extintor desta data o Brasil havia depositado o
da norma no plano internacional. instrumento de denúncia do tratado e
Observa-se, nesses acórdãos, que não já tinha escoado o prazo de 12 meses,
se exigiu ato interno para negar vigência a previsto no art. 18, inciso 3 do Convê-
obrigações internalizadas decorrentes de nio, para que a denúncia surtisse seus
tratado. O postulado da plena separação jurídicos efeitos. Ou seja, quando da
entre as duas ordens não foi seguido pelo aprovação da lei boliviana o Brasil já
tribunal. não mais se obrigava pelos termos
do tratado enfocado. Não houve
5.2. A vigência internacional do coincidência na vinculação do Brasil
tratado para outro Estado Parte e da Bolívia aos termos do acordo
Outra situação da prática brasileira multilateral. Aliás, a Bolívia, embora
contrária à tese dualista respeita a vigên- tenha editado a lei de aprovação do
cia internacional do tratado para o Estado tratado no ano de 1999, somente em
Parte cujas leis ou atos, por alguma razão, 17/06/2005 procedeu ao depósito do
sejam relevantes para a causa. Para o pro- instrumento de ratificação do pacto,
pósito deste artigo, apresenta elevado in- de modo que um mês após a esta data
teresse recente jurisprudência do Tribunal iniciou para ela a vigência do acordo
Regional Federal da 4a Região concernente internacional30.
à revalidação automática de diplomas. O Por consequência, não havia acordo em
Brasil firmou a Convenção Regional sobre o vigor entre os dois países e, ante a ausência
Reconhecimento de Estudos, Títulos e Diplo- de reciprocidade, julgou o Tribunal ser “in-
mas de Ensino Superior na América Latina e viável reconhecer-lhe o direito ao registro
no Caribe. Ela ingressou no ordenamento de seu diploma, independentemente de
pátrio pelo Decreto 80.419 de 1977. O Brasil processo de revalidação.”31
denunciou o tratado em 1998. Por força da Como visto, a decisão analisa a legisla-
cláusula 18.3 do tratado, a denúncia operou ção boliviana e a ratificação pela Bolívia do
seus efeitos em 15 de janeiro de 1999. Em mesmo tratado, concluindo que ambos os
31 de março de 1999, revogou-se o Decreto atos ocorreram posteriormente à denúncia
80.419, por meio do Decreto 3.007. Aqui, do Brasil. É bem verdade que, ainda que
porém, o tema de maior relevo diz respeito houvesse coincidência da vigência inter-
à posição do Estado no qual foi expedido o nacional para Brasil e Bolívia, o Tribunal
diploma que o postulante pretendia reva- provavelmente não deferisse o pedido,
lidar sem o usual processo administrativo. baseado em sua própria jurisprudência e
O Tribunal mantém a decisão de primeiro na do STJ, segundo a qual o estudante no
grau, de indeferimento do pedido. Na fun- exterior não formado antes da revogação
damentação, o principal motivo está assim interna do Decreto que internalizava o
enunciado: tratado tem mera expectativa de direito e
“Ainda que seja verdade que a Lei bo- 30
Informações disponíveis em: <www.portal.
liviana n. 1992, de 28 de julho de 1999, unesco.org>. Acesso em 20 out. 2005.
aprovou e ratificou o ato internacio- 31
TRF4. Apelação Cível n. 2007.71.00.013239-0.
nal multilateral29 (consulta realizada Terceira Turma. Relatora Des. Ingrid Schroder
Sliwka. D.E. 26/03/2008. No mesmo sentido, do
29
Consulta realizada no endereço eletrônico do mesmo tribunal: Apelação em Mandado de Segurança
Senado Nacional boliviano. Disponível em: <www. n. 2007.72.00.000726-3. Terceira Turma. Relator Des.
senado.bo>. Acesso em: 20 out. 2005. Roger Raupp Rios. D.E. 08/08/2007.

40 Revista de Informação Legislativa


não direito adquirido à revalidação auto- internacionalmente, do mesmo modo que
mática.32 necessita promulgá-lo para o vigor interno
Em parecer dado em caso similar, aco- e ratificá-lo para o vigor internacional.
lhido integralmente como fundamentação
do acórdão, o Ministério Público Federal 5.3. Acordos cuja vigência está
sustentou que subordinada à observância da reciprocidade
“A denúncia apresentada à UNESCO Diversos dispositivos da legislação
pelo Governo Brasileiro retira, pois, brasileira preveem restrições de direitos
um dos dois pilares de sustentação aos estrangeiros, reservando-os exclusi-
do acordo internacional, impedindo vamente aos nacionais. Cite-se, à guisa de
sua aplicação no território nacional, exemplo, a titularidade de certos cargos
onde editado o Decreto Presidencial públicos e a participação na administração
no 3.007/99. A dúvida que se põe diz de sociedades empresariais. Porém, com
respeito à aplicabilidade do tratado frequência, acordos internacionais podem
quando apenas um dos seus ‘pilares’ estender a estrangeiro o privilégio concedi-
permanece em pé.” do aos nacionais, sob condição de brasilei-
Se o Brasil fosse rigidamente dualista, ros beneficiarem-se de idênticos direitos no
valeria internamente somente o Decreto de país do estrangeiro. A própria Constituição
internalização, repudiando-se a menção a admite tal possibilidade, nos artigos 12, §1o
“dois pilares”. Logo, a denúncia seria vista (igualdade de direitos para portugueses
meramente como a causa, não jurídica, da residentes), 178 (ordenação do transporte
revogação do Decreto e, por conseguinte, o internacional) e 52 do ADCT (vedação de
concluinte de curso superior que obteve di- instalação de novas agências bancárias es-
ploma durante o período de 15.01.1999 (data trangeiras até a regulamentação do artigo
em que a denúncia tornou-se operativa) e 192, salvo reciprocidade). Uma busca não
31.03.1999 (data do Decreto de revogação) exaustiva na legislação nacional revela a
teria direito à revalidação automática. O presença da mesma condição no que tange
acolhimento de tal solução, todavia, apre- à revalidação de diplomas estrangeiros
senta-se pouco afeito às tendências verifica- (LDB, art. 48, §2o; CLT, art. 325, §2, b), aos
das no item 5.1 deste trabalho. Tem-se aqui, direitos das companhias aéreas estran-
destarte, forte argumento para evidenciar geiras (Código Brasileiro de Aeronáutica,
que o Brasil não é país firmemente adepto artigos 157, sobre admissão de tripulantes
do dualismo, pois a vigência internacional estrangeiros em aeronaves nacionais, con-
do ato tem repercussões no ordenamento in- dicionada à reciprocidade, e 214, §2o, sobre
terno, independentemente de manifestação autorização de agência de empresa estran-
das autoridades do País. Relembre-se que geira, condicionada à reciprocidade), e a
essa análise diz respeito à aplicabilidade direitos de propriedade intelectual (Lei de
pelos tribunais, não excluindo o dever de Propriedade Intelectual, n. 9.279/96, arts.
consistência das ações externas e internas 3o, II e 124, XXIII; Lei de Direitos Autorais,
de um governo, que, mesmo que ciente n. 9.610/98, art. 2o par. único). Finalmente,
das relações aqui explicitadas, precisa re- a jurisprudência do Supremo Tribunal
vogar internamente o tratado denunciado Federal exibe casos de extradição baseada
em promessa de reciprocidade, nas situa-
32
STJ. Recurso Especial 846671/RS. Primeira Turma. ções em que não há tratados entre o país
Relator Ministro José Delgado. DJ 22.03.2007, p. 301;
solicitante e o Brasil, ou em que o tratado
TRF4. Apelação Cível n. 2006.71.00.009927-8. Terceira
Turma. Relator Des. Carlos Eduardo Thompson Flores não cobre o crime ensejador do pedido de
Lenz. D.E. 23/07/2007 (o acórdão traz diversas refe- extradição. Em todos esses casos, é de se
rências à jurisprudência dos TRFs e do STJ). indagar se os tratados podem deixar de ser
Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 41
aplicados pelos tribunais brasileiros por Na fundamentação do acórdão, percebe-
falta de observância, pelo país estrangeiro, se que a Procuradoria-Geral da República
de idêntico tratamento aos brasileiros. Uma e os Ministros do STF examinaram o art.
resposta afirmativa confirma a permeabi- 16 da Constituição alemã, que determina
lidade das esferas internacional e nacional que nenhum alemão pode ser extraditado
de vigência do tratado. ao estrangeiro, não fazendo distinção entre
A jurisprudência não é farta nessa maté- o nato e o naturalizado, como ocorre com
ria. A reciprocidade costuma ser invocada a Constituição nacional (art. 5o, LI). Para
pelos tribunais em matéria de imunidades reforçar sua interpretação, citam manifesta-
do Estado estrangeiro e dos seus repre- ções de tribunais e doutrinadores alemães.
sentantes. Contudo, em tais situações a Assim, se não pode a Alemanha extraditar
reciprocidade é trazida como fundamento alemão naturalizado a pedido do Brasil,
da obrigação do País. Os casos em que a tampouco pode-se conceder extradição de
ausência de reciprocidade conduziu à não brasileiro naturalizado à Alemanha.
aplicação do tratado são raros. Lembre-se, Conclui-se, portanto, que também quan-
em primeiro lugar, o já citado acórdão so- do a previsão de direitos a estrangeiros
bre revalidação de diplomas expedidos na estiver subordinada a acordos internacio-
Bolívia, que, ao tempo do pedido em ques- nais baseados em reciprocidade, o tratado
tão, ainda não havia ratificado o tratado poderá não ser aplicado se for provada a
e, portanto, não poderia outorgar o favor não observância de idêntico tratamento a
requerido a um brasileiro lá vivente. brasileiros no país do estrangeiro beneficia-
Agregue-se a esse exemplo o julgamento do ou a impossibilidade de atendimento à
de pedido extradicional feito pela Alema- reciprocidade. Registre-se que, nos casos
nha, baseado em promessa de reciprocida- apreciados, essa verificação foi empreendi-
de, assim ementado: da de ofício pelo Judiciário brasileiro, que
“Extradição. Inexistência de tratado colacionou as provas encontradas em suas
com o País requerente. Promessa de próprias investigações acerca do Direito
reciprocidade. Impossibilidade de estrangeiro.
cumprimento à luz da constituição Antes de encerrar este tópico, deve-se
alemã. Indeferimento do pleito. A mencionar o artigo 60 da Convenção de
Constituição da República Federal da Viena sobre Direitos dos Tratados, que
Alemanha contém vedação à extradi- autoriza a suspensão do tratado por não-
ção do nacional alemão (art. 16), sem cumprimento da outra Parte. Pode-se argu-
estabelecer qualquer exceção. mentar que os tribunais brasileiros, ao apli-
Por essa razão, o Estado requerente carem a legislação que subordina os efeitos
não demonstra estar habilitado a de acordos internacionais à reciprocidade,
cumprir promessa de reciprocidade estão autorizados a negar a extensão de
quando esta é formulada no bojo do direitos a estrangeiros na falta desta ou ante
pedido de extradição de pessoa que sua impossibilidade, em virtude da facul-
ostenta a condição de cidadão bra- dade prevista no artigo 60. Todavia, essa
sileiro naturalizado, como é o caso ponderação não afeta o que se pretende
dos autos. Ausentes pressupostos do afirmar sobre a posição brasileira na dico-
art. 76 da Lei n. 6.815/80. Pedido de tomia entre monismo e dualismo. Primeiro,
extradição indeferido.”33 porque, se os tribunais brasileiros precisas-
sem fundamentar em norma prevista no
STF. Extradição n. 1.010, Rel. Min. Joaquim
33

Barbosa. Julgamento de 24.05.06, DJ de 19.12.06.


ordenamento internacional a não aplicação
Sobre o tema ver: SILVA, LUPI (2007b, p. 273-283; interna de obrigação internacional, já ha-
2007a, p. 47-57). veriam ignorado a barreira estrita entre os

42 Revista de Informação Legislativa


dois planos. Segundo, porque, seguindo o interna que produz os efeitos na ordem
postulado dualista e observando a divisão jurídica brasileira.
das funções estatais referentes aos tratados, Perturbam o enquadramento feito duas
os tribunais somente poderiam aplicar o situações: a ineficácia do ato de internali-
artigo 60 depois de declaração do Poder zação de tratado quando este ainda não
Executivo de suspensão da vigência do vige internacionalmente para o País e a
ato cuja reciprocidade fora atacada. Nada recepção das normas costumeiras pelo
disso afeta, pois, a conclusão de que fatos Poder Judiciário.
internacionais podem interferir na vigência Na continuidade da aplicação do tra-
interna da norma internalizada. tado, não se pode afirmar fidelidade ao
dualismo. Três situações foram examina-
das para comprovar que os atos na esfera
6. Conclusões
internacional repercutem na aplicabilidade
Procurou-se neste artigo avaliar se o da norma internalizada.
Brasil adota a teoria dualista concernente Primeiro, foram trazidos à baila julga-
às relações entre Direito Internacional e dos relativos aos efeitos da denúncia de
Direito Interno. Num primeiro momento, tratado no plano internacional. Viu-se que,
mostrou-se que a doutrina hesita em apli- embora seja recomendável a revogação
car-lhe esse rótulo sem qualificações adi- dos atos internos que dão sustentação à
cionais e que estas tornam pouco definido vigência interna da norma, os tribunais não
o conteúdo prático da pretendida assunção a exigem para declarar inaplicável direito
teórica. Em seguida, foram abordados os previsto em tratado já denunciado pelo
estudos clássicos do Direito Internacional Brasil. Mais: apoiam-se para tanto num
sobre o dualismo e da corrente que lhe fato regulado pelo Direito Internacional,
é oposta, o monismo, para concluir que qual seja, o lapso requerido para que a
aquela primeira teoria implica rigorosa denúncia surta efeitos. A toda evidência,
cisão dos momentos de vigência interna e consideram apoiar-se a vigência interna
internacional, afastando a influência dos do tratado sobre dois pilares, a vigência
atos formalizados no plano internacional internacional e a norma de internalização.
sobre a vigência de normas internas, entre Ruindo qualquer um dos dois, deixa-se de
elas, o tratado já internalizado. aplicar o tratado.
Ao empreender um exame da jurispru- Segundo, anotou-se que a suspensão
dência pátria, observou-se que os tribunais ou a extinção ou, ainda, a não formação
ladeiam os autores dualistas no que tange à do liame convencional entre o Brasil e o
inserção da norma no ordenamento pátrio, Estado estrangeiro, por falta de ratificação
preservando o espaço de ação das autorida- ou incorporação do tratado por este último,
des internas, únicas a deliberarem sobre o geram a não-aplicação do tratado no plano
início da vigência da norma internacional interno.
no plano interno. Nesse sentido, a vigência Terceiro, verificou-se o caso dos atos
internacional não importa para aferir se a que exigem reciprocidade, para os quais
norma já vale internamente. Ainda que haja parece definida a posição dos tribunais de
discussão doutrinária a respeito de qual ato perquirir sobre a aplicação pelo país estran-
interno introduza o tratado no Brasil, se geiro do direito solicitado às autoridades
Decreto Legislativo ou Decreto Presidencial brasileiras.
de promulgação, ou, no caso dos acordos Em conclusão, explica melhor a situação
executivos, se geram ou não efeitos para brasileira do que a regra sintetizada no ter-
particulares quando publicados no Diário mo dualismo a constatação de que os tribu-
Oficial, é sempre um ato de autoridade nais brasileiros interpretam restritivamente

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 43


a vigência das normas internacionais no ARIOSI, Mariangela. Conflitos entre tratados internacio-
âmbito interno. Possivelmente espelhando nais e leis internas: o judiciário brasileiro e a nova ordem
internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.
tendência também já encontrada alhures
(SCHREUER, 1971, p. 255-297), de ver os BAPTISTA, Luiz Olavo. Inserção dos tratados no direi-
to brasileiro. Revista de Informação Legsilativa, Brasília,
tratados como restrições à soberania nacio- n. 132, p. 71-80, out./ dez. 1996.
nal, os tribunais, para defendê-la, tendem a
BARBOSA, Salomão Almeida. O poder de celebrar
negar vigência interna aos tratados quando
tratados no direito positivo brasileiro. Revista de Infor-
encontram num ou noutro lado fato que os mação Legislativa, n. 162, p. 353-361, abr./ jun. 2004.
autorize a assim proceder. Isto não quer di-
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10
zer que seja o Brasil monista com primazia ed. Universidade de Brasília, 1999.
do Direito nacional, pois a refutação do du-
CAMARA DOS DEPUTADOS. Parecer sobre a Mensa-
alismo passa pela permeabilidade entre os gem n. 296, de 2001. Comissão de Relações Exteriores
dois planos de vigência, algo inadmissível e de Defesa Nacional. Relator Dep. Waldir Pires, 17
na teoria monista nacionalista. ago. 2001.
Deve-se ressaltar que, ante a complexi- CARVALHO, P. B. Tratados internacionais em matéria
dade das relações entre o Direito Interna- tributária: estudo de um caso concreto. In: CASELLA,
cional e o interno e as variações e sutilezas Paulo et al. (Orgs.). Direito internacional, humanismo e
globalidade: Guido Fernando Silva Soares Amicorum
ocorrentes na prática das autoridades
Discipulorum Liber. São Paulo: Atlas, 2008.
brasileiras, a possibilidade de valer-se de
um conceito redutor, como dualismo, vê- FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do
direito: técnica, decisão, dominação. 3 ed. São Paulo:
se afastada. Nem se pode sustentar que as Atlas, 2001.
adjetivações e as remodelações que sofre
FOOTER, Mary. Research program: the symbiosis
para se adaptar à incontível quantidade de between public international law and national law.
exceções podem salvá-lo. Em verdade, ape- International Law Forum, n. 3, p. 249-252, 2001.
nas nublam o conteúdo específico do termo,
HENKIN, Louis. Implementation and compliance:
despindo-o de eficácia descritiva e poder is dualism metastasizing? Proceedings of the American
explicativo. Ao menos no que tange à vigên- Society of International Law, v. 91, p. 515-518, 1997.
cia das normas internacionais, a conclusão HUSEK, Carlos Roberto. Curso de direito internacional
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Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 45


Dos casos em que é desnecessário
homologar uma sentença estrangeira

Marcela Harumi Takahashi Pereira

Sumário
1. Introdução. 2. Como identificar os efeitos
da sentença estrangeira independentes da ho-
mologação. 3. Sentença estrangeira. 4. Efeitos
típicos e atípicos da sentença estrangeira. 5. Efei-
tos próximos e remotos da sentença estrangeira.
6. Reconhecimento com ou sem homologação. 7.
Limites constitucionais ao reconhecimento sem
a homologação. 8. Palavras finais.

1. Introdução
“Quais dos efeitos da sentença estran-
geira realmente necessitam de homologação
para serem absorvidos pelo ordenamento
brasileiro?” A questão é considerada uma
das “pedras-de-toque da importação da
sentença estrangeira” por Aragão e Rosas
(1988, p. 138). Na Itália, há mais de um sé-
culo, tentou respondê-la o internacionalista
Dionisio Anzilotti (1963, p. 197, 212, 213)1.
Para ele, assim como, no plano internacio-
nal, coexistiriam diversas soberanias, ne-
nhuma delas podendo impor-se às demais,
também no plano interno não faria sentido
que a Itália aceitasse as sentenças estran-
geiras como tais, independentemente de
uma chancela do judiciário local. Anzilotti
(1963, p. 197, 212, 213) pugnava pela ampla
exigência da homologação, como corolário
1
A data da elaboração e a da publicação distam em
Marcela Harumi Takahashi Pereira é Douto- muitas décadas, sendo o estudo referido o comentário
ra em direito internacional – UERJ. Promotora a uma decisão da Corte de Apelo de Milão, de 19 de
de justiça – MG. dezembro de 1900.

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 47


da independência entre as soberanias e da jurídico, poderá até produzir efeitos no
territorialidade das jurisdições, e criticava Brasil, mas certamente não dependerá da
a informalidade com que diversos tribunais homologação, que, aliás, será juridicamente
reconheciam as sentenças estrangeiras impossível.
na Itália do final do século XIX, exigindo 2a) Os efeitos que se pretendem extrair
a homologação apenas para a execução da sentença estrangeira são tipicamente
forçada. A sentença, fruto do exercício da sentenciais?
jurisdição por um Estado estrangeiro, não 3a) Tais efeitos deverão impactar dire-
deveria em nenhuma hipótese produzir tamente no Brasil ou são meros “efeitos de
efeitos de sentença na Itália sem a prévia efeitos”?
homologação. 4a) O direito dispensa ou, ao contrário,
Desde que Anzillotti lançou suas ideias, exige a homologação para o reconhecimento
no entanto, o mundo mudou. Hoje a preser- da sentença estrangeira na hipótese espe-
vação da soberania nacional coexiste com cífica?
novos ideais, como a cooperação entre os
povos para o progresso da humanidade,
3. Sentença estrangeira
que é um princípio constitucional expresso
no Brasil (art. 4o, IX, da CR). Hoje, a coope- Em primeiro lugar, então, é preciso
ração jurídica internacional tem em vista saber se se está diante de uma sentença
não só o Estado, mas também almeja a estrangeira. O que é uma “sentença estran-
satisfação do jurisdicionado. Hoje os países geira”? É uma decisão prolatada por uma
traçam políticas conjuntas, para solucionar soberania estrangeira, ou excepcionalmente
problemas que consideram globais. A apro- o ato produzido por particulares conforme
ximação dos diversos povos, seja no plano o ordenamento estrangeiro, cujo conteúdo,
econômico, político ou jurídico, caracteriza no Brasil, seria próprio de uma sentença
o nosso tempo e naturalmente produz refle- ou de atos a ela assimilados. Assim, o
xos no campo das sentenças estrangeiras. contrato de adoção celebrado no exterior é
Seria, então, mais apropriado formularmos, sentença estrangeira no Brasil. São também
pelo avesso, a pergunta de Aragão e Rosas: sentenças estrangeiras, por exemplo, os atos
“Quais dos efeitos da sentença estrangeira elencados como títulos executivos judiciais
dispensam a homologação para serem absor- pelo art. 475N2 do Código de Processo Civil,
vidos pelo ordenamento brasileiro?”. quando provenientes do exterior. Por outro
2
“São títulos executivos judiciais: I – a sentença
2. Como identificar os efeitos proferida no processo civil que reconheça a existência
da sentença estrangeira de obrigação de fazer, não fazer, entregar coisa ou pagar
quantia; II – a sentença penal condenatória transitada
independentes da homologação em julgado; III – a sentença homologatória de concilia-
ção ou de transação, ainda que inclua matéria não posta
Diante do caso concreto, para dizermos
em juízo; IV – a sentença arbitral; V – o acordo extrajudi-
se a homologação é dispensável, quatro cial, de qualquer natureza, homologado judicialmente;
questões são relevantes: VI – a sentença estrangeira, homologada pelo Superior
1a) O ato estrangeiro que se quer que Tribunal de Justiça; VII – o formal e a certidão de
partilha, exclusivamente em relação ao inventariante,
produza efeitos no nosso país caracteriza-
aos herdeiros e aos sucessores a título singular ou
se, segundo a lei brasileira, como uma sen- universal.” Dos títulos executivos extrajudiciais listados
tença estrangeira? Essa questão é preliminar pelo art. 475N do Código de Processo Civil, apenas o
em relação às outras, porque, se o ato não sexto não serve de parâmetro para a identificação da
sentença estrangeira, pois uma sentença estrangeira
for uma sentença estrangeira, estará fora
homologatória de sentença de terceiro país não poderá
do escopo do nosso estudo. Se for título ser novamente homologada no Brasil. A solução será
executivo extrajudicial, lei ou negócio homologar a sentença do terceiro país.

48 Revista de Informação Legislativa


lado, não é sentença estrangeira o título Grande do Sul já considerou a separação
executivo extrajudicial oriundo do exte- judicial estrangeira como prova da separa-
rior, motivo por que o art. 585, parágrafo ção de fato do casal, a fim de conceder, no
segundo3, do Código de Processo Civil não Brasil, o divórcio direto dois anos depois da
precisaria dispensá-lo da homologação. prolação da sentença estrangeira (Apelação
Cível n. 70011693256, rel. des. Rui Portano-
4. Efeitos típicos e atípicos da va, 8a Câmara Cível, j. em 30.06.055).
sentença estrangeira 2) Efeito normativo: a sentença estran-
geira pode valer como lei, quando produz
Estabelecido que estamos diante de efeitos gerais e abstrato. É o que se passa
uma autêntica sentença estrangeira, será com as sentenças estrangeiras declaratórias
preciso, num segundo momento, dizer se de inconstitucionalidade. Ao aplicar o di-
os efeitos da sentença estrangeira a serem reito estrangeiro, por força de uma regra de
produzidos no Brasil são ou não típicos. conexão, o juiz brasileiro deverá considerar
O que são efeitos típicos? São aqueles as sentenças normativas estrangeiras, ainda
produzidos pela sentença como tal, seus que não tenham sido homologadas: assim
efeitos característicos. Classificam-se em como não se exige a homologação das
principais ou secundários: os principais leis estrangeiras, tampouco se justificaria
são o efeito condenatório, declaratório e exigi-la das sentenças para valerem, como
constitutivo, aos quais se pode acrescer, sob leis, no Brasil.
o prisma processual, o efeito de extinguir o 3) Efeito de título: a sentença estrangeira
processo; os secundários são aqueles atri- pode autorizar o exercício de um direito
buídos pela lei à sentença, como acessórios ou a propositura de uma ação. O exemplo
e consequentes dos principais, a exemplo emblemático é o da sentença estrangeira
da hipoteca judicial (art. 4664 do CPC). que serve para autorizar a propositura da
Os efeitos secundários são previstos pelo ação de homologação no Superior Tribunal
legislador independentemente da vontade de Justiça.
do juiz e não precisam ser expressos na 4) Efeito de simples ato: o legislador ou
sentença para se verificarem. particulares podem atribuir à sentença
Os efeitos atípicos, por sua vez, são estrangeira efeitos atípicos, os quais deno-
aqueles que, embora produzidos por atos minamos “efeitos de simples ato”. Se, diz
e fatos jurídicos variados, podem episodi- Botelho de Mesquita (1986, p. 225), em um
camente originar-se de uma sentença. São contrato de prestação de serviços advoca-
efeitos atípicos: tícios, parcela dos honorários for condicio-
1) Efeito probatório: a sentença pode nada à prolação de sentença estrangeira
servir de prova documental de um fato. favorável ao cliente, a homologação será
Por exemplo, o Tribunal de Justiça do Rio desnecessária para a verificação do efeito
3
“Não dependem de homologação pelo Supremo
pactuado. Segundo cremos, isso acontece
Tribunal Federal [rectius: Superior Tribunal de Justiça], porque, no exemplo, tem-se um efeito de
para serem executados, os títulos executivos extraju- simples ato. Assim como os particulares,
diciais, oriundos de país estrangeiro. O título, para ter
eficácia executiva, há de satisfazer aos requisitos de 5
Segue a ementa: “APELAÇÃO. DIVÓRCIO
formação exigidos pela lei do lugar de sua celebração DIRETO CONSENSUAL. PARTES RESIDENTES NO
e indicar o Brasil como o lugar de cumprimento da EXTERIOR. SEPARAÇÃO EM CORTE ESTRANGEI-
obrigação.” RA. DOCUMENTO PROBATÓRIO. HOMOLOGA-
4
“A sentença que condenar o réu no pagamento de ÇÃO. INCABIMENTO. A sentença estrangeira de
uma prestação, consistente em dinheiro ou em coisa, separação utilizada como prova da separação fática,
valerá como título constitutivo de hipoteca judiciária, para fins de requerimento de divórcio direto consen-
cuja inscrição será ordenada pelo juiz na forma pres- sual, prescinde de homologação do Superior Tribunal
crita na Lei de Registros Públicos. [...]” de Justiça. EC 45/2004. [...]”

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 49


o legislador pode atribuir às sentenças Naves, 3a Turma, j. em 06.03.90) e do Tri-
estrangeiras efeitos que não são típicos das bunal de Justiça do Rio de Janeiro (Ap. Cv.
nacionais. Assim, a condenação criminal no 1988.001.02415, rel. des. Thiago Ribas Filho,
exterior produz um efeito de simples ato 2a Câmara Cível, j. em 18.10.88).
no Brasil, quando impede a concessão de Considerações semelhantes podem ser
visto ao estrangeiro, na hipótese do art. 7o, feitas, por exemplo, em relação à sentença
IV6, da Lei 6.815/80. estrangeira que, sem ter sido incorporada
Se se tiver em vista a produção de efeitos pelo nosso ordenamento, for rescindida
atípicos, ainda que a sentença estrangeira no exterior. A sentença estrangeira res-
comporte a homologação, a chancela do cindida não poderá vir a ser homologada,
Superior Tribunal de Justiça será dispen- independentemente de ter sido a rescisória
sável. Mas, se os efeitos almejados forem homologada ou não. É que a rescisória terá
típicos, deveremos verificar se vão incidir impactado diretamente no exterior, des-
próxima ou remotamente no Brasil, pois constituindo uma sentença estrangeira, e
os remotos, como os atípicos, são alheios indiretamente produzirá no Brasil o efeito
ao reconhecimento e, portanto, escusam a (colateral) de tornar insubsistente a senten-
homologação. ça rescindida, que, de outra forma, seria
título para a ação de homologação.
5. Efeitos próximos e remotos Mas a situação seria outra se a sentença
da sentença estrangeira estrangeira fosse rescindida no exterior
após ter sido homologada pelo Superior
Este é o terceiro passo: dizer se os efei- Tribunal de Justiça, pois, nesse caso, ter-
tos que se pretende extrair da sentença se-ia um efeito próximo – e não meramente
estrangeira incidirão diretamente no Brasil remoto – da rescisória em nosso país: a
(efeitos próximos) ou se produzirão aqui desconstituição de uma sentença já incor-
mera repercussão tênue e oblíqua (efeitos porada pelo nosso ordenamento, como
remotos). Alguns exemplos permitirão en- título executivo judicial (art. 475N, VI, do
tender a dinâmica dos efeitos remotos. Se CPC). Portanto, não se poderia dispensar a
um estrangeiro se divorciar no exterior e, homologação da sentença rescisória.
em seguida, se casar com brasileira também Em síntese, a sentença estrangeira pro-
no exterior, o casamento valerá e poderá ser duz efeitos remotos (ou atípicos) no Brasil,
registrado no Brasil, sem a homologação sem a homologação. Caso, no entanto,
do divórcio. Isso é assim porque a sentença os efeitos em questão sejam próximos (e
estrangeira produzirá efeitos imediatos no típicos), deveremos verificar se o reconhe-
exterior, desconstituindo um casamento lá cimento automático é autorizado por lei.
celebrado, entre súditos estrangeiros; a des-
constituição desse casamento, por sua vez,
é que produzirá no Brasil o efeito de tornar 6. Reconhecimento com ou
válido o casamento sucessivo com uma sem homologação
brasileira, também realizado no exterior. Acertado que os efeitos desejados são
Dispensando a homologação na hipótese, típicos e próximos, adentramos o terreno
há acórdãos do Supremo Tribunal Federal do reconhecimento. O reconhecimento é
(RE 87.632-RJ, rel. min. Moreira Alves, 2a a aceitação pelo Brasil de que a sentença
Turma, j. em 27.06.80), do Superior Tribunal estrangeira é tão boa como seria uma
de Justiça (REsp 1.148-RJ, rel. min. Nilson nacional, para o fim de produzir efeitos
6
“Não se concederá visto ao estrangeiro: [...] IV – sentenciais típicos e diretos no país. O reco-
condenado ou processado em outro país por crime doloso, nhecimento não decorre de uma qualidade
passível de extradição segundo a lei brasileira [...].” intrínseca da sentença, pois a jurisdição,

50 Revista de Informação Legislativa


como expressão do poder soberano, é cir- 2) Administrativo: outorgado por ato
cunscrita ao território do país sentenciante. administrativo. O reconhecimento admi-
Qualquer eficácia extraterritorial da senten- nistrativo foi adotado pelo Brasil enquanto
ça é uma concessão do país reconhecedor, vigeu o Decreto 7.777 de 1880, segundo
motivo por que os países podem optar por o qual, na ausência de reciprocidade, o
simplesmente não reconhecer as sentenças cumprimento das sentenças estrangei-
estrangeiras ou somente reconhecê-las se ras por juízes nacionais dependeria do
houver tratado, como fez o Brasil até 1878. “cumpra-se” do governo9. É, ainda hoje,
Pela mesma razão, podem circunscrever o adotado no Brasil – a nosso ver contra a
reconhecimento a certos temas ou fins. No Constituição – na hipótese de transferência
Brasil, no âmbito cível, o reconhecimento de brasileiros condenados no exterior para
é amplamente admitido, como determina o cumprimento de pena no Brasil (na práti-
o art. 157 da Lei de Introdução ao Código ca, a delibação da condenação estrangeira
Civil; no âmbito penal, é admitido para a ser executada no Brasil é feita no bojo de
fins específicos, pontualmente indicados um procedimento administrativo junto ao
na lei ou tratado (v.g., o art. 9o8 do Código Ministério da Justiça10).
Penal identifica dois fins para os quais o 3) Judicial: consubstanciado em uma de-
reconhecimento é possível). cisão de juiz. Essa forma de reconhecimento
O reconhecimento pode dar-se por verifica-se no curso de um processo, a título
vários métodos, dos quais a homologação incidental ou principal, sendo chamada de
é apenas um. Sempre que houver a homo- “homologação” no segundo caso (vide o art.
logação, haverá o reconhecimento da sen- 483 do Código de Processo Civil11).
tença estrangeira, mas a recíproca é falsa;
9
Dizia o art. 1o do Decreto 7.777/1880: “Na falta da
muitas vezes o reconhecimento tem lugar
reciprocidade a que se refere o art. 1o § 1o do Decreto
sem a homologação. Podemos identificar as n. 6982 de 27 de Julho de 1878, a sentença estrangeira
seguintes espécies de reconhecimento: será exequivel no Imperio si o Governo conceder –
1) Legislativo ou automático: decorrente exequatur”. Legislação disponível em: <http://www6.
senado.gov.br/sicon>. Acesso em: 1 ago. 2008.
exclusivamente da lei (vide o parágrafo 10
Informação disponível no site do Ministério da
único do art. 15 da Lei de Introdução). Justiça: <http://www.mj.gov.br/data/Pages/MJCD90
C52DITEMID3712F8A8349F409488D92D9CE6A815-
7
“Será executada no Brasil a sentença proferida no D0PTBRIE.htm>. Acesso em: 31 maio 2009. No mesmo
estrangeiro que reúna os seguintes requisitos: a) haver site, registra-se: “O Ministério Público Federal já se ma-
sido proferida por juiz competente; b) terem sido as nifestou a respeito da constitucionalidade dos Tratados
partes citadas ou haver-se legalmente verificado à de Transferência de Presos, assinalando que os mesmos
revelia; c) ter passado em julgado e estar revestida podem ser formalizados, porque não se sujeitam, a
das formalidades necessárias para a execução no lugar priori, ao controle singular (homologação de sentença
em que foi proferida; d) estar traduzida por intérprete estrangeira).” Disponível em: <http://www.mj.gov.
autorizado; e) ter sido homologada pelo Supremo br/data/Pages/MJCD90C52DITEMIDFFE3BBFEE64-
Tribunal Federal. Parágrafo único. Não dependem de A41A4BB414CF822BCA8ABPTBRIE.htm>. Acesso em:
homologação as sentenças meramente declaratórias 31 maio 2009. Todavia, em maio de 2009, solicitamos
do estado das pessoas.” ao Ministério da Justiça e ao Ministério Público Fede-
8
“A sentença estrangeira, quando a aplicação da ral cópia da manifestação aludida, tanto por e-mail
lei brasileira produz na espécie as mesmas consequên- quanto por telefone, sem obtermos êxito. Segundo
cias, pode ser homologada no Brasil para: I – obrigar Wiecko (2008, p. 241): “Este parecer [do Ministério
o condenado à reparação do dano, a restituições e a Público Federal] não foi apresentado pelo Ministério da
outros efeitos civis; II – sujeitá-lo à medida de seguran- Justiça, nem localizado no sistema de informações do
ça. Parágrafo único. A homologação depende: a – para Ministério Público Federal. Ao contrário, foi localizado
os efeitos previstos no inciso I, de pedido da parte parecer, da lavra do Subprocurador-Geral da República
interessada; b – para os outros efeitos, da existência Edson Oliveira de Almeida (BRASIL, 2001), no sentido
de tratado de extradição com o país de cuja autoridade da indispensabilidade da prévia homologação.”
judiciária emanou a sentença, ou, na falta de tratado, 11
“A sentença proferida por tribunal estrangeiro
de requisição do Ministro da Justiça.” não terá eficácia no Brasil senão depois de homologa-

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 51


7. Limites constitucionais ao para que seja coativamente imposta com o
reconhecimento sem a homologação auxílio do aparato estatal brasileiro. Nessa
última hipótese, o comprometimento do
Embora possível, o reconhecimento sem país com a sentença estrangeira é muito
homologação sujeita-se a limites constitu- maior. São razoáveis, portanto, as cautelas
cionais no Brasil. A Constituição cuida das adicionais, como a homologação.
sentenças estrangeiras em dois dispositi- Em todo caso, o Brasil vem celebrando
vos: no art. 105, I, i12, confere ao Superior diversos tratados que preveem o reconhe-
Tribunal de Justiça a competência para cimento automático e seria conveniente a
homologá-las; no art. 109, X13, confere aos reforma do art. 109, X, da Constituição, para
juízes federais a competência para executá- admitir a execução da sentença estrangeira
las, “após a homologação”. Portanto, no sem a prévia homologação, com fundamen-
Brasil, só os juízes federais podem executar to em tratados internacionais.
as sentenças estrangeiras, e somente podem Com a ressalva de que a homologação
fazê-lo após a homologação pelo Superior é necessária para a execução da sentença
Tribunal de Justiça. A Constituição não faz estrangeira no Brasil, nenhuma outra restri-
ressalvas. ção ao reconhecimento automático é posta
Nem se alegue estarmos superestiman- pela Constituição. Tornou-se anacrônica a
do o critério literal. Não é verdade. Por lição de Valladão (1978, p. 191), para quem
um lado, o texto é o ponto de partida e a todas as sentenças deveriam ser submetidas
moldura da interpretação, e, ainda que o à homologação para que passassem a valer,
intérprete goze de liberdade para escolher, como tais, no Brasil, sob pena de usurpar-
entre vários sentidos possíveis, o melhor, se a competência de tribunal superior para
não goza de tamanha liberdade que lhe delibar a sentença estrangeira. As situações
permita reputar não escrito o que está da vida real em que é preciso considerar
expresso no texto legal, especialmente se as sentenças estrangeiras multiplicam-se,
se trata do texto constitucional; por outro o que torna a posição de Valladão impra-
lado, há razões lógicas e de direito com- ticável. Cada vez mais o Brasil celebra
parado que confirmam o parecer adotado. tratados admitindo o reconhecimento
A opção constitucional alinha-se com a automático; cada vez mais o Brasil recebe
de muitos outros países, não constituindo sentenças estrangeiras, para valerem entre
nenhuma extravagância. Diversos orde- nós, servindo como evidência a estatística
namentos exigem formalidades especiais dos processos de homologação distribuídos
para o reconhecimento prévio à execução em nossos tribunais superiores, a cada ano
da sentença estrangeira, dispensando-as mais numerosos14.
nas demais situações. É o caso do direito Enquanto não advém a reforma dese-
interno na Itália e no Uruguai. A razão da jada, é este o quadro constitucional: não
distinção é a seguinte: uma coisa é reco- existe, como já dizia Tenório (1955, p. 433),
nhecer a sentença estrangeira, para que seja diante de normas constitucionais seme-
considerada na definição de direitos; outra lhantes às atuais, a regra “de que a sentença
coisa é reconhecer a sentença estrangeira, estrangeira, seja qual fôr a sua natureza,

da pelo Supremo Tribunal Federal [rectius: Superior 14


A partir de 1990 até 2008, ano a ano, as ações de
Tribunal de Justiça]. [...].” homologação de sentenças estrangeiras distribuídas
12
“Compete ao Superior Tribunal de Justiça: no Supremo Tribunal Federal e, após a EC 45/2004, no
I – processar e julgar, originariamente: [...] i) a homo- Superior Tribunal de Justiça foram: 86, 146, 140, 180,
logação de sentenças estrangeiras [...].” 145, 171, 241, 248, 267, 353, 413, 462, 550, 647, 749, 1706
13
“Aos juízes federais compete processar e julgar: (efeito da mudança da competência para homologar),
[...] X – [...] a execução [...] de sentença estrangeira, 892, 865 e 875. Dados disponíveis em: <www.stj.jus.
após a homologação [...].” br> e <www.stf.jus.br>. Acesso em: 13 jul. 2009.

52 Revista de Informação Legislativa


tenha de ser homologada”, mas existe sim, para acertar o estado das pessoas, sem re-
acrescentamos nós, a regra de que a senten- percutir diretamente na definição judicial
ça estrangeira deve ser homologada antes de direitos patrimoniais e sem implicar a
da execução (art. 109, X, da CR)15. alteração do registro civil de alguém. Por
Por exemplo, contraria a regra consti- não estar em jogo a execução da sentença
tucional da homologação para a execução estrangeira, a dispensa da homologação é
o art. 1316 da Convenção Interamericana constitucional. A propósito, o dispositivo,
sobre Obrigação Alimentar, promulgada além de ser constitucional, vige, não tendo
pelo Decreto 2.428/97, que prevê a deliba- sido revogado pelo art. 483 do Código de
ção de certas sentenças estrangeiras de ali- Processo Civil: em regra, a lei geral poste-
mentos no curso do processo de execução, rior não revoga a anterior especial.
de forma incidental, confiando-a ao juiz
federal competente para a execução. Essa 8. Palavras finais
disciplina conflita com a Constituição, pela
qual o juiz federal somente poderá executar Enfim, o regime jurídico das sentenças
sentenças estrangeiras após a homologação estrangeiras e, mais amplamente, da co-
pelo Superior Tribunal de Justiça, não a operação jurídica internacional passa por
suprindo a simples delibação incidental a transformações profundas. Assim, nossas
cargo dele próprio. opiniões devem ser abertas e flexíveis, bus-
Por outro lado, é constitucional o pará- cando conciliar: o ideal da cooperação entre
grafo único do art. 15 da Lei de Introdução os povos e o da proteção da soberania nacio-
ao Código Civil, de obscura redação: “Não nal; a necessidade de incorporarmos novos
dependem de homologação as sentenças instrumentos de cooperação, para acompa-
meramente declaratórias do estado de pes- nharmos o passo do resto do mundo, e a de
soas”. Em nossa opinião, o parágrafo refere- preservarmos nossas tradições jurídicas.
se às sentenças de estado, declaratórias ou
constitutivas, quando invocadas apenas
Referências
15
Assim, são compatíveis com a Constituição e vi-
gem os seguintes dispositivos que eximem a sentença ANZILOTTI, Dionisio. Dei casi in cui è necessario il
estrangeira da homologação: art. 15, par. ún., da Lei de giudizio di delibazione di una sentenza straniera. In:
Introdução; art. 63 do Código Penal; art. 435 do Código
Studi di diritto processuale internazionale e di filosofia del
Bustamante; art. 23 da Convenção relativa à Proteção
diritto. v. 4. Padova: CEDAM, 1963.
das Crianças e à Cooperação em Matéria de Adoção
Internacional, promulgada pelo Dec. 3.087/99; art. ARAGÃO, Paulo Cezar; ROSAS, Roberto. Comentários
14 da Convenção Interamericana sobre Obrigação ao Código de Processo Civil: arts. 476 a 484. 2 ed. v. 5.
Alimentar, promulgada pelo Dec. 2.428/97, e normas São Paulo: Revista dos tribunais, 1988.
semelhantes. Ao contrário, colidem com o art. 109, X,
da Constituição e são, portanto, inválidos os seguintes BARIATTI, Stefania. [Comentários ao] Articolo 67.
dispositivos que eximem a sentença da homologação: In: Fausto Pocar et al. Riforma del sistema italiano di
art. 13 da Convenção Interamericana sobre Obrigação diritto internazionale privato. Rivista di diritto inter-
Alimentar, promulgada pelo Dec. 2.428/97; art. 19, nazionale privato e processuale. Padova, ano 31, n. 4, p.
in fine, do Protocolo de Medidas Cautelares de Ouro 1.242-1.253, ott.-dic. 1995.
Preto, promulgado pelo Dec. 2.626/98.
16
“A verificação dos requisitos acima indicados BATIFFOL, Henri; LAGARDE, Paul. Droit international
[relativos à eficácia extraterritorial da sentença de ali- privé. tome 2. Paris: LGDJ, 1971.
mentos] caberá diretamente ao juiz a quem corresponda CAPPELLETTI, Mauro. Processo e ideologie. [Firenze]:
conhecer da execução, o qual atuará de forma sumária, Il Mulino, [1968].
com audiência da parte obrigada, mediante citação pes-
soal e com vista do Ministério Público, sem examinar CASTILHO, Ela Wiecko V. de. Cooperação interna-
o fundo da questão. Quando a decisão for apelável, o cional na execução da pena: a transferência de presos.
recurso não suspenderá as medidas cautelares, nem a Revista brasileira de ciências criminais. São Paulo, a. 16,
cobrança e execução que estiverem em vigor.” n. 71, p. 233-249, mar./abr. 2008.

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 53


LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da senten- do Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte, n. 10, p.
ça e outros escritos sobre a coisa julgada (com aditamentos 338-367, jan./jun. 2008. Disponível em: <http://www.
relativos ao direito brasileiro). Tradução de Alfredo mp.mg.gov.br/extranet/portal/index.jsp#svgCVnx-
Buzaid e Benvindo Aires. Tradução dos textos pos- A09MCP9gsH5gzSvMCUixzJvhCLjxyYjvzW92CPr3B
teriores à edição de 1945 e notas relativas ao direito YL2BOmxzJf2BeLMCLLgDHn0BTbhBLrxySidm2itnS
brasileiro vigente de Ada Pellegrini Grinover. 2 ed. ugEPnhDLnvzJf2BOCYCLnwyVruAYvwA0fwr4rN-
Rio de Janeiro: Forense, 1981. CH5wz0DskPSd>. Acesso em: 13 jul. 2009.
MAYER, Pierre; HEUZÉ, Vincent. Droit international ______. Sentença estrangeira: efeitos independentes da
privé. Collection Domat (droit privé). 7 ed. Paris: homologação. 263 f. Tese de doutorado em direito
Montchrestien, 2001. internacional. Faculdade de Direito da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, 2009.
MESQUITA, José Ignácio Botelho de. Sentença
estrangeira, eficácia e força probante, divórcio no TENÓRIO, Oscar. Lei de Introdução ao Código Civil:
estrangeiro, ausência de homologação, condição do Decreto-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942. 2 ed.
cônjuge divorciado e estudo de sua legitimidade aumentada. [S.l.]: Borsoi, 1955.
para intervir no inventário em que o outro seja parte,
VALLADÃO, Haroldo Teixeira. Direito internacional
inventário, legitimação do credor da herança e do
privado: parte especial (fim). v. 3. Rio de Janeiro: Li-
credor do herdeiro. Revista de processo. São Paulo, n.
vraria Freitas Bastos, 1978.
44, p. 223-233, out./dez. 1986.
VESCOVI, Eduardo. Derecho procesal civil internacio-
PEREIRA, Marcela Harumi Takahashi. As tendências
nal: Uruguay, el Mercosur y América. Montevideo:
atuais na circulação internacional de sentenças e o
Idea, 2000.
Brasil. De jure: revista jurídica do Ministério Público

54 Revista de Informação Legislativa


A culpabilidade compartilhada como
princípio mitigador da ausência de
efetivação dos direitos humanos
fundamentais

Cláudio Alberto Gabriel Guimarães

Sumário
1. Introdução. 2. Da legitimação do jus
puniendi estatal. 3. O Direito Penal apesar do
Direito Penal. 4. Os fundamentos filosóficos e
dogmáticos da culpabilidade compartilhada.
5. Da mitigação do poder de punir estatal. 6.
Considerações finais.

Delinear o horrível quadro dos crimes, triste


tarefa para minha pluma. À vista de tantas bai-
xezas, covardias, maldades, traições, barbáries
e atrocidades de que são capazes os homens,
que alma honrada não se enche de indignação!
Que alma sensível não se estremece de espanto!
Entretanto, é mais horrendo o quadro de iniqüi-
dades cometidas ao amparo do sagrado nome das
leis! Não falemos aqui da câmara ardente, da câ-
mara estrelada, do conselho terrível (vingativo) e
de tantos outros tribunais de sangue que fizeram
em outras ocasiões estremecer a natureza.
(MARAT, 2000, p. 61)

1. Introdução
Cláudio Alberto Gabriel Guimarães é Zaffaroni (2000, 2003) atribui a Jean
Promotor de Justiça do Estado do Maranhão. Paul Marat, médico e jornalista nascido na
Coordenador Estadual da Associação Brasileira Suíça, mais precisamente em Boudry no
de Professores de Ciências Penais – ABPCP. principado de Neuchâtel, em 24 de maio
Especialista em Direito, Estado e Sociedade de 17431, e que foi um dos grandes artífices
(Universidade Federal de Santa Catarina) e em da Revolução Francesa, a gênese das ideias
Docência Superior (Centro Universitário do sobre a co-culpabilidade, aqui denominada
Maranhão – UNICEUMA). Mestre e Doutor em culpabilidade compartilhada2.
Direito Público pela Universidade Federal de
Pernambuco. Doutor em Direito pela Univer- 1
Sobre a vida de Marat, cf. Coquard (1996).
sidade Federal de Santa Catarina. Pesquisador 2
Segundo Rivacoba y Rivacoba (2000, p. 21),
do CNPq. Professor Adjunto da Universidade Marat, em suas obras, sempre intentou demonstrar a
Federal do Maranhão. contradição existente nas ideias defendidas pelo des-

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 55


Passados mais de dois séculos, as ideias – deve ser total, não se podendo admitir
de Marat ganharam adesão e paulatina- que apenas parte do ordenamento seja
mente estão a se transformar em princípio cumprido.
informador da aplicação da dosimetria Na esfera do Direito Penal, as inter-
penal, assim como, ainda timidamente, em mitências acima referidas causam danos
causa impeditiva da punibilidade. irreparáveis à configuração do Estado De-
Já é bastante considerável a moderna mocrático de Direto, devendo, tanto quanto
doutrina que está a aprofundar os estudos e possível, de imediato, serem reparadas,
discussões acerca do tema, tendo o presente haja vista não ser razoável que o primeiro
texto a preocupação, mais que exaurir o contato do cidadão com o Estado se dê na
assunto, de indicar ao leitor a farta biblio- seara do Direito Penal, e não no amplo
grafia disponível sobre o mesmo. campo do Direito Constitucional, com a
Ademais, atentos a tais inovações, e efetivação de seus direitos fundamentais,
objetivando uma expansão da aplicação ali elencados e, portanto, reconhecidos.
do princípio, temos que o caminho para o É, pois, no amplo campo principiológico
alcance de tal objetivo passe pela investi- que a discussão trazida a lume deve ser
gação dos limites da lei no âmbito de sua travada.
efetividade, melhor explicando, necessário Feitas tais considerações, é fácil perceber
que se confronte o alcance das normas que que se busca atrelar a culpabilidade com-
deliberam sobre direitos e garantias funda- partilhada à ineficiência estatal em prover
mentais e o alcance das normas punitivas. os cidadãos de seus direitos fundamentais
É fato inconteste que a lei não pode básicos, ou seja, intenta-se desenvolver ar-
ser cumprida de maneira intermitente 3, gumentos científicos que possibilitem dar
ao sabor de conveniências, sejam estas de maior concretude à aplicação do instituto
qualquer natureza, vez que a legalidade – como forma de observação e preservação
para que se concretize o Estado de Direito dos referidos direitos e, por via de consequ-
ência, de resgatar o verdadeiro sentido da
potismo ilustrado, vez que pretendiam estas a obten-
até agora controvertida expressão “Estado
ção do progresso social sem, entretanto, enfrentarem
o grave problema das estruturas sociais fundadas na Democrático de Direito”.
exploração de um campesinato miserável. É este o desafio do presente texto.
3
Importante transcrever a ementa do acórdão n.
70029175668, do TJRS: Roubo majorado. Condenação:
mantida ante a solidez probatória. Atenuante: pode 2. Da legitimação do
deixar a pena aquém do mínimo (o artigo 65, Código
Penal, fala em sempre, e sempre é sempre, pena de sem- jus puniendi estatal4
pre não o ser). Majorante do uso de arma: excluída por
inexistência de prova da potencialidade ofensiva do
Partindo-se dos escritos contratualistas,
aparato. Recolhimento prisional: o condenado somente assim como dos influxos destes, justifica-se
será recolhido a estabelecimento prisional que atenda a existência do Estado em razão da necessi-
rigorosamente aos requisitos impostos pela legalidade dade de manutenção de uma convivência
– Lei de Execução Penal. Legalidade: não se admite, no
Estado Democrático de Direito, o cumprimento da lei apenas harmônica entre as pessoas que compõem o
no momento em que prejudique o cidadão, sonegando-a quan- corpo social, convivência essa que tem por
do lhe beneficie. Missão judicial: fazer cumprir, apesar de ponto de referência o bem comum5.
algum ranger de dentes, os direitos da pessoa – seja
Em síntese, cabe ao Estado a manuten-
quem for, seja qual o crime cometido.
À unanimidade, deram parcial provimento ao apelo ção da paz e da harmonia social, que será
para reduzir a pena do acusado. Por maioria, determinaram
que o apenado cumpra pena em domicílio enquanto não 4
Sobre o assunto, em profundidade, Guimarães
houver estabelecimento que atenda aos requisitos da LEP, (2008).
vencido o Relator, que determinava a suspensão da expedição 5
Para entendimento do assunto, imprescindível
do mandado de prisão enquanto não houver estabelecimento a leitura de Hobbes (2006), Locke (1994) e Rousseau
que atenda a tais requisitos. (2001).

56 Revista de Informação Legislativa


alcançada pela via da disciplina ou controle punir a longeva – e absolutamente defasada
social, cujo principal instrumento é o direito – ideologia da defesa social8.
legislado6. Existe, pois, de forma inconteste, um
Isso posto, afirmam os estudiosos da enorme déficit de legitimação no universo
teoria do Estado que todos os meios devem punitivo do Estado, aproximando-o, em
estar disponíveis para o alcance de tal fim, pleno século XXI, muito mais do modelo
desde que legítimos – e neste ponto cria-se Leviatã de Thomas Hobbes que do Estado
uma perigosa sinonímia entre legalidade e Constitucional e Democrático de Direito,
legitimidade –, credenciando-se, então, o Di- tão propalado em nível abstrato pela maio-
reito Penal como o meio mais extremo para ria da doutrina afeta ao tema.
tal desiderato (Cf. PASUKANIS, 1989). Desta feita, tomando-se por referên-
A partir desse ponto do pensamento ilu- cia a dicotomia existente entre ambos os
minista, iniciou-se, de forma sistematizada, tipos de violência – criminal e estrutural9
a elaboração de teorias que legitimassem a –, imperioso que sejam elaborados outros
aplicação das punições aos seres humanos, fundamentos para o exercício do poder
o que, para efeitos de facilitação pedagógi- punitivo, que lhe propiciem um mínimo
ca, pode ser sincronicamente traçado como de legitimação, devendo, para tanto, serem
o desenvolvimento das teorias de cunho levadas em conta, de forma inexorável,
retributivista, cujos maiores expoentes as intermitências legislativas, ou seja, a
foram Kant e Hegel, até as teorias funcio- aplicação de apenas parte do ordenamento
nalistas – prevenção geral positiva –, cujos jurídico pelo Estado.
mais conhecidos representantes no Brasil Antecipando-se à prática do fato típico,
são Gunter Jakobs e Claus Roxin7, sendo que desencadeia, no espaço de seleção
desenvolvidos nesse ínterim, isolada ou dos vulneráveis, o jus persequendi e o jus
concomitantemente, estudos teóricos sobre puniendi estatal, devem ser analisadas as
as teorias da intimidação, neutralização e possibilidades de igualdade dos pontos
ressocialização, com alguns autores tendo de partida 10, melhor explicando: para
optado pelo sincretismo teórico, criando as que o Estado possa punir de forma justa
teorias mistas.
Não obstante o esforço teórico despren- 8
Sobre o assunto, imprescindível a leitura de Ba-
ratta (1999), Andrade (1997, 2003) e Guimarães (2007).
dido, entendemos que todas as teorias
Na visão de Muñoz Conde (2005, p. 31): “A tese do
que tentam legitimar o jus puniendi estatal direito penal como direito igualitário e da pena como
podem ser facilmente infirmadas em razão prevenção integradora do consenso é insustentável no
de um fato muito simples, qual seja: são modelo de sociedade baseada na desigualdade e na
apriorísticas, isto é, buscam legitimação a exploração do homem pelo homem”.
9
Até mesmo Bobbio (2006, p. 267), conhecido
partir de um fato preconcebido e irrefutá- positivista, em carta escrita para Alessandro Baratta,
vel, o delito cometido. reconhece: “Confesso que não consigo sequer entender
As teorias da pena jamais suscitaram bem o que significa “teoria materialista do desvio”. Se
qualquer discussão sobre as razões de es- significa que no estudo dos comportamentos desvian-
tes devem-se levar em conta as condições materiais,
colha de determinados comportamentos no interior das quais age o sujeito desviante, desafio a
para figurarem como tipo penal, assim que se consiga encontrar um estudioso do desvio que
como nunca discutiram, de forma séria, as não esteja de acordo com isso”.
relações entre violência criminal e violência
10
Cf. Bobbio (2001, p. 22), para quem: “... afirma-se
que não há programa político que não faça referência
estrutural, prevalecendo, isto sim, como a alguma forma de igualdade, seja ela a igualdade dos
teoria de base fundamental do direito de pontos de partida, das oportunidades, dos rendimen-
tos, dos resultados, e assim por diante. Mas não fui
6
Sobre Teoria do Estado, por todos, Heller (1968) eu mesmo quem escreveu: ‘Qual é a doutrina política
e Chatelet e Pisier-Kouchner (1983). que não tem a ver, em maior ou menor medida, com
7
Sobre as teorias da pena, Guimarães (2001, 2007). a igualdade?

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 57


e legítima, necessário se faz que todos os 3. O direito penal apesar
cidadãos tenham tido, no ponto de partida, do Direito Penal
as mesmas oportunidades. Ratificamos, o
cidadão não pode ter como primeiro con- Com comprovação empírica reiterada
tato com o Estado o banco dos réus em um ao longo de inúmeras pesquisas acadêmicas
processo criminal. (Cf. CASTILHO, 2001; GUIMARÃES, 2009)
A igualdade dos pontos de partida nas mais variadas áreas de investigação
pode ser entendida como igualdade de científica, a seletividade, a estigmatização e
oportunidades, ou seja, todos devem ter o funcionamento quase que absolutamente
amplo acesso aos direitos fundamentais simbólico do sistema penal, assim como e,
que se corporificam na concretização da consequentemente, a inalcançabilidade das
dignidade da pessoa humana desde o início funções declaradas creditadas às penas,
da vida. acabam por demonstrar o total fracasso
É de fundamental importância que se do Direito Penal como forma de controle
reconheça que todos os cidadãos devem social, ou, pelo menos, alertam para o fato
ter direito a uma família estruturada, na de que tal tipo de controle social não é o
qual o acesso, desde o início da vida – mais apto para disciplinar as relações que
ratificamos –, a um nascimento e desen- permeiam a vida do e no planeta (Cf. ZA-
volvimento dignos e, posteriormente, ao FFARONI, 2005, 2007).
ensino fundamental, ensino médio, ensino Em razão do que acima exposto, cha-
profissionalizante, ensino superior, todos mando atenção para o fato de que o Direito
de qualidade, devem ser disponibilizados Penal não pode ser considerado como o
pelo Estado, para que as escolhas possam principal meio de controle social, os crimi-
ser feitas, principalmente, no que pertine ao nólogos críticos têm desenvolvido trabalhos
pacto da legalidade, como cidadãos aptos no sentido de se reconhecer a utilização do
a fazerem tal escolha11. direito punitivo apesar do direito punitivo,
Assim sendo, moradia, saúde, alimen- ou seja, a utilização do cárcere apesar do
tação, educação e trabalho são direitos cárcere12, enaltecendo o careáter subsidiário
humanos fundamentais aos quais todos, do Jus Puniendi estatal, assim como fortale-
sem exceção, devem ter alcance, em todas cendo a ideia de um Direito Penal mínimo
as fases da vida, para que a igualdade dos e garantista (Cf. FERRAJOLI, 2002).
pontos de partida seja preservada e, desse Em primeiro lugar, na tabela das prio-
modo, o Estado possa exigir os respecti- ridades sociais, devem figurar os Direitos
vos deveres de quem teve garantidos tais Humanos, preferentemente antes que o di-
direitos. reito punitivo seja chamado a intervir, vez
que, com os direitos fundamentais sociais13
11
Importante ressaltar o necessário avanço do sendo efetivamente reconhecidos e imple-
conceito de cidadania já delineado pela doutrina de
vanguarda. Desse modo, a cidadania, por meio de tal 12
Cf. Baratta (1987), Aniyar de Castro (2009). Para
superação, vai adquirindo paulatinamente uma nova Muñoz Conde (2005, p. 33): “Enquanto existir direito
dimensão, passando a incorporar em seu âmago ou- penal, e nas atuais circunstâncias parece que haverá
tros direitos distintos dos eleitorais, como os direitos ‘direito penal por muito tempo’, é necessário que haja
políticos, econômicos, culturais, sociais, difusos e alguém que se encarregue de estudá-lo e analisá-lo
coletivos, entre outros, assim como, e, principalmen- racionalmente para convertê-lo em instrumento de
te, quando passa a adquirir uma dimensão coletiva mudança e progresso para uma sociedade mais justa
de tal conceito, que ultrapassa a noção do indivíduo e igualitária, denunciando, além de suas contradições,
atomizado – resquício liberal – para se transformar as do sistema econômico que o condicionam”.
em uma cidadania plural, com formas de expressão 13
Cf. Gonçalves (2006, p. 76-82), para quem: “Um
múltiplas e heterogêneas, trazendo consigo, pois, a fato, contudo, merece destaque a partir da normativi-
possibilidade permanente de sua reinvenção. (AN- dade constitucional. Ou seja, a garantia da igualdade,
DRADE, 1993, p. 126-134) enquanto possibilidade material para o exercício das

58 Revista de Informação Legislativa


mentados14, ao controle sócio-penal resta- efetivação dos direitos humanos sociais
riam apenas as condutas que efetivamente básicos, em uma perspectiva anterior à con-
põem em risco a estabilidade do sistema flituosidade criminal, e garantir o respeito
republicano de governo, consubstancian- aos direitos e garantias fundamentais para
do-se em um Direito Penal de intervenção aqueles selecionados pelo sistema penal.
mínima, cuja referência para intervenção É absolutamente relevante que fique
seriam, finalmente, a magnitude do bem claro que as teorias criminológicas críticas
jurídico lesado, a gravidade da lesão e a – como ardilosamente orquestrado por
necessidade de aplicação de uma sanção aqueles que não se filiam às suas ideias
penal, mais precisamente de uma pena. – não defendem a impunidade e muito
Tal preocupação deriva da incontestável menos a anarquia social; reconhecem, isto
relação existente entre Direitos Humanos sim, a gravidade de determinadas situações
e Direito Penal, posto que, onde há mais conflituosas e, por via de consequência,
incidência do Direito Punitivo, com toda a admitem a utilização do Direito Penal como
certeza, há menos prevalência dos Direitos forma de controle em tais situações16.
Humanos sociais básicos15. Vão mais além! Chamam a atenção para
Existe, pois, uma clara inversão de prio- o fato da quase total invulnerabilidade dos
ridades. Na verdade, ao Direito Penal ho- criminosos pertencentes aos estratos sociais
diernamente é impingida a triste tarefa de mais privilegiados, na esfera dos “crimes
conter as nefastas consequências advindas de colarinho branco”, advertindo para a
das políticas elaboradas e implementadas gravidade da lesão no tecido social que tais
pelas teorias neoliberais (Cf. COUTINHO, condutas conlevam, pugnando, assim, por
2001), ou seja, sua principal missão é o con- um redirecionamento dos holofotes puni-
trole da miséria advinda da exclusão social tivos, inclusive midiáticos, e pela eleição
gerada por tais políticas que estão paula- de novas prioridades em sede de política
tinamente, de maneira crescente, sendo criminal para que o sistema penal possa
executadas nas áreas social e econômica. alcançar os até agora quase inalcançáveis
Em síntese, a proposta das vertentes crimes políticos e econômicos.
criminológicas que se antepõem às teorias Ressalte-se, entretanto, que tanto para
que insistem em buscar origens para a os delitos praticados com violência direta
criminalidade nos critérios antropo-bio- contra o ser humano – crimes contra a vida,
psicológicos (Cf. MANTOVANI, 2000) ou, o patrimônio e os costumes, entre outros
ainda, que consideram tais critérios como menos costumeiros –, geralmente afetos
preponderantes na gênese da criminalidade as camadas sociais menos privilegiadas,
é minimizar a aplicação do direito punitivo, quanto em relação aos delitos de colarinho
assim como, e principalmente, priorizar a branco – violência indireta –, praticados por
aqueles que, em regra, detêm poder político
diferenças, passou a ser o grande escopo da Carta e/ou econômico, inafastáveis os direitos
Política de 1988”. e garantias duramente construídos pelo
14
Na visão de Freire Júnior (2005, p. 83): “Inte-
ressante observar que, da atuação parcial do Estado,
Direito Penal liberal, tributário dos ideais
há para o indivíduo um novo direito fundamental iluministas17.
constitucional a amparar sua pretensão, que é exata- Coerentemente, as teorias criminológi-
mente o princípio da igualdade. Efetivamente, além cas críticas rejeitam, de forma veemente,
do fundamento originário (por exemplo, direito à
educação ou à saúde), há outro fundamento, também
todas as teorias de Direito Penal que visem
de estatura constitucional, que é o direito à igualdade a sua expansão ou o seu recrudescimento,
de prestações. Se existem vagas na escola de 1o Grau como as teorias do direito penal do ini-
para Tício, há de existir vagas para Mélvio”.
15
Cf. a extensa obra de Wacquant (2000, 2001a, 16
Por todos, Baratta (2004).
2001b, 2002a, 2002b, 2003a, 2003b). 17
Cf., por todos, Beccaria (1993).

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 59


migo18, do direito penal de duas ou três mudanças na esfera do jus puniendi, princi-
velocidades, da tolerância zero, entre tantas palmente no sentido de seu arrefecimento,
outras teorias afetas aos movimentos de lei e que não tenham expressa previsão legal,
e ordem19. sempre serão alvo de intensa oposição.
Do exposto, como forma de contenção No caso do princípio em estudo, cuja
do poder punitivo, em razão mesmo do mudança proposta, na melhor das hi-
desigual funcionamento do sistema penal e póteses, será conceituada de alteração
das consequências punitivas dali oriundas, vanguardista e, com toda a certeza, pelos
intenta-se, de maneira incansável, criar me- mais conservadores, de mudança sediciosa,
canismos – de preferência com repercussão importante que concretos e seguros sejam
dogmática –, arrimados em princípios de os fundamentos para sua aplicação.
cunho constitucional, implícitos ou explí- Além de toda a construção principioló-
citos, que influenciem tanto em sede de gica que já estrutura e, consequentemente,
configuração do delito como também em possibilita uma aplicação do Direito Penal
sede de dosimetria penal, ou seja, devem mais humana e garantista, filosoficamente
ser desenvolvidos teoricamente institutos pode-se enveredar pela teoria da natureza
que afastem a imputação – por exclusão do das coisas, iniciada na antiguidade, desen-
tipo, da antijuridicidade ou da culpabilida- volvida por Tomás de Aquino, revisitada
de (Cf. TAVARES, 1980; MUÑOZ CONDE, por Montesquieu no seu “Espírito das
1988; SANTOS, 2002) – ou arrefeçam a Leis”, assim como por Marat, no compên-
punibilidade. dio “Plano de legislação criminal”, e, mais
modernamente, ampliada por autores
4. Os fundamentos como Savigny e Ihering, entre outros20.
filosóficos e dogmáticos da A teoria filosófica da natureza das coi-
culpabilidade compartilhada sas, em uma apertada síntese, defende o
ponto de vista segundo o qual as punições
Sabe-se que, em um país com tradição não podem e não devem ser iguais para
positivista como o Brasil, assim como em as pessoas, ainda que cometido o mesmo
razão dos graves problemas políticos, delito, devendo, isto sim, com o fim maior
sociais e econômicos que acarretam uma de alcance da justiça e da liberdade, ser
crescente violência estrutural e, por via de aplicadas as penas, quando necessário,
consequência, a escalada desenfreada da fundamentadas nas particularidades que
violência criminal, inovações que postulem cercam o caso concreto, nas circunstâncias
18
Em síntese, como eixo central, para Jakobs (2006,
específicas que o envolvem, ou seja, na
p. 96), o Direito Penal do inimigo propugna por uma natureza das coisas.
revisão no âmbito de reconhecimento dos direitos e ga-
rantias fundamentais da pessoa humana, vez que: “A vi- 20
Cf. Rivacoba y Rivacoba (2000, p. 41), para quem
gorosa sentença, segundo a qual, nos dias de hoje, todos “este igualitarismo penal, basado en una concepción
devem ser tratados como pessoas pelo Direito, portanto, identitaria, no diferenciadora, de la condición huma-
como é de se supor, necessita de uma adição: sempre na, y, por ende, en una concepción homogênea, no
que aqueles “todos” cumpram com seus deveres, ou, estratificada de la sociedad, es un igualitarismo, pues,
em caso contrário, sempre que estejam controlados, é de princípio, que no excluye, sino que admite y aun
dizer, que não possam resultar perigosos... parece claro requiere la estimación de las circunstancias en que
que há de se distinguir entre um direito postulado – com está situado el sujeto y que de consiguiente atenúan
independência de que este postulado resulte mais ou o agravan en los distintos casos su responsabilidad,
menos convincente – um direito modelo, e a estrutura y fue, más que deformado, desnaturalizado por el
normativa real de uma sociedade. Aquele pode orientar ingenuo radicalismo revolucionário, de los códigos
no futuro, “no espírito”, entretanto, somente este está a franceses de 1791 y 1795, con su sistema de penas
orientar no respectivo ‘aqui e agora’”. únicas e fijas para cada especie delictiva, sin tener
19
Sobre a expansão do Direito Penal, cf. Cancio en cuenta para nada las particulares realidades que
Meliá e Jará Diez (2006). graviten sobre el agente”.

60 Revista de Informação Legislativa


Dogmaticamente, os estudos que se que permeia a utilização do Direito Penal
destacam nessa seara são os desenvolvidos como forma de controle social – tanto na
por Claus Roxin, que pugnam pela inserção esfera de seus postulados básicos, como os
de institutos de política criminal no âmbito inalcançáveis Princípios da Igualdade e da
da dogmática penal, cujo paroxismo é o Legalidade, como também na esfera social
entendimento de que, ainda que o fato seja –, na qual o primeiro contato do Estado com
típico, antijurídico e culpável, a pena só o cidadão é na esfera punitiva (cidadania
deverá ser aplicada quando absolutamente negativa), vez que os direitos à educação,
necessária21. saúde, moradia, emprego, habitação, enfim,
Assim sendo, entendemos que toda o direito a uma vida digna é açambarcado
doutrina – seja no âmbito da filosofia, pelo próprio Estado, que nega a seus sú-
seja no âmbito dogmático – que analisa ditos o reconhecimento de seus direitos
criticamente os fins atribuídos às penas e sociais fundamentais, ou seja, nega o acesso
que insere como primeiro pressuposto a à cidadania positiva.
necessidade de aplicação das mesmas pode Em razão do entendimento acima ex-
servir de substrato para o desenvolvimento pendido, está a se desenvolver em sede
e aplicação do princípio da culpabilidade doutrinária, inclusive com ressonância na
compartilhada. jurisprudência de vanguarda, o princípio
da co-culpabilidade (Cf. HASSEMER, 1999;
5. Da mitigação do poder CARVALHO, 2002; RODRIGUES, 2004;
de punir estatal CASTRO, 2005; MOURA, 2006).
Parte da doutrina entende tal princípio
Várias têm sido as criações doutrinárias, como aquele que autoriza o compartilha-
como dito acima, que, pelos mais variados mento da culpabilidade entre o agente
motivos, propugnam por uma retração do infrator, a sociedade23 e o Estado, os dois úl-
poder punitivo. timos responsáveis pelas injustiças sociais,
Há farta doutrina e jurisprudência políticas e culturais que acarretam desi-
sedimentando a aplicação dos princípios gualdade econômica e, consequentemente,
da intervenção mínima, subsidiariedade, fulminam a possibilidade de igualdade
insignificância, proporcionalidade, entre na superação dos percalços cotidianos,
tantos outros22. não sendo, pois, razoável exigir de todos
Entretanto, inobstante a existência, um comportamento adequado à lei e aos
reconhecimento e relevante aplicação dos interesses gerais da sociedade em igual
princípios acima nominados, necessário medida.
ainda que se expanda a gama de institu- A culpabilidade, assim entendida, como
tos que arrefeçam o direito punitivo, em reprovabilidade da conduta delituosa, seria
razão mesmo da falta de legitimidade diretamente proporcional às oportunida-
21
Cf. Roxin (1981, 1997, 1998a, 1998b, 2000a,
des materiais, sociais e culturais às quais
2000b), para quem “a responsabilidade penal pres- o agente infrator tenha tido acesso para
supõe sempre dois requisitos: a culpabilidade do
autor e, além disso, a necessidade preventivo-geral 23
Segundo Houed (2009): “Toda persona actúa
ou especial de punição. Culpabilidade e prevenção en una circunstancia dada y con un ámbito de auto-
limitam-se, portanto, reciprocamente: necessidades determinación dado. Por mejor organizada que este
preventivas jamais podem levar a que se puna onde una sociedad, siempre habrá quien esté en peores
inexista culpabilidade. Mas a culpabilidade de uma condiciones que otros y no sería justo que al momento
pessoa igualmente não basta para legitimar a pena, de reprocharle la culpabilidad también deba cargar con
enquanto esta não seja indispensável do ponto de las causas sociales que de alguna manera determinaron
vista preventivo”. su conducta. Se dice que hay una ‘co-culpabilidad’ de
22
Por todos, cf. Gomes e Pablos de Molina (2007) la sociedad misma, con la cual debe cargar al momento
e Zaffaroni (2003). del reproche al sujeto que realizó la conducta”.

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 61


realizar-se como ser humano honrado e e encaminhará o apenado para programas
comportar-se de acordo com os mandatos e públicos de inclusão social, para que, as-
proibições afetos ao controle social formal, sim, o primeiro contato entre o Estado e
derivando desse entendimento a concreti- o cidadão se dê no âmbito da cidadania
zação de uma “mea culpa”, cujo principal positiva, reconhecedora de direitos, e não
objetivo é atenuar o direito de castigar que na esfera da punição, da cidadania nega-
o Estado exerce em nome da sociedade24. tiva, cujo objetivo é uma restrição ainda
Como forma de aumentar a objetividade maior dos poucos direitos usufruídos pelos
na aplicação do princípio em estudo, pro- extremófilos.
pomos, na esfera dos crimes perpetrados Não é de bom tom que se suprima ainda
sem efetiva violência contra a vítima, quan- mais o que já não representa o mínimo exis-
do efetivamente detectada nos autos, após o tencial, e é isso o que ocorre diariamente
devido processo legal, a vulnerabilidade ex- em sede de direito punitivo, cujo alcance
trema ou extremofilia25 daquele que deverá hoje está quase que totalmente adstrito ao
ser apenado, assim como a primariedade, controle da miséria e dos miseráveis, ou
que a pena deixe de ser aplicada, não como seja, perante as consequências da exclusão
“mea culpa” do Estado e da sociedade, mas social, a melhor solução é a carcerização26.
como forma objetiva de compensação pela Assim sendo, funcionaria a culpabilidade
omissão estatal em cumprir as leis em sua compartilhada como verdadeiro princípio
integralidade. neutralizador da seletividade que permeia
A aplicação do princípio da culpabili- o funcionamento do sistema penal. Embora
dade compartilhada aqui proposta estaria selecionados pelas instâncias iniciais do sis-
adstrita, portanto, exclusivamente como tema, caracterizada a extremofilia no âmbito
uma mitigação da intermitência estatal no do devido processo legal, esta funcionaria
cumprimento dos dispositivos legais; é um como causa impeditiva da punibilidade.
acerto de contas entre o Estado e o cidadão,
excluindo-se, na seara objetiva, a sociedade
6. Considerações finais
de tal ajuste.
Dessa forma, o Estado, representado A inércia é a pior das atitudes, ou da
pelo órgão jurisdicional e pelo Ministério falta delas, que pode se configurar nas rela-
Publico, reconhecendo não ter tido o ape- ções entre o Estado e o cidadão quando está
nado acesso aos direitos sociais mínimos em jogo a efetivação de direitos e garantias
que garantiriam a sua dignidade como constitucionalmente reconhecidos.
pessoa humana, deixará de aplicar a pena Os cidadãos não podem ficar à mercê de
contingências político-econômicas estatais
24
Carvalho (2002, p. 74) é taxativo: “... a precária
situação econômica do imputado deve ser priorizada 26
Segundo Barroso (2009): “O sistema penitenciário
como circunstância atenuante obrigatória no momento no Brasil é degradante. É tão perverso mandar alguém
da cominação da pena”. para esse sistema que os juízes com sensibilidade social
25
Sobre o assunto, em profundidade, Bomfim maior procuram os caminhos mais variados em termos
(2009, p. 69), para quem “os extremófilos são os seres de interpretação jurídica para não ter de condenar
nos quais o Estado não poderá utilizar o sistema pe- alguém à prisão. Mandar alguém para o sistema pe-
nal, por serem fracos em demasia para a utilização da nitenciário é quase como que perder essa pessoa para
violência estatal como controle social. Os seres muito a vida civilizada. A pessoa não é só condenada a dois
fracos, apenas sobrevivendo, vivendo em situações anos de prisão, mas à imundície, à violência sexual, às
extremas, transformam-se em extremófilos e não po- doenças. Se esse sistema não melhorar, vamos ter a ati-
dem ser alcançados pela violência estatal. Isso porque tude quase moral do juiz de só mandar para o sistema
o mundo penal os alcançará certamente. Ou seja, serão quem não tem nenhuma possibilidade de salvação. A
punidos por instâncias não formalizadas – ou formali- pessoa condenada a uma pena privativa de liberdade
zadas – pela própria situação singular de vida incluí- deve cumprir uma pena privativa de liberdade e não
dos em uma ambiência de extrema vulnerabilidade”. uma pena de violências físicas”.

62 Revista de Informação Legislativa


para verem consolidado o mínimo existen- ______. A ilusão de segurança jurídica: do controle da
cial devido a cada um. violência à violência do controle penal. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 1997.
É claramente perceptível que a respos-
ta do Estado, hodiernamente, a tal falta ______. Sistema penal máximo x cidadania mínima: códi-
gos da violência na era da globalização. Porto Alegre:
de efetivação do que previsto legalmente
Livraria do Advogado, 2003.
como direitos sociais básicos para uma
considerável parcela da população, quiçá ANIYAR DE CASTRO, Lola. La Crimilogia crítica
em el siglo XXI como criminologia de los derechos
a maioria dela, é o incremento de medidas
humanos y la contra-reforma humanística o las teorias
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vidade a mecanismos que possam atingir ______. Criminologia y sistema penal. Compilación in
a tal desiderato, ou seja, mecanismos que memoriam. Buenos Aires: Euros, 2004.
se constituam como real arrefecimento da BARROSO, Luis Roberto. Entrevista concedida ao site
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culpabilidade compartilhada, como causa cados de uma distinção política. Tradução de Marco
impeditiva da punibilidade, é um caminho Aurélio Nogueira. São Paulo: UNESP, 2001.
que vale a pena ser trilhado. ______. Nem com Marx, nem contra Marx. Tradução de
Em síntese, enquanto não forem efe- Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: UNESP, 2006.
tivamente implementados os direitos so- BOMFIM, Urbano Félix Pugliesi do. Uma correção ao
ciais básicos que garantam aos cidadãos a sentido do princípio da intervenção mínima no direito penal.
igualdade dos pontos de partida dentro do Dissertação de Mestrado apresentada no Programa da
Pós-graduação em Direito da Universidade Federal
âmbito da competitividade em sociedade,
da Bahia. 2009.
pelo menos na esfera dos crimes cometidos
sem violência física real à pessoa, o Estado CANCIO MELIÁ, Manuel; JARA DIEZ, Carlos Gomes
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estaria impedido de exercer o jus puniendi, de la exclusión. v. 1, 2. Buenos Aires: Edisofer, 2006,
como forma de compensação pela omissão p. 1.111 e 1.173.
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Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 65


Pena de multa criminal, execução e
legitimidade ativa do Ministério Público

Valter Foleto Santin

Sumário
Introdução. Fundamentação. Conclusão.

Introdução
A execução de multa criminal proces-
sava-se tradicionalmente no próprio Juízo
de conhecimento ou no Juízo da Execução
Criminal, na dependência de ser única san-
ção aplicada ou se cumulada com pena pri-
vativa de liberdade, com movimentação e
participação ativa do Ministério Público.
Depois da alteração de redação do artigo
51, do Código Penal, pela Lei 9.268/1996,
surgiu entendimento doutrinário e juris-
prudencial de que o Juízo criminal não
possuiria mais competência jurisdicional
para execução de pena de multa, passando
o encargo para a Vara da Fazenda Pública,
e que a legitimidade ativa para pleitear a
cobrança deveria ser exercida pela Procu-
radoria da Fazenda, não mais de atribuição
do Ministério Público.
Este trabalho procura analisar as ques-
tões pertinentes à multa penal, competência
jurisdicional do Juízo Criminal e continuida-
de da atribuição do Ministério Público para
promover a execução da multa criminal.
Valter Foleto Santin é professor do programa
de mestrado em Direito da Universidade Esta- Fundamentação
dual do Norte do Paraná, em Jacarezinho – PR;
Doutor em Processo e promotor de Justiça em O cometimento de delito sujeita o agente
São Paulo. às penas privativas de liberdade, restritivas

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 67


de direito e de multa (art. 32, I a III, do solução é a reversão da multa, tendo em vis-
Código Penal), estabelecidas e individua- ta que há previsão expressa de substituição
lizadas pelo juiz na sentença, com base nos da pena privativa de liberdade por multa
norteamentos da fase de aplicação da pena ou restritiva de direito (art. 44, § 2o) e a sua
(art. 59, do Código Penal). conversão em caso de descumprimento
A multa pode ser modalidade autônoma (art. 44, § 4o).
de pena ou substitutiva. A reversão é possível, porque a multa
A multa constante do tipo penal é mo- substitutiva tem ligação umbilical com a
dalidade autônoma de pena (arts. 32, III, pena substituída (privativa de liberdade), é
e 58, do Código Penal) e não permitiria dela dependente, e, em caso de descumpri-
a conversão em prisão (Lei 9.268/1996), mento, a solução lógica, normal, racional e
sendo caso de exigência por processo de proporcional é o retorno ao status quo ante
execução de pena. e exigência da pena aplicada, no caso a pri-
Porém, a despeito do mesmo nome vativa de liberdade. O E. STJ já decidiu ser
“multa”, a multa substitutiva tem natureza possível a reconversão em prisão da pena
jurídica diversa, tratando-se de modalida- pecuniária substitutiva, enfatizando que o
de secundária e dependente (arts. 44, § 2o, “princípio constitucional que proíbe a prisão
58, parágrafo único, e 60, § 2o, do Código por dívidas incide sobre as penas de multa
Penal), permitindo, em caso de descum- previstas no próprio tipo penal, a teor do que
primento, a reversão em pena privativa de dispõe a Lei 9.268/96, contudo, não compre-
liberdade (art. 44, § 4o, do Código Penal). ende a pena pecuniária advinda em substi-
A multa substitutiva pode ser usada tuição da prisão, conforme opinião lançada
como substituição da pena privativa de nos precedentes desta Casa” (HC 22568/
liberdade exclusiva, alternativa ou cumu- MG, Relator(a) Ministro JOSÉ ARNALDO
lativa. Na pena privativa de liberdade não DA FONSECA, QUINTA TURMA, j. em
superior a 6 meses (art. 60, § 2o, do mesmo 20/02/2003, DJ 24.03.2003, p. 249, v.u.).
codex), a substituição por multa é exclusiva; Em relação à multa prevista como pena
na sanção superior a 6 meses e até 1 ano, a autônoma no tipo penal (art. 32, III, CP),
substituição é alternativa, por concorrência não há mais possibilidade de conversão em
da multa com pena restritiva de direito (art. prisão (art. 51, do Código Penal com a nova
44 § 2o, 1a parte, do Código Penal); e se su- redação fornecida pela Lei 9.268/1996),
perior a 1 ano até 4 anos, quando possível a sendo a única alternativa a execução da
substituição da pena privativa de liberdade multa (art. 51).
por duas sanções, a multa pode ser cumu- A execução da pena de multa criminal
lativa ou alternativa com pena restritiva de está regulada atualmente pelo artigo 164,
direito, em virtude de opção de aplicação da Lei de Execução Penal, e Lei 6.830/1980,
de uma pena restritiva de direito e multa observando que o artigo 51 fez referência à
ou por duas restritivas de direito (art. 44 aplicação das normas da legislação relativa
§ 2o, 2a parte, do Código Penal), porque à dívida ativa da Fazenda Pública.
possível a substituição de modalidade de Prevê o artigo 164, da LEP (Lei
pena privativa de liberdade até 4 anos (art. 7.210/1984), que “extraída certidão da
44, I, do Código Penal). sentença condenatória com trânsito em
Não há, no capítulo da aplicação da julgado, que valerá como título executivo
pena e da multa substitutiva (art. 60, § judicial, o Ministério Público requererá, em
2o, do Código Penal), solução legal sobre autos apartados, a citação do condenado
o descumprimento da sanção pecuniária para, no prazo de 10 (dez) dias, pagar o
substitutiva. Uma alternativa é a execução valor da multa ou nomear bens à penhora”.
da multa (art. 51, do Código Penal). Outra O dispositivo trata de questões processuais

68 Revista de Informação Legislativa


da execução, cuidando da condição de títu- Estado, Município e do Distrito Federal (art.
lo executivo judicial (certidão da sentença 2o, caput, da Lei 6.830/1980). O valor em
condenatória com trânsito em julgado), cobrança atribuído às referidas entidades
legitimidade ativa (Ministério Público) e é considerado dívida ativa (§ 1o). Estatui-se
de procedimento (citação para pagar ou que a inscrição é controle administrativo da
nomear bens em 10 dias). legalidade, para apurar a liquidez e certeza
Por seu turno, o artigo 51, do Código do crédito e efeito de suspensão da pres-
Penal, dispõe: “Transitada em julgado a crição (§ 3o), contendo o § 5o os requisitos
sentença condenatória, a multa será consi- do termo de inscrição, cuja certidão deverá
derada dívida de valor, aplicando-se-lhe as acompanhar a petição inicial (art. 6o, § 1o,
normas da legislação relativa à dívida ativa da Lei 6.830/1980).
da Fazenda Pública, inclusive no que con- A Lei 6.830/1980 não trata especifica-
cerne às causas interruptivas e suspensivas mente da cobrança de multa criminal nem
da prescrição”. A disposição penal trata de legitimidade da Fazenda Pública para
da caracterização da multa como dívida tanto. O direito de execução de natureza
de valor e aplicação da legislação sobre a processual tem origem no direito material,
dívida ativa da Fazenda Pública, inclusive para definição da modalidade da prestação,
interrupção e suspensão da prescrição. legitimidade e demais norteamentos para
O artigo 164, da LEP, e o art. 51, do CP, efetividade do direito.
são perfeitamente conciliáveis, porque este A multa penal tem relação direta com
confirma a condição de título executivo o cometimento de crime (fato gerador) e a
da sentença condenatória transitada em condenação criminal transitada em julgado
julgado e acresce a característica de dívida (título executivo judicial), enquanto o cré-
de valor. É regra básica de hermenêutica o dito tributário tem ligação com a posse ou
aproveitamento das normas legais, retirando propriedade de bem ou direito, exercício
eventuais conflitos aparentes desproposita- de atividade ou prestação de serviço (fato
dos, para harmonia de todo o ordenamento gerador de imposto, taxa, contribuição de
jurídico nacional. Não há revogação e muito melhoria) ou atividade parafiscal (contri-
menos conflito entre as normas, não sendo buição previdenciária ou outra similar). O
permitido ao intérprete buscar interpretação processo administrativo é essencial para
desastrosa e contrária ao sistema. a constituição do título executivo tributá-
Cabe destacar que o art. 51, do Código rio, com lançamento e inscrição na dívida
Penal, trata da condição de trânsito em ativa.
julgado para a execução da multa e sua É visível que pena criminal e tributo
consideração como dívida de valor, além são duas coisas totalmente diferentes,
da submissão às normas da legislação da originárias de poderes estatais diversos,
dívida ativa da Fazenda Pública. Mas nada pertinentes à persecução penal estatal e ao
trata de legitimidade de parte ativa para a poder de tributação. A pena relaciona-se
execução. Não retira do Ministério Público ao poder de persecução penal e exercício
a legitimação processual nem a transfere à da violência simbólica, objeto do sistema
Fazenda Pública. penal, delineado no art. 5o, principalmen-
E a Lei 6.830/1980? O diploma legal te nos incisos XXXVII, XXXVIII, XXXIX,
que regula o procedimento de execução de XL,   XLI, XLII,  XLIII,  XLIV, XLV, XLVI,
dívida ativa das Fazendas Públicas cuida XLVII, XLVIII,  XLIX,  L,  LI, LII, LIII,
da dívida definida como tributária ou não LIV, LV, LVI, LVII, LVIII, LIX,  LXI, LXII,
tributária na Lei 4.320/1964 e alterações, LXIII, LXIV,  LXV, LXVI,  LXVIII, LXXV,
sobre normas de direito financeiro na ela- da Constituição Federal. Por outro lado,
boração e controle orçamentário da União, o tributo decorre do poder de tributação

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 69


e conteúdo do sistema tributário (arts. mentos: Agravo em Execução no 500.373/8,
145 a 162, da Constituição Federal) para j. em 05/05/1988, 7a Câmara, Relator Hé-
a exigência e captação de recursos para o lio de Freitas, RJDTACRIM 1/38; AE no
custeio da máquina administrativa e dos 619.555/6, j. em 30/08/1990, 1a Câmara,
serviços públicos. A pena expressa o poder Relator Eduardo Goulart, RJDTACRIM
de coerção criminal; o tributo, a coerção 7/33; AE no 632.231/1, j. em 14/11/1990, 10a
tributária. São duas fontes diferentes de Câmara, Relator, Jo Tatsumi, RJDTACRIM
obrigação: uma (pena) decorre da relação 8/58; AE no 611.031/9, j. em 10/10/1990, 10a
jurídica criminal, cujo fato gerador é o ato Câmara, Relator José Santana, RJDTACRIM
ilícito penal, e a outra (tributo), nasce de 8/59; AE no 636.151/1, j. em 06/02/1991,
relação jurídica tributária, com fato gerador 9a Câmara, Relator Barbosa de Almeida,
de natureza patrimonial e econômica. RJDTACRIM 9/35; AE no 635.263/7, j.
Anoto que o art. 51 do Código Penal não em 28/11/1990, 6a Câmara, Relator Al-
autoriza a grave confusão entre direito ma- meida Braga, RJDTACRIM 10/32; AE no
terial e direito processual, com interpreta- 709.441/3, j. em 27/02/1992, 7a Câmara, Re-
ção equivocada de que a norma processual lator Luiz Ambra, RJDTACRIM 13/25; AE
(rito da execução) teria interferido no aspec- no 693.901/6, j. em 22/04/1992, 6a Câmara,
to material (pena), para transformação da Relator Aguiar Vallim, RJDTACRIM 14/24;
natureza jurídica de pena criminal (multa) Apelação no 720.233/7, j. em 24/08/1992, 12a
em crédito tributário. Câmara, Relator Oliveira Santos, RJDTA-
Observo que a consideração do débito CRIM 15/132; Apelação no 732.541/1, j. em
decorrente de sanção penal como “dívida 22/09/1993, 9a Câmara, Relator Canellas
de valor” procurou pacificar o dissenso de Godoy, RJDTACRIM 20/136. O critério
jurisprudencial sobre a característica da do trânsito em julgado da sentença foi
dívida originária de título executivo penal prestigiado nos seguintes recursos: AE no
como “dívida de valor” ou “dívida de 501.397/5, j. em 25/02/1988, 2a Câmara,
dinheiro”, pois os critérios para a correção Relator Haroldo Luz, RJDTACRIM 3/53;
monetária eram diversos, com o cômputo AE no 611.057/5, j. em 10/05/1990, 2a Câ-
desde o fato (dívida de valor) ou da senten- mara, Relator designado Ribeiro Machado,
ça (dívida de dinheiro) ou do trânsito em Declaração de voto vencido Pedro Gagliar-
julgado ou execução. di, Declaração de voto vencido em parte
No final da década de 1980 até meados Haroldo Luz, RJDTACRIM 8/59; AE no
de 1990, o assunto foi bastante discutido e a 626.275/2, j. em 06/09/1990, 7a Câmara, Re-
jurisprudência era oscilante, passando a ser lator Walter Tintori, RJDTACRIM 9/36; AE
majoritária na consideração como dívida no 702.271/2, j. em 23/03/1992, 11a Câmara,
de valor e a correção monetária desde a Relator designado Gonçalves Nogueira,
data dos fatos. Declaração de voto vencido Sidnei Beneti,
Para amostragem, no extinto Tribunal RJDTACRIM 14/25. E a contagem partir
de Alçada Criminal de São Paulo, incorpo- da citação da execução: AE no 534.761/1, j.
rado ao Tribunal de Justiça de São Paulo, em 18/01/1989, 5a Câmara, Relator Heitor
eram três critérios diferentes de correção, o Prado, RJDTACRIM 2/30; AE no 546.869/3,
que tornava verdadeira loteria judiciária a j. em 02/02/1989, 3a Câmara, Relator de-
definição do marco inicial da atualização: signado Gomes de Amorim, RJDTACRIM
correção monetária a partir da data do fato 3/54; AE no 548.107/7, j. em 22/03/1989,
ou do trânsito em julgado da sentença ou 5a Câmara, Relator Paulo Franco, Declara-
da citação para execução penal. Os critérios ção de voto vencedor Ribeiro dos Santos,
de correção monetária a partir da data do RJDTACRIM 3/55; AE no 914.261/7, j. em
fato foram adotados nos seguintes julga- 07/12/1994, 5a Câmara, Relator designado

70 Revista de Informação Legislativa


Edgard Coelho, Declaração de voto vencido dívida, mas uma simples medida de valor”,
Geraldo Lucena, RJDTACRIM 24/26.1 pois a dívida é de “um quid” e não de “um
O E. STJ pacificou a situação, definindo quantum”, por representar um valor cor-
o critério de correção monetária a partir da respondente a um bem determinado e não
data do fato delituoso, conforme se perce- a certo número de unidades monetárias.
be dos seguintes recursos: EREsp 91003/ Leib Soibelman (1983, p.134) também
RS, Relator(a) Ministro GILSON DIPP, entende a dívida de valor como a obrigação
TERCEIRA SEÇÃO, j. em 13/12/1999, DJ em que “o objeto não é o dinheiro como
21/02/2000 p. 84, LEXSTJ v. 129 p. 279, dinheiro, mas o dinheiro como meio de
v.u.; REsp 83846/RS, Relator(a) Ministro medida de um valor patrimonial que ele
JOSÉ DANTAS, QUINTA TURMA, j. em representa no momento da conclusão do
16/12/1997, DJ 02/03/1998 p. 127, v.u.; contrato”, sendo que, em caso de desvalori-
REsp 120678/SP, Relator(a) Ministro zação do dinheiro no decorrer do contrato,
FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, j. “o credor já não receberá o valor que ele pre-
em 09/06/1997, DJ 04/08/1997 p. 34839, tendeu ao contratar”, motivo para a “apli-
v.u.; REsp 81578/SP, Relator(a) Ministro cação da correção monetária, correção do
EDSON VIDIGAL, QUINTA TURMA, valor do objeto do contrato”. Entende que
j. 08/04/1996, DJ 13/05/1996 p. 15568, é o oposto da dívida pecuniária. Anota que
v.u.; REsp 39429/SP, Relator(a) Ministro nesta “o dinheiro é o meio de pagamento,
EDSON VIDIGAL, QUINTA TURMA, j. pouco importando sua desvalorização”.
em 02/04/1996, DJ 06/05/1996 p. 14436, As dívidas em dinheiro são aquelas em
v.u.; REsp 67747/MG, Relator(a) Minis- que o dinheiro em si é “objeto da presta-
tro JOSÉ DANTAS, QUINTA TURMA, j. ção”, como no mútuo, enquanto nas dívidas
em 06/02/1996, DJ 04/03/1996 p. 5415, de valor o dinheiro serve para “medir ou
v.u.; REsp 41438/SP, Relator(a) Ministro valorar o objeto na prestação” (DINIZ et
ASSIS TOLEDO, QUINTA TURMA, j. al., 2009).
28/09/1994, DJ 17/10/1994 p. 27906. A propósito, a dívida de dinheiro tem
É pertinente a análise das dívidas de referência com a unidade monetária, o
valor e de dinheiro. chamado valor de face da moeda, em que
Orlando Gomes (1990, p. 56-58) anota há correspondência exata para a utiliza-
que a dívida pecuniária é “obrigação de ção como troca por bem ou serviço. Uma
valor nominal”. As obrigações pecuniárias tradução de dívida de dinheiro é a obri-
determinam-se por “uma quantia fixa”, e gação originária de mútuo ou de título de
as dívidas de valor variam no quantum em crédito. Por outro lado, a dívida de valor
função do “valor da moeda”, por alteração representa algo, um bem ou serviço, e a
do poder aquisitivo da moeda, com uso de sua estimação em moeda é o mecanismo
cláusula de indexação, contra a deteriora- para a sua exigibilidade e certeza. São
ção da moeda, “fixando o valor da dívida exemplos as obrigações alimentares, in-
em função da variação de determinado denizações decorrentes de atos ilícitos ou
índice econômico”. de responsabilidade extracontratual e as
A propósito, Arnoldo Wald (1995, p. 52) provenientes de desapropriação. Na dívida
conceitua dívida de valor como aquela em de dinheiro, a moeda é objeto; na dívida de
que “o débito não é de certo número de uni- valor, a moeda é instrumento de estimação
dades monetárias, mas do pagamento de de algum bem.
uma soma correspondente a certo valor”, O Código Civil estabelece o objeto do
em que a moeda “não constitui o objeto da pagamento, a prestação estabelecida, sem
obrigação de recebimento de prestação
1
Disponível em: <http://www.tacrim.sp.gov.br> diversa, mesmo que mais valiosa (art. 313,

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 71


do Código Civil), com a previsão de que a em quantia certa, além da expressa previsão
obrigação de pagamento das dívidas em legal no art. 51, do Código Penal.
dinheiro deverá ocorrer no vencimento, A visão de transformação da dívida por
“em moeda corrente e pelo valor nomi- condenação por crime em dívida tributá-
nal” (art. 315). A dívida de dinheiro está ria é distorcida. A referência à legislação
definida no art. 314 (moeda corrente pelo processual tributária para a execução não
valor nominal), enquanto as demais dívidas é apta a transformar a natureza jurídica da
são de valor, pois o seu descumprimento dívida decorrente de condenação criminal
importa em obrigação de responder “pelo em dívida de natureza tributária, porque
equivalente” (arts. 234 e 239, do Código Ci- as origens são diversas e inconciliáveis. A
vil) ou exigir “o equivalente” (art. 236, CC), deformação de origem seria a mesma se
denotando-se que a expressão equivalente o legislador resolvesse alterar novamente
indica dívida de valor. o art. 51 do Código Penal e o sistema de
Note-se que o inadimplemento de qual- execução de pena criminal e adotasse hipo-
quer obrigação gera a obrigação de paga- teticamente o procedimento de execução de
mento de atualização monetária, além de alimentos (art. 733, do Código de Processo
juros e perdas e danos (art. 389, do Código Civil): o título executivo judicial de origem
Civil), de modo que a análise econômica de criminal também não seria crédito alimen-
nominalismo ou valorismo é irrelevante. A tar. O rito procedimental da execução não
própria diferenciação entre dívida de valor pode alterar a origem e natureza jurídica
e dívida de dinheiro perdeu importância, do débito de condenação criminal.
tendo em vista que as duas dívidas são A competência jurisdicional para a exe-
corrigidas monetariamente. cução de multa criminal é do juízo criminal
No campo penal, antes da alteração de conhecimento ou de execução criminal e
legislativa de 1984, a pena de multa era pre- não do juízo fazendário, a despeito de utili-
vista em réis e depois em cruzeiro, moedas zação de rito procedimental de dívida ativa
anteriores ao atual real. Para lembrança, da fazenda pública. O rito da execução não
ao delito de receptação (art. 180, caput, do altera o direito material nem a competência
Código Penal) era imposta, além da pena de jurisdicional.
reclusão, a multa de quinhentos mil réis a A atribuição de movimentação da
dez contos de réis (Decreto-lei 2.848/1940), execução de multa penal é do Ministério
depois de Cr$ 500,00 (quinhentos cruzeiros) Público e não da Procuradoria da Fazen-
a Cr$ 10.000,00 (dez mil cruzeiros), pela da, por se tratar de atividade relacionada
redação dada pela Lei no 2.505, de 1955. à promoção da ação penal e não cobrança
A redação atual prevê pena cumulativa de crédito tributário.
de reclusão (1 a 4 anos) e multa; não há A legitimidade ativa do Ministério
indicação de valor em moeda corrente; o Público para a execução de pena criminal,
sistema vigente é de dias-multa, entre o especialmente a multa criminal, decorre do
mínimo de 10 e o máximo de 360, fixando- artigo 164, da Lei de Execução Penal (Lei
se cada unidade de dia-multa com base no 7.210/1984). Ademais, o órgão de acusação
salário mínimo (art. 49, do Código Penal), é legitimado para a execução penal de qual-
sem especificação no tipo penal do valor quer de suas modalidades, seja a execução
em moeda. A pena de multa com fixação de pena privativa de liberdade ou restri-
da sanção em moeda corrente era inega- tiva de direitos ou multa, por ser um dos
velmente dívida de dinheiro, enquanto o órgãos da execução penal (art. 61, III, LEP),
sistema de dias-multa tem característica incumbido da fiscalização da execução da
de dívida de valor, por necessidade da sua pena e da medida de segurança, oficiando
estimação monetária, com transformação no processo executivo e nos incidentes de

72 Revista de Informação Legislativa


execução (art. 67, LEP), e de requerer “todas (459e).2 Na Argentina, o Ministério Público
as providências necessárias ao desenvol- atua em todos os incidentes de execução
vimento do processo executivo” (art. 68, penal (MOM, 2004, p. 43 e 442-443).
II, “a”, da LEP), além de outras funções, A execução da pena é judicializada no
como requerimento da execução de pena sistema do Código Processual Penal Mode-
restritiva de direitos (art. 147, LEP) ou de re- lo para Íbero-América (art. 389/seguintes),
querimento para iniciação do procedimento com intervenção do Ministério Público
judicial de execução (art. 195, LEP). nos incidentes de execução (art. 391) e
Como se vê, todo o sistema do ordena- previsão expressa de atuação na conversão
mento jurídico infraconstitucional prestigia da multa não paga em prisão (art. 395). O
e confirma a legitimidade do Ministério Pú- Código de Processo Penal do Paraguai (Ley
blico no campo penal e processual penal, no 1.286/1998) adotou a sistemática (Código
processo de conhecimento e de execução. Tipo), conforme se verifica dos arts. 493, 495
E não poderia ser diferente! Deve ser e 498. No Chile, as normas sobre execução
lembrado que o artigo 129, I, da Consti- de sentença constam dos arts. 467-472, CPP,
tuição Federal, estabelece o princípio da a cargo do Juízo, com intervenção do Mi-
privatividade da ação penal pública pelo nistério Público e da defesa (art. 466, CPP,
Ministério Público, que deve ser interpre- Ley 19.696/2000). Na Bolívia, o art. 430 e
tado como poder de interferência e atuação seguintes tratam da execução judicial da
em todas as fases relacionadas ao crime, pena, com atuação do Ministério Público e
desde a fase de política de segurança pú- da defesa nos incidentes (art. 432, CPP, Ley
blica, investigação criminal, passando pela 1970, de 25.02.1999).
ação penal, até a execução da pena, fase final Frise-se que a retirada da legitimidade
da persecução penal estatal, além de outras do Ministério Público e da competência
atividades pertinentes. Trata-se de legitimi- jurisdicional da Vara Criminal ou das
dade constitucional do Ministério Público, Execuções Criminais seria um ataque fatal
de cunho político e processual (SANTIN, à multa criminal, que se não cumprida
2000, p. 13-26; 2007, p. 218-219). A execução espontaneamente pelo condenado, teria
da pena de multa integra a persecução penal pouca condição de exigência e coerção
do Estado e o Ministério Público tem incum- penal-patrimonial. A Procuradoria Geral
bência para buscar a efetivação do conteúdo do Estado de São Paulo não movimenta
decisório da sentença penal condenatória a execução por pequeno valor do débito,
(BITTENCOURT, 2008, p. 584). possuindo patamar mínimo para execução
No direito comparado, a atribuição de fiscal. A situação caracteriza-se como coro-
movimentação da execução de pena pecu- amento da impunidade, velório e enterro
niária é função do Ministério Público. Na da pena de multa.
Itália, o Ministério Público faz os pedidos e Não se desconhece o entendimento do
participa de todos os incidentes de execução E. Superior Tribunal de Justiça no sentido
(art. 655, CPP), inclusive na execução de da perda da legitimidade do Ministério
multa (art. 660, CPP). Em Portugal, findo o Público e a atribuição de representante
prazo sem pagamento da execução, o Minis- da Fazenda Pública para a execução de
tério Público promove logo a execução (art. multa.
491, 2, CPP, Decreto Lei 78/1987, atualizado O E. STJ tem se apegado à condição
pela Lei 48/2007). Na Alemanha, o Ministé- de dívida de valor da multa penal ou de
rio Público é responsável pela execução de dívida ativa para afastamento da legitimi-
sentenças penais (art. 451, CPP), com super- dade do Ministério Público, consideração
visão da aplicação das sanções, incluindo-se 2
Sobre a atuação do Ministério Público na Europa,
a conversão da multa não paga em prisão ver: <http://www.euro-justice.com/sitemap/>.

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 73


de atribuição da Procuradoria da Fazenda Cabe anotar que o E. STJ já se posicionou
Pública e existência de juízo especializa- favoravelmente à legitimidade da execução
do para a cobrança da dívida, não das penal de multa pelo Ministério Público, em
Execuções Penais. A consideração como interpretação do art. 51, do Código Penal,
dívida de valor consta do REsp 1042887/ pois, nos termos do art. 129, I, da Consti-
MG, Relator(a) Ministro JORGE MUSSI, tuição Federal, cabe ao Ministério Público,
QUINTA TURMA, j. em 18/09/2008, DJe como titular da ação penal, promover a
20/10/2008, LEXSTJ v. 231, p. 346; AgRg execução da pena de multa, perante o Ju-
no REsp 1027204, Relator(a) Ministro HA- ízo das Execuções Penais (REsp 699286/
MILTON CARVALHIDO, SEXTA TUR- SP, Relator(a) Ministro JOSÉ ARNALDO
MA, j. em 19/06/2008, DJe 18/08/2008, DA FONSECA, QUINTA TURMA, j. em
v.u.; REsp 832267/RS, Relator(a) Ministra 08/11/2005, DJ 05.12.2005, p. 369, RT, v.
LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, j. em 846, p. 556, v.u.), entendimento mais ade-
20/03/2007, DJ 14/05/2007 p. 385; CAt quado à espécie.
92/SP, Relator(a) Ministro GILSON DIPP, A E. Procuradoria Geral da República
TERCEIRA SEÇÃO, j. em 26/10/2005, DJe ingressou, em 2004, com ação direta de
07/05/2008; REsp 286889/SP, Relator(a) inconstitucionalidade do art. 51, do Código
Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, Penal, para que, em interpretação conforme,
SEGUNDA TURMA, j. em 06/12/2005, DJ seja reconhecida a legitimidade do Ministé-
01/02/2006, p. 475). O tratamento como rio Público para ingressar com execução da
dívida ativa foi feito nos REsp 286889/ pena de multa e a competência do Juízo das
SP, Relator(a) Ministro JOÃO OTÁVIO Execuções Criminais. A ação constitucional
DE NORONHA; CAt 92/SP, Relator(a) ainda está em andamento.3 Os principais
Ministro GILSON DIPP; REsp 169586/ argumentos constantes da petição inicial
SP, Relator(a) Ministro CASTRO MEIRA, são de que o caráter polissêmico do dis-
SEGUNDA TURMA, j. em 22/02/2005, DJ positivo provocou dissensão doutrinária e
04/04/2005 p. 236), inclusive necessidade jurisprudencial, por entendimentos de que
de inscrição na dívida ativa (CAt 92/SP, teria sido retirado o caráter penal da multa
Relator(a) Ministro GILSON DIPP; REsp ou de modificação meramente procedimen-
286889/SP, Relator(a) Ministro JOÃO OTÁ- tal. A consideração tributária de punição
VIO DE NORONHA). Sobre a característica criminal não se compatibiliza com a Carta
da multa penal, tem-se entendido como Política. A única interpretação viável é a
sanção penal (REsp 832267/RS, Relator(a) limitação dos efeitos da Lei 9.268/1996 à
Ministra LAURITA VAZ) ou extrapenal modificação do rito da Lei 7.210/1984 (art.
(REsp 286889/SP, Relator(a) Ministro 164, § 2o), sem resvalar na competência da
JOÃO OTÁVIO DE NORONHA). Vara de Execuções Penais, a finalidade da
Tal postura restritiva de atuação do norma é a melhor atuação na persecução
Ministério Público e da execução da multa criminal e no cumprimento da pena, de
criminal não merece continuar, aguardando tratamento processual; a privatividade
que o E. Superior Tribunal de Justiça reveja da ação penal (art. 129, I, CF) abriga a
o seu posicionamento e altere o rumo da execução da sentença condenatória, por
jurisprudência, para colocar as coisas nos compreensão instrumental, tanto da fase
seus devidos lugares. Nem sempre a posi- cognitiva como da executória. A legitimi-
ção majoritária dos tribunais prevalece, até dade processual da Fazenda Pública viola
porque o movimento jurisprudencial é di- frontalmente a atribuição constitucional
nâmico e mutável, diante de interpretação privativa do Ministério Público e confere
e hermenêutica mais adequada ao assunto 3
ADI 3150, Rel. Marco Aurélio, disponível em:
em debate. <www.stf.jus.br>.

74 Revista de Informação Legislativa


à Vara das Execuções Fiscais a implemen- juridicamente a inscrição em dívida ativa
tação de sanção penal; o crédito tributário de sentença penal condenatória, verdadeira
poderia ser exigido dos herdeiros do ape- heresia jurídica , porque a lei não prevê
nado, em afronta à responsabilidade penal a necessidade de inscrição. A eventual
pessoal, por intranscendência da sanção previsão transformaria um título judicial
penal, lesionando o art. 5o, XLV, da CF/88; a (sentença condenatória) em título extraju-
menção a dívida de valor não tem o condão dicial (dívida ativa) e deslocaria o crédito
de alterar a natureza da multa, que é uma do Fundo Penitenciário para o orçamento
sanção penal, nem desviar a sua finalidade da União. O fundamento político-legis-
de recurso de Fundo Penitenciário; injus- lativo da definição como dívida de valor
tificável o entendimento de inscrição de seria para justificar a inconversibilidade
multas em dívida ativa da Fazenda, pela da multa não paga em prisão e possibilitar
providência absolutamente despicienda e a atualização monetária.
ilegítima de transformar um título judicial Guilherme de Souza Nucci (2007, p. 429-
em título extrajudicial; a norma jurídica é 430; 2006, p. 346) posiciona-se pela possibi-
o resultado de sua interpretação, dentro lidade de correção monetária da multa, por
do contexto da ordem legislativa como um se tratar de simples atualização do valor da
todo, sendo que a Constituição se projeta moeda. A Lei 9.268/1996 pretendeu evitar
sobre o sistema jurídico, impregnando-o a conversão da multa em prisão, a multa
de seus valores e revestindo-o dos funda- continua com a natureza jurídica de sanção
mentos de validade e autoridade; alguns penal, e não civil, a competência seria da
significados da lei podem ser compatíveis Vara das Execuções Criminais, executada
e outros inconciliáveis com o Texto Funda- pelo Ministério Público e seguido o rito da
mental, incumbindo ao Judiciário superar o Lei 6.830/1980.
impasse, elegendo a interpretação harmô- Vladimir Brega Filho (2009) considera a
nica com a Constituição, para conservar a expressão dívida de valor como esclareci-
validade da lei e prestigiar a presunção de mento para a incidência da correção mone-
constitucionalidade; a interpretação confor- tária, sem transformação da natureza penal
me a Constituição configura mecanismo de da multa, e a execução da multa deve ser
controle de constitucionalidade; na eleição promovida pelo Ministério Publico, perante
da alternativa hermenêutica é reconhecido o Juízo das Execuções Criminais.
que a norma impugnada é constitucional Em sentido contrário, Damásio Evange-
quando imbuída do significado que a con- lista de Jesus (1997, p. 533), com base na Lei
cilia e afirma a inconstitucionalidade do 9.268/1996, pensa que o valor da pena de
dispositivo se aplicado segundo o critério multa de sentença penal condenatória tran-
antagônico; a eliminação das hipóteses sitada em julgado deva ser inscrito como
interpretativas e a aplicação de mecanismo dívida ativa em favor da Fazenda Pública,
da interpretação conforme a Constituição não se procede mais nos termos dos arts.
visa salvar a lei impugnada. 164 e seguintes da LEP, a execução deve ser
Cezar Roberto Bittencourt (2008, p. promovida pela Fazenda Pública, não mais
582-585) entende que a Lei 9.268/1996 não de atribuição do Ministério Público. Anota
alterou a competência para a execução da o caráter extrapenal da execução, mas a
pena de multa, ainda do Juízo das Execu- multa permanece com sua natureza penal,
ções Criminais, o procedimento permanece subsistindo os efeitos penais da sentença .
regulado pelos arts. 164 a 169 da LEP e a Sem acréscimos, Fernando Capez (2004, p.
legitimidade continua do Ministério Públi- 395-397) adota a mesma posição.
co. A pena de multa mantém a natureza A decisão de indeferimento da inicial
de sanção criminal e considera impossível de execução de multa criminal viola e nega

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 75


vigência aos artigos 164, 61, III, 67, 68, II, da Execução Penal, não da Vara da Fazen-
a , 147, 195, da Lei de Execução Penal, Lei da Pública, por constituir matéria relativa
7.210/1984, sob argumento de ilegitimida- à pena criminal, sem ligação a crédito
de de parte ativa do Ministério Público e tributário.
incompetência do Juízo criminal.
A posição excludente da atuação do
Ministério Público padece de inconstitu- Referências
cionalidade por ferimento ao artigo 129, I,
da Constituição Federal, que prevê o prin- BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito pe-
cípio da privatividade da ação penal pelo nal: parte geral. 13 ed. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2008.
Ministério Público e o sistema acusatório. BREGA FILHO, Vladimir. A execução da pena de multa:
A inviabilização da execução da sanção alterações da Lei 9.268/96. Disponível em: <http://
criminal também se configura como viola- www.buscalegis.ufsc.br/revistas/index.php/busca-
ção ao direito constitucional do Ministério legis/article/view/4675/4245>. Acesso em: 2009.
Público de acesso à Justiça para reparação CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte geral.
de dano integral provocado pelo crime, 7 ed. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2004.
lesão a direito da sociedade, em afronta ao DINIZ, Maria Helena et al. Novo código civil comen-
art. 5o, XXXV, da Constituição Federal. E tado. Disponível em: <http://www.netlegis.com.
mais: um ataque à pessoalidade e intrans- br/componentes/upload/CCCOMENTADO.pdf>.
cendentalidade da pena (art. 5o, XLV), à Acesso em: 2009.
individualização da pena (art. 5o, XLVI, CF) GOMES, Orlando. Obrigações. 8 ed. Rio de Janeiro:
e ao juiz natural (art. 5o, LIII, CF). Forense, 1990.
JESUS, Damásio Evangelista de. Direito penal: parte
Conclusão geral. 20 ed. v. 1. São Paulo: Saraiva, 1997.
MASSA, Michele; SCHIPANI, Sandro. Un codice
Tendo em vista tais fatos, concluo: tipo di procedura penale per l´America Latina. Padova:
1) A pena de multa criminal é de nature- Cedam, 1994.
za criminal, aplicada em relação processual
MOM, Jorge R. Moras. Manual de derecho procesal penal.
penal por lesão provocada pelo crime, no 6 ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 2004.
exercício da persecução penal estatal, san-
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal.
ção bem diversa do crédito tributário, que
3 ed. São Paulo: RT, 2007.
é originário de relação tributária e exercício
do poder tributário; ______. Código penal comentado. 6 ed. São Paulo: RT,
2006.
2) O uso do rito de execução de dívi-
da ativa da Fazenda Pública não afeta a SANTIN, Valter Foleto Santin. Legitimidade do Mi-
condição essencial de multa criminal nem nistério Público no processo penal. Justitia, v. 189-192,
São Paulo: PGJ-APMP, 2000.
a transforma em crédito tributário, consti-
tuindo-se em mera forma procedimental de ______. O Ministério Público na investigação criminal. 2
cobrança de dívida de natureza penal; ed. Bauru: Edipro, 2007.
3) O Ministério Publico tem legitimida- SARRÁS, Sabas Chahuán. Manual del nuevo procedi-
de constitucional e infraconstitucional para miento penal. 3 ed. Santiago: LexisNexis, 2007.
a movimentação da ação penal pública e da SOIBELMAN, Leib. Enciclopédia do advogado. 4 ed. Rio
ação de execução de multa criminal, com de Janeiro: Ed. Rio, 1983.
evidente invasão de atribuição e ilegitimi- WALD, Arnoldo. Curso de direito civil brasileiro: obriga-
dade a atuação da Procuradoria da Fazenda ções e contratos. 12 ed. São Paulo: RT, 1995.
na execução de multa penal.
4) A competência para o processo de
execução de multa é do Juízo Criminal ou

76 Revista de Informação Legislativa


Da solidariedade à contingência
Diferentes visões do moderno Estado de Bem-Estar

Leany Barreiro Lemos

Sumário
1. Introdução. 2. O Estado-Providência como
“horizonte natural do progresso social”. 3. O
Estado de Bem-Estar condicionado pela ordem
econômica. 4. O Estado de Bem-Estar como
resposta às necessidades de acumulação e legi-
timação do sistema capitalista. 5. O Estado de
Bem-Estar como resultado do embate político.
6. O Estado de Bem-Estar como decorrência da
capacidade estatal. 7. O Estado de Bem-Estar em
crise. 8. Considerações finais.

1. Introdução
O que significa o Estado-Providência –
Welfare State, ou Estado de Bem-Estar? Qual
suas bases de legitimidade e como se realiza
contemporaneamente? O objetivo deste
trabalho é confrontar distintas visões do
conceito, de relevada importância acadêmi-
ca e para as políticas públicas. Em primeiro
lugar, serão expostos os argumentos da
base solidária, formulados especialmente
por Rosanvallon (1996), numa tradição
aberta por Marshall (1967); em segundo
lugar, serão trazidos vários autores que
trabalham com pressupostos diferenciados,
que a) veem o Estado de Bem-Estar social
como fruto de um determinado momento
do desenvolvimento econômico, possível
Leany Barreiro Lemos é Doutora em Ciên- somente graças ao desenvolvimento in-
cias Sociais, Professora Associada da Univer- dustrial e aos excedentes fiscais gerados;
sidade de Brasília e servidora de carreira do b) veem no Estado de Bem-Estar e em suas
Senado Federal. políticas a legitimação do sistema capitalis-

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 77


ta, representados pelos marxistas; c) enxer- Providência” surge na língua francesa no
gam na variável política a possibilidade de segundo Império, criada por pensadores li-
explicação para o surgimento desse novo berais hostis ao aumento das atribuições do
tipo de Estado; d) por último, autores que Estado, mas igualmente críticos em relação
veem na anterioridade e estabilidade das a uma filosofia individualista muito radical.
burocracias uma variável fundamental. Foi, portanto, gestada antes da vigência de
A política social exerceu, ao longo do ideias keynesianas, que inauguram a inter-
tempo, importante papel na manutenção venção social mais planejada do Estado.
da ordem e da estabilidade política, além Como antecipações preventivas aos movi-
de simplesmente atender às novas neces- mentos trabalhistas, houve o programa de
sidades criadas pela Revolução Industrial. proteção social de Bismarck, no séc. XIX, e,
Historicamente, houve expansão das ati- no início do mesmo período, as concepções
vidades durante crises de desordem civil liberais-reformistas de Lloyd George (WIN-
resultantes de desemprego em massa e re- CKLER; MOURA NETO, 1992).
tração quando a estabilidade foi restaurada A expressão inglesa Welfare State, por
(PIVEN; CLOWARD, 1972). sua vez, é muito mais recente e foi criada na
Assim, a própria estabilidade política década de 40 – embora se falasse de welfare
das democracias do capitalismo avançado policy (política de bem-estar) desde o início
e a legitimidade de seus Estados estiveram do século XX – para designar um conjunto
vinculadas, em boa parte, aos serviços e de procedimentos e garantias institucio-
garantias por eles prestados. Da mesma nalizados aos afastados temporariamente
forma, mas vinculadas a regimes não- do processo produtivo. Embora a Grã-
democráticos, as políticas sociais foram Bretanha tenha sido o primeiro país cuja
usadas para conter distensões (REIS, 1994). assistência social tenha sido organizada de
Não é certamente gratuito o fato de que, forma sistemática, com uma série de poor
na Alemanha e no Brasil autoritários, em laws a partir do séc. XVII, foi em 1942, com
momentos de conflito intenso, elas tenham base no Plano Beveridge, que se construiu
sido usadas com esse objetivo. o sistema britânico de seguros. Essa expe-
Mas, apesar da existência anterior de riência foi a inspiradora de todas as que se
programas de seguro social, é a partir do realizaram nos principais países depois da
pós-guerra que as políticas sociais se gene- Segunda Guerra Mundial. O Plano Beve-
ralizam, chegando quase a se universalizar ridge foi o primeiro documento a exprimir
nas sociedades avançadas. Assim, o Estado os grandes princípios de constituição do
de Bem-Estar – a partir de agora EBE –, Estado de Bem-Estar moderno, com um re-
entendido como o Estado que provê serviços gime de previdência social que rompe com
sociais cobrindo riscos coletivos e individuais a concepção restritiva de seguros sociais
de forma ampla a camadas expressivas da popu- anteriores, na Europa e nos EUA. Repousa
lação, data do século XX e é um fenômeno sobre uma nova concepção do risco social
institucionalizado do pós-guerra nos países e do papel do Estado, era baseado no sis-
capitalistas desenvolvidos. tema centralizado, uniforme, generalizado,
Uma nota importante e esclarecedora é unificado e simples (ROSAVALLON, 1997,
em relação aos termos utilizados no traba- p. 126-127).
lho. Muitos cientistas sociais trabalham in- Como os problemas em tela são exa-
tercambiavelmente com os termos Estado- tamente os que dizem respeito a essa
Providência e Welfare State (ou Estado de nova institucionalidade que é o Estado-
Bem-Estar ), embora eles difiram na origem securitário, será usado o termo “Estado
e no significado. Segundo Rosanvallon de Bem-Estar” para simplificar, embora se
(1997, p. 121-122), a expressão “Estado- sabendo que essa escolha ignora nuances

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que, de toda forma, não serão abordadas seus argumentos é a solidariedade, ou a
no presente artigo. percepção e ampliação de direitos graças
Existem dois problemas básicos ao se a uma positividade própria do EBE.
tentar confrontar diferentes argumentações Marshall (1967), precursor dessa linha
sobre o Estado de Bem-Estar. O primeiro é a teórica, apesar de crer que o EBE tenha
grande produção existente sobre o assunto, surgido num contexto específico de indus-
que requer um esforço de organização e trialização e que tal contexto tenha tido
seleção de textos e autores, impossibili- um papel preponderante para o seu surgi-
tando uma análise exaustiva em pouco mento, encaixa-se nessa visão solidarista.
espaço. Nesse caso, optamos por descrever Ele casa o determinismo econômico com o
primeiramente uma visão – do EBE como evolucionismo, ao propor que os direitos
evolução do progresso social – e, a partir sociais nascem da ampliação progressiva e
daí, indicar as visões de outros autores que natural dos direitos políticos. Seu raciocínio
tratam o mesmo fenômeno, entretanto a parte do princípio de que uma crescente
partir de pressupostos diferentes. igualdade política teria levado à constru-
O segundo problema presente é a cons- ção de políticas sociais minimizadoras das
tante mudança das variáveis analíticas desigualdades econômicas. Note-se que,
usadas ao longo do tempo1. Essa mudança apesar do destaque dado à industrializa-
dos indicadores, ao mesmo tempo em que ção no processo de conformação do EBE,
provocou uma sofisticação da análise e um o ponto nevrálgico de seu argumento
acúmulo de conhecimento, levou alguns não é econômico, mas social: a origem e
autores a reverem suas posições (ARRE- o posterior desenvolvimento do EBE se
TCHE, 1995), o que se poderá verificar ao deram por uma evolução lógica e natural
longo do texto. da ordem social em si mesma (Marshall, 1967,
p. 25). Marshall não nega igualmente que
2. O Estado-Providência como haja certa participação da ação política,
“horizonte natural do progresso social” mas o que destaca em seu argumento é
que a ação política apenas implementa a
Um grupo de teóricos baseia-se em política social, obedecendo a uma lógica
conceitos de cidadania e solidariedade para que é própria do sistema social.
fundamentar o surgimento do EBE e seu Sua conhecida teorização desenvolve
posterior desenvolvimento. Esses teóricos um conceito de cidadania que englobaria
defendem que o Estado de Bem-Estar foi a esfera dos direitos civis, relacionados à
construído graças aos seus próprios bene- liberdade individual; de direitos políticos,
fícios, e não por causa de sua funcionali- que englobariam o direito de participação
dade em relação ao sistema capitalista. Sua no exercício do poder político; e de direitos
linha de caracterização do EBE tem como sociais, que corresponderiam à participação
precursora a argumentação de Marshall na riqueza socialmente produzida. Fundi-
(1967). Os autores consideram o nascimen- dos no feudalismo medieval, esses campos
to do Estado-providência um movimento distintos da noção de direitos teriam sido
natural que supõe a evolução progressiva separados na sociedade industrial e nela
do campo dos direitos, ou da concepção teriam evoluído de maneira diversa. A
de democracia. Embora destaquem o fe- ampliação progressiva do conceito – que
nômeno da industrialização, o centro de primeiramente incluía direitos exclusiva-
mente civis, para incorporar em seguida
1
Nas décadas de 50 e 60 as análises baseavam-se
no indicador “volume do gasto social”. Na década
os direitos políticos e os sociais – ter-se-ia
de 80, passaram a discutir indicadores de “forma e realizado graças à maior democratização
natureza do gasto”. (ARRETCHE, 1995) da sociedade e à industrialização. As esfe-

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ras teriam evoluído provocadas por uma sistema pela certeza securitária, realizável
progressiva incorporação de camadas pelo aumento do expertise e pela evolução
sociais antes privadas de direitos, e essa tecnológica, bem como pelo novo aparato
incorporação ter-se-ia dado via aumento técnico estatal.
da participação popular. Assim, a origem Num primeiro momento, esse Estado-
das “políticas igualitárias do século XX” Providência – que ele chama de “Estado-
(MARSHALL, 1967, p. 84) encontra-se, para Providência da tradição” (ROSAVALLON,
o autor, na evolução histórica e na progres- 1998, p. 25) – fará diminuir as diferenças
siva incorporação de atores, sociedade e de riqueza, especialmente por promover
Estado, “sobretudo pela ação das classes indenizações. Seus mecanismos baseiam-se
altas” (ARRETCHE, 1995). nas compensações trazidas por um sistema
Três pontos sobressaem nos argumentos de seguro social, e a solidariedade se fun-
de Marshall: o primeiro é a importância de damenta na mutualização crescente dos
instituições para o provimento de serviços riscos sociais.
sociais. Esse argumento é retomado hoje Na verdade, o seguro social vem, para
mais fortemente pelos neo-institucionalis- o autor, substituir o contrato social: tem os
tas, cujas ideias serão expostas mais adiante mesmos efeitos de aglomeração e prote-
no artigo. O segundo ponto é o “evolucio- ção, com a vantagem de passar da noção
nismo” de que está impregnado seu argu- subjetiva da conduta e da responsabilidade
mento, a adaptação “lógica e natural” da individual à noção objetiva do risco. Portan-
ordem. Outro ponto de destaque é que, em to, seguro social e solidariedade andam pari
sua rationale, a política social não tem como passu, embora tenham trazido o problema
fim a promoção da igualdade, mas a mini- da “opacidade” das relações sociais: os
mização das consequências do desenvolvi- indivíduos não veem uns aos outros como
mento do sistema capitalista de acumulação agentes dessa solidariedade, mas o Estado.
do capital (caráter compensatório). É como se existisse uma “mão invisível” do
Também Rosanvallon (1996) vê o Estado seguro (Idem), o que, segundo Rosavallon,
de Bem-Estar com positividade própria, numa fase posterior, gerará impasses e
nascida do movimento do Estado-nação levará a uma crise filosófica do Estado-
moderno. Segundo ele, a forma política Providência.
específica do Estado moderno seria exa- A esse aspecto o autor dá especial ênfa-
tamente a do Estado protetor, porque o se: o da substituição da interface entre pes-
contrato social que o instituiu está fundado soas pela interface com o Estado, o que gera
na produção da segurança e na redução uma perda de percepção da solidariedade.
da incerteza. O Estado de Bem-Estar seria, Essa falta de visibilidade das ações sociais,
assim, um prolongamento do Estado pro- intermediadas pelo Estado, seria um dos
tetor clássico. “Os direitos econômicos e problemas centrais do Estado-Providência
sociais aparecem naturalmente como um tradicional.
prolongamento dos direitos civis” (ROSA- Nessa fase primeira, o Estado-Providên-
VALLON, 1997, p. 20-23). cia é portador de um caráter compensató-
De fato, para Rosanvallon (1996; 1998), o rio, repousando no princípio da separação
surgimento do Estado-Providência se dá na entre o econômico e o social: os direitos
correção de princípios postos pelo Estado sociais são simplesmente os de concorrer,
protetor, ampliação do Estado moderno. e o sistema é concebido assim para tratar
Ou seja, para além da segurança física ou situações apreendidas pelos riscos conjun-
da propriedade, o Estado-Providência, turais. É um “Estado-Providência passivo”:
muito mais complexo, reencaixa o social, para indenizar a exclusão do mercado de
ao substituir as incertezas geradas pelo trabalho de uma parte da população, au-

80 Revista de Informação Legislativa


menta cada vez mais os descontos sobre o são centrais. O problema é cultural-social,
rendimento do trabalho, o que, por sua vez, ainda que as finanças sejam uma variável
gera uma diminuição desse último. Entre- fundamental – seja na origem desse Estado,
tanto, gera-se um benefício seguinte, com seja na crise –, mas não uma suficiente. A
o aumento da inserção social. Rosanvallon crise é, de fato, filosófica.
propõe, contemporaneamente, a criação
de um “Estado-Providência ativo” que en- 3. O Estado de Bem-Estar
riqueça a noção de direito social, capaz de
condicionado pela ordem econômica
gerar novas formas de inserção. Sua teoria
aproxima-se muito da de Marshall não só Uma segunda categorização quanto
por causa de seu “evolucionismo”, mas ao Estado de Bem-Estar sustenta que seus
também pela ideia da anterioridade dos condicionantes seriam predominantemente
direitos civis em relação aos direitos sociais. de ordem econômica. Nesse caso, o EBE
Sob o signo da laicização da sociedade, o seria resultado necessário do processo de
EBE exprimiria a ideia de substituir a in- industrialização das sociedades. A essa
certeza da proteção religiosa pela certeza corrente filiam-se, por exemplo, Wilensky,
da proteção estatal e ter-se-ia originado da Lebeaux e Titmuss.
ampliação dos direitos democráticos. Para Wilensky (1975), os programas
O Estado-providência seria “produto da sociais surgem de forma generalizada nos
cultura democrática e igualitária moderna” países de alto nível de desenvolvimento por
(ROSAVALLON, 1997, p. 35), na medida causa do crescimento econômico e de seus
em que se movimenta em torno da ideia resultados demográficos e burocráticos. As-
de liberar os indivíduos das necessidades sim, o surgimento de padrões mínimos de
vitais. Entretanto, o EBE progrediu do séc. atendimento das necessidades sociais pelo
XIX ao séc. XX de forma descontínua em Estado estaria associado aos problemas e às
face das grandes crises sociais e econômicas. possibilidades colocadas pelo desenvolvi-
As guerras nesse contexto têm um papel mento industrial, e sua viabilidade garan-
fundamental¸ uma vez que, após cada uma tida pela alta arrecadação fiscal. Em outras
delas, reforçaram-se os aparatos de proteção palavras, o argumento se baseia na ideia
social e geraram-se benefícios econômicos. de que o EBE só foi possível, de um lado,
Segundo ele, a ideia implícita no estado graças ao excedente de riquezas gerado
keynesiano é a do compromisso social. Esse pela industrialização, e, de outro, porque
compromisso social entra em crise na atuali- a industrialização, ao provocar mudanças
dade econômica contemporânea dos países sociais tão significativas (vida familiar,
europeus quando a equação keynesiana da crianças que passam de fonte de renda a
redistribuição de renda não funciona mais. fonte de gastos, envelhecimento populacio-
Tem-se então, como resultado, a crise do nal etc.), pressiona a estrutura estatal para
Welfare e das social-democracias (Idem), que que ela atenda às novas necessidades:
será tratada com mais detalhe na seção 7. “As mudanças sociais são os deter-
Para finalizar, o fundamental na tese minantes principais dos problemas
do autor são as relações sociais e os elos sociais, os quais, por sua vez, criam
que elas estabelecem: não há uma visão do a demanda por serviços de welfare”
“indivíduo” ou do “Estado” isoladamente (WILENSKY; LEBEAUX, 1965, p.
tomados. Mesmo o argumento econômico 17).
da viabilidade do sistema – tomado como Em trabalho posterior, entretanto, Wi-
pressuposto, por outros autores, como lensky (1975, p. 28-30) afirma que os fatores
veremos adiante – ou da sua própria invia- de diferenciação não são de ordem cultural,
bilidade fiscal, em fins do século XX, não mas estrutural, mostrando a fraca correlação

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entre sistema político e desenvolvimento quer dizer que o Estado deve tentar
do EBE e uma alta correlação entre “nível manter, ou criar, as condições em
de desenvolvimento econômico” e “esforço que se faça possível uma lucrativa
de seguridade” (gasto estatal). acumulação de capital. Entretanto,
Titmuss (1963) também entende a in- o Estado deve também manter ou
dustrialização como motor dos programas criar condições de harmonia social.
sociais, mas sob outro ângulo. Coloca que Um Estado capitalista que empregue
a origem dos programas de BE está na abertamente sua força de coação para
complexidade da divisão social do trabalho, ajudar uma classe a acumular capital
consequência da industrialização, e na di- à custa de outras classes perde sua
nâmica social que transforma expectativas legitimidade e, portanto, abala a base
individuais e/ou sociais em necessidades. de suas lealdades e apoios. Porém,
Esse é um processo artificial, mas que tem um Estado que ignore a necessidade
do outro lado o surgimento de serviços de assistir o processo de acumulação
sociais para atender a essas expectativas, de capital arrisca-se a secar a fonte
que, por força cultural, transformaram-se de seu próprio poder, a capacidade
em necessidades e que procuram garantir de produção deste excedente (e de
a sobrevivência da sociedade. A ampliação outras formas de capital)”.
dos serviços prestados pelo Estado, assim, Assim, às necessidades societais cor-
corresponde à ampliação progressiva das responderiam duas funções estatais:
necessidades culturalmente construídas. acumulação e legitimação, que implicam
diferentes tipos de gastos estatais: a) capital
4. O Estado de Bem-Estar como resposta social, destinado a garantir a acumulação
às necessidades de acumulação e de capital, subdividido em investimento
social (para aumentar a produtividade dos
legitimação do sistema capitalista
trabalhadores) e em consumo social (para
Uma outra vertente explicativa para rebaixar os custos de produção e da força
o surgimento do EBE é a marxista, que de trabalho); e b) despesas sociais, ou gastos
o explica por sua funcionalidade e como destinados a lidar com os efeitos do pro-
sendo intrínseco ao modo de produção cesso de acumulação e, portanto, garantir
capitalista, portanto, um problema “estru- a harmonia social e a legitimação.
tural”, na sua tradição teórica. Apesar de Na teoria de O’Connor (1977), todas
não abordar especificamente a origem e o as despesas do Estado são efetuadas para
desenvolvimento do EBE, O’Connor (1977), responder às necessidades do capital, seja
em trabalho voltado para a compreensão para garantir diretamente a acumulação,
da dinâmica das finanças governamentais via capital social, seja para corrigir os efei-
norte-americanas, teoriza sobre tais temas tos sociais da acumulação de capital, via
no período pós-Guerra. Além dele, podem despesas sociais. Mesmo a função de gastos
ser colocados como representantes dessa com despesas sociais é vista como uma das
linha Gough, Faleiros, Offe e Lendhart. condições necessárias à acumulação.
O’Connor (1977, p. 19) explica a origem O autor afirma que o setor privado
do EBE como resultado do processo de impulsiona o crescimento da economia,
acumulação de capital no interior do setor principalmente do setor monopolista.
monopolista: Entretanto, ele não se responsabiliza pelo
“O Estado capitalista tem de tentar investimento social necessário à sua ex-
desempenhar duas funções bási- pansão. Esse custo recai no Estado, que vai
cas e muitas vezes contraditórias: arrecadar junto à população. Ou seja, os in-
acumulação e legitimação (...). Isto vestimentos sociais necessários à expansão

82 Revista de Informação Legislativa


do setor monopolista não são pagos por ele, uma classe dominante com o objetivo de
mas são pela própria sociedade, via impos- maximizar lucros, e isso significa que o pro-
tos (O’CONNOR, 1977). Há uma relação cesso de acumulação capitalista estabelece
direta “necessidades postas pelo processo um limite para a expansão das políticas so-
de acumulação capitalista” – “funções de- ciais, barradas pelas possibilidades postas
sempenhadas pelo Estado”. pela acumulação e pela própria capacidade
Na mesma linha, Gough (1979) diz estar de financiamento dos programas sociais.
de acordo com O’Connor, mas desenvolve Mas as “exigências funcionais”, ou cons-
uma explicação alternativa para a origem trangimentos postos pelo processo de acu-
e o desenvolvimento das políticas sociais, mulação de capital, não são suficientes para
utilizando variáveis analíticas não consi- explicar a origem dos programas sociais.
deradas na abordagem da “teoria da crise Para esse autor, não se segue que, haven-
fiscal” de O’Connor. Aceita a ideia de que do demandas, o Estado irá necessariamente
o Estado capitalista contemporâneo tem atendê-las. A relativa autonomia do Estado
um lado social restrito, que diz respeito à permite a existência de uma margem de
reprodução do conjunto da população, mas manobra nas decisões estatais. O Estado
chama atenção para o fato de que esse lado não age de maneira nenhuma como um
social foi fruto da luta da classe operária no instrumento passivo de uma classe, ainda
aparelho de Estado, dando, pois, relevância que não seja neutro. O que fez surgir o EBE
ao fator político. Além disso, chama aten- no pós-Guerra teria sido o forte movimento
ção para a autonomia relativa do Estado. em direção à organização da classe operá-
Essa autonomia significa que nem todas as ria e à reestruturação do aparelho estatal,
demandas postas pelo sistema capitalista com uma crescente concentração decisória
serão atendidas. no Executivo. A luta de classes dentro do
Gough rejeita as teorias de cunho fun- aparelho do Estado resultou em melhoria
cionalista, segundo as quais o fenômeno das condições de vida dos trabalhadores.
é produzido pelas causas que o geraram, Diferentes formas e graus de intensidade
mas reafirma que o EBE é fenômeno do dessa capacidade de pressão implicariam
capitalismo em um estágio particular de seu distintas modalidades de prestação de ser-
desenvolvimento e, mais especificamente, viços sociais, gerando um Estado capitalista
das sociedades capitalistas avançadas. É com face social.
o processo de acumulação capitalista que Em suma: Gough mantém a perspectiva
gera incessantemente as demandas para a marxista de que o Estado age no interesse
política social. A resposta do Estado sob a da classe capitalista. Mas a ameaça de um
forma de políticas sociais representa uma movimento social forte faz com que a clas-
resposta a necessidades geradas no e pelo se capitalista pense e aja de forma coesa e
modo de produção capitalista. Assim, ain- estratégica e reestruture o aparato estatal
da que o aparato estatal seja relativamente para essa finalidade:
autônomo nas sociedades capitalistas, ele “(...) os fatores que influenciam o
deve agir para responder aos imperativos desenvolvimento de políticas sociais
do processo de acumulação de capital. A são: 1. a luta e influência da classe
economia capitalista tem uma racionalida- trabalhadora; 2. a centralização do
de à qual o Estado deve submeter-se. Estado; 3. a influência dos primeiros
Sua teoria rejeita uma visão marxista sobre esse último (...). Esses fatores
estreita, segundo a qual o Estado seria es- não são de modo algum exaustivos,
sencialmente uma criatura do capitalismo e mas constituem (...) os principais
inteiramente submisso à classe dominante determinantes do EBE”. (GOUGH,
e à sua dinâmica de acumulação. Haveria 1979, p. 68)

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Outro importante autor, Claus Offe “(...) padrões ideológicos não são ape-
muda suas percepções sobre o EBE ao lon- nas ausentes, mas seriam inaplicáveis
go do tempo. Uma parte de seu trabalho mesmo se existissem (...). Plataformas
filia-se no mesmo campo que O’Connor. dos partidos e resultados eleitorais
Em alguns trabalhos, Offe (1972, 1979, parecem não ter influência na por-
1984a) argumenta que o EBE é funcional centagem do orçamento estatal que
às exigências de reprodução do capital; é gasto para fins do WS ou em novos
a política ou a ideologia não têm papel a programas de welfare que são criados.
exercer e há drástico determinismo econô- Muito mais importantes como deter-
mico. Em outro estudo, e já alterando sua minantes das políticas (policies) são
visão anterior, Offe e Lendhart (1984) fazem as variáveis econômicas (...)”. (OFFE,
uma abordagem político-institucional do 1972, p. 484).
problema, afirmando que a dinâmica das Nega, assim, qualquer determinante
políticas sociais está ligada às instituições e de ordem política na emergência de pro-
depende do processo de acumulação num gramas sociais ao afirmar que “a decisão
grau muito menor do que o anteriormente política no Welfare State está fadada a ser
acreditado. Portanto, em sua revisão de bastante reduzida” (OFFE, 1972, p. 484). O
diagnóstico, a variável política, antes me- EBE é um processo contínuo de adaptação
nosprezada, passa a ser fundamental para aos problemas sociais postos pelo desen-
o surgimento do Estado de Bem-Estar. volvimento do capitalismo.
Na fase inicial, Offe classifica o EBE como “A lógica do WS não é a realização de
fenômeno das sociedades capitalistas avan- algum objetivo humano intrinseca-
çadas. Segundo ele, essas sociedades cria- mente válido, mas antes a prevenção
riam estruturalmente problemas endêmicos de um problema social potencialmen-
e necessidades não atendidas, e o EBE seria te desastroso (...). Essa maneira tecno-
apenas uma tentativa de tratar desses novos crática e absolutamente apolítica de
problemas. Assim, sua origem estaria nas reagir a pressões sociais emergentes
mudanças estruturais da sociedade capita- condena o WS a um infindável e er-
lista e também como uma resposta funcional rático processo de auto-adaptação”.
ao seu desenvolvimento. Além disso, o EBE (OFFE, 1972, p. 485)
não representaria nenhum progresso nem O argumento da política social como
uma “revolução” social, porque não muda a compensação das disfuncionalidades da
situação dos indivíduos diante do sistema de operação do sistema capitalista se repete
produção capitalista nem lida diretamente posteriormente, quando Offe (1979) trata da
com as necessidades humanas fundamen- natureza do Estado intervencionista. Com
tais. Lida somente com os problemas criados o argumento de que o Estado se adapta às
pelo crescimento industrial (OFFE, 1972). novas condições postas pelo sistema de pro-
Em seu desenvolvimento, o capitalismo dução capitalista, Offe afasta-se da corrente
destruiria formas anteriores de vida social, ortodoxa marxista, em que o Estado capita-
gerando disfuncionalidades que se expres- lista permanece o mesmo em suas funções
sariam sob a forma de problemas sociais. essenciais, e da corrente social-democrata,
O EBE apresentaria, portanto, formas de na qual a novidade do pós-Guerra seria
compensação às perdas percebidas pela uma substancial alteração da essência do
sociedade. Mas o Welfare seria desdobra- Estado capitalista.
mento necessário, e não escolha. As condi- Na década de 80, Offe e Lenhardt (1984)
ções econômicas e sociais determinariam reafirmam a funcionalidade do EBE ao
a emergência do EBE e não haveria lugar modo de produção capitalista e descarac-
para opções no campo político: terizam a política social como compensação

84 Revista de Informação Legislativa


das perdas. Agora, as políticas sociais são sistêmica. Alterando sua visão expressa
centrais ao processo produtivo capitalista, em 1972, quando dizia que o Estado res-
proletarizando os trabalhadores e transfor- pondia automaticamente às necessidades
mando-os em trabalhadores assalariados: de produção capitalista, Offe afirma agora
ela passa a ser responsável pela constituição que o Estado tem uma dinâmica própria.
da própria classe trabalhadora2. Essa dinâmica diz respeito a um processo
A política estatal surge então a partir de elaboração interno, a um processo de
de uma estrutura econômica de classes, mediação de necessidades e a exigências
baseada na valorização privada do capital no seu interior que o torna sujeito a uma
e no trabalho assalariado livre. Explicar a dinâmica muito mais institucional que eco-
origem das políticas sociais significa definir nômica, ligada ao processo de acumulação.
quais são as funções que lhe competem, Sua problemática é político-institucional
considerando essas estruturas. (instituições alteram o resultado final das
“A política social é a forma pela qual policies), preservada a necessidade de acu-
o Estado tenta resolver o problema mulação de capital (OFFE, 1984a).
da transformação duradoura de tra- Para Offe, uma das razões para que o
balho não-assalariado em trabalho Estado garanta as condições de reprodução
assalariado”. (LENDHART; OFFE, ampliada do capital é sua dependência es-
1984, p. 15) trutural dessa reprodução, principalmente
Os autores distinguem dois conceitos: porque a saúde financeira do Estado depen-
o da proletarização passiva, processo pelo de da saúde da economia. Essa dependên-
qual o indivíduo é destituído dos meios cia é um princípio seletivo no processo de
próprios de subsistência, e o da proletariza- decisão interno ao Estado, para a definição
ção ativa, disposição para que o indivíduo de políticas estatais.
venda sua força de trabalho no mercado,
sendo que a passagem de um para outro 5. O Estado de Bem-Estar como
não é automática ou natural. A política resultado do embate político
social entraria para criar as condições de
existência da classe operária: “A função Uma quarta abordagem bastante signi-
mais importante da política social consiste ficativa é a de Esping-Andersen. Sua inter-
em regulamentar o processo de proletariza- pretação dá grande importância aos recursos
ção”. (LENDHART; OFFE, 1984, p. 22) de poder disponíveis e à mudança na confi-
Essa função só pode ser exercida pelo guração de forças dentro da arena decisória.
Estado porque o processo de integração Segundo ele, foi graças à ascensão da social-
daquela classe supõe a existência de uma democracia que se construiu o EBE.
associação política de dominação: o poder Sua pesquisa, baseada em 18 países capi-
estatal. Seguindo essa lógica, o desenvol- talistas desenvolvidos, articula a existência
vimento das políticas sociais representaria de três distintos regimes de distribuição de
um processo em que se tenta compatibi- serviços sociais às condições de sua emer-
lizar duas exigências que se contrapõem: gência. Sua hipótese central é a de que “(...) a
as exigências da classe trabalhadora e as reforma social foi uma questão vital desde o
necessidades de acumulação de capital. início do processo de organização da classe
A dinâmica de desenvolvimento das trabalhadora, quer esta tenha ocorrido sob
políticas sociais responderia a uma estraté- lideranças reformistas ou revolucionárias”.
gia estatal que buscaria realizar ao mesmo (ESPING-ANDERSEN, 1985a, p. 146)
tempo a integração social e a integração A defesa das políticas sociais fez parte
do próprio processo de constituição da clas-
2
Ver também Offe, 1984a. se trabalhadora enquanto classe “para si”

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(a classe tem objetivos históricos de eman- liberal as políticas são desenhadas de modo
cipação). A concepção social-democrata a maximizar o status de mercadoria do
de que a reforma social contribuiria para o trabalhador individual e a distinção dos
fortalecimento da capacidade de pressão da beneficiários é por mérito. Financiado pela
classe trabalhadora viabilizou-se como uma contribuição individual, vincula contribui-
alternativa real de política. Historicamente, ção a benefício, permite pouca intervenção
a implementação de políticas sociais teria estatal e oferece máximo escopo para o
sido a expressão de conflitos distributivos, mercado na distribuição dos serviços. A
que opuseram direita e esquerda em cada universalização é das oportunidades, e
país analisado. A implementação é, na não dos resultados, de modo a estimular o
verdade, reveladora da forma pela qual indivíduo a se autoproteger.
se resolveu em cada país o conflito distri- Em trabalho posterior, Esping-Ander-
butivo, ou como a politics traduziu-se em sen reconceitualiza o EBE. Nessa nova
policies. visão, ex post, o EBE se desenha como um
Seriam três os regimes de EBE identifi- sistema de estratificação, em que não é só
cados pelo autor: um mecanismo que intervém e corrige a
a. regime social-democrata (países estrutura da desigualdade, mas cria novas.
escandinavos): o movimento operário É ele próprio um sistema de estratificação:
expressou-se politicamente por meio dos “é uma força ativa no ordenamento das
partidos social-democratas, que ficaram relações sociais” (ESPING-ANDERSEN,
algum tempo no poder. O EBE é um sis- 1990, p. 23). A assistência social estratifica,
tema de proteção abrangente, cobertura estigmatizando os indivíduos e dividindo-
universal, benefícios desvinculados do os entre capazes e não-capazes: o sistema
montante de contribuição efetuado pelo universalista preconizado pelo EBE só seria
beneficiário; possível se reduzidamente aplicado. Em
b. regime ou modelo conservador outras palavras, só se fossem oferecidos
(Europa continental: Alemanha, Áustria, benefícios modestos em populações redu-
França, Japão, Bélgica e Itália). A Igreja zidas e homogêneas.
tem importante papel nas reformas sociais Para o autor, o surgimento de novas
e, em alguns desses países, houve forte classes médias introduz uma nova hierar-
absolutismo. Marcado pela iniciativa esta- quia: os setores com mais poder aquisitivo
tal, favoreceu um ativo intervencionismo voltam-se para uma proteção social além
estatal destinado a promover lealdade e do mínimo, buscando negociar benefícios
subordinação ao Estado e deter a marcha extras (ESPING-ANDERSEN, 1990, 1991).
do socialismo e do capitalismo. Os sistemas Numa situação de crise econômica, com
de proteção eram marcados pelo corpora- menos recursos, o que resta às classes com
tivismo, e esse regime consolidou divisões mais capacidade de influir no jogo decisório
no interior da classe trabalhadora. O legado é apropriar-se de uma fatia que poderia ser
conservador, em alguns países, representou destinada a outros segmentos, tirando do
obstáculo às reformas de orientação social- EBE seu caráter universalista, redistribui-
democrata quando esse partido assumiu dor de renda e solidário.
o poder;
c. regime ou modelo liberal (tradição
6. O Estado de Bem-Estar como
anglo-saxônica). Movimentos operários
são eleitoralmente fracos e o impulso
decorrência da capacidade estatal
burguês teria sido especialmente forte na Uma corrente mais contemporânea de
constituição da sociedade. Diferentemente explicação para a origem e o desenvolvi-
do modelo social-democrata, no modelo mento do EBE afirma que ele é resultado

86 Revista de Informação Legislativa


de configurações históricas particulares, de No primeiro trabalho, Bringing the state
estruturas estatais e instituições políticas. É back in (EVANS; RUESCHEMEYER; SKOC-
representada pelos neo-institucionalistas, POL, 1985), os autores rejeitam os argumen-
entre eles Theda Skocpol, Ann Shola Orloff tos society-centered. A variável explicativa
e Margareth Weir. central é o papel das burocracias estatais e
O pressuposto da análise é o de que o dos reformadores sociais na formulação de
Estado é autônomo em relação à sociedade políticas de bem-estar. Os desdobramentos
civil, levando-se a considerar o papel das da teoria são os seguintes:
burocracias públicas como uma variável a. burocracias públicas têm papel de
independente. As burocracias podem for- liderança;
mular e perseguir objetivos próprios, que b. capacidades estatais são medidas pelo
não são um reflexo nem um subproduto insulamento burocrático;
dos interesses presentes e organizados na c. recursos de poder das burocracias
sociedade civil. são derivados do processo de formação
Os neo-institucionalistas opõem-se a to- do Estado.
das as correntes que veem a ação do Estado A sequência histórica democratização-
como resultado de fatores exógenos à esfera burocratização é fundamental na análise
estritamente estatal: proposta pelos neo-institucionalistas. Em
“(...) os institucionalistas argumen- seus trabalhos mais recentes, ampliam o es-
tam que a capacidade estatal (state copo para a estrutura político-institucional,
capacity) para planejar, administrar e deslocando-se de uma perspectiva state-
extrair recursos é uma precondição centred para uma polity-centred. Enquanto
para a emergência de modernos pro- na primeira os “órgãos administrativos do
gramas sociais (...) e que o contexto Estado” constituem foco central da análise,
institucional (...) afeta as orientações, na segunda os autores indicam alterações
a capacidade de organização política importantes nas variáveis analíticas ado-
popular e das elites e, portanto, a tadas: burocracias passam a ser tanto as
formação de coalizões políticas entre indicadas quanto as eleitas; passa-se a uma
classes”. (ORLOFF, 1993, p. 83) análise da formação histórica do Estado
Seu primeiro pressuposto é o de que nacional; as formas históricas de interação
as burocracias públicas têm interesses entre a estrutura estatal e instituições polí-
próprios, consolidam-se dentro de condi- ticas são consideradas; e estuda-se como as
ções históricas particulares e são uma pré- estruturas condicionam o comportamento
condição para o surgimento dos sistemas dos grupos envolvidos na formulação de
modernos de provisão de serviços sociais. políticas (WEIR; ORLOFF; SKOCPOL, 1988;
“O ponto central é que as políticas propos- SKOCPOL, 1992; ORLOFF, 1993).
tas serão diferentes daquelas demandadas Nessa análise polity-centered, mesmo
pelos atores societais”. (EVANS; RUES- regras eleitorais, entendidas como institui-
CHEMEYER; SKOCPOL, 1985, p. 15) ções políticas, podem condicionar as formas
O segundo pressuposto defende que de organização de interesses na sociedade
as estruturas institucionais do Estado in- (SKOCPOL, 1992). Assim, a formação do
fluenciam a formação e o desenvolvimento Estado nacional e das estruturas políticas
dos interesses e das modalidades de ação de cada país constitui variável central na
dos grupos da sociedade civil. Mais que análise. É, pois, na história particular de
autônoma, a ação do Estado tem influência cada país que podem ser encontradas as
sobre a cultura política, sobre a ação política variáveis específicas de explicação de uma
coletiva e sobre a formação de questões determinada forma de desenvolvimento
políticas (SKOCPOL, 1992). dos sistemas de proteção social.

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 87


Para Orloff (1993), são três os elementos partir de categorias e progressos na arena
centrais da análise: a. formação do Estado social, dando sempre uma importância
nacional; b. contexto institucional, que secundária a imperativos estruturais e bu-
pode alavancar ou barrar as possibilidades rocráticos, a resolução da crise partiria da
de ação política dos grupos politicamen- refundação do contrato social: não sendo
te organizados, que são historicamente uma crise só econômica, mas do sistema de
mutantes; c. processos de policy feedback: relações sociais, não se poderia descuidar
ideologias e valores culturais influenciam da última em benefício da primeira.
o discurso político, mas esse também é Para o autor, a nova sociedade, o novo
influenciado pelas características das polí- Estado-Providência será um que torne
ticas existentes. As políticas sociais previa- visível novamente as relações sociais e
mente estabelecidas afetam a ação política a própria solidariedade, recuperando a
subsequente (SKOCPOL, 1992). “solidariedade curta”: mais possibilidade
Essa corrente, mais recente e em plena de troca direta entre os indivíduos. Isso
produção, tem influenciado bastante os será feito com uma nova pactuação, com a
novos estudos, e sua utilidade é bastante transferência de serviços públicos às cole-
significativa em estudos de caso. tividades e/ou organizações não-estatais.
Embora traga a redução da demanda por
Estado, pode provocar o reencaixe da soli-
7. O Estado de Bem-Estar em crise
dariedade e uma maior visibilidade, posto
Na década de setenta, começou-se a de- que os conflitos tornam-se mais prementes.
senvolver o argumento da deterioração do Entretanto, segundo Rosanvallon, isso faz
EBE. Várias são as causas apontadas para parte dos processos democráticos e não é
a crise. Em primeiro lugar, foi formulada a de forma alguma indesejável.
hipótese da crise fiscal (O’CONNOR, 1977; Ainda para Rosavallon (1997), é preciso
OFFE, 1984). A inflação das demandas e das ultrapassar a dicotomia Estado- mercado,
proteções aos trabalhadores, bem como a superando as tensões e desmistificando
rigidez no processo de trabalho, levariam papéis institucionais consagrados, espe-
a um menor investimento e à crise de acu- cialmente no caso das social-democracias
mulação: europeias, que enfrentam a crise contempo-
“O Estado-Providência está doente. rânea e sentem dificuldade para encontrar
O diagnóstico é simples: as despesas novos modelos exatamente pelo apego a
com a saúde pública e com o setor uma concepção excessivamente estatal da
social crescem muito mais depressa solidariedade.
que as receitas. Daí um lancinante Portanto, é fundamental furar o blo-
problema de financiamento, que se queio de ordem cultural e sociológica que
apresenta nos últimos vinte anos, em emperra o funcionamento dos sistemas de
todos os países industrializados (...)”. proteção dos países industrializados, e tam-
(ROSAVALLON, 1997, p. 7) bém, ao mesmo tempo, reavaliar o papel
Entretanto, como dito anteriormente, desse EBE – deverá permanecer ele como
para ele a crise central é de civilização e o único suporte dos progressos sociais e
filosófica, não de financiamento, e estaria agente único da solidariedade social?
visível nos índices mais altos de violência, Algumas limitações se impõem nas aná-
novos riscos tecnológicos e ambientais, lises de Rosanvallon. Em primeiro lugar, seu
mais greves e no “mal-estar francês”, com viés europeu e, mais que isso, francês. Seus
desemprego em massa, perda de identida- conceitos, soluções apresentadas e mesmo
de e incerteza quanto ao futuro. Da mesma sua rationale estão fundados na tradição de
maneira que sua análise do EBE se dá a seu país. Embora compreensível, reduz seu

88 Revista de Informação Legislativa


valor explicativo e a capacidade de gene- do país, seguida por amplo apoio quando
ralização de seus argumentos para outras se iniciam programas de corte. Ele salienta
realidades, mesmo a de outros países social- que mesmo os políticos eleitos sobre uma
democratas europeus. Outra limitação, a plataforma de cortes em benefícios sociais
do militante político ativo, embora traga e diminuição dos impostos (Thatcher, Kohl,
a vantagem do pragmatismo, pode pelo Reagan, por exemplo) têm suas políticas
mesmo motivo pecar profundamente. rejeitadas pela população, ressurgindo o
Como contraponto, existem ainda auto- apoio à manutenção daqueles benefícios
res que acreditam que a retração do EBE, logo após as tentativas de corte:
saindo da abstração e partindo-se para “expectativas de grandes mudanças
dados empíricos, de fato deu-se muito mo- apoiaram-se em parte na aplicação
destamente. Conforme demonstra Pierson implícita de modelos da expansão do
(1996), em estudo que trata da retração do WS, que podem ser lidos de forma a
EBE em quatro países – EUA, Inglaterra, sugerir que as mudanças econômicas,
Alemanha e Suécia –, apesar da crise fiscal o declínio do poder dos sindicatos ou
das décadas de 80 e 90, e a despeito de ter a presença de Estados vigorosos são
havido de fato mudanças dos partidos uma pré-condição para uma retração
no poder nesses países, passando-se de radical. Encontrei poucas evidências
social-democracias a governos de direita ou para essas afirmações (...)”. (PIER-
centro-direita, o EBE, que se encontrava em SON, 1996, p. 176)
estado avançado, resistiu bem e os cortes
foram insignificantes. Sobressai em seu
8. Considerações finais
estudo a continuidade dos programas de
EBE, e não a ruptura, como a literatura até Neste trabalho, foram apresentadas
então colocava. Ele chama a atenção para algumas versões sobre como surgiu e
a relativa estabilidade do EBE. evoluiu o Estado de Bem-Estar no capita-
A inexistência de mudanças radicais lismo avançado. A cada ponto de partida,
nos programas se deu, segundo o autor, surge um diagnóstico diferente – desde o
porque a criação do EBE fez surgir novas e evolucionismo de Marshall e a ênfase de
poderosas forças políticas que estabilizam o Rosavallon nas relações sociais e na so-
EBE, mudando a forma política dos proces- lidariedade, passando pelos autores que
sos de tomada de decisões, possibilitando adotam pressupostos de ordem econômica,
não mais que alterações incrementais nos até os que enxergam a gênese do EBE nas
programas existentes. Além disso, Pierson lutas políticas ou nos fatores internos à
atribui a estabilidade do EBE a dois motivos própria dinâmica do Estado.
básicos: o primeiro seria o conservadoris- Em todos eles, fica visível a tensão
mo das instituições democráticas. O EBE Estado-mercado-sociedade, havendo em
representa agora o status quo, com todas as cada um a preponderância de um dos
vantagens políticas que esse status confere. elementos sobre os demais. No caso de
Assim, como mudar pode ter um custo Rosanvallon, da sociedade; dos marxistas,
maior do que não mudar, permanece-se na do mercado e da busca de legitimação do
mesma condição. Estado diante das necessidades capitalistas;
A segunda razão da força política do de Esping-Andersen e neo-instituciona-
EBE seriam os custos eleitorais geralmen- listas, a preponderância do Estado e seus
te associados às iniciativas restritivas. O processos sobre as exigências do mercado
padrão nas pesquisas de opinião tem sido, ou da sociedade.
naqueles países, uma leve oposição ao EBE Portanto, mais que avaliar qual das li-
quando há fraco desempenho econômico nhas mais se aproxima de um diagnóstico

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 89


preciso, este trabalho propôs-se a resumir Assim, mesmo o objetivo apenas par-
os pontos de vista e explicitar o encadea- cial – muito longe do ideal libertário do
mento das teses, a partir dos pressupostos indivíduo autônomo – de vincular o êxito
assumidos, com o intuito de explicitar econômico a uma agenda social não é um
a variedade de interpretações para um fenômeno generalizável do ponto de vista
mesmo fenômeno, ainda que não de forma global, nem mesmo nos países mais prós-
exaustiva ou profunda. peros, haja vista o efeito, por exemplo, das
É de igual importância chamar a atenção imigrações nesses países.
para o fato de que nem todos os autores
veem uma positividade intrínseca no EBE
e em suas políticas compensatórias. Embora Referências
alguns vejam avanços na realização de suas
pautas, outros enxergam, mais do que a ARRETCHE, Marta T. S.(1995). Emergência e desen-
desobrigação das necessidades básicas que volvimento do welfare state: teorias explicativas. BIB,
pode levar os indivíduos à autonomia e à n. 39, p. 3-40. Rio de Janeiro, 1995.
liberdade, a legitimação das desigualdades, ESPING-ANDERSEN, Gosta. Politics against markets:
por meio de instrumentos que atendem não the social democratic Road to power. Princepton
aos indivíduos, mas ao processo de acumu- University Press, 1985.
lação capitalista, ou a grupos privilegiados. ______. The three worlds of welfare capitalism. Princeton
Daí que não só não libera os indivíduos, University Press, 1990.
mas os escraviza, reduzindo suas neces-
______. As três economias políticas do welfare State.
sidades ao consumo e a aspirações dadas; Lua Nova , v. 24. São Paulo: CEDEC, 1991.
ou os condena, ao reproduzir assimetrias
ou, pior, aprofundar privilégios de grupos EVANS, P.B.; RUESCHMEYER, D.; SKOCPOL, The-
da. Bringing the state back in. Cambridge University
articulados. Press, 1985.
Outro dado importante a se considerar
nas análises aqui referidas diz respeito GOUGH, Ian. The political economy of the welfare state.
Londres: MacMillan Press, 1979.
aos países de capitalismo avançado. Mais
especificamente Europa e Estados Unidos, LENDHARDT, Gero; OFFE, Claus. Teoria do estado
embora mais centradas no primeiro, dado o e política social: tentativas de explicação político-
sociológica para as funções e os processos inovadores
caráter mais restritivo dos segundos. Mui- da política social. In: OFFE, Claus. Problemas estruturais
tas dessas políticas alcançadas nos países do estado capitalista. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
europeus de capitalismo avançado, e que 1984.
hoje estão em crise, não se conformam como
MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio
parâmetro para os países de capitalismo de Janeiro: Zahar, 1967.
periférico.
O CONNOR, James. EUA: a crise fiscal do Estado.
Na verdade, e o caso da América Lati-
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
na é típico, tais políticas – lá superadas e
em fase de reforma – representam ainda OFFE, Claus. Advanced capitalism and the welfare
state. Politics & Society, v. 4. 1972.
fortes demandas. Esse sistema construído
no pós-Guerra e “centralizado, uniforme, ______. The theory of the capitalism state and the
generalizado, unificado e simples” não se problem of policy formation. In: LINDBERG, Leon et
al. Stress and contradiction in modern capitalism. Londres:
concretizou na região e encontra diversos
Lexington, 1979.
tipos de óbices para concretizar-se, espe-
cialmente no que diz respeito à uniformi- ______. Contradictions of the welfare state. Londres:
dade e universalidade, e em vista do ritmo Hutchinson, 1984.
de desenvolvimento e da capacidade de ORLOFF, Ann Shola. The politics of pensions. University
financiamento dos países. of Wiscosin Press, 1993.

90 Revista de Informação Legislativa


PIERSON, C. The new politics of welfare state. World SKOCPOL, Theda. Protecting soldiers and mothers. Cam-
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nio Vilela, 1998.

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 91


Evolução do controle da atividade
administrativa pelos Tribunais

José de Ribamar Barreiros Soares

Sumário
1. Aspectos gerais. 2. O controle da discri-
cionariedade administrativa. 3. O controle da
administração pública no Brasil-Colônia. 4. O
controle da administração pública no Brasil-
Império. 5. O controle da administração pública
no Brasil-República. 6. Definição da matéria
na Constituição de 88. 7. A visão da doutrina
clássica. 8. O conceito moderno de controle da
atividade administrativa. 9. Sistemas de controle
da atividade administrativa. 10. Conclusão.

1. Aspectos gerais
Desde o século XIX, aparece na França o
que se chamaria de recurso por excesso de
poder, momento esse em que se começa a
limitar a discricionariedade administrativa
do agente público, independentemente de
sua hierarquia administrativa.
O primeiro passo é o controle do ato ad-
ministrativo a partir do vício de incompe-
tência, que diz respeito à prática do ato por
quem não tem autoridade legal para tanto.
Sendo o órgão que dita o ato incompetente,
José de Ribamar Barreiros Soares, doutoran- anula-se tal ato. Este, o primeiro avanço no
do em Ciência Política pelo Instituto Universi- controle do ato administrativo.
tário de Pesquisas do Rio de Janeiro IUPERJ e O segundo passo atine com a forma do
Diplôme d’Études Politiques Générales pela
ato administrativo. Não se encontrando
Université Paris I - Panthéon Sorbonne, é Con-
sultor Legislativo da Câmara dos Deputados,
dentro dos parâmetros legais quanto à
Advogado, ex-Professor Assistente de Direito forma de que se deve revestir o ato, faz-se
da Universidade de Brasília, ex-Assessor Jurí- presente a possibilidade de sua anulação.
dico da Procuradoria-Geral da República e do O terceiro passo é o controle do ato por
Tribunal Superior do Trabalho. meio da técnica do desvio de poder. Assim,

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 93


a discricionariedade é controlada, perden- ro. Ao estabelecer, no Título I – Dos
do sua característica de insindicabilidade. O princípios constitucionais –, os fun-
poder discricionário passa a ser visto como damentos (art. 1o) e os objetivos (art.
liberdade conferida à administração para 3o) do Estado Democrático de Direito,
atingir o fim desejado pelo legislador. Se o privilegiando, tanto em um como em
administrador se descia dessa finalidade, outro, a dignidade da pessoa huma-
seu ato é anulado por desvio de poder. na, determinados princípios foram
Ao final do século, o recurso passa a positivamente incorporados à Cons-
ser utilizado para coibir qualquer viola- tituição. Como os princípios são con-
ção de lei, direta ou indireta. A violação siderados ‘mandamentos nucleares
de lei vem a ser entendida no sentido de de um sistema’ (cf. Mello, 1980:230)
violação não apenas da lei, mas também ou ‘ordenações que se irradiam e
dos princípios dessa finalidade, seu ato é imantam os sistemas de normas’ (f.
anulado por desvio de poder. Assim, um Silva, 1989:82), e neles se expressam
verdadeiro arsenal técnico foi colocado à os ‘valores constitucionais’, os nossos
disposição no combate à arbitrariedade constituintes criaram as chamadas
administrativa, tornando-se marcante o ‘normas-princípios’, que formam
papel desempenhado nesse sentido pelo os preceitos básicos da organização
Conselho de Estado francês. constitucional. Pela primeira vez na
história brasileira uma Constituição
definiu os objetivos fundamentais
2. O controle da discricionariedade
do Estado e, ao fazê-lo, orientou a
administrativa compreensão do sistema de direitos
No que tange ao tema da discriciona- fundamentais. Em outras palavras,
riedade, há de se mencionar, ainda, no a dignidade humana, traduzida no
Direito francês, a análise dos conceitos sistema de direitos constitucionais, é
indeterminados, em que a administração vista como o valor essencial que dá
dispõe de liberdade para adotar os crité- unidade de sentido à Constituição Fe-
rios de interpretação na prática dos atos deral. Espera-se, conseqüentemente,
administrativos. Em relação a esses temas, que o sistema de direitos constitucio-
o Conselho de Estado francês efetua o con- nais, visto como expressão de uma
trole máximo, a saber, o da adequação da ordem de valores, oriente a interpre-
decisão aos fatos. Assim, examina não ape- tação do ordenamento constitucional
nas a questão da legalidade, mas também em seu conjunto.
se a decisão tomada pela administração é A atuação da administração pública está
a mais adequada. limitada por preceitos jurídicos e morais,
Quando falamos em administração visando-se, desse modo, ao bem comum.
pública, logo pensamos em gestão de in- Os princípios constitucionais, os direitos e
teresses coletivos, interesses públicos. De garantias fundamentais e o Estado Demo-
fato, o atendimento ao interesse público é crático de Direito são bases inafastáveis
o objetivo maior, a razão de ser da admi- na formulação de políticas públicas e no
nistração pública. Nesse sentido, vale citar exercício da atividade administrativa no
o argumento de Gisele Cittadino (2002, p. Brasil.
25-26), que transcrevo, in verbis: Essa nova visão do Direito Constitucio-
“Parece não haver dúvida alguma de nal e do Direito Administrativo leva à ne-
que o sistema de direitos fundamen- cessidade de uma reformulação da prática
tais se converteu no núcleo básico do administrativa e a uma nova conceituação
ordenamento, constitucional brasilei- de discricionariedade administrativa, não

94 Revista de Informação Legislativa


mais se admitindo a existência de um cam- meio do Decreto de 16 de fevereiro de 1822,
po de atuação administrativa insindicável e de Dom Pedro I, sendo esse órgão extinto
isenta de apreciação judicial. Não é, pois, de em 20 de outubro de 1823. Após isso, cria-
se estranhar que a atividade judicial tenha se o Conselho de Estado, pelo Decreto de
sofrido uma evolução considerável, ao lon- 13 de novembro de 1823. A Constituição
go dos anos, e que a ingerência do juiz na do Império, de 1824, do Capítulo VII, dis-
atuação do administrador público tenha-se ciplinava a estrutura e funcionamento do
expandido, ao ponto de abranger a conveni- Conselho de Estado.
ência e oportunidade do ato administrativo,
o chamado mérito administrativo. 5. O controle da administração
Enquanto, no passado, se defendia, com
pública no Brasil-República
tanta veemência, o isolamento do mérito
administrativo da apreciação e do controle Com a Constituição de 1891, ficou abo-
judicial, na modernidade, não mais se sus- lido o pretenso contencioso administrativo
tenta essa solução, uma vez que a soberania do Brasil-Império. Em seu art. 60, instituiu
do povo deve sobrepor-se à liberdade do a competência dos Juízos ou Tribunais
príncipe, do administrador, pois, de outro Federais para processar e julgar:
modo, o poder não emanaria do povo, mas a) as causas em que alguma das partes
do soberano. O interesse privado deve-se funda a ação, ou a defesa, em disposição da
submeter ao interesse da coletividade e o Constituição Federal;
interesse privado do soberano nem mes- b) todas as causas propostas contra o
mo pode ser admitido, uma vez que a sua Governo da União ou Fazenda Nacional,
função precípua é a satisfação do interesse fundadas em disposições da Constituição,
coletivo, como lhe impõe o regime demo- leis e regulamentos do Poder Executivo,
crático. ou em contratos celebrados com o mesmo
governo;
c) as causas provenientes de compen-
3. O controle da administração
sações, reivindicações, indenização de
pública no Brasil-Colônia
prejuízos ou quaisquer outras propostas
Nessa época, encontram-se todos os pelo Governo da União contra particulares,
poderes concentrados no monarca, a ma- ou vice-versa.
gistratura revela-se submissa às decisões Assim, as causas envolvendo a adminis-
do governo, acatando aquilo que o onipo- tração pública passarem à competência da
tente rei decidisse como sendo o interesse Justiça Federal, confirmando-se a unidade
público, já que este era, em última análise, de jurisdição, em que o Judiciário é o único
fruto da reflexão do próprio rei e, assim, Poder competente para julgar os conflitos,
suas decisões eram sempre consoantes ao tanto os comuns como os de natureza ad-
interesse público. ministrativa. Esse sistema foi preservado
pelas Constituições posteriores, cabendo
4. O controle da administração ao Poder Judiciário examinar todas as
causas em que se alegue lesão ou ameaça
pública no Brasil-Império
a direitos.
Nessa época, funcionava o Conselho de
Estado como órgão superior do contencioso
6. Definição da matéria na
administrativo, criado pelo Decreto de 18
Constituição de 88
de fevereiro de 1821, do Rei Dom João VI.
A seguir, instituiu-se o Conselho de Procu- O princípio do controle da adminis-
radores-Gerais das Províncias do Brasil, por tração pública pelo Judiciário encontra-se

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 95


explicitado no art. 5o, XXX, da Constituição ato administrativo, a fim de decidir quanto
de 1988, que reza: “A lei não excluirá da a sua nulidade ou não.
apreciação do Poder Judiciário lesão ou A legalidade do ato administrativo sub
ameaça a direito”. exame pelo Judiciário abrange não apenas
Dessa forma, observa-se que o sistema a competência para a prática do ato e de
de controle da administração pública, no suas formalidades extrínsecas, mas ainda
Brasil, é o de uma jurisdição, em que os os requisitos substanciais do ato, bem como
litígios envolvendo a administração são os pressupostos de fato e de direito, quan-
de competência dos tribunais comuns, do esses aspectos estejam previstos em lei
e não de um Conselho de Estado. Toda- como vinculados ao ato administrativo. As
via, com a expansão do controle dos atos restrições impostas ao controle jurisdicional
administrativos, atingindo-se o mérito do ato administrativo teriam por objetivo
do ato administrativo, com a análise da subtrair a administração pública à predo-
moralidade e da eficiência administrativa minância do Judiciário, ameaçadora da
pelo Poder Judiciário, o sistema brasileiro atuação da administração e de sua ativida-
aproximou-se da justiça administrativa, de peculiar. Assim, controle judicial do ato
com uma abrangência característica daque- administrativo estaria restrito ao aspecto da
le, o que representa um avanço do Estado legalidade, sendo vedado ao Poder Judiciá-
Democrático de Direito. rio apreciar o mérito administrativo, isto é,
sua conveniência e oportunidade.
A Constituição de 1934 dispunha, no art.
7. A visão da doutrina clássica
68: “É vedado ao Poder Judiciário conhecer
De acordo com a doutrina clássica, o de questões exclusivamente políticas”. A
controle judicial do ato administrativo está Carta de 1937, em seu art. 94, trazia a mes-
limitado, nos casos concretos, à questão da mo vedação. A respeito de tais atos e sua
legalidade, não podendo o Poder Judiciário origem histórica, assim nos relata Garcia
adentrar o mérito do ato administrativo. de Enterria (1990, p. 497-498):
Desse modo, não aceita a doutrina clássica “Historicamente, a doutrina dos atos
a interferência do Poder Judiciário no que políticos foi introduzida pelo Con-
diz respeito à conveniência e oportunida- selho de Estado francês (talvez uma
de do ato administrativo, não podendo o das escassas máculas de sua história
mérito do ato administrativo ser objeto de exemplar) no momento crítico da Res-
controle judicial. tauração bourbônica, quando estava
Quanto à questão da legitimidade, em risco, como criação napoleônica,
entendem alguns autores que ela não a subsistência da grande instituição e
abrange apenas a conformação do ato com de suas funções. O Conselho se negou
a lei, mas, também, sua adequação com a sistematicamente a conhecer aquelas
moralidade administrativa e o interesse pú- reclamações que tinham relação com
blico, elementos estes que devem permear os problemas políticos derivados da
todos os atos do administrador público. extinção do regime napoleônico (por
Assim, aqueles atos que vão de encontro à exemplo, arrêt Laffite, 1822) e mais
moral administrativa ou não satisfazem ao adiante com os que se referiam às dis-
interesse coletivo, atendendo a interesses tintas mudanças e conflitos políticos
privados de indivíduos, grupos ou par- que se sucederam. Chegou-se assim
tidos, devem ser considerados ilegais ou à teoria do móbil político, segundo
ilegítimos, sendo passíveis de anulação. É o qual, fosse qual fosse o objeto ma-
incumbência do Poder Judiciário examinar terial do ato, sempre que os gover-
os aspectos relacionados à legitimidade do nantes o ordenassem em função de

96 Revista de Informação Legislativa


um fim político, tornava-se com isso natureza. Os atos de governo são aqueles
isento do contencioso administrativo. assim designados pela jurisprudência, sen-
O sistema funcionou com todos os re- do esta complementada pela enumeração
gimes até 1875. Nesta última data, já contida em lei, como: defesa do território
estabelecido o sistema de jurisdicção nacional, relações internacionais, segurança
delegada (desde 1872), que reconhe- interna do Estado, mando e organização
ceu ao Conselho de Estado toda a militar.
sua independência, pela primeira vez Entretanto, não há como se pretender
tomando conhecimento da reclama- a insindicabilidade desses atos políticos,
ção do príncipe Jerônimo Napoleão sob pena de se admitir que o administra-
contra sua suspensão como general dor detenha um poder arbitrário no que
de divisão. O critério se mantém em tange a essas matérias, passando por cima
1880, a propósito de assuntos relacio- dos direitos fundamentais dos cidadãos,
nados com a expulsão dos jesuítas, e sem que estes possam ingressar perante o
em 1887, arrêt PRINCE D’Orléans e Judiciário para exigir o respeito à lei. A dou-
Prince Murat. Desde então se mantém trina dos atos de governo foi superada no
ainda a tese dos atos políticos ou de direito francês. Restaram como limitações
governo unicamente enquanto se re- ao controle judicial as relações governo-
firam a um lista concreta de matérias, parlamento e as relações internacionais,
que a jurisprudência posterior foi ficando os demais atos chamados políticos
reduzindo. Esta lista, já desvinculada ou de governo sujeitos à sindicância pelo
por completo da origem da doutrina, Judiciário.
compreende hoje as relações inter- Como bem lembra Cristina M. M. Quei-
nacionais, as relações interconstitu- roz (1990, p. 199), em sua obra Os actos
cionais do Executivo com os demais políticos no Estado de Direito,
poderes e as questões de perdão e “essa mudança funcional observada
anistia. A isenção jurisdicional des- nos direitos fundamentais não é de
tas hipóteses é explicável por razões tipo meramente nominal. Indica, pelo
próprias, pelo que a arcaica doutrina contrário, que a relação que intercede
dos atos de governo se declara hoje entre o Estado e a sociedade, regula-
introuvable (Virally)”. da pelos direitos fundamentais, não
De acordo com a doutrina clássica, tais pode já ser descrita adequadamente
questões políticas não poderiam ser objeto recorrendo-se às categorias abstractas
de exame pelo Poder Judiciário. No direito e formais da ‘autoridade do Estado’,
francês, surgem com fundamento na dou- de um lado, e da ‘submissão’ dos
trina do móvel ou do fim; o ato político, cidadãos, do outro. Como observa,
desse modo, teria finalidade móvel, de com grande penetração intelectual,
natureza política. Vistos por esse aspecto, Peter Häberle, há que se colocar a
os móveis políticos poderiam ser aplicados cabeça do absolutismo tardio sob pés
a qualquer ato administrativo e, consequen- democráticos, ou seja, que os direitos
temente, dada a dificuldade de averiguar, fundamentais inerentes à pessoa
no caso concreto, o motivo último do ato, humana não podem ser unilateral-
poder-se-ia chegar à subtração da maior mente reduzidos a uma dimensão
parte dos atos administrativos do controle supratemporal de validade absoluta,
pelo Judiciário. antes se ordenam em função de esfe-
Essa possibilidade levou o Conselho de ra de vida social que se manifestam
Estado francês a substituir essa teoria pela como especialmente necessitadas
dos atos de governo, considerando-se sua de protecção. Daí que as formas e

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 97


os conceitos jurídicos transmitidos como desde há muito foi notado.
nem sempre sejam suficientes para Defensores da Constituição são todos
caracterizar de forma mais adequada os órgãos constitucionais e todos os
a situação actual. É o que se passa, por cidadãos com ‘vontade de Consti-
exemplo, com a cláusula do Estado de tuição’”.
direito democrático da Constituição Não mais se pode conceber que o mérito
da República”. do ato administrativo fique completamente
O aperfeiçoamento do Estado de Direi- fora de controle judicial, diante dos princí-
to implica a diminuição da esfera de atos pios da moralidade e eficiência insculpidos
políticos juridicamente insindicáveis. É no art. 37 da Constituição. A Constituição
verdade que há conflitos de natureza pura- de 1988 instituiu a moralidade e a efici-
mente política, alheios ao controle jurídico ência como princípios autônomos. O ato
do Judiciário. Outros, entretanto, escapam administrativo, para que seja tomado como
a essa abrangência, transcendem o âmbito válido e eficaz, deve também se sujeitar
meramente político, para sujeitar-se ao aos princípios da boa administração. A
controle judicial. fim de garantir o atendimento ao interesse
É necessário, contudo, que, no controle e aos anseios da coletividade, bem como
jurídico dos atos políticos que a ele se su- a obediências à lei por parte do adminis-
jeitarem, o magistrado aja com certa dose trador público e ao bem comum, os atos
de autocontenção, a fim de não incidir em administrativos se subordinam ao controle
uma usurpação de poderes. Nesse sentido, do Poder Judiciário.
citamos mais uma vez os comentários de
Cristina M. M. Queiroz (1990, p. 218), nos
8. O conceito moderno de controle da
seguintes termos:
“O jogo recíproco entre a direção nor-
atividade administrativa
mativa do processo político e as reac- Modernamente, existem diversos direi-
ções das idéias e força políticas que tos e garantias fundamentais que têm con-
constituem a ordem normativa real dicionado a construção e consolidação da
ou constituição efectiva não podem democracia atual. Em face desses direitos e
ser suprimidos nem para um lado garantias fundamentais, o Judiciário passa
nem para o outro. No conflito entre a ter novo papel na ordem democrática,
o princípio do Estado de direito e o tendo em vista a necessidade de propiciar
direito de governar, a máxima mon- aos cidadãos o respeito a esses direitos
tagem de controles ‘inter-orgânicos’ constitucionalmente estabelecidos, diante
não significa sempre um resultado do que a discricionariedade administrativa
ótimo. A institucionalização de me- sofre mais um golpe, diminuindo-se seu
canismos de controle jurídico do po- campo de incidência.
der apresenta-se como um elemento Não há qualquer discricionariedade em
necessário e indefectível do Estado benefício do administrador ou do Poder
de Direito. Mas seria puro engano Público. A discricionariedade deve sempre
pressupor que o manejo de todo esse ser pautada pelo interesse público, pela so-
instrumentário jurídico pudesse algu- berania popular, pela democracia, de modo
ma vez resolver todos os problemas que toda ação administrativa respeite inte-
concernentes à justiciabilidade do gralmente a vontade do povo que elegeu
político. Numa ordem constitucional seus representantes para exercer os atos da
livre e democrática, o controle jurí- vida pública em seu nome e proveito.
dico não é tudo. Controles ‘sociais’ e É por isso que a Constituição estabelece
‘políticos’ também se desenvolvem um quadro extenso de princípios, quer

98 Revista de Informação Legislativa


explícitos quer implícitos, de modo que tivo procede a um juízo de valor. O exame
toda atividade administrativa seja por eles do mérito do ato administrativo envolve
regulada, daí poder-se falar em ato vincula- uma abordagem axiológica da realidade
do e elementos discricionários do ato. Não social e administrativa, envolvendo uma
existe a rigor nenhum ato discricionário, noção não do ser, mas do dever ser.
no campo da atividade administrativa pú- O mérito administrativo diz respeito a
blica. Os atos administrativos são, por sua elementos não vinculados do ato adminis-
vez, todos vinculados. Todavia, na prática trativo, situando-se, assim, no campo dos
desses atos, verificam-se alguns procedi- atos administrativos discricionários, em
mentos, algumas particularidades de cunho que a lei confere à administração pública a
discricionário, que, entretanto, ao final, se escolha e valoração dos motivos e do objeto
transformarão em elementos vinculados, do ato. Refere-se o mérito à conveniência
pois farão parte de um todo que será sem- e à oportunidade do ato, elementos estes
pre vinculado, e nunca discricionário. O submetidos à apreciação do administra-
ato é a totalidade, o elemento discricionário dor público. Ao decidir sobre o mérito, o
é uma fração, uma parte desse todo. Por administrador público aprecia o critério de
isso, ao final com o todo se confundirá e a conveniência, oportunidade, razoabilidade,
ele estará estreitamente ligado, assumindo justiça, economia, acerto, utilidade, boa
suas feições legais e normativas, ou seja, de administração e moralidade. Trata-se de
ato vinculado. valoração, de juízo de valor.
O mérito do ato administrativo diz A oportunidade do ato administrativo
respeito à valoração intrínseca do ato com atina ao momento, ao melhor tempo para
vistas à delimitação da conveniência e sua prática, dadas as circunstâncias que o
oportunidade, podendo o administrador envolvem. Neste ponto, cabe a apreciação
optar, inclusive, entre ação ou abstenção, subjetiva do administrador para determi-
tendo em vista o atendimento ao interesse nar qual o momento mais adequado, mais
público. Nesse sentido, a lição do professor oportuno, para a prática do ato. Desse
Celso Antônio Bandeira de Mello (1992, p. modo, resulta que um ato tido por oportu-
82), para quem no, em dado momento e em certa circuns-
“o mérito do ato administrativo não tância, pode revelar-se inócuo e inoportuno
pode mais que o círculo de liberda- em época e situações distintas.
de indispensável para avaliar, no No que tange à conveniência, esta re-
caso concreto, o que é conveniente sulta da apreciação quanto àquilo que é
e oportuno à luz do escopo da lei. adequado, justo, razoável, eficaz, eficiente,
Nunca será liberdade para decidir em apropriado e moral. O vício de mérito diz
dissonância com este escopo”. respeito à inoportunidade e à inconveniên-
Na apreciação da conveniência e opor- cia do ato, resultantes da apreciação equi-
tunidade, o agente pondera sobre a hora, vocada dos fatos, em face dos fins visados
o lugar, justiça, economicidade, razoabili- pelo legislador. Assim, mesmo que tais atos
dade, moralidade, utilidade, eficiência, pro- se ajustem ao campo estrito da legalidade,
bidade, obediência aos princípios da boa não serão hábeis ao atendimento do inte-
administração e, sobretudo, o atendimento resse público tutelado pelo ordenamento
ao interesse público. O estudo do mérito do jurídico.
ato administrativo não se restringe apenas Segundo ensinamento de Vitta (apud
ao aspecto jurídico: vai além deste, invadin- DIEZ, 1961, p. 246), o vício de mérito
do o campo da Filosofia, da Sociologia e da abrange o procedimento administrativo
Moral. Isso acontece porque, no âmbito do que se revela em oposição aos preceitos
mérito administrativo, o agente administra- de equidade, havendo injustiça manifesta

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 99


no ato administrativo. A inconveniência Se trata de la apreciación que debe
e inoportunidade do ato, neste aspecto, hacer el bueno administrador sobre
revela-se por meio da má valoração, da la eficacia del acto. Señala Fiorini que
análise equivocada dos fatos, tendo como los vicios em mérito se refiren a los
parâmetro os fins objetivados pela lei. actos que realiza la administración
Há de se notar, ainda, a estreita relação em el ejercicio de sus facultades dis-
existente entre o mérito administrativo e crecionales, ya que no pueden incidir
os princípios de boa administração. Estes sobre las normas de la actividad legis-
impõem ao administrador público o de- lativa, porque ello implicaria valorar
ver de alcançar o máximo de vantagens e condicionamentos juridicos em los
benefícios com o mínimo de sacrifício dos que la administración há intervenido
direitos e interesses dos administrados. em su creación.
Encontra-se, implícito no conceito de mé- La administración, em ejercicio de
rito administrativo, um sentido teleológico, sus facultades discrecionales, puede
finalístico, ligado à satisfação do fim perse- resolver que debe hacerse, como debe
guido pelo legislador, o que se perfaz com hacerse. Los resultados de esta apre-
a eleição, pelo administrador, dos meios ciación se valoran teniendo n cuenta
idôneos mais eficientes para atender ao el el contenido del acto.
interesse público. El acto ineficaz, vale decir com vi-
O administrador está obrigado, portan- cios de mérito, puede ser también
to, à obediência, à observância ao princípio ilegitimo, sin que ello implique uma
da boa administração, procedendo a uma identificación entre el mérito y la
apreciação adequada dos fatos, para con- legitimidad. Entiende Ranelletti que
cretizar o atendimento ao interesse público, el acto administrativo com vicio de
dentro das diretrizes que lhe foram traçadas mérito es inválido.”
pelo legislador, relacionadas aos poderes A doutrina italiana aborda os vícios dos
discricionários da administração pública. atos administrativos, indicando aqueles de
Quando o administrador decide se deve mérito como espécie distinta dos vícios de
ou não praticar o ato, qual o momento legitimidade, entendendo-se como mérito
oportuno e como deve ser realizado, deve o campo da conveniência e utilidade do ato
avaliar os fatos e as circunstâncias que o administrativo, bem como aspectos relacio-
envolvem, com vistas ao conteúdo do ato, nados com sua adaptação à obtenção dos
tendo sempre como parâmetro o interesse fins genéricos e específicos a serem alcan-
público. Nesse sentido a lição de Manuel çados pelo administrador, no uso de suas
Maria Diez (1961, p. 414-415), que assim se faculdades discricionárias. Na concepção
pronuncia sobre a questão: de Fiorini (1969, p. 213),
“Frente al vicio de legitimidad está “el juicio de mérito fluye del acto ad-
el vicio de mérito que implica la ministrativo como uma consecuencia
inoportunidad del acto. La inoportu- necesaria del mismo, e no surge del
nidad o inconveniencia significa uma proceso de lavoluntad formadora.
apreciación errónea de los hechos El acto es meritorio cuando satisface
em relación com los fines que la ley pleenamente los valores de oportuni-
se há propuesto, excluidos los casos dad, conveniencia, utilidad y justicia
considerados como de desciación de em la realización de los fines públi-
poder. El acto no es entonces idóneo cos. Puede econtecer que nasciendo
para cumplir los fines señalados por meritorio deja de serlo al correr del
el legislaro aun quando no pueda ser tiempo. Los valores sobre el mérito
considerado como contratio e ellos. del acto deben siempre jugarse em

100 Revista de Informação Legislativa


congruencia com los fines públicos princípio da reserva legal, bem como aos
que satisface. El ámbito donde se princípios da soberania do interesse popu-
cotejan los valores de méritos circuns- lar e da sua indisponibilidade. O controle
cribe en los intereses públicos; los do ato administrativo impõe-se por força
intereses particulares no concurren dos princípios da soberania do interesse
para fijar el criterio de apreciación popular sobre o interesse dos particulares e
del mérito. Éste siempre se regula em da indisponibilidade de tais interesses pela
función del interés público”. administração pública.
A administração pública, no âmbito A soberania do interesse popular sobre
completo de sua atuação, está vinculada à o dos particulares e sua indisponibilidade
lei. O administrador público não pode fazer por parte da administração pública têm-se
aquilo que a lei permite, mas apenas o que revelado como pilares básicos da relação
ela determina, na forma, tempo e moldes jurídica da administração pública com os
por ela traçados. Nisso reside um ponto es- administrados. Tal soberania do interesse
sencial de distinção entre o agente público e popular é postulado inarredável e neces-
o sujeito privado. Mesmo nos atos discricio- sário à construção do sistema do Direito
nários, a legitimidade deve permear a con- Administrativo, por meio do qual se ga-
duta do administrador público, de forma rantem e resguardam as necessidades pú-
que as normas pertinentes à sua atuação, blicas tuteladas, os direitos e interesses da
bem como a finalidade e o interesse público, coletividade administrada. Disso decorre
sejam plenamente atendidos na realização que todo e qualquer privilégio concedido
do ato administrativo, alcançando-se as pelo ordenamento jurídico à administração
exigências do bem comum. pública não é em prol do administrador,
Caso a administração pública desrespei- como se fora um privilégio pessoal, mas
te as normas legais, agrida o ordenamento dos administradores.
jurídico, desconsidere os preceitos básicos A situação de autoridade e de comando
da administração, desborde da sua compe- em que se encontram a administração pe-
tência, desvie-se da finalidade, o ato admi- rante o particular tem como objetivo, tão-
nistrativo estará inquinado e, consequen- somente, proporcionar-lhe os meios ade-
temente, sujeito à anulação pela própria quados para gerir os interesses públicos da
administração ou pelo Poder Judiciário, melhor forma. O administrador público, no
por meio da ação adequada. O Estado de exercício de suas funções administrativas,
Direito pressupõe a fixação da competência está obrigado a se valer dos instrumentos
de seus órgãos e agentes e a determinação colocados ao seu alcance, com a finalidade
dos tipos e formas de controle dos atos, única de realizar os interesses públicos, de
em prol da defesa da administração e dos se desincumbir, da melhor forma possível,
direitos e garantias individuais. de suas responsabilidades como agente de
O Estado possui deveres e direitos em um poder cujo titular é o povo, do qual
relação aos indivíduos, os quais, por sua emana e em cujo nome é exercido, na forma
vez, desfrutam de direitos e possuem obri- do que dispõe a Constituição Federal.
gações em face da atuação do Estado. No O interesse administrado, gerido, não
desenrolar dessas relações, podem surgir é o do administrador público, mas o da
violações de direitos, por ação ou omissão, coletividade, do povo, do titular do poder:
ocupando os indivíduos e o Estado posições o interesse público. Todas as prerrogativas
antagônicas. que decorrem do princípio da soberania do
Todos os atos da administração, no interesse popular sobre o do particular só
Estado de direito, encontram-se subordi- se explicam e justificam, na medida em que
nados ao império da ordem jurídica, ao postas a serviço, única e exclusivamente,

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 101


dos interesses populares, e não para atin- direitos e interesses públicos da livre
gir fins diversos, como, por exemplo, a disposição da vontade do administrador.
satisfação de interesses e conveniências da A administração pública não dispõe dos
administração ou do próprio administrador interesses públicos tutelados, antes revela-
público. se verdadeiro instrumento utilizado pelo
Aqui se apresenta a eficiência da ati- Estado, para a realização da vontade po-
vidade administrativa como vetor funda- pular, para o atendimento às necessidades
mental, no sentido de eliminar os modelos públicas da coletividade.
ultrapassados, as fórmulas arcaicas, que se
perpetuam como tradição administrativa,
9. Sistemas de controle da
sem qualquer benefício aos jurisdicionados.
Em relação a esse aspecto da ação admi- atividade administrativa
nistrativa, o pronunciamento de Dromi O controle judicial pode evidenciar-se
(1998, p. 35) se mostra bem apropriado de duas maneiras: por intermédio da ju-
para a compreensão do princípio da efici- risdição comum e por meio de jurisdição
ência administrativa, conforme passamos especial. Na primeira hipótese, o controle
a transcrever: dos atos administrativos é feito pelo Poder
“Outra señal que orienta la Consti- Judiciário. Trata-se de um controle exercido
tución de lo que llamamos la ‘con- pelos tribunais. O sistema de jurisdição
cepción eficientista’, es que ella especial pressupõe a existência de tribunais
abandona y elimina aquellos modelos especialmente instituídos com a finalidade
de gobierno y modelos de cotrol que de examinar as contendas surgidas entre
respondían a fórmulas arcaicas del a administração pública e os indivíduos.
manejo de la administración, del É o chamado contencioso administrativo.
funcionamiento de la justicia, de las Nesse caso, conta o Estado com uma justi-
tareas parlamentarias. A su vez evita ça própria, a qual não faz parte do Poder
convertir al control em uma simple Judiciário.
pieza de museo como alguna vez Esse sistema é originário da França
se dijo. El control, como elemento e adotado atualmente em outros países,
esencial de la organización política, como a Itália, o Uruguai e a Alemanha. O
no puede quedar em lo meramente avanço do controle judicial sobre o mérito
formal, sino que la Consitución lo administrativo permite uma aproximação
instaura d tal modo que lo transforma do sistema brasileiro com o sistema de jus-
em uma herramienta real y efectiva, tiça administrativa, diante do que faremos
diseñando um sistema eficaz, integra- algumas considerações a seguir a respeito
do y confiable (...) La eficiencia es um dessa modalidade de controle da adminis-
requisito vital, pues va implícitmente tração pública.
ligada a las cláusulas del progreso
tradicional de la sociedad (...) y a las
10. Conclusão
cláusulas del nuevo progreso eduta-
tivo, cultural, tecnológico, personal, Todos os poderes conferidos à adminis-
científico y humano que debe procu- tração pública esgotam-se no atendimento
rar la comunidad(...) Va íntimamente do interesse público, em conformidade com
vinculada a la prontitud, a la transpa- os princípios da soberania dos interesses
rencia del hacer gubernativo...” populares e da indisponibilidade de tais
Quanto à indisponibilidade desses interesses pela administração pública. O ato
interesses populares pela administração administrativo tem por base a lei e é dentro
pública, é princípio que protege os bens, de sua orientação, diretrizes, limites e prin-

102 Revista de Informação Legislativa


cípios que se deve exercer, para que possa te: Editora UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ/FAPERJ,
ser considerado legítimo. Qualquer atitude 2002.
tomada pelo administrador público que não DIEZ, Manuel Maria. El acto administrivo. Buenos
seja conforme à lei ou aos seus princípios Aires: Tipográfica Editora Argentina, 1961.
será injurídica e passível de anulação. FIORINI, Bartolome A. Teoria juridica del acto adminis-
O princípio da legalidade, regente de trativo. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1969.
todos os atos da administração à lei. Para DROMI, Roberto. Derecho administrativo. 7 ed. actual.
que essa submissão se torne efetiva, uma Buenos Aires, 1998.
realidade concreta, e não apenas um prin-
GARCIA DE ENTERRÍA, Eduardo; FERNANDEZ,
cípio em abstrato, torna-se necessário que Thomás-Ramón. Curso de Direito Administrativo. 3 ed.
a ordem jurídica estabeleça mecanismos São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1990.
hábeis de controle das atividades da ad- GUALAZZI, Eduardo Lobo Botelho. Justiça administra-
ministração pública. O controle judicial é tiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1986.
realizado pelo Judiciário, exclusivamente,
MEDAUAR, Odete. Controle da administração pública.
competindo a este o exame dos atos admi- São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1993.
nistrativos dos Poderes Executivo, Legisla-
tivo e do próprio Judiciário, nos casos em MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito
administrativo. São Paulo, 1994.
que este realiza atividade administrativa.
Os atos discricionários não estão isentos ______. Discricionariedade e controle jurisdicional. São
Paulo: Malheiros Editores, 1992.
do controle pelo Judiciário, cabendo a este
o seu exame, a fim de constatar se tais atos, QUEIROZ, Cristina M. M. Os actos políticos no estado
em vez de discricionários, desbordam para de direito: o problema do controle jurídico do poder.
Coimbra: Livraria Almedina, 1990.
o campo da arbitrariedade. Assim, haverá
controle judicial do ato administrativo TATE, C. N. Why the expansion of judicial power? In:
sempre que o Judiciário for provocado VALLINDER; TATE, Torbjorn; C. Neal. The global ex-
pansion of judicial Power: the judicialization of politics.
a apreciar as lides entre a administração
New York University Press, 1995.
pública e os administrados. Visa-se, com
isso, a proteger os direitos e garantias dos VALLINDER; TATE, Torbjorn; C. Neal. The global ex-
pansion of judicial Power: the judicialization of politics.
indivíduos diante da atuação do Estado. New York University Press, 1995.
WERNECK VIANNA, Luiz (Org.). A democracia e os
três poderes no Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG;
Referências Rio de Janeiro: IUPERJ/FAPERJ, 2002.

CITADINI, Antônio Roque. Controle externo da adminis-


tração pública. São Paulo: Max Limonad, 1995.
CITTADINO, Gisele. WERNNECK VIANNA (Org.).
A democracia e os três Poderes no Brasil. Belo Horizon-

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 103


Tópicos em direitos morais de autor

Sávio de Aguiar Soares

Sumário
1. Introdução. 2. Direitos morais de autor e
direitos da personalidade. 3. Posição dos direi-
tos morais de autor na Teoria Geral do Direito
autoral. 3.1 Características dos direitos morais
de autor. 4. Violações aos direitos morais de
autor. 5. Conclusão.

1. Introdução
Os Direitos intelectuais compreendem
os direitos de autor e os direitos industriais
ambos incluídos na classificação genérica
da propriedade imaterial. Entende-se pro-
priedade intelectual como o direito do ser
humano sobre suas criações intelectuais,
suas invenções, textos, desenhos, expressão
criativa, como direito do indivíduo sobre as
criações do intelecto. (LEITE, 2004, p. 22)
Nesse passo, Bittar (2004, p. 5) assevera
que os direitos intelectuais cumprem fi-
nalidades estéticas (de deleite, beleza, de
sensibilização, de aperfeiçoamento intelec-
tual, como nas obras de literatura, de arte
e de ciência), bem como atende a objetivos
práticos (de uso econômico, ou doméstico,
de bens finais resultantes da criação como
móveis, automóveis, máquinas etc), ascen-
dendo ao mundo do Direito em razão da
diferenciação em dois sistemas jurídicos
Sávio de Aguiar Soares é Mestre e Doutoran- especiais quanto ao Direito de Autor e ao
do em Direito Privado pela PUC Minas. Gradu- Direito de Propriedade Industrial.
ando em Filosofia pela UFMG. Procurador do Por conseguinte, o Direito de Autor
Estado de Minas Gerais. regula as relações jurídicas decorrentes da

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 105


criação intelectual e a utilização das obras ral, principiando pela noção negativa da
intelectuais pertencentes ao campo de atu- qual se infere que os direitos morais de
ação da literatura, das artes e das ciências. autor compreendem os poderes relativos
Por sua vez, o Direito Industrial aplica-se à utilização não-econômica da obra criada
à regulação das criações estéticas de cunho que, por sua vez, não compõem o direito
utilitário voltadas para a satisfação das patrimonial de autor.
necessidades humanas imediatas, sendo Adriano de Cupis (2004, p. 336) prelecio-
dotadas de uso empresarial, afigurando-se na que os poderes insertos no direito moral
nas chamadas patentes (invenção, modelo de autor são considerados no aspecto geral
de utilidade, modelo industrial e desenho da tutela da paternidade intelectual, sendo
industrial) e marcas (de indústria, de co- esta representada “pelo vínculo espiritual
mércio, ou de serviço e de expressão, ou indissolúvel entre o autor e a sua obra e
sinal de propaganda). constitui um modo de ser moral da pessoa
Em consonância com o apregoado no do próprio autor.”
Decreto no 75.541/1975, que criou a OMPI Destarte, segundo Adriano de Cupis,
(Organização Mundial da Propriedade In- a paternidade intelectual afigura-se como
telectual), vislumbra-se do seu art. 2o que um bem interior inseparável da pessoa
a propriedade intelectual compreende os com existência permanente na sua órbita
direitos de autor e os que lhe são conexos, jurídica, aproximando-se dos atributos ne-
marcas, patentes e a concorrência desleal. cessários para a caracterização dos direitos
A razão de ser dos Direitos do Intelecto da personalidade. Destaca, outrossim, que
situa-se na proteção autoral que se exige a estrutura do direito moral de autor tem
por meio dos tratados e convenções interna- um cunho de essencialidade que permite
cionais, assim como pelas legislações inter- sua defesa como um verdadeiro direito
nas da maioria dos países componentes da da personalidade, sendo considerado um
Organização Mundial do Comércio (OMC) direito essencial sem ser inato já que tal
em sua quase totalidade signatários da condição de direito inato não se coaduna
Convenção de Berna relativa aos Direitos com a necessidade de criação intelectual
Autorais e da Convenção de Paris alusiva e sua correspondente exteriorização como
aos direitos industriais. fato gerador da tutela autoral. (Idem)
Desta feita, cumpre observar que o Inclusive, o ato da criação intelectual é
presente estudo busca deslindar a temá- reputado por Cupis como uma manifesta-
tica acerca dos aspectos gerais relativos ção particular do direito à liberdade (de dar
aos direitos de autor a partir do exame do vida ou forma sensível à obra de engenho)
caráter extrapatrimonial do direito de au- que se perfaz por intermédio de diversos
tor sob a perspectiva da tutela dos direitos instrumentos jurídicos, exemplificando seu
personalíssimos, bem como a pertinência argumento no problema entre poder de
de identificar as alterações substanciais publicação e o de não-publicação (poder de
nos paradigmas privatísticos da contem- inédito). O primeiro seria parte do direito
poraneidade. patrimonial de autor, haja vista a utilidade
econômica do mesmo, enquanto o segundo
seria uma manifestação negativa do referi-
2. Direitos morais de autor e
do direito patrimonial.
direitos da personalidade Ou seja, o jurista italiano entende que o
No que concerne aos direitos morais poder de publicação e de inédito são duas
(pessoais) de autor, impende frisar as faces do mesmo direito (direito patrimonial)
conceituações formuladas no curso do cujo surgimento se faz com a criação da obra
desenvolvimento teórico da matéria auto- de engenho, não obstante o poder de inédito

106 Revista de Informação Legislativa


ser usado pelo autor para a defesa da pró- vez que se tratava de uma hipótese inteira-
pria reputação ou por aversão à publicidade mente desarrazoada na órbita de proteção
do seu pensamento, de sorte que isso não da personalidade intelectual do autor.
alteraria a conclusão de que se trata de um Os direitos morais de autor são dis-
direito de ordem patrimonial.1 ciplinados na legislação de regência em
Nessa linha de raciocínio, Pontes de vigor (BRASIL, 1998), conforme assentado
Miranda afirmava que o direito autoral de nos arts. 24 a 27 da LDA, além do disposto
personalidade seria o conceito mais apro- nos tratados internacionais aplicáveis,
priado para designar o chamado direito especialmente a Convenção Internacional
moral de autor ou direito pessoal de autor, de Berna de 1886 que dispõe no art. 6o bis
posto que o que se tutela no direito auto- abaixo transcrito:
ral de personalidade seria a identificação “Independentemente dos direitos
pessoal da obra, a sua autenticidade e sua patrimoniais de autor, e mesmo
autoria. após a cessão desses direitos, o autor
Com efeito, seria o direito à ligação da conserva o direito de reivindicar a
obra feita à pessoa que a fez, constituindo paternidade da obra, e de se opor a
direito inseparável da pessoa com supedâ- qualquer deformação, mutilação ou
neo nos direito à vontade, direito à honra, outra modificação dessa obra ou a
direito à identidade pessoal e pelo direito qualquer atentado à mesma obra, que
ao nome em vista do exercício da liberdade possam prejudicar a sua honra ou
de descoberta e invenção ou de produção sua reputação”. (BRASIL, 1975 apud
literária, artística ou científica. (PONTES SOUZA, 2003, p. 181-229)
DE MIRANDA, 1955, p. 139-155) Por sua vez, entende-se o direito moral
O saudoso jurista alagoano indagava se de autor como o vínculo permanente que
a possibilidade do direito de ligar o nome une autor e a criação espiritual de forma
à obra como direito da personalidade seria indissociável como emanação da sua perso-
idôneo de transmissibilidade, pois haveria nalidade, sendo tutelado pelo ordenamento
a hipótese de um terceiro adquirir licita- jurídico em razão dos elementos psíquicos e
mente o direito de ligar o seu nome à obra essenciais do sujeito de direitos no exercício
de outrem no plano dos negócios jurídicos. de sua atividade criadora.
Isto é, seria possível a cessão do direito ao O direito de autor na sua concepção é
nome de autor desde que convencionado direito personalíssimo, configurado por ser
entre as partes como uma terceira catego- inerente ao indivíduo, como pressuposto da
ria qualificada pelo direito a ligar o nome sua própria condição humana com fulcro
à obra, conforme a legislação de outrora, nos seus caracteres identificadores.
nos termos do art. 667 do Código Civil de Quais sejam, a oponibilidade erga omnes
1916. (eficazes contra todos), da indisponibilidade
Cabe ressaltar que o citado dispositivo (de valor inestimável) ou irrenunciabilidade
foi revogado tacitamente com a promul- (insuscetíveis de alienação), a originarieda-
gação da Lei no 5.988 de 1973 e de modo de, perpetuidade, intransmissibilidade, im-
explícito pela atual Lei de Direitos Autorais penhorabilidade (não admitem constrição
(LDA) que sucedeu a dita lei especial, uma judicial) e imprescritibilidade (não há prazo
1
A LDA (Lei de Direitos Autorais) em vigor
para o seu exercício), extrapatrimoniais
disciplina que o direito de inédito que corresponde (não avaliáveis em dinheiro), além dos as-
ao aludido poder de publicação constitui espécie de pectos protegidos da paternidade (de ligar
direito moral de autor o que destoa do contexto em o nome à obra), integridade (de introduzir
exame da obra do referido jurista italiano, tendo sido
ressaltado para fins de análise da evolução histórica alteração na obra), direito de uso, inédito,
do instituto jurídico em comento. retirada de circulação, entre outros.

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 107


Quanto ao aspecto da intransmissibi- o autor de outras medidas de caráter
lidade, apresenta-se um caráter relativo, judicial) a exemplar único e raro
em razão do preceituado no art. 24, I a IV, da obra em mãos de detentor legal,
e §1o da LDA, que excetuou essa regra, ao para o fim exclusivo de preservar
admitir como transmissível aos herdeiros sua memória, através de fotografia
pela morte do autor as seguintes espécies ou filmagem; o direito de repudiar
de direito moral: o direito de reivindicar a a autoria de projeto arquitetônico,
autoria da obra; o direito do autor de ter o alterado sem o seu consentimento
seu nome (direito de nomeação à autoria), e diverso do projeto original [...] e o
pseudônimo ou sinal convencional ligado direito de destruí-la.”
à obra, isto é, o direito ao crédito de ver a Em razão da normativa de regência dos
qualidade de autor publicizada na obra; o direitos morais de autor, convém repro-
direito de assegurar a integridade da obra duzir a posição de Victor Drummond pela
(direito de integridade) e de opor-se a mo- impossibilidade de transmissão aos suces-
dificações que atinjam ou prejudiquem sua sores, quanto ao direito de acesso a exem-
honra, assim como o direito de conservar a plar único e raro da obra intelectual, como
obra inédita, quanto ao poder de publicação gerador de situações perniciosas e obsta-
ou não (direito de inédito). tivas para que a sociedade tenha acesso a
Os direitos supracitados admitem o obras de autores célebres por leviandade de
exercício dos chamados direitos morais post determinadas pessoas. O exemplo que se
mortem auctoris por configurar hipóteses de segue foi trazido à baila em sua tradução à
legitimação causa mortis. obra espanhola de Carlos Rogel Vide sobre
Em contrapartida, há aqueles direitos propriedade intelectual:
morais que pertencem exclusivamente “Imagine-se que determinado pintor,
à pessoa do autor, logo, insuscetíveis de representativo da arte brasileira, tenha
transmissão, conforme aludido por Eliane falecido e seus sucessores tenham in-
Y. Abrão (2002, p. 75): teresse em promover uma catalogação
“Esses direitos que só o autor detém de suas obras, por meio fotográfico
são: o direito de modificar a obra com o intuito de divulgar ao público.
(§2o do art. 79), que não se confunde Estando determinadas obras sob o
com o de assegurar-lhe a integridade. poder de terceiros que desejem, deli-
Este é o direito que assegura a exata beradamente ou não, impedir o acesso
correlação entre idéia e resultado da a tais obras, a LDA não apresenta solu-
criação, entre o pensamento e obra ção favorável aos referidos sucessores,
criada, a ponto de liberar ao autor, senão ao proprietário dos suportes
e somente a ele, a possibilidade de físicos. A solução, portanto, somente
modificar a obra, até mesmo depois poderia se dar, em linhas gerais, pela
de publicamente utilizada (ressalva- análise do acesso constitucional à cul-
do o eventual prejuízo a terceiro); o tura, mas não pelo direito de autor.”
direito de tirar a obra de circulação e o (DRUMMOND; VIDE, 2005, p. 61)
de suspender-lhe a utilização mesmo Nessa linha, Carboni (2006, p. 70) defen-
que previamente autorizada, desde de que o direito de acesso a exemplar único
que a circulação ou utilização lhe e raro da obra seja incluído no §2o do art.
sejam ofensivas, quer à honra, quer 24 da LDA, por razões de interesse público,
à imagem (ressalvados igualmente não havendo por que negá-lo aos sucesso-
o prejuízo a terceiros); o direito de res do autor ou até mesmo ao Estado.
ter acesso (não o de posse ou de No magistério de Carlos Alberto Bittar
propriedade para cujo efeito dispõe (2004a), extrai-se que esses direitos sob

108 Revista de Informação Legislativa


exame consistem em faculdades positivas destaque a colocação da pessoa humana
(de exercício pelo autor) e negativas (de como fundamento das relações civis na
respeito pela coletividade, inclusive pelo perspectiva do direito civil constitucional.
Estado). Assim, compreendendo desde A propósito, a tipicidade aberta ou
o direito de inédito (de publicar ou não exemplificativa é o ponto marcante dos di-
a obra) ao direito de arrependimento (de reitos da personalidade. Os tipos de direitos
retirar a obra de circulação jurídica, de da personalidade são os tipos previstos na
fazer correções ou emendas ou acabar com Constituição Federal e na legislação civil,
a obra – direito de destruição). os tipos reconhecidos socialmente e de
Acrescenta, por oportuno, o comentário acordo com a cláusula geral da dignidade
de que o espírito dos direitos morais de humana.
autor impõe a não taxatividade da relação Assim, os direitos da personalidade são
legal insculpida na lei de regência, em con- direitos subjetivos não patrimoniais e essen-
formidade com os ditames da Convenção ciais à realização da pessoa, de modo que
de Berna e do próprio microssistema dos estão previstos no texto constitucional os
direitos autorais em vigor (arts. 24 e 49, I, seguintes direitos da personalidade: direito
LDA). à vida, liberdade, privacidade (intimidade),
Demais disso, tem relevância jurídica honra, imagem, direito moral de autor, di-
a compreensão do direito moral de autor reito ao sigilo (privacidade), à identificação
inserido na tutela dos direitos da persona- pessoal, integridade física e psíquica.
lidade, com arrimo na vertente relativa à Para a teoria do direito geral da perso-
denominada integridade intelectual, que nalidade, esta (a personalidade) é reputada
corresponde a um dos aspectos do com- como bem objeto da tutela jurídica geral
plexo de bens que integra o patrimônio pela qual se defende a inviolabilidade da
jurídico do sujeito de direitos autorais. pessoa humana, nos seus aspectos supraci-
De maneira especial, a inviolabilidade tados e direitos especiais correspondentes a
da pessoa humana tem este viés relativo a esses aspectos parciais da personalidade.
um setor peculiar do direito autoral que ati- Conforme Menezes Cordeiro, citado por
ne ao bem jurídico imaterial, fruto da ativi- José Jairo Gomes (2006, p. 181), a ideia de
dade de criação, o qual se materializa com a um direito geral de personalidade remonta
exteriorização da obra intelectual (literária, aos juristas alemães Regelsberger e Otto Von
artística, científica ou assemelhada). Gierke, de sorte que essa concepção ganhou
Por conseguinte, os direitos da perso- força no período que sucedeu a Segunda
nalidade constituem construção teórica Guerra Mundial, pois a doutrina estava
recente não havendo uniformidade na sensibilizada pela necessidade de defender
doutrina no que diz respeito à sua existên- mais vigorosamente a pessoa humana.
cia, conceituação, natureza e seu âmbito de O direito geral da personalidade seria
incidência. Ademais, apresenta-se no dizer uma estrutura lógico-abstrata ou um mo-
de Francisco Amaral (2006, p. 249) como delo geral, a partir do qual se deduziriam
“terreno de encontro privilegiado entre o manifestações concretas de proteção. A
direito privado, as liberdades públicas e o partir de uma estrutura geral abstrata, se-
direito constitucional, haja vista a posição ria obtida a solução reclamada para o caso
superior conferida pelo ordenamento jurí- concreto. Donde, o princípio da dignidade
dico nacional.” da pessoa humana exerce o papel de um
Os direitos da personalidade são pluri- direito geral ou cláusula geral de tutela da
disciplinares o que permite rica abordagem personalidade.
da matéria a depender do ângulo da aná- Os direitos especiais de personalidade
lise. Donde, da nova codificação civil tem pressupõem a existência específica dos bens

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a que se reportam. O direito da personali- sobre a enumeração taxativa ou exempli-
dade surge ligado ao bem que se pretende ficativa desses direitos “porque se está em
proteger, porquanto devem ser criados presença, a partir do princípio constitucio-
tipos normativos específicos para cada nal da dignidade da pessoa humana, de
bem da personalidade. Assim, segundo uma cláusula geral de tutela da pessoa hu-
essa corrente do pensamento jurídico, o mana”. Assim, nessa posição afirma-se que
rol de direitos é numerus clausus, ou seja, a pessoa hoje figura como um dos valores
taxativo o que não comporta a inserção de mais resplandecentes do sistema jurídico.
novos tipos. Induvidosamente, deve haver cautela
É imperioso adotar a sistemática de ao centralizar os direitos da personalidade
classificação que mais se coaduna com a na cláusula geral de dignidade da pessoa
dinâmica dos direitos da personalidade. humana, pois há situações de lesão a di-
Nesse sentido, vale aludir àquela elaborada reito de personalidade que não implicam
pelo douto Francisco Amaral (2006), nestes ferimento à dignidade humana.
termos: Além disso, é pertinente comentar a
– direito à integridade física (compre- crítica à visão jusnaturalista que entende os
ende proteção jurídica à vida, ao próprio direitos da personalidade como dado pré-
corpo, quer na sua totalidade, quer em jurídico (anterior ao ordenamento estatal),
relação aos tecidos, órgãos e partes do não sendo necessário que a proteção de
corpo humano suscetíveis de separação e seu núcleo fundamental conste de previsão
individualização, assim como no corpo sem normativa específica. Segundo a corrente
vida, isto é, quanto ao cadáver humano, positivista, a personalidade só pode ser
liberdade de alguém submeter-se ou não a concebida dentro de um sistema jurídico
exame ou tratamento médico); que a negue a certos entes.
– direito à integridade moral (proteção Quanto às fontes, pode-se dizer que os
conferida no tocante à honra, liberdade, direitos da personalidade seriam direitos
intimidade, imagem e nome, conforme naturais, independentemente do próprio
disposto nos arts. 16 a 21 do Código Civil ordenamento positivo, ou seriam oriundos
em vigor); exclusivamente do próprio ordenamento
– direito à integridade intelectual (pro- positivo.
tege o direito moral de autor, direito de Nos países democráticos constituciona-
reivindicar a paternidade da obra e o direito lizados, o Direito Positivo é a única fonte
patrimonial que é o direito de explorá-la e dos direitos da personalidade, dos direi-
dela dispor). tos humanos fundamentais, tendo como
Essa classificação, por outro lado, não princípio ou valor basilar a dignidade da
é unânime; a título de exemplo, José Jairo pessoa humana.
Gomes (2006, p. 183) menciona nessa pers- No respeitante à terminologia adotada,
pectiva a teoria dos círculos a qual divide direitos humanos, fundamentais e da per-
os direitos da personalidade em: círculo sonalidade, apresentam-se nuanças quanto
biológico que diz respeito à existência à generalidade, não obstante prima facie
biológica (vida, integridade física, saúde); tenham o mesmo conteúdo. Direitos hu-
círculo moral (intocabilidade espiritual manos envolvem direitos da personalidade,
do indivíduo, integridade moral, ao bom direitos sociais, econômicos e políticos.
nome, à reputação); círculo social (relações Direitos fundamentais são aqueles englo-
do sujeito com seus semelhantes, intimida- bados nos textos constitucionais.
de, vida privada, nome e imagem). Orlando Gomes citado por José Jairo Go-
Para Maria Celina Bodin de Moraes mes (2006, p. 186-187) entende que “direitos
(2003, p. 142), não cabe mais a discussão humanos são direitos públicos no sentido

110 Revista de Informação Legislativa


de proteger o indivíduo contra atos do nalidade e aos direitos autorais que deve
Estado e direitos da personalidade seriam sempre ser preservada de todos os ataques
aqueles direitos da pessoa encarados na da ilicitude, posto que se trata de um dos
possibilidade de serem atentados por parte fundamentos da República Federativa
de outros homens”. do Brasil, com ênfase para o processo de
Haveria também a necessidade de co- “constitucionalização” do Direito Civil
mentar sobre a designada tipificação dos di- que considera a personalidade como valor
reitos da personalidade. Noutras palavras, fundamental do ordenamento jurídico.
o exame do embate entre a teoria monista Nessa perspectiva, o citado autoralista
e pluralista dos direitos da personalida- propugna que a tutela sob exame desdobra-
de. Na ordem jurídica pátria, adota-se a se por três esferas: administrativa, civil e
teoria monista segundo a qual existe um penal. As três órbitas seriam fundadas no
direito geral da personalidade, conferindo princípio da independência, sem obstar a
proteção genérica à personalidade e seus possibilidade de uso simultâneo, por exem-
desdobramentos. plo, na hipótese de uma prática civilmente
A ordem jurídica outorga a tutela jurí- ilícita e tipificada como crime ser capaz de
dica geral da personalidade, com esteio na propiciar a ação do lesado nos juízos cível
cláusula da dignidade da pessoa humana, a e criminal, além de eventuais providências
fim de proteger o homem nas suas relações administrativas condizentes com o regime
existenciais e patrimoniais. Nessa esteira, o em tela.
ponto de vista do Prof. César Fiuza (2006, Daí, revelando-se o desafio jurídico da
p. 179-180) expõe com clareza solar que a prevenção de lesões o que engloba, entre
razão de ser dos direitos da personalidade outros enfoques, a questão da reparabili-
é “promover o homem pessoal e social- dade do dano moral, haja vista a respon-
mente em sua dignidade e cidadania a fim sabilidade civil por dano à personalidade
de abranger a tutela tanto das situações relacionada com a obtenção de reparações
patológicas em que o sujeito sofre danos a pecuniárias.
sua personalidade quanto todas as demais, Na ordem de valores, que consta no
definindo o alcance da chamada cláusula tecido normativo insculpido pelo legisla-
geral de tutela da personalidade”. dor constituinte originário, introduziu-se
A professora mineira Maria de Fátima a titularidade do direito subjetivo público
Freire de Sá (2002) aduz que a dignidade de invocar a prestação jurisdicional do
deve ser entendida não apenas como quali- Estado com o intuito de prevenir, reparar
dade do ser humano ou como “condição do ou reprimir lesões aos bens jurídicos da
espírito”, mas sim é necessário vislumbrar personalidade.
a busca do respeito social em meio às rela- Nesses termos, tal previsão no plano
ções sociais na comunhão dos indivíduos, infraconstitucional encontra-se no art. 12 do
postulando esse reconhecimento social Código Civil de 2002 em perfeita consonân-
como proposta para soluções legítimas às cia com os preceitos constitucionais que ir-
questões intrincadas surgidas no contexto radiam a máxima salvaguarda à dignidade
de proteção e defesa da dignidade humana humana. (RIBEIRO apud FIUZA, 2004)
em face dos avanços científicos e tecnológi- Portanto, é inquestionável a natureza
cos que trazem vários benefícios e, conco- jurídica da relação autor-obra como subs-
mitantemente, potencializam riscos e danos trato para a tutela de diversos aspectos da
a que se submetem os indivíduos. personalidade intelectual no respeitante
Carlos Alberto Bittar (2002, p. 20) frisa a intimidade, a honra, a reputação (boa
que a dignidade humana é nota central fama), justificando-se o resguardo desses
da tutela conferida aos direitos da perso- bens inerentes à pessoa do autor.

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3. Posição dos direitos morais de autor da obrigação em perdas e danos. (BITTAR,
na Teoria Geral do Direito autoral 2004a)
A partir do aparecimento do direito
Sobrevém do estudo do conteúdo do moral, em diversas decisões judiciais, foi
direito de autor o aspecto moral como ex- propiciada a sua incorporação ao texto da
teriorização da personalidade do criador da Convenção de Berna em 1928, na revisão
obra intelectual, sendo genuína emanação promovida em Conferência Diplomática
do espírito criador da pessoa do autor. O na cidade de Roma, sendo atribuída a Piola
direito moral de autor define sua natureza Caselli (famoso autoralista italiano) a intro-
de direito da personalidade na tutela espe- dução do direito moral na revisão ao texto
cífica das prerrogativas morais, de caráter da aludida Convenção, incluindo, além das
pessoal, relativamente ao vínculo moral do prerrogativas de ordem pecuniária, aquelas
autor com sua obra, vale dizer, consistindo de ordem moral. (OLIVER, 2004)
no liame criativo entre o autor e sua produ- No século XIX, houve o advento de
ção intelectual. duas teorias sobre o direito moral: a teoria
Notadamente, o direito de autor é unitária e a teoria dualista. A teoria unitária
apresentado na sua unidade e estrutura entende que o direito de autor é o direito
conceitual, a partir da integração orgânica moral e que, de sua exclusividade, decor-
(dualidade) dos direitos morais e patri- re o exercício de um direito pecuniário
moniais, sendo considerados por Bittar ou patrimonial. A teoria dualista afirma
(2004b, p. 144-145) como facetas da mesma que o direito de autor apresenta duas ca-
realidade já que os aludidos direitos, por racterísticas simultâneas: direito moral e
natureza, “são incindíveis, combinando- patrimonial.
se num sistema binário, de correlação e de Da essência do direito de autor, compre-
interferência recíproca que lhe imprime ende-se a interpenetração dos dois direitos
caráter especial”. supracitados, sendo o direito moral o pres-
O direito moral, pessoal ou espiritual suposto ou fundamento ético para o direito
como direito autônomo e emancipado patrimonial. A importância do direito mo-
está na base do direito de autor e se afi- ral de autor é tamanha que Henri Desbois
gura como fator determinante da tutela e Alain Le Tarnec, citados por Bittar (1992,
do aspecto patrimonial. Entende-se que a p. 36), defendiam a proeminência deste em
afirmação do direito patrimonial é devida face do direito patrimonial.
à concepção e ao reconhecimento do direito José de Oliveira Ascensão (2006, p. 3-24)
moral cuja expressão foi notabilizada por entende que a ordem jurídica francesa que
Morillot na França, embasando o direito alicerça o sistema romanístico ou europeu
positivo a partir da sua construção pre- continental enseja uma deturpação dos fins
toriana francesa no século XIX. (BITTAR, do direito moral, tornando-o uma espécie
1992, p. 34) de segundo direito patrimonial de autor.
Um caso célebre da jurisprudência fran- Para o jurista português, a solução francesa
cesa foi o arrêt Rosa Bonheur de 04/07/1865 representa um perigo para o aproveitamen-
em que foi reconhecida como legítima to normal dos direitos por terceiros, haja
a recusa de um pintor em entregar obra vista o exagero da perpetuidade capaz de
encomendada e paga (retrato de dama), gerar uma exacerbação do direito que per-
decidindo-se pela prevalência do direito mitiria o controle de inúmeras utilizações,
da personalidade (direito moral de autor). para além das relações jurídicas entabu-
Ou seja, no caso concreto, o direito do ladas. Além do que, não seria necessário
encomendante deveria ceder à defesa do autonomizar (conferir autonomia) o direito
direito pessoal do artista com a conversão moral de autor, considerando que há um

112 Revista de Informação Legislativa


único direito de autor dotado de faculdades tange à possibilidade de arbitrariedades e
pessoais e patrimoniais simultaneamente. de abuso de direito ou excesso de poder do
Na evolução recente do Direito intelec- titular de direito autoral.
tual, revela-se a preocupação com a mer- A definição dos direitos morais de autor
cantilização dos mesmos, constatando-se supramencionados mostra o reconhecimen-
a transformação do direito de autor em to inequívoco dos mesmos como inseridos
mercadoria. Donde, Ascensão (2006, p. 3-24) na tutela da personalidade humana. Seus
evidencia que o Direito intelectual passa caracteres distintivos foram citados aci-
a apresentar-se como um subproduto do ma; contudo, cabe frisar que, em virtude
direito do comércio internacional e assim o da especificidade dos direitos morais de
fomento da cultura é entendido como o fo- autor, é válido discorrer sobre os pontos
mento das indústrias culturais (copyright). mais relevantes.
Nesse cenário, a disciplina do direito A legislação brasileira respalda a au-
moral de autor estaria em crise ou numa tonomia do direito moral de autor e toda
situação de decadência no plano interna- a complexidade de seus consectários,
cional. Ascensão classifica esse fenômeno constando da previsão legal as faculdades
de ocaso dos direitos morais, demons- tuteladas que abrangem genericamente a
trando que, com o Acordo sobre Aspectos pluralidade das situações jurídicas existen-
da Propriedade Intelectual relacionados ciais pautadas na cláusula geral de tutela
ao Comércio (TRIPS ou ADPIC) de 1994, da dignidade da pessoa humana.
seus países signatários, na sua totalidade O art. 24 da LDA enumera os seguintes
componentes da Organização Mundial do direitos morais de autor: direito de reivin-
Comércio (OMC), obrigaram-se a cumprir o dicar a paternidade intelectual, direito de
disposto na Convenção de Berna. (Idem) nominação, direito ao inédito, direito à
Todavia, com a exclusão da parte con- integridade da obra, direito de modificação
tida no art. 6 bis da Convenção de Berna da obra, direito de retirada ou de arrepen-
que diz respeito aos direitos pessoais de dimento e o direito de acesso a exemplar
autor, por força das intervenções dos Es- único e raro da obra.
tados Unidos da América, em benefício O direito à paternidade da obra inte-
das indústrias de copyright, o TRIPS ou lectual é o pressuposto de todas as prer-
ADPIC não obriga seus países signatários rogativas autorais que só serão exercidas
a preverem os direitos morais de autor em mediante o reconhecimento do criador
suas legislações internas. intelectual, abrangendo o direito à autoria
Ascensão (2006, p. 3-24) conclui que se e o direito de reivindicar a autoria.
faz imperiosa uma integração das facul- O direito à autoria, direito de nomina-
dades pessoais e patrimoniais no seio de ção, direito à menção do nome ou direito à
um único direito de autor, temporalmente menção da designação, nos termos do art.
limitado, que o torne compatível com a 24, II, da LDA, é o direito do criador de ter
nova realidade na esfera internacional. o seu nome, pseudônimo ou sinal conven-
Por outro lado, considerando a siste- cional indicado ou anunciado, como sendo
matização dos direitos morais de autor à o do autor, na utilização de sua obra.
luz da tradição do chamado droit d’auteur Na órbita do direito à autoria importa
francês, que tem como foco a pessoa do destacar o caráter facultativo da identi-
autor, pode-se afirmar que, nesse caso, o ficação, pois é perfeitamente admitida a
ponto de vista de José de Oliveira Ascen- divulgação ou publicação de obra de autor
são não se aplica ante sua inadequação ao anônimo ou desconhecido, cabendo ao res-
tratamento legal conferido às faculdades ponsável pela divulgação ou publicação o
morais, porém a crítica é coerente no que exercício dos direitos patrimoniais.

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 113


O direito de reivindicar a autoria traduz, sigilo de acordo com a vontade autônoma
segundo Ascensão (1992, p. 179), uma visão do criador, sendo o fundamento do enun-
processual no que concerne ao remédio da ciado da doutrina do direito à intimidade
reivindicação, tendo como causa de pedir da vida privada (preservação dos mais
o direito de autor e como pedido a cessação íntimos sentimentos da pessoa humana) no
da utilização abusiva. sistema do common law já nos idos de 1890.
Noutras palavras, pelo raciocínio desen- (SHAM, 2002)
volvido por Ascensão, é plausível concluir Leonardo Poli (apud ASCENSÃO, 1992)
que violado o direito subjetivo autoral este suscita uma questão palpitante que será
se torna exigível e surge a pretensão (direito melhor examinada adiante, qual seja, se na
a uma prestação) que se materializa no di- existência de interesse ou utilidade pública
reito de reivindicar a autoria da obra. na divulgação da obra caberia a expropria-
Conforme Lipszyc (2001, p. 167), o di- ção da mesma, verificando que a LDA é
reito à paternidade intelectual compreende taciturna o que enseja uma discussão no
o direito de reivindicar a autoria quando é plano autoral, em vista da sua perspectiva
omitida a menção do nome, ou, se figurar funcional no desenvolvimento da cultura,
indevidamente nome ou pseudônimo de do acesso ao conhecimento etc.
outrem, além do direito ao pseudônimo É interessante distinguir o caráter inédi-
ou anônimo quando o autor faz esta opção to da obra do direito ao inédito. A obra iné-
em vez do nome verdadeiro, e também o dita corresponde à obra não divulgada e o
direito de defender sua autoria quando caráter inédito da obra se preserva quando
essa é refutada. o autor não revela por qualquer modo seu
O direito de reivindicar a autoria ocor- alvedrio de divulgar a respectiva obra. Caso
re nos casos de utilização da obra sem contrário, haveria a situação da perda do
expressa menção do nome do autor ou caráter inédito da obra em relação a obras
de sua utilização sob o nome de terceiros, inéditas. (ASCENSÃO, 1992, p. 176)
considerando-se como o direito do autor O direito à integridade da obra está
de se opor à usurpação de sua paternidade previsto no art. 24, IV, da LDA que reflete
sobre a obra. (POLI, 2006) a prerrogativa do autor de se opor a toda
Quanto à natureza jurídica do direito de e qualquer modificação de sua obra (mu-
reivindicar a autoria, a posição mais razo- tilações, deformações etc) ou à prática de
ável é no sentido de reputá-lo um direito atos (atentados) que possam prejudicá-lo
de cunho processual que deriva do direito ou afetá-lo, como autor, em sua reputação
à autoria. No entanto, inserindo-se o direito ou honra.
de reivindicar a autoria da obra no âmago A violação do caráter genuíno e de
do direito à paternidade intelectual, é cor- integridade da obra atingirá a honra e
reto asseverar que se trata de um direito reputação do autor na medida em que este
moral de autor de caráter especial. não se reconheça como criador da obra mo-
No art. 24, III, da LDA, consta o direito ao dificada. Tal direito sob exame, assim como
inédito como a faculdade do criador intelec- todos os demais direitos pessoais, destina-
tual de conservar sua obra inédita. No dizer se a proteger a personalidade do autor (a
de Ascensão (1992, P. 170), seria “o direito impressão digital do criador da obra) que
pessoal do autor de dar a conhecer ou não serve de contorno ao exercício dos direitos
a sua obra” o que representaria o direito de patrimoniais de autor. (PEREIRA, 2001)
publicação da obra que, por sua vez, estaria Para o exercício do referido direito
compreendido na liberdade de criação. moral, por um critério ético, é necessário
O direito ao inédito expressa a faculdade observar a motivação do autor nos casos em
do autor de manter a obra sob segredo ou que realmente haja dano à sua reputação ou

114 Revista de Informação Legislativa


honra. Assim sendo, evitam-se possíveis O direito de retirada ou de arrependi-
arbítrios do titular de direito autoral na mento consiste na prerrogativa de o autor
esfera de sua autonomia privada. retirar de circulação a obra ou suspender
Excepcionalmente, na seara do contrato qualquer forma de utilização já autorizada
de edição, existe a hipótese legal de que a quando a circulação ou utilização impli-
modificação da obra seja perpetrada por carem afronta à sua reputação e imagem,
terceiros, ainda que por contrariedade do por força do art. 24, VI, da LDA. O direito
autor (sem o seu consentimento), desde de retirada seria a outra face do direito ao
que seja imprescindível a atualização da inédito, uma vez que só nasce quando o
obra em novas edições e que não malfira direito ao inédito se extinguir.
a reputação ou honra do autor, no teor do Após a autorização do autor para a utili-
art. 67 da LDA. zação econômica por terceiros, é garantida
Em seguida, o art. 24, V, da LDA dispõe a possibilidade de o autor pleitear a retirada
sobre o direito de modificação da obra dos exemplares de sua obra que estejam em
consistente na prerrogativa de modificá-la circulação. O exercício regular desse direito
em qualquer momento, antes ou depois de moral não é subordinado a uma motivação
utilizada. específica. Basta que, no entendimento do
A LDA prevê, no contrato de edição, a autor, haja, ainda que subjetivamente, al-
materialização do direito de modificação ao gum prejuízo à sua reputação e imagem.
dispor que o autor tem o direito de fazer, Obviamente, se houver a constatação de
nas edições sucessivas de suas obras, as algum abuso de direito por parte do autor
emendas e alterações que bem lhe aprou- em detrimento de terceiros, por conseguin-
ver, ao passo que, na tutela da boa-fé obje- te, ensejará perdas e danos, de acordo com
tiva e do ato jurídico escorreito (controle do o disposto no art. 24, §3o , da LDA.
abuso de direito), o editor poderá exprimir O art. 24, VII, da LDA trata do direito
oposição às alterações que lhe sejam preju- de acesso como faculdade de o autor ter
diciais, ou seja, que afrontem sua reputação acesso a exemplar único e raro da obra,
ou majorem sua responsabilidade.2 quando se encontre legitimamente em po-
Ascensão (1992) relaciona o direito à der de outrem, para o fim de, por meio de
integridade com o direito de modificação. processo fotográfico ou assemelhado, ou
Isto é, o primeiro tem feição negativa ao audiovisual, preservar tanto a memória da
permitir contestar modificações, enquanto obra como do autor.
o segundo tem feição positiva ao permitir O dispositivo legal também assevera
impor modificações no exercício da facul- que o acesso seja feito de forma que cau-
dade jurídica, de modo que poderiam ser se o menor inconveniente possível a seu
fundidos num só direito. legítimo detentor, que, em todo caso, será
Os atos de modificação da obra distin- indenizado de qualquer dano ou prejuízo
guem-se dos atos de transformação lato que lhe seja causado. A redação do artigo
sensu. O ato de transformação emana da da lei é bastante clara ao delimitar que a
criação de uma obra derivada a partir da aplicação do direito moral em comento
obra original stricto sensu, ao passo que na atém-se nas hipóteses em que se trate de
modificação ainda é da mesma obra de que exemplares considerados únicos e raros.
se trata. A obra derivada é uma segunda
obra e a obra modificada, em princípio, 3.1 Características dos direitos
será ainda a mesma obra. (PEREIRA, 2001, morais de autor
p. 363) Cumpre salientar que os direitos morais
2
O dispositivo legal que trata da matéria em co- de autor possuem características comuns
mento é o preceituado no art. 66 da LDA. com os direitos da personalidade, pois são

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 115


extrapatrimoniais, absolutos (oponíveis direito ao ineditismo passa a ser exer-
contra todos), preeminentes (prevalência cido pelos herdeiros, que legalmente
do exercício do direito moral de autor em ganham o poder de decidir sobre a
face dos demais direitos subjetivos priva- publicação ou não de determinada
dos), indisponíveis ou inalienáveis, intrans- obra, mesmo que essa seja encontrada
missíveis (com ressalvas), impenhoráveis e ou descoberta após a morte do autor
imprescritíveis. original. Eticamente, contudo, deve-se
É apropriado dizer que tais direitos não sempre considerar a vontade do autor.
podem ser considerados inatos, necessários Se, todavia, era da vontade expressa
e genéricos, dado que se constituem apenas do titular original que se mantivesse
com a exteriorização da criação intelectual inédita a criação, a recomendação é de
e não com o nascimento da pessoa. Assim, que tal determinação seja acatada, sob
não são concedidos a todos e nem todas as pena de ferir a moralidade da relação
pessoas os detêm necessariamente. entre autor e obra.”
Em relevo, a indisponibilidade ou Impende reiterar, por exclusão, que o
inalienabilidade correspondem a uma res- direito de modificação, o direito de retirada
trição no âmbito da autonomia privada do ou de arrependimento e o direito de acesso
autor que não pode renunciar em caráter não são transmissíveis aos sucessores do
permanente ou ceder os direitos da perso- criador intelectual. Isto é, somente ao autor
nalidade a terceiros. Ou seja, a limitação da é lícito exercê-los pessoalmente (descabida
liberdade individual atende ao princípio a transferência dos direitos morais ora adu-
da tutela do hipossuficiente, no sentido zidos a terceiros).
de evitar que o autor seja subjugado pelas A impenhorabilidade decorre da ina-
pressões do mercado. (POLI, 2006) lienabilidade (insuscetibilidade de trans-
A intransmissibilidade no campo do ferência dos direitos morais a terceiros)
direito moral de autor tem caráter rela- alinhavada pela natureza dos direitos da
tivo, uma vez que são transmitidos aos personalidade supracitados.
sucessores do autor o direito à paternidade A imprescritibilidade relaciona-se com
intelectual (direito à autoria e direito de a não submissão a prazos para o exercício
reivindicar a autoria), o direito ao inédito dos direitos morais do autor. Noutro dizer,
e o direito à integridade da obra. a ausência de exercício das faculdades mo-
Os direitos morais à autoria e integri- rais não implica a perda das mesmas. Na
dade da obra são perpétuos. O direito ao hipótese de violação ao direito subjetivo
inédito tem a mesma duração do direito autoral incide o prazo prescricional de três
patrimonial correspondente enquanto os anos para a pretensão do autor que não se
direitos morais de acesso, de retirada e de confunde com o direito em si, nos termos
modificação da obra extinguem-se com a art. 206, §3o, V, do Código Civil de 2002.
morte do autor. (Idem)
Após a cessação dos atributos patrimo-
4. Violações aos direitos morais de autor
niais e morais respectivos, a utilização da
obra é considerada livre o que configura Quanto à órbita moral, são hipóteses de
o instituto do domínio público que será violação as condutas que incorrem na inob-
objeto de análise posterior. servância dos direitos proclamados no art.
No tocante ao direito ao inédito, Elisân- 24 da LDA segundo o qual seria transgressão
gela Menezes (2006, p. 102-103) pondera a atribuição de autoria sem respaldo fático
que: e jurídico que atinja a paternidade e inte-
“Como prerrogativa transmissível gridade da obra; a não indicação de nome,
post mortem, em caso de sucessão, o pseudônimo ou sinal convencional na utili-

116 Revista de Informação Legislativa


zação da obra; a modificação da obra sem o Em se tratando de direitos pessoais de
consentimento do autor, entre outros. autor, há de se sobressair que estes não são
As violações aos direitos morais de au- passíveis de cessão, porquanto aplicáveis
tor são aquelas que dizem respeito à ofensa somente à órbita patrimonial. Na circuns-
aos sentimentos subjetivos da pessoa do tância de uso público da obra, a ofensa
autor em especial em face da identificação pode recair sobre a pessoa do criador, no
do autor (direito de nominação), ensejando tocante à sua honra, ainda que o ofensor
reparação ou compensação por perdas e tenha obtido prévia autorização dos ces-
danos inclusive de ordem extrapatrimonial sionários dos direitos patrimoniais para o
por causa do direito ao crédito (identidade) desejado uso público, na medida em que
de autoria. a destinação final afronte a honra de seu
Conforme dito acima, é de suma rele- autor ou intérprete.
vância compreender o direito moral de Eliane Y. Abrão (2002) argumenta que
autor inserto na tutela jurídica dos direitos nesse caso não se cuida de ilícito autoral
da personalidade, em vista da integridade porque houve autorização, mas sim de
intelectual, que corresponde a um dos as- dano quanto ao direito subjetivo da pessoa
pectos do complexo de bens que compõe o do criador intelectual. Ademais, afirma que
patrimônio jurídico do sujeito de direitos. há outras situações diversas nas quais ense-
Em matéria de violação aos direitos mo- ja dano moral designado como dano moral
rais de autor, Paulo Luiz Netto Lôbo (2003) puro para diferenciar do dano por violação
sustenta a tese pela qual a interação entre os ao direito moral de autor, tais como, quan-
danos morais e direitos da personalidade do a tradução ou versão errônea de uso de
(incluem-se os direitos morais de autor) é nome de autor ou artista famoso em obra
tão entrelaçada que se deve questionar so- de que não tenha participado ou crédito
bre a possibilidade da existência daqueles dado equivocada ou falsamente.
fora do âmbito destes. Concluindo que: A orientação seria, preventivamente ou
“O dano moral remete à violação do por prudência, que a cada nova utilização
dever de abstenção a direito absoluto da obra sejam os autores consultados sobre
de natureza não patrimonial. Direito o emprego dela para fins de impedir even-
absoluto significa aquele que é opo- tual ocorrência de dano à honra. Ainda que
nível a todos, gerando pretensão à por ato culposo do cessionário, tal contexto
obrigação passiva universal. E direi- suscitará responsabilidade solidária pelo
tos absolutos de natureza não patri- dano, no plano das sanções civis previstas
monial, no âmbito civil, para fins dos na LDA e também poderá resultar na revi-
danos morais, são exclusivamente os são, anulação ou anulabilidade de cláusulas
direitos da personalidade. Fora dos do referido contrato de cessão (negócio
direitos da personalidade são apenas jurídico contratual).
cogitáveis os danos materiais.” Para a autoralista em comento, há
Nesse sentido, para Paulo Luiz Netto importância em distinguir as hipóteses
Lôbo (2003), não há outras hipóteses de de dano moral puro dos demais casos de
danos morais além das violações aos di- violação de direitos morais de autor em
reitos da personalidade. Noutras palavras, decorrência dos efeitos jurídicos e legais
no dano moral, não há reparação, pois não no tempo, na legitimação e na forma de
pode haver mensuração econômica, so- indenizar. (Idem)
mente compensação, isto é, quando o dano Abrão (2002) entende que “a lei autoral
moral ocorre, os direitos da personalidade contempla quatro hipóteses de dano moral
surgem associados aos outros direitos que puro (art. 24, IV e VI; art. 26, parágrafo
foram violados. único e art. 128) (sic) e quatro de violações

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 117


aos direitos morais de autor (art. 24, I, III, sação pecuniária, posto que não existe a
V e VII).” (Idem) possibilidade de fazer voltar o curso dos
Em relação às primeiras hipóteses, o fatos e desfazer o ato consumado. Sobre-
prazo prescricional seria de 10 (dez) anos vém, então, a questão da reparabilidade
(art. 205, caput, Lei no 10.406, de 10 de do dano moral (art.5o, X, CRFB), haja vista
janeiro de 2002 – Código Civil Brasileiro) a responsabilidade civil por dano à perso-
(BRASIL, 2002), tirante a hipótese de a nalidade.
ação fundar-se em reparação de dano que
faz reduzir o prazo para 3 (três) anos. Para
5. Conclusão
as demais supramencionadas, o prazo é o
mesmo aplicável para a proteção dos direi- Ante o exposto, é pertinente aludir que
tos patrimoniais, quer dizer, de 70 (setenta) o microssistema autoral (LDA) exige pes-
anos contados de primeiro de janeiro do quisas constantes com o fito de perfilhar a
ano subsequente ao de seu falecimento, de teoria jurídica que contemple os direitos
forma que, ao cair em domínio público, a morais diante do novo perfil dos direitos
obra passa a ser amparada pelo Poder Pú- de autor o que demanda inclusive um
blico, a teor do art. 24, §2o, da LDA. tratamento mais consentâneo com a norma-
Quanto à legitimação, o legitimado para tiva do diploma civil em que se observam
pugnar pela indenização do dano moral discrepâncias, tais como, entre a intrans-
puro é o ofendido e post mortem seus filhos, missibilidade dos direitos personalíssimos
pais e demais parentes colaterais, enquanto e o exercício dos chamados direitos morais
que, na violação de direito moral de autor, post mortem auctoris diante das hipóteses de
depende da espécie de violação, sendo legitimação causa mortis.
de modo geral do criador da obra e dos Cumpre dizer que há controvérsias acir-
coautores ou dos sucessores (legítimos ou radas no tocante à disciplina dos direitos
cessionários). morais de autor em vista da teoria clássica
Quanto à forma de indenizar, o ressar- dos direitos da personalidade que não fo-
cimento do dano moral adota a corrente ram objeto do presente estudo.
majoritária da jurisprudência de observar Destarte, a finalidade ora traçada con-
o aspecto punitivo e compensatório da substancia-se na apresentação dos aspectos
reparação moral. (ABRÃO, 2002) mais expressivos que ensejam a reflexão
Vale dizer, se houver a constatação do acerca dos avanços da legislação autoral em
ilícito autoral, além das sanções já assinala- matéria de direitos morais ou pessoais.
das, a LDA prevê a suspensão ou interrup- Conclui-se que o legislador teve o mérito
ção da utilização fraudulenta e a cominação de sistematizar a normativa de forma clara
de multa diária (astreintes) no caso de des- e objetiva o que tornou mais perceptível a
cumprimento da norma judicial. definição legal da vertente extrapatrimonial
O desafio jurídico é a prevenção de le- dos direitos de autor em vista da própria
sões, não mais sendo possível aguardar que evolução legislativa concebida no ordena-
violações ocorram para, só após, agir no mento pátrio.
propósito de obter reparações pecuniárias. Todavia, sem debater sobre as eventu-
De fato, os direitos da personalidade (inse- ais impropriedades do texto legal, é curial
ridos os direitos morais de autor) integram afirmar que a técnica legislativa da enume-
uma categoria em que é difícil a restituição ração do supramencionado art. 24 da LDA
do status quo anterior. não pode ser interpretada restritivamente
Significa dizer que a lesão efetiva desses ante o caráter genérico da tutela moral do
bens jurídicos não terá outra solução senão autor cuja proteção sucede na personalida-
a reparação do dano por meio da compen- de em toda sua extensão e complexidade.

118 Revista de Informação Legislativa


Assim, segundo a melhor doutrina, ______. Contornos atuais do direito do autor. São Paulo:
entende-se pelo aspecto elástico da tutela RT, 1992.
jurídica da personalidade humana o que BRASIL. Lei no 5.988, de 14 de dezembro de 1973.
evidentemente abrange diretamente todos Diário Oficial da União, Brasília, 18 dez. 1973.
os reflexos de cunho existencial sobretudo ______. Lei no 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Diário
aqueles atinentes aos direitos morais de Oficial da União, Brasília, 20 fev. 1998.
autor. ______. Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Diário
Demais disso, propugna-se a favor Oficial da União, Brasília, 11 jan. 2002.
da corrente dualista segundo a qual os ______. Decreto no 75.699, de 06 de maio de 1975.
direitos de autor apresentam natureza Promulga a Convenção de Berna para a Proteção das
híbrida que contém dois direitos distintos Obras Literárias e Artísticas, de 9 de setembro de 1886,
e autônomos. Revista em Paris, a 24 de jul. de 1971. In: SOUZA,
Carlos Fernandes Mathias de. Direito autoral. 2 ed.
Finalmente, o intento que se perfaz re- Brasília Jurídica, 2003.
sulta da preocupação com a crise ou ocaso
CARBONI, Guilherme Capinzaiki. Função social do
dos direitos morais aclarado por Ascensão
direito de autor. Curitiba: Juruá, 2006.
ao delatar o movimento engendrado no
âmbito da OMC que traduz o predomínio CUPIS, Adriano de. Os direitos da personalidade. São
Paulo: Romana jurídica, 2004.
da mercantilização do Direito intelectual e
a fragilização do aspecto moral da titulari- DRUMMOND, Victor; VIDE, Carlos Rogel. Manual de
dade das criações do intelecto humano. direito autoral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
Logo, é vital retomar essa temática nos FIUZA, César. Direito civil: curso completo. 9 ed. Belo
fóruns de discussão no sentido de salva- Horizonte: Del Rey, 2006.
guardar o estatuído na Convenção de Berna GOMES, José Jairo. Direito civil: introdução e parte
que revelou a ascensão da tutela da perso- geral. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
nalidade intelectual do criador e segura- LEITE, Eduardo Lycurgo. Direito de autor. Brasília
mente constituiu uma elevada contribuição jurídica, 2004.
na seara da propriedade intelectual. LIPSZYC, Delia. Derecho de autor y derechos conexos.
Buenos Aires: Zavalia, 2001.
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Danos morais e direitos da
Referências personalidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 119, 31
out. 2003. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/dou-
ABRÃO, Eliane Yachouh. Direitos de autor e direitos trina/texto.asp?id=4445>. Acesso em: 17 abr. 2006.
conexos. São Paulo: Editora do Brasil, 2002. MENEZES, Elisângela Dias. O direito de autor como mi-
AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 6 ed. crossistema no paradigma do estado democrático de direito.
Rio de Janeiro: Renovar, 2006. 234f. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, Faculdade Mineira de Di-
ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito civil: direito de reito, Belo Horizonte, 2006.
autor e direitos conexos. Coimbra: Coimbra Editora,
1992. 778p. MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de
dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo
______. O direito intelectual em metamorfose. Revista normativo. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Cons-
de Direito Autoral, São Paulo, ano 2, n. 4, p. 3-24, fev. tituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto
2006. Alegre: Livraria do advogado editora, 2003.
BITTAR, Carlos Alberto. Direito de autor. 4 ed. São OLIVER, Paulo. Direitos autorais da obra literária: frente
Paulo: Forense Universitária, 2004a. à Lei no 9.610/98. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.
______. Os direitos da personalidade. 7 ed. São Paulo: PEREIRA, Alexandre Dias. Informática, direito de autor
Forense Universitária, 2004b. e propriedade tecnodigital. Coimbra Editora, 2001.
______; FILHO, Carlos Alberto Bittar. Tutela dos direi- PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tra-
tos da personalidade e dos direitos autorais nas atividades tado de direito privado: parte especial. Tomo 7. Rio de
empresariais. 2 ed. São Paulo: RT, 2002. Janeiro: Editor Borsoi, 1955.

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 119


POLI, Leonardo Macedo. A tripartição da propriedade SÁ, Maria de Fátima Freire de. A dignidade do ser
intelectual e o princípio da funcionalidade como pressuposto humano e os direitos de personalidade: uma perspec-
de sua legitimidade. 167f. Tese (Doutorado) - Universi- tiva civil-constitucional. In: Biodireito. Belo Horizonte:
dade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Direito, Del Rey, 2002.
Belo Horizonte, 2006.
SHAM, Regina. O direito moral de autor e o funda-
RIBEIRO, Valério Augusto. Os direitos da persona- mento do direito à intimidade. In: BITTAR, Eduardo
lidade vistos sob a perspectiva da dicotomia clássica C. B.; CHINELATO, Silmara Juny. Estudos de direito
direito público/direito privado. In: FIÚZA, César. de autor, direito da personalidade, direito do consumidor e
(coord.) Curso avançado de direito civil. São Paulo: danos morais. São Paulo: Forense Universitária, 2002.
Thomson, 2004.

120 Revista de Informação Legislativa


Organização Mundial do Comércio
Novo ator na esfera internacional

Marco Aurélio Gumieri Valério

Sumário
Introdução. 1. Rodadas de negociações
multilaterais. 1.1. Aspectos gerais. 1.2. Rodada
Kennedy. 1.3. Rodada Tóquio. 1.4. Rodada Uru-
guai. 1.5. Tratado de Marraqueche. 1.6. Rodada
de Doha. Conclusão.

Introdução
O desenvolvimento do sistema multi-
lateral de comércio, do qual hoje a Organi-
zação Mundial do Comércio – OMC é seu
mais novo ator, está intimamente ligado aos
efeitos danosos da Segunda Guerra Mundial
na economia internacional. Havia a memó-
ria da depressão das décadas de 20 e 30 do
século XX, quando as grandes potências
mercantis utilizaram o protecionismo como
instrumento para manter positiva suas ba-
lanças comerciais (POLARD, 1985, p.8).
Essa experiência levou os governos à
percepção de que seria necessária, no con-
texto de um pós-guerra, uma regulamenta-
ção do comércio internacional que primasse
pelo crescimento da riqueza propiciando
desenvolvimento aos países participantes
(DAS, 1999, p. 3).
No anseio de reconstituir em novas
bases o sistema econômico internacional
Marco Aurélio Gumieri Valério é Advogado;
fundamentado no princípio da cooperação,
Bacharel e Mestre em Direito pela Universidade
Estadual Paulista; Doutorando em Sociologia setecentos e trinta delegados das quarenta
pela Universidade Estadual Paulista; Professor e quatro nações aliadas encontraram-se
da Universidade de São Paulo. nas primeiras semanas de 1944 no Mount

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 121


Washington Hotel, em Bretton Woods, New Em 1946, dando continuidade aos traba-
Hampshire, Estados Unidos da América – lhos iniciados em Bretton Woods, o Conse-
EUA, para a Conferência monetária e finan- lho Econômico e Social das Nações Unidas
ceira das Nações Unidas. Os representantes convocou uma conferência para formular
desses países deliberaram e assinaram o as normas da OIC. De forma preparatória
Acordo de Bretton Woods (Bretton Woods a esta conferência foram realizadas duas
Agreement) (WALTZ, 1969, p. 22-3). sessões, sendo uma em Londres, na Ingla-
O sistema Bretton Woods foi o primeiro terra, e outra em Genebra, na Suíça. Destes
exemplo na história de uma ordem mone- encontros resultou a elaboração de dois
tária totalmente negociada, tendo como documentos: um projeto de carta consti-
objetivo governar as relações monetárias tutiva da OIC, aprovado em conferência
entre Estados. Suas bases políticas são realizada na cidade de Havana, em Cuba,
encontradas na confluência de várias con- no ano de 1947, e um acordo geral sobre
dições: as experiências comuns da Grande tarifas alfandegárias e comércio, concebido
Depressão; a concentração de poder num como um protocolo provisório.
pequeno número de países; e a presença de A carta da OIC previa um sistema de
uma potência dominante capaz de assumir tomada de decisões por voto paritário
um papel de liderança. entre seus membros, e não proporcional à
Dos desdobramentos dessa reunião, participação nas relações de trocas mercan-
foram projetados três organismos de voca- tis. Diferenciava-se, destarte, dos sistemas
ção universal que regulariam aspectos do decisórios do FMI e do Banco Mundial,
capitalismo mundial. em que são observadas cotas contributivas
A função financeira estaria a cargo do desiguais dos participantes.
Fundo Monetário Internacional – FMI, Essa singularidade não foi vista com
que cuidaria da estabilidade das taxas de bons olhos pelo Congresso dos EUA, que
câmbio e proveria fundo especial a nações acreditava se tratar de uma ameaça à so-
que se encontrassem com problemas de ba- berania e à hegemonia comercial do país.
lanço de pagamento. Dessa forma, a prática Por conta disso, o governo do democrata
protecionista de restrições comerciais não Harry S. Truman sequer chegou a enviar
seria mais necessária. formalmente a carta para apreciação do
O Banco Internacional para a Recons- Poder Legislativo, que era majoritaria-
trução e Desenvolvimento – Bird, também mente composto, na época, por membros
chamado de Banco Mundial, seria a entida- do Partido Republicano. Sem a ratificação
de fomentadora de projetos que visassem do Congresso Nacional, os estadunidenses
à reconstrução de países atingidos pelas ficaram de fora do tratado da OIC.
mazelas da guerra, principalmente os eu- Uma vez que os EUA, já naquele mo-
ropeus. mento consolidado como potência econô-
Essas duas organizações tornaram-se mica, não fariam parte da organização, a
operacionais dois anos depois, quando um constituição desta tornou-se inviável. Com
número suficiente de partes contratantes o arquivamento do projeto, o tripé que sus-
ratificou o acordo. tentaria o capitalismo mundial projetado
E, por fim, previu-se a criação da Orga- em Bretton Woods ficou com uma de suas
nização Internacional do Comércio – OIC pernas manca.
que, sob princípios liberais, teria o intuito Pouco antes da tentativa de criação da
de regrar e fiscalizar as trocas mercantis OIC, foi concebido o Acordo Geral Sobre
internacionais, além de servir como fórum Tarifas Aduaneiras e Comércio (General
de negociações sobre temas afins (THORS- Agreement on Tariffs and Trade – Gatt),
TENSEN, 2001, p. 29). que seria incorporado pela malograda

122 Revista de Informação Legislativa


organização. Assim, como alternativa de vez dentro das fronteiras de um membro,
se regular o comércio internacional que todos os produtos, sejam nacionais ou
não poderia ficar a esmo naquele delicado importados, devem receber tratamento
contexto do pós-guerra, entrou em vigor o idêntico, não sendo permitida qualquer
Gatt, que almejava a liberalização das trocas diferenciação.
por meio da redução de tarifas (GUEDES, Esses dois princípios são corolários da
2002, p. 33). Além da redução tarifária, ideia de não discriminação inerente à alme-
consta ainda de seu preâmbulo o intuito jada liberalização do comércio. A distinção
de se reduzir outras barreiras mercantis e entre eles é que o da nação mais favorecida
a eliminação de todo e qualquer tratamento diz respeito aos produtos antes que eles
discriminatório (WORLD TRADE ORGA- adentrem às fronteiras de um país, enquan-
NIZATION, 2008). to o do tratamento nacional se relaciona aos
O Gatt, que não era uma organização produtos quando já estão no território da
institucional, mas tão-somente um acordo, parte contratante.
foi assinado em 30 de outubro de 1947, em Fato é que ele serviu de importante foro
Genebra, na Suíça, por vinte e três países1. de discussão dos assuntos pertinentes à
Entrou em vigor em 1o de janeiro de 1948. liberalização do comércio internacional,
Não obstante sua natureza jurídica ser a servindo de base para a criação da Organi-
de contrato internacional, alguns autores zação Mundial do Comércio – OMC.
chegam a atestar que, na prática, o acordo
funcionava como uma verdadeira entidade
1. Rodadas de negociações multilaterais
(AMARAL JÚNIOR, 2006, p. 43).
No âmbito do Gatt, desenvolveu-se uma 1.1. Aspectos gerais
disciplina jurídica abrangente e harmônica A liberalização comercial não foi de-
para o comércio internacional regrada senhada como algo que ocorreria de
por alguns princípios básicos (FIORATI, pronto, com base em apenas um tratado
apud CASELLA; MERCADANTE, 1998, internacional, mas sim como um processo,
p. 660-89). de forma que as barreiras fossem gradual-
O primeiro é o denominado tratamento mente minoradas por meio de periódicas
geral da nação mais favorecida: segundo essa negociações (THORSTENSEN, 2001, p. 36).
regra, não é permitida a discriminação entre Dessa maneira, todo um sistema normativo
partes contratantes de forma que toda van- foi aprimorado durante as oito rodadas de
tagem, favor, privilégio ou imunidade que negociações multilaterais que aconteceram
for concedido por um membro aos produtos no âmbito do Gatt.
originados ou destinados a outro deverão ser As cinco primeiras rodadas – Genebra
estendidos imediatamente e incondicional- (1947); Annecy (1949); Torquay (1951);
mente a produtos similares comercializados Genebra (1956); e Dillon (1960) – foram pau-
com todas as outras partes contratantes. tadas pela tentativa de aproximação dos
O segundo é o chamado princípio do tra- países por meio de uma política de redução
tamento nacional: segundo essa regra, uma tarifária. Durante esses encontros, houve o
comprometimento das nações em reduzir
1
Os países que assinaram o acordo foram: África
as tarifas alfandegárias, propiciando um
do Sul, Austrália, Bélgica, Brasil, Burma, Canadá,
Ceilão, Chile, China, Cuba, Estados Unidos da Amé- aumento efetivo na concorrência.
rica, França, Holanda, Índia, Líbano, Luxemburgo, Nesse período em que se situam as
Noruega, Nova Zelândia, Paquistão, Reino Unido, primeiras rodadas – 1947 a 1964 –, merece
Rodésia (antigo Zimbábue), Síria e Tchecoslováquia.
destaque a hegemonia dos EUA no co-
GUEDES, Josefina Maria M. M.; PINHEIRO, Silvia M.
Antidumping, subsídios e medidas compensatórias. São mércio internacional, o que lhes permitiu
Paulo: Aduaneiras, 2002, p. 35. influenciar sobremaneira nos rumos das

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 123


conversas. Por conta disso, é possível cons- do que este. Contudo, o Poder Legislativo
tatar um desequilíbrio no que tange à re- se posicionou de maneira diversa, não
gulamentação de temas. Assuntos que não sendo essa a solução adotada. Tal fato foi
lhes interessavam não eram sistematizados atribuído à existência de um protocolo de
ou, quando muito, o eram de maneira inci- aplicação provisória do Gatt, assinado por
piente, a exemplo dos subsídios agrícolas. oito das partes contratantes no mesmo dia
em que foi assinado o acordo2. Por esse
1.2. Rodada Kennedy documento, o Gatt seria para esses países
A partir da sexta rodada, chamada de um acordo executivo (executive agreement)
Kennedy, ocorrida entre 1964 e 1967, a Co- e nada mais3.
munidade Europeia – CE participou pela O art. 1o, b, desse tratado dispunha que
primeira vez como bloco. Considerando-se as normas da Parte II do Gatt seriam apli-
o volume das transações internacionais, a cadas, inclusive antes da entrada em vigor
CE apresentou-se como uma nova potência deste, desde que fossem consistentes com
no comércio internacional capaz de fazer a legislação interna daqueles países.
frente ao unilateralismo estadunidense que Essa norma é conhecida como grandfa-
predominava até então. ther clause. As normas referentes a práticas
As discussões tornaram-se mais abran- desleais de comércio estavam prescritas
gentes e novos tópicos foram objetos de sis- nos artigos VI e XVI do acordo que, por
tematização, como, por exemplo, barreiras sua vez, estavam inseridos na Parte II deste.
não tarifárias. Entre essas foram incluídas Dessa forma, venceu nos EUA a tese de que
as medidas antidumping e as compensató- o novo acordo antidumping não vigoraria
rias contra subsídios aplicados pelos EUA e no país.
condenadas pela CE e pelo Japão. A crítica
era devida, uma vez que a legislação esta- 1.3. Rodada Tóquio
dunidense chegava a dispensar a compro- Se a partir da Rodada Kennedy temas
vação do dano à indústria doméstica para alheios à redução das tarifas alfandegárias
aplicação desses instrumentos de defesa foram discutidos, foi na de Tóquio que
comercial. essas novas discussões tomaram vulto
Por conta disso, tentou-se uniformizar ainda maior.
as legislações antidumping e as medidas A Rodada Tóquio (1973-1979) ocorreu
compensatórias das partes contratantes, re- no contexto da crise do petróleo de mea-
sultando, ao final da Rodada, na assinatura dos da década de 70 do século passado,
do Acordo Antidumping (Agreement on the que levou a uma grande recessão mundial
Implementation of the Article VI of the Gatt ou marcada pelo desemprego e pela inflação
Antidumping and Countervailing Duties). nos países desenvolvidos. Diante desse
Este acordo não foi observado como quadro, houve um aumento nas restrições
parte do ordenamento jurídico dos EUA comerciais, como foi o caso, por exemplo,
por uma questão de conflito de normas da CE, que passou a aplicar medidas pe-
vigentes, embora os estadunidenses consa- sadas contra as importações com dumping
grem o princípio da paridade entre tratados e subsídios. Tudo isso levou a discussões
internacionais e leis nacionais. 2
Os países que assinaram o acordo foram: a
Existia no país um Estatuto Antidumping Austrália, a Bélgica, o Canadá, a França, a Holanda,
(Antidumping Act) de 1921 com dispositivos a Índia, o Líbano, o Luxemburgo, o Reino Unido e os
dissonantes do recém-assinado acordo. Estados Unidos da América.
Era de se esperar que o tratado, ao ter suas
3
Acordo executivo é a modalidade de tratado que
dispensa a aprovação do Poder Legislativo para sua
regras incorporadas, revogasse a norma conclusão, segundo critérios constitucionais internos
anterior, visto que aquele era mais recente de cada país. (REZEK, 2005, p. 26)

124 Revista de Informação Legislativa


mais acirradas sobre as práticas desleais de aplicação provisória do Gatt, que permi-
de comércio. tiu a aplicação imediata da Parte II do Acor-
Também nessa época, o Japão e a CE se do, sem a aprovação legislativa de algumas
consolidaram como potências comerciais e, das partes contratantes, desde que esta não
além disso, outros países industrializados conflitasse com normas internas.
se destacaram no cenário internacional. Outro fato que merece destaque é o de-
Essa situação ajudou a diminuir ainda mais nominado Gatt à la carte. Durante o desen-
o desequilíbrio que pairava nas negociações volvimento das rodadas de negociações, foi
multilaterais de comércio. permitido às partes contratantes assinarem
Assim, na Rodada Tóquio, as atenções apenas os acordos que lhes interessassem.
foram desviadas do tradicional tema das Ou seja, embora um tema específico fosse
reduções tarifárias, para se discutir a redu- amplamente discutido e codificado, os paí-
ção da incidência de barreiras não-tarifárias ses não eram obrigados a fazer parte desses
como a proteção da produção nacional com novos acordos.
medidas antidumping e compensatórias. Soma-se a isso a sistemática de solu-
Outros temas também foram abordados, ção de controvérsias, que era incapaz de
resultando na assinatura de nove acordos: impor-se aos países sucumbentes. Diante
barreiras técnicas, subsídios, antidumping, da reclamação de uma parte, instaurava-se
valoração aduaneira, licenças de importação, um painel para julgar o conflito. O painel
compras governamentais, comércio de aero- apresentava um relatório decidindo a
naves, carne bovina e produtos lácteos. questão e indicava procedimentos a serem
O Acordo Antidumping da Rodada Ken- observados para cessar uma prática ilícita
nedy foi revisto e o tópico dos subsídios ou compensar um dano causado por uma
recebeu um tratamento específico, sendo parte a outra. Contudo, baseado no prin-
criado o Código de Subsídios e Medidas cípio do consenso na tomada de decisões
Compensatórias (Agreement on Interpreta- que regia todo o sistema do Gatt, qualquer
tion and Application of Articles VI, XVI, and parte contratante podia obstar a instaura-
XXIII of the Gatt). ção de um painel ou a aplicação do relatório
Outra evolução foi quanto ao tratamen- deste, inclusive o próprio país vencido na
to diferenciado e favorável que seria dado demanda.
aos países em desenvolvimento a partir de Além disso, alguns temas ficaram histo-
então, reformando-se a estrutura do acordo ricamente excluídos do Gatt, que discutia
antes marcado pela igualdade formal entre tão-somente assuntos afeitos ao comércio
as partes contratantes. de bens.
Muitos problemas despontaram após Os países desenvolvidos desejavam
a Rodada Tóquio, não obstante algumas também a liberalização de serviços e a re-
melhorias feitas em relação à sistemática gulação das questões de marcas e patentes
adotada pelo Gatt. Os chamados países na forma de direitos sobre a propriedade
em desenvolvimento passavam por gran- intelectual. Por sua vez, alguns países em
de endividamento, o que dificultava suas desenvolvimento cobravam a inserção de
participações nas relações comerciais mul- temas como agricultura e têxteis nas dis-
tilaterais. Além disso, o Gatt tinha alguns ciplinas gerais do acordo, visto que estes
problemas estruturais que lhe tirava a recebiam tratamentos específicos que não
credibilidade e faziam com que nações re- atendiam aos anseios dos seus produtores
solvessem seus problemas em outros foros e exportadores.
de negociações ou mesmo bilateralmente. Todas essas razões motivaram a con-
Demonstra-se esse fato com a existência vocação de uma nova rodada de negocia-
da grandfather clause, prevista no protocolo ções.

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 125


1.4. Rodada Uruguai No âmbito da OMC foi criado um novo
órgão de resolução de controvérsias, bem
Em 1986, na cidade de Punta Del Leste, como novas regras processuais e procedi-
Uruguai, inicia-se a oitava rodada de nego- mentais para as lides que tivessem como
ciações do Gatt. Essa rodada foi considera- partes membros da organização.
da, pelo menos até a Rodada de Doha, no No que tange ao acesso a mercados, o
Catar, “a mais complexa negociação já feita Brasil foi beneficiado com a Rodada Uru-
na história da humanidade sobre comércio guai. Conforme estimativas, houve uma
internacional” (FIORATI, 1999, p. 69). redução média de tarifas incidentes sobre
Efetivamente, essa Rodada contou com produtos brasileiros da ordem de 36%
a participação de 123 (cento e vinte e três) (trinta e seis por cento) pela União Europeia
países, e não apenas 23 (vinte e três) como – UE, 24% (vinte e quatro por cento) pelos
inicialmente. Em 1947, o Gatt abrangia EUA e 57% (cinquenta e sete por cento) pelo
um montante de relações comerciais que Japão, aumentando consideravelmente
somavam US$ 10.000.000.000 (dez bilhões as exportações para esses países. Por sua
de dólares) e, em 1986, esse valor perfazia vez, o Brasil não reduziu tarifas de forma
US$ 3.700.000.000 (três trilhões e setecentos proporcional. Enquanto a média mundial
bilhões de dólares). de tarifas consolidadas girava em torno
Essa Rodada, a mais longa da história de 35% (trinta e cinco por cento), a média
do Gatt, prevista para terminar em quatro de tarifa consolidada pelo país foi de 55%
anos, prolongou-se até 15 de abril de 1994 (cinquenta e cinco por cento) para produtos
quando, na cidade de Marraqueche, no agrícolas.
Marrocos, foi assinada a declaração minis- Dessa forma, o país ficou em situação
terial que a concluiu formalmente. confortável, inclusive diante de produtos
Foram alcançados importantes resulta- agrícolas importados subsidiados. (CA-
dos, como reduções tarifárias para produ- SELLA, 1998, p. 231)
tos industriais e agrícolas. Novos temas, Na agricultura, a vantagem foi a inclu-
antes ignorados, foram contemplados na são dessa pauta no sistema regulatório do
sistemática do comércio internacional, comércio internacional, gerando regras
como agricultura, têxteis, serviços e direito para disciplinar a produção e comerciali-
de propriedade intelectual. zação, limitando as práticas protecionistas
Os acordos negociados receberam que se reproduziam nesse setor, antes des-
prazos de implementação que variavam provido de regras. Restrições quantitativas
entre cinco e dez anos a partir de 1995, às importações foram proibidas e a prática
dependendo do grau de desenvolvimento de subsídios não seria permitida com tanta
do país, atendendo-se o já afirmado trata- leniência como antes.
mento diferenciado e privilegiado para os Os têxteis e vestuários também foram
países menos desenvolvidos. objeto de acordo que previu, após o prazo
Mas o mais relevante entre os resulta- de dez anos, a inclusão do setor nas nor-
dos da Rodada Uruguai foi a criação da mas gerais da OMC, sendo que, durante
Organização Mundial do Comércio – OMC. esse tempo, a entrada seria progressiva.
Essa entidade substituiu o Gatt como foro Essa situação ampliou a potencialidade do
de negociações e regulação do comércio Brasil como exportador uma vez que abriu
internacional, além de se firmar como novo mercados.
ator internacional. A troca, contudo, não Não obstante, o país é também impor-
foi feita por completo, permanecendo o tador desses produtos e a obsolescência
Gatt como sistema normativo diretivo das dos equipamentos já levou a aplicação de
relações comerciais multilaterais. salvaguardas para proteger a indústria in-

126 Revista de Informação Legislativa


terna principalmente contra a importação finido para designar todo o conjunto de me-
de produtos asiáticos. didas que inclui os dispositivos do Gatt 1947
De um modo geral, as rodadas de e todas as modificações introduzidas pelos
negociação propiciaram uma efetiva re- termos dos instrumentos legais que entraram
dução das barreiras tarifárias mundiais. em vigor até a data do início das funções da
Se em 1947 a média das tarifas aduaneiras OMC, isto é, janeiro de 1995. Inclui, portanto:
aplicadas sobre bens era da ordem de 40% concessões tarifárias, protocolos de acesso
(quarenta por cento), ao final da Rodada de novos membros, decisões de derrogação
Uruguai essa média caiu para apenas 5% de obrigações (waivers) concedidas, e outras
(cinco por cento). (BARRAL, 2002, p. 16) decisões; uma série de seis entendimentos
negociados dentro da área do comércio de
1.5. Tratado de Marraqueche bens; e o Protocolo de Marraqueche que
A OMC surge para completar o tripé estabelece os prazos de implementação das
institucional planejado em Bretton Woo- concessões tarifárias na Rodada Uruguai”.
ds no ano de 1944. Essa nova entidade (THORSTENSEN, 2001, p. 40)
desempenha a função primordial de foro O Tratado de Marraqueche foi ratificado
de negociações visando à liberalização do ainda em 1994 passando a OMC a existir
comércio internacional. Também é inerente em 1o janeiro de 1995. Ele foi aprovado pelo
a ela zelar pelo respeito às normas contrata- Congresso Nacional brasileiro por meio do
das na Rodada Uruguai, inclusive servindo Decreto Legislativo n. 30 de 15 de dezem-
para dirimir as questões que envolvam seus bro de 1994, que aprovou o inteiro teor da
membros no âmbito dos acordos comerciais Rodada Uruguai de negociações comerciais
multilaterais firmados. multilaterais (BRASIL, 2008).
A OMC é um pacote de normas destina- As regras da OMC também incorpora-
das à manutenção e promoção do equilíbrio ram outros temas que há tempos estavam
econômico e comercial mundial. Essas na pauta de negociações para serem regu-
normas representam o intuito de não se per- lamentados em atenção aos interesses dos
mitir o regresso a uma realidade anterior países desenvolvidos.
em que as relações mercantis se davam de Esses três temas vieram disciplinados
forma desordenada e desregrada. Assim, no Anexo n. 1 do Acordo Constitutivo
o surgimento da OMC consolida o sistema da OMC, sendo respectivamente: Anexo
multilateral de comércio, que começou a 1-A para os acordos sobre comércio de
ser instituído pelo Gatt. bens; Anexo 1-B para o acordo geral sobre
Em 15 de abril de 1994, é assinada a ata o comércio de serviços – GATS (General
final da Rodada Uruguai, formalizando o Agreement on Trade in Services); e o Anexo
Tratado de Marraqueche, incorporando to- 1-C para o Acordo Sobre Aspectos Relacio-
dos os resultados das negociações. Nela es- nados ao Comércio de Direitos de Proprie-
tão inclusos como anexo o acordo constitu- dade Intelectual – Trips (Agreement on Trade
tivo, as declarações e decisões ministeriais e Related Aspects of Intelectual Property Rights).
os entendimentos sobre compromissos em (VALÉRIO, 2001, p. 143-8)
serviços financeiros.
Por sua vez, o Acordo constitutivo da 1.6. Rodada Doha
OMC tem como parte integrante, entre seus Iniciada em novembro de 2001, com
anexos, o Gatt 1994 (General Agreement on previsão de término em 2004, a Rodada
Tariffs and Trade), distinto do antigo, agora Doha, no Qatar, contou com encontros sub-
denominado Gatt 1947. sequentes em Cancún, no México, Genebra,
Como frisa Vera Thorstensen, “após a na Suíça, Paris, na França, Hong Kong,
Rodada Uruguai, o termo Gatt 1994 ficou de- na China, e Potsdam, na Alemanha, que

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 127


tinham como objetivo a adesão à Agenda Previsto inicialmente para 2005, o fim da
de Desenvolvimento acordada em Doha e, rodada foi postergado devido a sucessivos
a partir daí, negociar a abertura dos mer- impasses. A OMC decidiu então convocar
cados agrícolas e industriais. um encontro que seria definitivo, em que
As quatro áreas-chave de negociação deveriam ser superados vinte obstáculos
centraram-se em: agricultura, produtos que emperravam o consenso. Depois de
industrializados, comércio de serviços e nove dias de negociações em Genebra, na
atualização de normas alfandegárias. Suíça, os debatedores conseguiram superar
A rodada de Cancún, em 2003, que tinha dezoito barreiras. Tropeçaram na décima-
como finalidade planejar um acordo con- nona, que tratava das salvaguardas, um
creto sobre os objetivos da rodada de Doha, dispositivo destinado a proteger a econo-
fracassou após quatro dias de discussão mia de um país contra a invasão repentina
entre os países membros sobre subsídios de produtos importados.
agrícolas e acesso aos mercados. A maioria absoluta dos países aceitou
A divisão Norte-Sul tornou-se evidente que esse mecanismo só deveria ser usado
em assuntos ligados à agricultura. Tanto a quando houvesse um aumento de 40%
Política Agrícola Comum da UE quanto os (quarenta por cento) nas importações. A
subsídios agrícolas do governo dos EUA se Índia, por sua vez, endossada pela China,
tornaram um ponto crucial. Os países em permaneceu irredutível na defesa de que as
desenvolvimento rejeitaram um acordo que salvaguardas poderiam ser usadas quando
viram como desfavorável. O Grupo dos as importações subissem meros 10% (dez
20 – G-20 tem membros flutuantes, mas por cento).
sua ponta de lança é o Grupo dos 4 – G-4, Houve tentativas de costurar uma
formado pelos quatro países em desen- saída para contornar as diferenças, e o
volvimento: China, Índia, Brasil e África Brasil chegou a se afastar de seus aliados
do Sul, que respondem juntos por 65% da tradicionais, como a Argentina e a China.
população mundial, 72% de suas fazendas Mas daí foi a vez dos EUA endurecerem o
e 22% de sua produção agrícola. jogo e não ceder. Acabavam, pelo menos
A conferência de agosto de 2004 em ao que tudo indica, sete anos de esforços
Genebra chegou a um esboço de acordo para tornar o comércio global mais aberto
sobre a abertura do comércio global. Os e equilibrado.
EUA, UE, Japão e Brasil concordaram em No fim, o Brasil saiu das discussões
abolir subsídios às exportações, reduzir os iniciadas no Qatar e finalizadas na Suíça
subsídios agrícolas e diminuir as barreiras como um dos principais derrotados. Pri-
tarifárias. Nações em desenvolvimento meiro porque, com o acordo, teria muito a
concordaram em reduzir tarifas sobre ganhar – as exportações poderiam crescer
produtos manufaturados, mas obtiveram US$ 15.000.000.000,00 (quinze bilhões de
o direito de proteger suas indústrias. O dólares) ao ano, principalmente nas vendas
acordo também garante alfândegas simpli- externas de etanol e carnes. O país perdeu
ficadas e regras mais rígidas para ajuda ao também pela estratégia comercial de se
desenvolvimento rural. dedicar exclusivamente à Rodada Doha
A conferência em Hong Kong aconteceu de negociações, num mundo em que o
entre 13 e 18 de dezembro de 2005. O Brasil interesse local é preponderante.
e a Índia, as principais potências comerciais
em desenvolvimento, abandonaram as ne-
Conclusão
gociações da Rodada Doha, levando todo o
mundo à frustração e à descrença a respeito É verdade que não houve avanços,
da liberação do comércio mundial. mas também não deverá ocorrer um retro-

128 Revista de Informação Legislativa


cesso, como em situações do passado. Na É ilusão pensar numa autoridade mone-
virada do século XIX para o XX, o mundo, tária mundial, mas é preciso incorporar ao
impulsionado pela Revolução Industrial, sistema mundial as lições da crise. A ideia
registrou uma fase de rápido crescimento de um novo Acordo Bretton Woods aparece
do comércio. Mas, depois do estouro da a cada tumulto global. Existe um enorme
I Guerra Mundial, em 1914, os países se ceticismo quanto à funcionalidade de uma
fecharam e abraçaram medidas protecio- entidade mundial para as finanças, mas o
nistas. Com a Grande Depressão de 1930, certo é que a experiência adquirida com a
houve um enfraquecimento ainda maior árdua gestação da Organização Mundial do
das transações internacionais. Comércio – OMC serve de modelo.
Em Bretton Woods, gestou-se o embrião
do capitalismo moderno. Germinou ali a
primeira semente do que hoje é a globa- Referências
lização. A ideia era evitar a repetição do
tumulto monetário do período entre os dois ALDECOA, Francisco; KEATING, Michael. Paradiplo-
conflitos mundiais e estabelecer as bases macia: las relaciones internacionales de las regiones.
para a reconstrução da Europa devastada Madrid: Marcial Pons, Ediciones Juríricas y Sociales,
2000.
pela guerra. Para tanto, a conferência criou
um novo sistema monetário internacional, AMARAL JÚNIOR, Alberto do. A solução de controvér-
já sob a influência hegemônica dos EUA. sias na OMC e a aplicação do direito internacional. Tese
(Concurso para professor titular de Direito Interna-
Depois de três semanas, a reunião con-
cional Público) Faculdade de Direito do Largo São
solidou a supremacia do dólar americano Francisco, Universidade de São Paulo. 645 f. 2006.
sobre a libra inglesa, criou mecanismos
BARRAL, Welber. Protecionismo e neoprotecionismo no
para estabilizar o câmbio, evitando as comércio internacional. São Paulo: Aduaneiras, 2002.
oscilações selvagens de antes, e definiu os
princípios do livre-comércio. BRASIL. Congresso Nacional. Senado Federal. Decreto
Legislativo n. 30 de 15 de dezembro de 1994, aprova a
Mas a crise econômica iniciada no final Ata Final da Rodada Uruguai de Negociações Comer-
de 2008 mostrou que, em alguma medi- ciais Multilaterais do GATT, as listas de concessões
da, o que foi construído há mais de meio do Brasil na área tarifária (Lista III) e no setor de
século precisa de retoques. A questão é serviços e o texto do Acordo Plurilateral sobre Carne
saber quais. Bovina. Disponível em: <http://www.planalto.gov.
br>. Acesso em: 18 jan. 2008.
Uma alternativa é concluir o que já se co-
meçou – como a Rodada Doha, promovida CASELLA, Paulo Borba. Resultados da rodada
pela OMC. Para o Brasil e outros grandes Uruguai: aspectos legais e constitucionais de sua
implementação no Brasil. In: CASELLA, Paulo Borba;
produtores agrícolas, a principal meta era MERCADANTE, Araminta de Azevedo (Coords).
fazer com que os países ricos diminuíssem Guerra comercial ou integração mundial pelo comércio?
os subsídios bilionários que eles conce- 1 ed. 1998.
dem a seus agricultores, prejudicando os COSTA, Lígia Maria. OMC: manual prático da rodada
produtores de nações pobres. Para redu- Uruguai. São Paulo: Saraiva, 1996.
zirem os subsídios, no entanto, a UE e os
DAS, Bhagirath Lal. The world trade organization: a
EUA buscavam um maior acesso de seus guide to the framework for international trade. Lon-
produtos industrializados aos mercados don: Zed Books Ltd, 1999.
emergentes.
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Doha é o meio mais ágil para desobstruir segurança, comércio e integração. Belo Horizonte:
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130 Revista de Informação Legislativa


Revisita à ordem pública

D’Aquino Filocre

Sumário
Introdução. 1. Ordem pública na doutrina.
1.1. Ordem pública no sentido formal. 1.2. Or-
dem pública no sentido material. 1.3. Ordem
pública na fusão dos sentidos. 1.4. Ordem pú-
blica em sentido metajurídico. 2. Segurança e
ordem públicas – limites da atuação estatal para
a repressão da criminalidade. 3. Conclusão.

Introdução
No artigo “Revisão doutrinária dos con-
ceitos de ordem pública e segurança pública –
uma análise sistêmica”, de 1988, o professor
de direito público e ciência política Diogo
de Figueiredo Moreira Neto (1988, p. 134)
destaca “a escassa e contraditória doutrina
da Ordem e da Segurança Públicas” e oferece
uma “tentativa de sistematização da maté-
ria na enciclopédia juspolítica” utilizando
alguns instrumentos metodológicos sistê-
micos. Passadas duas décadas, questiona-se
a evolução do tema, especialmente quando
a doutrina é quase unânime em adotar segu-
rança pública como manutenção da ordem pú-
blica.1 A matéria é de suma importância, vez
que, ao elaborar uma política de segurança
pública e ao efetivá-la, o governante deve ter
clara a ideia de ordem pública, posicionando-
1
Toma-se manutenção da ordem pública em sentido
D’Aquino Filocre é Procurador do Estado amplo, de forma a incluir preservação da ordem pública
de Minas Gerais. Especialista em Segurança e o restabelecimento do estado de ordem pública. Esta
Pública – Centro de Estudos de Criminalidade última é realizada no “espaço de repressão imediata”,
e Segurança Pública/UFMG. conforme Silva Júnior (2009).

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 131


se adequadamente no enfrentamento da entendida do que definida, mesmo porque,
criminalidade. opina o autor, ela varia de entendimento no
De fato, somente com uma visão bem tempo e no espaço (Idem, p. 8). Giuseppe
definida do que seja ordem pública é que o de Vergontini, estudando ordine pubblico,
Estado efetivamente faz segurança pública afirma que “è concetto di non sempre pa-
de forma qualificada, isto é, entre outros, cifica definizione, comune a diversi settori
com racionalidade científica, inteligência del diritto” (DANTAS, 1989, p. 47). Dando a
estratégica e com garantia de direitos. real amplitude do que isso significa, Miguel
Este trabalho tem como objetivo fazer Seabra Fagundes diz que “na terminologia
uma revisita doutrinária à ordem pública jurídica a expressão ordem pública assume
e refletir sobre uma concepção de ordem duas significações; ora aparece como de-
pública – com reflexos jurídico-sociológicos signativa de parâmetros basilares de com-
diretos na compreensão e nas escolhas po- portamento social (no mais amplo sentido,
líticas de segurança pública. isto é, com relação aos costumes morais, à
estrutura e vida de família, à economia ge-
ral etc.), ora diz com o clima de equilíbrio e
1. Ordem Pública na doutrina
paz indispensável à convivência coletiva do
Como destacado por Diogo de Figuei- dia-a-dia” (CRETELLA JÚNIOR, 1998).
redo Moreira Neto (1988, p. 143), embora Conforme bem avaliado por Calixto
ordem pública, como situação, modelo real (1987, p. 13-14), apoiado em Pontes de
ou resultado da observação, seja antiga Miranda, ordem pública “percorre todas as
e já encontrada em Roma, “confundida veias do organismo jurídico, manifestando-
com o conceito de mores, os costumes do se em todos os institutos e a propósito de
povo romano, e, no direito intermediário, quase tudo”, ao mesmo tempo em que “é
vinha a ser os ‘bons costumes’ dos legistas caracterizada pela sua essencial plastici-
e glosadores”, é certo que a sua conceitua- dade, conteúdo mutável, e ter de ser vaga,
ção definitivamente ainda não é tranquila. imprecisa, a noção geral”, motivo pelo
Permanece válida a consideração de Emilio qual Amílcar de Castro afirmou ser “um
Fernández Vásquez (1981, p. 541 apud problema dificílimo este de dizer o que seja
DANTAS, 1989, p. 147), que, analisando ordem pública”.
o verbete Orden público em harmonia com Para Cenzano (2002, p. 17), poucas
Waline, escreve que se trata de “noción su- vezes, para não dizer jamais, ficou claro o
mamente vaga y amplia”. Alvaro Lazzarini significado e, principalmente, o alcance de
entende da mesma forma, afirmando “nada ordem pública como limite ao legítimo exer-
mais incerto em direito do que a noção de cício de um direito. Isso é especialmente
ordem pública, noção essa de grande impor- preocupante se levado em conta que ordem
tância, diga-se, para quem exerce atividade pública desempenha essa função, entre
de polícia de manutenção da ordem pública outras, em múltiplas ordens do direito, já
ou pretenda conhecê-la” (CRETELLA que, segundo o ramo do ordenamento em
JÚNIOR, 1998, p. 6). Afirma que, tal como que este conceito exiba a sua eficácia, seu
segurança pública, ordem pública encerra con- significado e alcance variam. Se a isso for
ceito jurídico indeterminado (LAZZARINI, acrescentado que dentro de um mesmo
1992, p. 277). Diz que Cretella Júnior (1998, ramo do direito a expressão ordem pública
p. 6) tem o mesmo sentimento e acrescenta pode desempenhar uma variada gama de
que “não se trata, apenas, da manutenção funções jurídicas, compreende-se mais
material da ordem na rua, mas também da facilmente a complexidade que deriva de
manutenção de uma certa ordem moral”, o sua plurifuncionalidade e multiplicidade
que tornaria a ordem pública mais fácil de ser de sentidos. Ademais, acrescenta Cenzano

132 Revista de Informação Legislativa


(2002, p. 18) que ordem pública constitui um tudo que se relaciona com o direito interna-
conceito contingente e mutável que de- cional” (ALMEIDA, 1991, p. 286). Essa é a
pende nada menos que de uma trilogia de opinião de Correa (1986, p. 73), para quem,
variáveis às quais podem ser combinadas “do ponto de vista jurídico, ordem pública
entre si: a espacial, a temporal e a política. compreende aquelas normas que não podem
De fato, as dificuldades que rondam deixar de ser cumpridas”.2
ordem pública persistem ainda que se Reforçando a complexidade da questão,
queira construir um conceito nos limites há os que, tal como Fernández-Valmayor
de um ramo do direito, como no Direito (1990, p. 22), dão à ordem pública um sentido
Internacional Privado, por exemplo, ates- amplo que compreende segurança cidadã
tando Cardini (1959, p. 7), com respaldo em e ordem pública em sentido estrito, distin-
Bardin (1919, p. 210), que mesmo ali ordem guindo conceitualmente orden público como
pública é um enigma. “protección del libre ejercicio de los dere-
Quanto ao entendimento de ordem chos fundamentales” e seguridad ciudadana
pública no direito privado, Cretella Júnior como “protección de las personas y bienes
destaca que, segundo alguns autores, “é frente a acciones violentas o agresiones,
preciso cuidado para que não se confunda situaciones de peligro o calamidades públi-
o sentido da expressão ordem pública, usado, cas” (FERNÁNDEZ-VALMAYOR, 1990, p.
por exemplo, no artigo 6o do Código Civil 22). Segundo o autor, “la seguridad pública
francês (Não se pode derrogar, mediante comprendería tanto el orden público como
convenções privadas, as leis que interes- la seguridad ciudadana...”, havendo uma
sem à ordem pública), com o sentido que identificação de ordem pública, em sentido
a expressão tem em matéria de polícia amplo, com o conceito de segurança pública.
administrativa: as palavras são idênticas, Cenzano (2002, p. 38), por seu turno, afirma
mas trata-se de duas coisas sem relação que, no direito positivo e na jurisprudência
alguma. Essa é a opinião de Rivero (1981, p. espanhola, os conceitos de segurança pú-
370), para quem as noções de ordem pública blica, segurança cidadã e ordem pública têm
no Direito Civil e no que se refere à polícia utilização indiferenciada, sem que tenha
administrativa não têm relação entre si. chegado a dar-lhes conteúdo mais preciso e
Segundo outros autores, “as duas noções se diferenciado de cada um, motivo pelo qual
assimilam”, opinião de Paul Bernard (apud considera que o conceito de “segurança
CRETELLA JÚNIOR, 1998, p. 323). Para cidadã” não é absolutamente pacífico, no
Cynthia Almeida (1991, p. 284), “a ordem que tem razão, bastando examinar o con-
pública no direito privado é a base jurídi- ceito daquela expressão formulado em solo
ca que fundamenta a ordem econômica e espanhol: “Em face do arcaico conceito de
moral da sociedade, ou, ainda, segundo ordem pública como algo que se impunha
Orlando Gomes: “Regula(m) o Estado e desde as instâncias do poder e se dirigia até
a capacidade das pessoas, organiza(m) a os cidadãos sem que se importasse muito
família, a propriedade, e o regime de sua se estes o aceitassem ou não, devemos po-
aquisição e perda, e [...] impõe às partes tencializar o conceito de segurança cidadã,
proibições ou medidas ditadas no interesse 2
No original: “desde el ponto de vista jurídico,
de terceiros”. Entende a autora que “a or- orden público comprende aquellas normas que no
dem pública interna como sendo o conjunto pueden dejar de cumplirse”. Cita alguns exemplos:
de normas que regem a sociedade, visando “las normas del Código de Procedimientos Civiles, el
o bem-estar social, a ordem e os costumes deber de prestar alimentos; el saneamiento por vicios
ocultos en que la renuncia al saneamiento es nula
no âmbito interno, e a ordem externa como cuando el transfere actúa con dolo o culpa inexcusable;
sendo as normas que regem as questões en- o la calidad es irrenunciable de las beneficios sociales”
tre os diversos Estados, os conflitos, enfim, (CORREA, 1986, p. 73).

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 133


que implica tanto a cobertura dos interesses ções e os cidadãos as respeitam e acatam,
gerais do Estado como, paralelamente, dos sem constrangimento ou protesto. Não se
interesses gerais da sociedade em relação à confunde com a ordem jurídica, embora seja
defesa e à garantia dos direitos e liberdades uma consequência desta e tenha sua exis-
individuais e coletivos (Cf. Federación Es- tência formal justamente dela derivada”
pañola de Municípios e Províncias – Madri, (SILVA, 1999, p. 577). Tal entendimento
1982, p. 72)” (SILVA, 2003, p. 224). desafia que se questione o que é “situação
A distinção metodológica entre a con- ou estado de legalidade normal”, ou, ao
cepção descritiva ou material e a acepção contrário, como saber que se está diante de
normativa ou formal de ordem pública é a um quadro de “legalidade anormal”.
solução explicativa para os desencontros Segundo a linha da concepção jurídica
doutrinários na opinião de Moreira Neto de Hariou, ordem pública é a ordem mate-
(1988, p. 143).3 Distinção que implica não rial e exterior – considerada como a ordem
antagonismo, mas complementaridade, prevista e regulada pelo direito positivo,
de forma a possibilitar visões distintas que um estado de fato oposto a desordem, de
não se excluem, antes permitem um melhor forma que a sua preocupação não atinge a
conhecimento. “No sentido material, ou ordem ou desordem moral das ideias ou
descritivo, a ordem pública é uma situação de dos sentimentos.
fato, ocorrente numa sociedade, resultante J. de Pousada Herrera escrevia em 1843
da disposição harmônica dos elementos que:
que nela interagem, de modo a permitir- “A ordem pública é a primeira condi-
lhe um funcionamento regular e estável, ção e a circunstância mais indispensá-
assecuratório da liberdade de cada um” vel para a existência de qualquer as-
(MOREIRA NETO, 1988, p. 143). sociação. Em uma sociedade em que
“No sentido formal, ou normativo, a as leis não são respeitadas, em uma
ordem pública é um conjunto de valores, sociedade em que os funcionários
de princípios e de normas que se pretende encarregados de executá-las não têm
devam ser observados numa sociedade, im- força bastante para fazerem-se respei-
pondo uma disposição ideal dos elementos tados, é impossível que prosperem os
que nela interagem, de modo a permitir- interesses materiais e morais. Tudo,
lhe um funcionamento regular e estável, pois, que se refira a ordem pública é
assecuratório da liberdade de cada um” de grande importância, dever e ne-
(MOREIRA NETO, 1988, p. 143). cessidade de uma boa administração.
Examinando os conceitos de ordem A ordem pública tem a ver com a se-
pública percebe-se que, de fato, alguns se gurança das pessoas, a tranquilidade
encaixam na acepção material, outros na dos povos e a segurança interna do
concepção formal, e outros ainda operam Estado”.4 (CUDOLÀ, 2007, p. 42)
uma fusão dessas visões.
4
No original: “El orden público es la primera
1.1. Ordem pública no sentido formal condición y la circunstancia más indispensable para
la existencia de toda asociación. En una sociedad en
De Plácido e Silva (1999, p. 577) diz de que las leyes no se respetan, en una sociedad en que
ordem pública que “entende-se a situação e o los funcionarios encargados de ejecutarlas no tienen
la bastante fuerza para hacerse respetar, es imposible
estado de legalidade normal, em que as au- que prosperen los intereses materiales, ni los morales.
toridades exercem suas precípuas atribui- Todo, pues, lo que se refiere al orden público es de
muchísima importancia, como es a la vez el premier
O autor informa que “distinção semelhante, das
3
deber un necesidad de una buena administración. El
duas acepções de ordem pública, nos oferece Giuseppe orden público dice relación a la seguridad de las per-
de Vergottini, um dos ilustres colaboradores do Dizio- sonas, a la tranquilidad de los pueblos y a la seguridad
nario di política, Torino, Utet, 1983, v. pp. 741 e 742.” interior del Estado”

134 Revista de Informação Legislativa


Para Gasparini (1993, p. 61), preservar mais determinado. Disso, entende Soriano
a ordem pública é serviço voltado a “coibir (1985, p. 99) que ordem pública e ordem política
a violação da ordem jurídica e defender a são aspectos de uma mesma realidade cujas
incolumidade do Estado e dos indivíduos diferenças devem situar-se no âmbito da
e a restaurar a normalidade de situações aplicação, e não no terreno da definição.6
e comportamentos que se opõem a esses Na identificação de ordem pública com
valores”. ordem jurídica, Moreira Neto (apud CRE-
No entender de Soriano (1985, p. 97), TELLA JÚNIOR, 1998, p. 79) ressalta que
“A ordem é um conceito que resume ordem jurídica deve ser entendida como
um status quo estabelecido pelo orde- mais que o direito positivo. O autor parte de
namento jurídico do Estado. Não é Paul Bernard (apud CRETELLA JÚNIOR,
um conceito externo ao próprio orde- 1998, p. 79), para quem, em ordem pública,
namento estatal, mas intrasistemático somam-se elementos metajurídicos – refe-
ao mesmo, como parte de seus prin- rencial moral e referencial consuetudinário
cípios fundamentais e síntese do jogo – à ausência de perturbações, paz pública
harmônico das instituições, direitos e disposição harmoniosa da convivência,
e deveres estabelecidos pela Consti- de forma tal que a convivência pacífica e
tuição e leis derivadas. A paz é uma harmoniosa não se esgota no direito. “Há
manifestação mais íntima e profunda atuações que embora não previstas no Di-
da existência da ordem no Estado, reito positivo são perturbadoras da situação
ainda quando nem sempre presumida de paz e de harmonia social por serem
de qualquer classe de ordem política, atentatórias à moral e aos costumes” (CRE-
porque a paz tem essa faceta espiritual TELLA JÚNIOR, 1998, p. 79), diz o autor,
que não admite ser satisfeita por todo de modo a não ser supérfluo que se fale em
tipo de ordem do Estado”.5 dimensão moral da ordem pública, ainda que
Para o autor, público e político são se saiba que o jurídico contenha orientação
conceitos suficientemente genéricos e am- moral. Nesse sentido, para Waline (1963,
bíguos para que sejam empregados com p. 642, apud CRETELLA JÚNIOR, 1998, p.
natural fungibilidade e intercambialidade 79) em ordem pública, “não se trata apenas
no contexto das realidades sociais. No de manutenção normal da ordem na rua,
campo propriamente jurídico, “público” mas também de manter uma certa ordem
tem uma referência mais concreta, adstrita moral”. Clara a sua compreensão de ordem
principalmente às relações do Estado com jurídica, Moreira Neto (apud CRETELLA
os cidadãos, ao passo que “político” é um JÚNIOR, 1998, p. 79) então atesta
conceito mais amplo e concerne à organiza- “com esta imensa riqueza conteu-
ção geral da sociedade e do Estado dentro dística, da Ordem Jurídica, chega-se à
dessa sociedade, na qual as relações Estado- Ordem Pública como um aspecto visível
cidadãos vêm a ser um aspecto particular e de sua realização, como uma idéia que
tem a vocação de um endereçamento
5
No original: “El orden es un concepto que resume
un statu quo estabelecido por el ordenamiento jurídico prático, que tem a ver com a harmo-
del Estado. No es un concepto externo al proprio orde- niosa convivência diária, com o clima
namiento estatal, sino intrasistemático a él mismo, como
parte de sus principios fundamentales y síntesis del 6
Sobre “ordem política” e “ordem pública” como
juego armónico de las instituciones, derechos y deberes aspectos de uma mesma realidade, diz Soriano (1985,
establecidos por la Constitución y leyes derivadas. La p. 99): “Ambos tienen unos componentes formales
paz es una manifestación más íntima y profunda de la y avalorativos, y entran por ello perfectamente en
existencia de ese orden del Estado, aun cuando no siem- la dimensión normativa del Derecho, lejos de un
pre es presumible de cualquier clase de orden político, análisis axiológico de las realidades jurídicas y de las
porque la paz tiene esa faceta espiritual que no admite relaciones de conexión entre factores sociales y normas
ser satisfecha por todo tipo de orden del Estado”. jurídico-positivas.”

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 135


de paz social, com a exclusão da vio- a certas leis, não significa, obviamente, res-
lência e com o trabalho permanente peito a todas as leis; e, estendida aos bons
dos agentes de segurança pública na costumes, tampouco compreende todos os
guarda desses valores”. costumes, pelo que, condensadas em ordem
“A ordem pública formal atuaria como pública aquelas expressões, sempre ordem
um conceito geral de direito, um sistema pública será menor que Ordem Interna,
abstrato de referência, não apenas da con- porque a ordem jurídica, abarcando todas
vivência pública mas da própria ordem as leis, não apenas as de ordem pública, faz
jurídica” (MOREIRA NETO, 1988, p. 145). parte da Ordem Interna”.8
O entendimento de Moreira Neto não se Para Cretella Júnior (1998, p. 8), a ordem
conforma à compreensão de Meirelles pública não deixa de ser uma situação de le-
(CRETELLA JÚNIOR, 1988, p. 92) acerca do galidade e moralidade normal, apurada por
tema, na medida em que este autor tem que quem tenha competência para isso sentir e
“ordem pública é a situação de tranquilidade valorar. “A ordem pública existirá onde estiver
e normalidade que o Estado assegura – ou ausente a desordem, isto é, os atos de violên-
deve assegurar – às instituições e a todos cia, de que espécie for, contra as pessoas,
os membros da sociedade, consoante as bens ou o próprio Estado”. “A ordem pública,
normas jurídicas legalmente estabelecidas” arremata o autor, não é figura jurídica, em-
de tal modo que, considerada a concepção bora dela se origine e tenha a sua existência
abrangente de ordem jurídica, Meirelles res- formal” (CRETELLA JÚNIOR, 1998, p. 8).
tringe ordem pública ao direito positivo. Hely Lopes Meirelles (apud CRETELLA
Há aqueles que, por outro lado, não JÚNIOR, 1998, p. 93) também considera que
identificam ordem pública com ordem ju- a ordem pública não é uma figura jurídica, da
rídica ou que não entendem que a ordem mesma maneira que não é uma instituição
pública seja uma decorrência da ordem política ou social. Para o autor, ordem pública
jurídica. Consideram, ainda sob o ponto “é uma situação fática de respeito ao interes-
de vista formal, que a ordem pública é uma se da coletividade e aos direitos individuais
parte da ordem jurídica. É o entendimento de que o Estado assegura” (Idem).
Fortunato Lazzaro (1960, apud DUARTE,
1977, p. 29)7, bem como de Henri Capitant 1.2. Ordem pública no sentido material
quando caracteriza ordem pública como “o
Sob a concepção material, José Afonso
conjunto de normas e instituições cujo obje-
da Silva (1998, p. 742-743) e outros tomam
tivo consiste em manter em um país o bom
ordem pública como oposição a desordem, de
funcionamento dos serviços públicos, a
segurança e a moralidade das relações entre 8
No original: “también se comprende en orden
os particulares” (DUARTE, 1977, p. 29 apud público las buenas costumbres, cuya apreciación varía
CABANELLAS, 1953, p. 897). Semelhante en tiempo y lugar. Mas, entendido el orden público
entendimento tem Correa, para quem “os como respecto a ciertas leyes, no lo es obviamente,
respecto a todas las leyes; y, extendida a las buenas
bons costumes também estão compreendi- costumbres, tampoco comprende todas las costum-
dos na ordem pública, variando a sua apre- bres, por lo que si sumamos en orden público ambas
ciação de acordo com o tempo e lugar. Mas, expresiones siempre orden público sería menor que
entendida a ordem pública como respeito Orden Interno, porque forma parte del Orden Interno
el orden jurídico, el que abarca todas las leyes, no sólo
7
Na página 417, Fortunato Lazzaro (1977) expõe las consideradas de orden público”.
o seguinte conceito: “Vi é, in ogni societá, um ordine “Acepción Jurídica: son aquellas leyes que no pueden
conforme all’interesse ai tutti gli uomini raccolti in excluir-se por convención y son de cumplimiento obli-
consorzio: ‘ordine pubblico’ sta ad indicare l’insieme gatorio. También puede considerarse aquellas normas
dei principi fondamentali dall’osservanza dei quali di- legales, dictadas por un gobierno, para combatir una
pende il buon andamento della vita sociale e che cons- situación compleja o frenar una grave alteración”.
tituiscono i cardini ogni ordinamento giuridico”. (CORREA, 1986, p. 73)

136 Revista de Informação Legislativa


forma tal que “ordem pública será uma situ- perante a sociedade (preservação da lei
ação de pacífica convivência social, isenta pela obediência e restauração da lei por
de ameaça de violência ou de sublevação imposição coercitiva), que mais interessa
que tenha produzido ou que supostamente analisá-la, estudá-la e caracterizá-la. E é
possa produzir, a curto prazo, a prática de vista como estado de paz, por oposição ao
crimes”. E complementa afirmando que estado de ameaça à tranqüilidade social ou
“convivência pacífica não significa isenta de de perturbação dela, que a ordem pública
divergências, de debates, de controvérsias e se relaciona, de imediato, com a atividade
até de certas rusgas interpessoais. Ela deixa policial”10. O mesmo se diz de Soibelman
de ser tal quando discussões, divergências, (1981, p. 260), que entende por ordem pública
rusgas e outras contendas ameaçam chegar o “Estado de tranqüilidade social e respeito
às vias de fato com iminência de desforço a bens e pessoas, instituições e autoridades.
pessoal, de violência e do crime” (SILVA, Conjunto de normas que não podem ser
1998, p. 742-743). alteradas pela vontade particular. Fins a se-
Louis Rolland dá a sua visão material rem atingidos pelo Estado ou que norteiam
de ordem pública desdobrando o conteúdo a sua ação. Leis que restringem a admissão
em tranquilidade pública, segurança pública e de leis estrangeiras, de atos e sentenças de
salubridade pública. Paul Bernard, adotando outro país”.
também a linha material, distingue ausência Ao abordarem as limitações das liberda-
de perturbação, paz pública e disposição har- des em nome da proteção da sociedade, Ri-
moniosa da convivência (MOREIRA NETO, vero e Moutouh (2006, p. 212-213) afirmam
1988, p. 143-144). Santin (2004, p. 86), por que a primeira limitação é a ordem pública,
sua vez, considera “inquestionável o direito que é uma limitação absoluta no sentido de
do cidadão de viver em uma sociedade que é uma exigência da vida social imposta
harmônica, em que vigore a paz e a tranqüi- a todos e em todas as circunstâncias. Adu-
lidade na convivência com os semelhantes, zem que a proteção das bases materiais da vida
dentro de uma ordem pública regular...”. social, ou seja, ordem material, é a ordem pú-
Blaise Knapp, citado por Lazzarini (1992, p. blica no sentido preciso da palavra. “Sobre
278-279), afirma que a ordem pública com- esse ponto, o acordo é quase geral: admite-
preende a ordem pública propriamente dita, se que todas as liberdades encontram um
a saúde, a segurança, a moralidade e a tran- limite quando redundam na desordem de
quilidade públicas, assim como a boa-fé nos rua, pois a segurança física, que desaparece
negócios. “Ordem pública propriamente dita, quando a desordem se instala, condiciona-
esclarece, é a ausência de desordem, de atos lhes o exercício” (RIVERO e MOUTOUH,
de violência contra as pessoas, os bens ou o 2006, p. 212-213)11.
próprio Estado” (Idem). Pequignot assenta Ressaltando que o conceito de ordem pú-
ordem pública na ausência de perturbação e na blica é daqueles que são objeto material de
disposição harmoniosa das relações sociais.9 inúmeras ciências, indo desde a sociologia
até o direito público, Dantas (1989) dá o seu
1.3. Ordem pública na fusão dos sentidos posicionamento focado na “normalidade”,
Miguel Seabra Fagundes adota uma 10
Apresentação da obra de Cretella Júnior
postura híbrida ao conceber ordem pública (1998).
como “condição de paz para a realização 11
Válida neste ponto a lembrança de Delmas-
dos objetivos do Estado e do seu papel Marty (2004): “Montesquieu precisa, no Espírito das
leis, que a liberdade ‘não consiste em fazer o que se
9
A lembrança é de Moreira Neto e a manifestação quer’, mas que ela é ‘o direito de fazer tudo aquilo
de Pequignot consta do seu prefácio na obra La notion que as leis permitem’. Nessa perspectiva, liberdade
d’ordre public em droit administratif, de Paul Bernard, e ordem não se contradizem, mas se afirmam, ao
publicada em 1962. (CRETELLA JÚNIOR, 1998) contrário, reciprocamente.”

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 137


de modo que “ordem pública há de ser en- Silva (2003), por seu turno, põe-se entre
tendida como aquela que corresponde ao aqueles que consideram que ordem pública
funcionamento normal da sociedade como vai além da oposição à desordem. Tem que,
um todo, evidentemente que dentro de uma “dentro dos padrões da nossa sociedade e
ótica de juízo de valor que corresponde da realidade institucional em que estamos
aos valores consagrados e aceitos por esta inseridos, percebe-se claramente que a in-
mesma sociedade” (DANTAS, 1989, p. 48). terpretação estrita de que ‘ordem pública’
Da mesma forma, Alfonso (2001, p. 59) tem é a ausência de desordem está longe de
“por ordem pública conceito dos comporta- corresponder à realidade” (SILVA, 2003, p.
mentos não regulados pelo Direito positivo, 154). Esclarece entender que a ordem pública
mas considerados na consciência coletiva compreende, além das noções de segurança
como pressupostos mínimos ou indispen- e tranquilidade, os conceitos de ordem mo-
sáveis para uma convivência ordenada ou ral, estética, política e econômica.
com ‘normalidade’. Em todo caso, essa Otto Mayer é considerado o represen-
normalidade mínima consiste numa ordem tante clássico do que se denomina concep-
puramente externa ou material”12. ção metajurídica de ordem pública, que, dife-
rentemente do caráter complementar das
1.4. Ordem pública em abordagens material e formal, é antagônica
sentido metajurídico a acepções de natureza jurídica. Para Otto
Outros adotam posicionamentos que não Mayer, ordem pública é “buen orden de la co-
se identificam precisamente com os perfis munidad” (gute Ordnung de Gemeinwesens),
material ou formal e trazem, de uma forma cujo conteúdo ou alcance não descreve
ou de outra, elementos novos ao conceito de (FERNÁNDEZ-VALMAYOR, 1990, p. 12).
ordem pública. Com base em Vedel, Emilio Independentemente de qualquer norma
Fernández Vásquez, por exemplo, afirma jurídica positiva, Otto Mayer entende haver
que “a noção de ordem pública é básica no um direito natural de polícia que se legiti-
Direito Administrativo e está constituída ma por si mesmo para intervir na esfera da
por um mínimo de condições imprescindí- liberdade e propriedade dos cidadãos com
veis a uma vida social conveniente ou ade- a finalidade de manter a ordem social, “a
quada. A segurança das pessoas e dos bens, boa ordem da comunidade”. A concepção
a salubridade e a tranqüilidade constituem de Otto Mayer se estabelece no pressuposto
seu fundamento. A ordem pública reveste de que o particular não pode pertubar a boa
também aspectos econômicos – luta contra ordem da comunidade em que vive, antes
os monopólios, contra a carestia – e também tendo a obrigação social de não perturbar,
estéticos; proteção de lugares públicos e de obrigação essa “natural”, não imposta por
monumentos”13 (DANTAS, 1989, p. 47). nenhuma norma jurídica concreta.
Reagindo à concepção metajurídica de
No original: “por orden público, el concepto
12
Otto Mayer, Ranelletti afirma que “buen or-
mismo de los comportamientos no regulados por el den de la comunidad” somente pode ser en-
Derecho positivo, pero considerados en la conciencia
colectiva como presupuesto mínimos o indispensables
tendido como ordem jurídica, ordem estabele-
para una convivencia ordenada o con ‘normalidad’. cida pelo direito positivo (Cf. FERNÁNDEZ-
En todo caso, esta normalidad mínima consiste en un VALMAYOR, 1990, p. 12). Para Ranelletti, a
orden puramente externo o material”. concepção de Otto Mayer implica supor a
13
No original: “la notion de orden público es ba-
sica en el Derecho Administrativo y está constituida
negação da garantia de liberdade individual
por um mínimo de condiciones imprescindibles para em face dos incertos limites das liberdades
uma vida social conveniente o adecuada. La seguridad dos cidadãos. Assim, a ação policial é voltada
de las personas y de los bienes, la salubridad y la tran-
quilidad constituyen su fundamento. El orden publico los monopólios, contra la carestia – y también estéticos;
revieste también aspectos econômicos – lucha contra protecctión de lugares públicos y de monumentos”.

138 Revista de Informação Legislativa


não a garantir uma imprecisa ordem social, este o poder de escolha nos diversos cam-
mas sim uma ordem jurídica, uma ordem pos da vida social – aos seus membros a
estabelecida pelo direito positivo. Noutras rigor não se justifica. A liberdade, ainda que
palavras, para Ranelletti, ordem pública é a não absoluta, é meta e essência da socie-
ordem pretendida pelo direito.14 dade. São extremos: de um lado, a utópica
Por fim, merece registro o entendimento sociedade perfeita, ou seja, essencialmente
de Moreira Neto (1988, p. 142) quando, democrática, liberal e sem injustiças eco-
valendo-se de fundamentos e instrumen- nômicas, educacionais, de saúde, culturais
tos metodológicos da Teoria Geral dos etc. Nela, a liberdade é absoluta. Do outro
Sistemas, tem que a ordem pública é o pré- lado, a sociedade imperfeita, desigual,
requisito de funcionamento do sistema de não democrática, injusta, repleta dos mais
convivência pública.15 graves vícios econômicos, de educação, de
Pois bem, é possível concluir que a saúde, culturais etc. Nesta, a liberdade é
compreensão do que seja ordem pública é inexistente.
bastante variável, ainda quando exami- Entre os extremos está a sociedade real –
nada nos limites dos sentidos formal ou lat. reale –, a de fato, a verdadeira ou efetiva,
material. O caráter complementar que se aquela na qual os problemas econômicos,
possa pretender dar às visões é prejudicado educacionais, de saúde, culturais etc. exis-
pela amplitude de entendimentos que, por tem em infinitos níveis intermediários.
vezes, gera contradições de abordagens, As três sociedades – perfeita, imperfei-
ainda quando o estudo é feito nos limites ta e real – “existem” cada qual com a sua
de cada um daqueles sentidos. estabilidade interna de convivência, de
Partindo do conceito de segurança pú- forma que os seus membros experimentam
blica como manutenção da ordem pública, relações entre si com a liberdade possível.
o passo seguinte será elaborar uma pro- Quanto mais imperfeita a sociedade, menos
posta de modelo de atuação estatal para a liberdade os indivíduos possuem e maior
repressão da criminalidade que preserve a tendência de convivência impossível.
a convivência social com liberdade. Posto Na outra ponta, quanto mais próxima da
isto, será examinado se os entendimentos perfeição, mais próximos da liberdade
doutrinários acerca de ordem pública são absoluta estão os indivíduos. Há a convi-
compatíveis com o modelo sugerido. vência ótima.
Plenamente seguro é o indivíduo certo
de que pode usufruir liberdade na totali-
2. Segurança e ordem públicas – dade. Plenamente seguro é o indivíduo da
limites da atuação estatal para sociedade perfeita, da convivência perfeita.
a repressão da criminalidade A sociedade perfeita é dotada de segurança
Construindo um modelo pública total, na medida em que todos os
indivíduos estão absolutamente seguros.16
A sociedade que não proporciona liber-
dade – direito do homem que reconhece a 16
Ao falar sobre “as gerações de direitos e sobre
o processo histórico de ampliação do conteúdo ju-
14
Segundo Fernández-Valmayor (1990, p. 12), A. rídico da dignidade humana”, diz Bucci (2007) que
Merkl acompanha Ranelletti entendendo que a con- “a necessidade do estudo das políticas públicas vai
cepção metajurídica de Otto Mayer era tão quão ina- se mostrando à medida que se buscam formas de
preensível quanto os significados de “bom cidadão” concretização dos direitos humanos, em particular os
ou “comportamento público conveniente”. direitos sociais. Como se sabe, os chamados direitos
15
Motivo pelo qual afirma Moreira Neto (1988, p. humanos de primeira geração, os chamados direitos
152) que, “em termos de funcionalidade homeostática, individuais, consistem em direitos de liberdade, isto
a segurança pública é o conjunto de estruturas e funções é, direitos cujo exercício pelo cidadão requer que o
que deverão produzir atos e processos capazes de Estado e os concidadãos se abstenham de turbar. Em
afastar ou eliminar riscos contra a ordem pública.” outras palavras, o direito de expressão, de associação,

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 139


A sociedade real, por seu turno, pode dade, ainda que essa liberdade na realidade
ter maior ou menor segurança pública. Numa não seja, como de fato não é, absoluta. Ela é
sociedade real, a maior segurança pública relativa – é a liberdade possível – e se dá de
possível é aquela compatível com o equi- acordo com as condições socioeconômicas
líbrio dinâmico social, ou seja, adequada à de uma sociedade em estudo. Uma socieda-
convivência social estável.17 Não mais e não de está em ordem pública, em seus múltiplos
menos que isso18. Isso significa que, para se aspectos, quando a convivência social está
ter segurança pública, há que se buscar cons- em equilíbrio dinâmico com as condições
tantemente alcançar e preservar o equilíbrio socioeconômicas nela percebidas. Tal ordem
na sociedade real, ou seja, é a permanente pública não implica apenas sobrevivência da
perseguição à ordem pública. sociedade. É mais que sobrevivência: em
Para compreensão conjugada de segu- ordem pública, as relações entre os membros
rança e ordem públicas, numa dimensão rea- da sociedade são marcadas pelo exercício
lista, faz-se preciso um exame aprofundado de direitos básicos, qualquer que seja o
dos seus significados, o que é possível a nível socioeconômico da sociedade.
partir da “ordem” no sistema social. Vários são os indicadores que compõem
Sistema em ordem significa sistema com e definem as condições socioeconômicas
disposição de componentes, ou, mais preci- de uma sociedade. Entre estes indicadores,
samente, da relação entre estes, conveniente pode-se citar “economia”, “educação”,
à consecução de um determinado fim. No “cultura”, “comércio e serviços”, “saúde”,
sistema social, ordem pública é a condição “participação e organização sociopolítica”
necessária à convivência social com liber- e “transportes”. Tais indicadores têm a
ver com o conjunto de direitos inerentes à
de manifestação do pensamento, o direito ao devido natureza humana que não pode ser igno-
processo, todos eles se realizariam pelo exercício da
liberdade, requerendo, se assim se pode falar, garan- rado sem atentar contra esta. Quanto mais
tias negativas, ou seja, a segurança de que nenhuma aqueles indicadores estiverem próximos do
instituição ou indivíduo irá perturbar o seu gozo.” ideal, mais livres são as relações experimen-
17
A pretensão de se impor um nível de segurança
tadas pelos membros da sociedade.
pública acima daquele compatível com o quadro social
específico pode até se concretizar na aparência. Mas, na A criminalidade também é um indica-
verdade, essa segurança pública será fictícia na medida dor. Sob o ponto de vista da criminalidade,
em que exigirá que o Estado faça uso de instrumentos diz-se que uma sociedade, dada a trans-
que comprometam a segurança jurídica do indivíduo
em face do exercício exacerbado do poder.
versalidade e complementaridade, está em
18
Para Damásio de Jesus (2003, p. 69): “não conce- ordem pública quando ela, a criminalidade, é
bemos a tese da extinção absoluta da prática dos delitos. compatível e está em harmonia com as con-
Onde existirem seres humanos, aí estará presente o Di- dições socioeconômicas gerais da sociedade.
reito e, consectariamente, a violação a ele, materializada,
dentre outras formas, no cometimento de crimes. O que A qualidade das relações entre os membros
entendemos suportável é uma criminalidade mínima, da sociedade é considerada adequada ou
que não represente riscos à estrutura social.” Para Jorge apropriada quando a criminalidade alcança
da Silva (2003, p. 139): “O objetivo de qualquer política
pública para a área da segurança não é acabar com a
e é mantida naquele patamar de harmonia;
criminalidade, e sim situá-la num limite que não ame- na verdade, uma zona de estabilidade. É isso
ace a harmonia social e a própria ordem estabelecida. que configura “manutenção da ordem públi-
Há, pois, que buscar meios mais eficazes de conter a ca” sob o aspecto da criminalidade, e é o que
escalada do crime e da violência, e desenvolver formas
menos traumáticas de lidar com a população, sem o se denomina por segurança pública. Noutros
que, pretendendo combater a violência, a polícia acaba termos, o princípio básico de organização
contribuindo para aumentá-la, sobretudo pela revolta da segurança pública, isto é, o contexto em
que acarreta quando, selecionando pessoas “perigosas”
que ela se verifica efetivamente, é a ma-
em função do nível social, da cor da pela, do local de
moradia, ou por qualquer outro esteriótipo, as fere nutenção da criminalidade numa zona de
naquilo que têm de mais nobre: a sua dignidade.” estabilidade que se define por processo (fluxo)

140 Revista de Informação Legislativa


contínuo de harmonização oscilante com as Segurança pública decorre da conjuga-
condições socioeconômicas de determinada ção do indicador de criminalidade com a
sociedade. A zona de estabilidade é identifi- atuação estatal por mecanismos de realimen-
cada pela sociologia, ciência que estuda as tação. Para uma satisfatória compreensão, a
condições sociais de formação e de exercí- questão se põe numa sociedade hipotética
cio da liberdade. Por meio de princípios e da seguinte maneira: considere-se um ins-
métodos científicos, investiga a convivência tante inicial em que a criminalidade esteja
social, tomando como parâmetro o concur- num ponto elevado e a atuação estatal, ao
so de condições, fatores e produtos da vida contrário, seja mínima. À medida que o
social. A sociologia reconhece, partindo Estado atua respondendo à criminalidade,
do conhecimento dos indicadores socioe- os valores desta reduzem até alcançar zona
conômicos de uma sociedade, o patamar na qual a criminalidade esteja de acordo
de equilíbrio – instável – no qual a vida com as condições socioeconômicas daquela
social acontece de forma mais ou menos sociedade. Aquela zona recebe a denomi-
regular, delimitando uma faixa de valores nação zona de estabilidade20. A partir desse
máximos e mínimos para além dos quais a instante de entrada da criminalidade na
convivência social corre riscos. Para tanto, zona de estabilidade, qual seja, no patamar
avalia as condições de existência e de ma- de harmonia com as condições socioeco-
nutenção social, bem como a organização nômicas da sociedade, o Estado continua
e a estrutura dos quadros sociais. e deve continuar agindo para manter o
Antes de dar continuidade à compre- equilíbrio dinâmico por meio de mecanis-
ensão de segurança pública, é necessário ex- mos internos de realimentação que nada mais
plicar o que se entende por criminalidade. são que respostas de todo o sistema de
Na raiz grega, crime (verbo χρινω) significa segurança pública às informações externas
separar, triar, escolher, depois, discernir, dis- – variações nos índices dos indicadores
tinguir, julgar, de onde levar a julgamento, socioeconômicos – no sentido de manter a
sinônimo de acusar (DELMAS-MARTY, criminalidade na zona de estabilidade. Como
2004, p. 75). “Criminal” designa um com- a criminalidade ininterrupta e invaria-
portamento de afastamento, de separação velmente oscila, diz-se haver instabilidade
com respeito às normas (Cf. DELMAS- mantida na estabilidade.
MARTY, 2004, p. 75-76), donde criminalida-
de é aquele comportamento, tomado como de liberdade em relação ao espaço controlado. Entre-
gênero, reiterado no tempo.19 tanto, no que diz respeito ao desvio à normatividade,
o termo que utilizamos é infração, em vez de crime,
19
Delmas-Marty (2004, p. 77-78): “Sobre as noções precisamente porque esta palavra, mais neutra, não
de infração e de desvio, notaremos que foram consi- impõe o sistema penal como única resposta.
deradas as críticas da corrente abolicionista a respeito Não obstante estas considerações, assim como a
do termo ‘crime’, que ‘tudo falseia e nos condena a renomada autora continua a fazer uso da expressão
andar em círculo’, porque impõe, de certa forma, um “política criminal”, utiliza-se o termo “criminalidade”
estereótipo de política criminal – a política penal” no presente trabalho, seja também por sua utilização
(L. Hulsman e J. Bernat de Celis, in Peines perdues, já corriqueira, seja pelo seu reconhecimento internacional,
citado, Le Centurion, 1982). Por outro lado, pareceu ainda que seja preciso, como acentuado por Delmas-
necessário marcar – por dois termos distintos – a Marty (2004, p. 75), sublinhar “as evidentes fraquezas
diferença entre as diferentes situações que a corrente de uma fórmula ao mesmo tempo cortada da linhagem
abolicionista confunde pelo uso do termo único “si- ingênua (na qual, primeiramente, é abordado o crime
tuação-problema”, já que o desvio da normatividade de sangue, homicídio), ampliada em relação à técnica
que definimos como infração é uma noção que pode (que opõe o ‘crime’ ao ‘delito’ e à ‘contravenção’, art. 1o
ser delimitada de forma precisa, enquanto o desvio CP) já citado, e flutuante de um autor a outro.”
da normalidade, que nomeamos desvio, implica um 20
A zona de estabilidade varia de sociedade a
estado contínuo, difuso, mal delimitado. De onde vem sociedade e pode variar de local a local dentro de
a importância, em nossa opinião, de uma distinção um mesmo Estado. Isso naturalmente decorre das
que comanda a forma pela qual se delimita o espaço condições socioeconômicas.

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 141


No entanto, o significado de ordem pública
vai além dessa “ordem” oposta a desordem,
já que é uma visão instantânea, pontual, de
um processo histórico que é a ordem pública.
Se, por um lado, a segurança pública como
um todo não pode ser entendida a partir
do conhecimento da ordem pública ponto a
ponto, por outro, a ordem pública em deter-
minado momento pode ser adequadamente
avaliada – isto é, com boa aproximação
Como se vê no gráfico, a ordem pública – se for levado em consideração todo o
(conjugação da criminalidade com a atua- contexto da segurança pública. A avaliação
ção estatal) pode ser observada como um adequada possibilita que o Estado acione
processo contínuo, isto é, o desenvolvimento mecanismos emergenciais de modo que a
temporal daquela conjugação em busca da criminalidade retorne ao interior da zona
manutenção do equilíbrio dinâmico, ou de estabilidade.
pode ser pontuada, determinada em certo Criminalidade evidentemente não é
momento (Tx) da vida da sociedade. São um conceito meramente quantitativo. A
duas percepções distintas. No primeiro “qualidade” dos crimes pesa sobre a crimi-
caso, à segurança pública importa perceber nalidade. Hipoteticamente, em regra, uma
a convivência social e a ordem pública, de sociedade com nenhum homicídio, mas
forma que a criminalidade flutue na zona com elevado número de furtos, é uma so-
de estabilidade. É, portanto, uma visão ciedade cuja criminalidade é “menor” que
contextualizada. a de outra na qual há um número conside-
A visão pontual, por sua vez, é uma rável de homicídios e poucos furtos, ainda
percepção analítica ou reducionista, que que a soma destes dois últimos seja inferior
permite conhecer, desconsiderada a variá- ao total de furtos observados na primeira
vel temporal, se há extrapolação dos limites sociedade. Isso porque o homicídio repre-
da zona de estabilidade, sem que se tenha, senta risco maior para a convivência social.
no entanto, um conhecimento da segurança Portanto, quando se fala em manter a ordem
pública como um todo, visto que não é uma pública, ou seja, manter a criminalidade em
abordagem contextual. patamar de equilíbrio com as condições
Essa visão pontual pode ser contextu- socioeconômicas de uma sociedade, leva-se
alizada se a ela forem atrelados conheci- em conta não apenas aspectos quantitativos,
mentos do todo aplicáveis à parte. Essa mas também qualitativos, de forma que a
visão reducionista é inquestionavelmente criminalidade é uma variável ponderável, isto
útil e às vezes necessária, mas não pode ser é, a sua formação decorre da conjunção de
interpretada como explicação completa da elementos com pesos distintos.
segurança pública em estudo. É uma descri- A manutenção da ordem pública na zona
ção limitada e aproximada da realidade, de estabilidade implica que a atuação estatal
embora, repita-se, útil, porque interessa não pode ultrapassar os limites de tolerância
neste caso saber se a convivência social e daquela zona tanto no limite superior quan-
a criminalidade estão além das fronteiras to no inferior, salvo, como se verá, para a
da zona de estabilidade e colocam-se nas configuração de evoluções quantitativas
zonas de desordem. A dimensão pontual, e qualitativas da segurança pública (buscar
portanto, destaca “ordem” como oposto a essa evolução é obrigação do Estado). Se
desordem e está indubitavelmente inserida rompido o primeiro – o limite superior –, a
no entendimento do que seja ordem pública. atuação estatal implica risco de insegurança

142 Revista de Informação Legislativa


jurídica aos membros da sociedade, o que queadas ações excessivas, bem como não
pode provocar elevação da criminalidade, são admitidas a inércia e omissões. Ao agir
desta feita proporcionada pelo próprio costumeiramente numa ou noutra ponta,
Estado. Se isso ocorre, o uso legítimo da estará configurado o Estado pusilânime,
força pelo Estado é automaticamente con- incapaz de estabelecer políticas de segu-
vertido em ilegítimo, vez que não mais rança pública autênticas e de fazer uso de
serve à manutenção da ordem pública. Nessa instrumentos que efetivamente operem a
circunstância, embora possa haver redução manutenção da ordem pública.
de algum tipo de crime pela ação excessiva Não há que se pretender uma ordem
do Estado, crescem, em tese, os crimes para pública perfeita, qual seja, livre de criminali-
tanto praticados por agentes estatais, sendo dade. Tem-se que a segurança pública jamais
estes mais preocupantes porque têm maior será absoluta, e não apenas porque o Estado
peso, elevando, portanto, feitas as contas, não pode ultrapassar o limite superior da
a criminalidade. Têm maior peso não ape- zona de estabilidade social, já que isso se
nas porque são manifestação do Estado converte em criminalidade agravada, mas
absoluto, expondo a risco a liberdade e o ainda porque nenhum Estado é capaz de
Estado democrático de direito, liberal, mas aniquilar toda e qualquer prática criminosa,
ainda porque não há como estabelecer um e porque nem todos os riscos são previsí-
limite para a ação estatal desarrazoada, veis, mesmo que se projete uma sociedade
especialmente porque ocorre sob fachada utópica na qual indicadores socioeconômi-
da legalidade. Não se admite esse tipo de cos sejam absolutamente ótimos.
ação nem mesmo quando algum setor da Os mecanismos internos de realimentação
sociedade seja claramente beneficiado, já são de duas ordens. Uma primeira diz
que um outro setor sempre sofrerá os preju- respeito ao processo de variação oscilante
ízos decorrentes da arbitrariedade. Enfim, o da criminalidade na zona de estabilidade. A
desequilíbrio causado pelo próprio Estado uma tendência de aumento da criminali-
estabelece um dilema para o sistema de dade, há uma reação do Estado no sentido
segurança pública na medida em que cabe ao de intensificar a sua atuação. De igual
Estado formular e implementar políticas de maneira, quando há uma diminuição da
segurança pública, que, como visto, visam criminalidade, por uma atuação excessiva
a manutenção da ordem pública, ou seja, do Estado, ocorre uma reação no sentido de
equilibrar a criminalidade na zona de esta- reduzir a intervenção estatal. A atuação do
bilidade. Por isso, o Estado deve estabelecer Estado, tanto num quanto no outro sentido,
na sua estrutura mecanismos rigorosos de também pode dar-se de forma preventiva.
prevenção e reação às ações criminosas de A segunda ordem de mecanismos internos
seus agentes que, dada a gravidade dessas de realimentação dá-se porque as relações
condutas, merecem tratamento diferencia- entre os membros da sociedade, bem como
do se comparado ao indivíduo comum, já a própria sociedade como um todo, não
que agem, não como cidadãos, mas como apenas se automantém, auto-organizam,
representantes do Estado.21 autopreservam, mas ainda evoluem. Ocorre
Obviamente, uma atuação estatal que a zona de estabilidade não é absoluta
aquém do nível inferior da zona de es- ou definitiva e poderá tender, de tem-
tabilidade também ocasiona elevação da pos em tempos, a evoluir no sentido da
criminalidade, pondo a convivência social melhoria – ou da piora – das condições
em risco. Ou seja, ao Estado não são fran- socioeconômicas. Nos chamados pontos de
21
Política de segurança pública serve, como se
mutação, saltos quantitativos e qualitativos
verá, de contenção à atividade arbitrária e criminosa exigem uma nova forma de funcionamento
por parte do próprio Estado. da segurança pública, de maneira que a

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 143


criminalidade se ajuste ao novo patamar à ordem jurídica, podendo a política de se-
da zona de estabilidade das condições gurança pública sofrer influências e refletir
socioeconômicas. uma ideologia.
Certo é que ordem pública não pode ser
confundida com ordem jurídica, seja porque
nem toda ordem jurídica se identifica com
ordem pública, seja porque ordem jurídica é
por vezes imprecisa, lacunosa e até mesmo
contraditória, ainda que doutrinariamente
contra isso se levantem argumentos, prin-
cipalmente o de que ordem jurídica deva
ser entendida como mais que ordem legal.
Por intermédio da política de segurança Não bastasse isso, o caráter processual
pública, são viabilizados mecanismos in- oscilante da manutenção da ordem pública,
ternos de realimentação. Ou seja, mediante ou seja, da segurança pública, impossibilita,
política de segurança pública, são criados por inaplicabilidade de um determinismo,
meios para que a criminalidade mantenha- que ordem pública resulte de previsão legal.
se na zona de estabilidade, bem como para Como visto, a manutenção da ordem pública
que a sociedade dê saltos de qualidade e se dá numa zona de estabilidade que não é de-
quantidade em sua segurança pública. O Es- terminada juridicamente, mas identificada
tado, por seus órgãos, e a sociedade, como sociologicamente. A política de manutenção
um todo, compõem o sistema de segurança da ordem pública e a sua execução é que são
pública. Por isso, a política de segurança pú- juridicizáveis.
blica não é um instrumento externo. O sis-
Segurança cidadã e ordem
tema de segurança pública – o complexo das
relações de toda ordem que diga respeito à A percepção reducionista limita ordem
manutenção da ordem pública sob o ponto pública à concepção de oposição à desordem.
de vista da criminalidade – é autolimitador, Nesse caso, além da segurança pública, toma-
autorregulador e autoperpetuador. Mas da como manutenção da ordem, faz-se pre-
esta não é uma visão de quem está fora do ciso conceber a incolumidade das pessoas e
sistema, mas sim de um observador posto bens, normalmente denominada segurança
nele, agindo sobre o sistema e sofrendo as cidadã. A distinção entre segurança pública e
influências dele. segurança cidadã se dá nessa dimensão redu-
Ordem pública, como aqui concebida, cionista. Lançando-se mão de ordem pública
e, consequentemente, segurança pública, na dimensão ampla ou contextualizada,
independem de definições constitucionais aquela distinção inexiste, de modo que a
e não estão atreladas a qualquer corrente segurança cidadã está incluída na segurança
ideológica. A manutenção de uma “or- pública. A alteração de percepção provoca e
dem”, se definida constitucionalmente de explica desencontros doutrinários acerca de
forma que não identificada com o conceito segurança pública e segurança cidadã. Cudolà
de ordem pública, significa segurança que (2007, p. 50-51) ressalta que, para alguns
não se pode afirmar segurança pública pro- autores, as noções de segurança pública e
priamente dita, ainda que a ela se dê essa segurança cidadã seriam praticamente equi-
denominação. Correta seria outra desig- valentes. Ocorre que a noção de segurança
nação tal como “segurança coletiva”. Por pública é mais ampla que de segurança cida-
outro lado, a prestação da segurança pública dã, o que corresponde a dizer que dentro
deve dar-se, esta sim, de acordo com os da segurança pública estaria compreendida
princípios constitucionais e ser obediente não somente a segurança cidadã, mas ainda a
144 Revista de Informação Legislativa
proteção civil e a vigilância da paz pública. precisão – normal nem sempre significa ser
Ilustrando o posicionamento de equivalên- bom, desejável, adequado ou razoável, não
cia entre as duas noções, Cudolà menciona havendo, ademais, parâmetro que estabeleça
Belloso, que atesta serem segurança pública a transposição à anormalidade. De positivo
e segurança cidadã expressões sinônimas, nesta concepção, diferentemente de ordem
empregadas com o mesmo sentido na Cons- em oposição a desordem, tem-se a ideia de
tituição espanhola, havendo apenas uma processo e de continuidade, de modo que
ligeira diferença de matiz, já que segurança “normalidade” está sempre amparada em
cidadã parece referir mais diretamente à alguma referência vivenciada. Aquilo que
segurança de cada um dos cidadãos, evi- fuja a essa referência é anormal.
tando a ideia mais abstrata que às vezes se A concepção de ordem pública como paz
tem de “público”. No outro sentido, isto é, é ainda mais imprecisa, vez que desampa-
o de que a noção de segurança pública é mais rada de qualquer referência. Uma socieda-
ampla, Cudolà cita Barcelona Llop a quem, de em paz não implica ser necessariamente
entende, “convém desgarrar o conceito de uma sociedade livre na medida em que
segurança cidadã do de segurança pública. pode ser fruto de imposição. Uma socieda-
O segundo designa […] um âmbito material de em paz em que seus membros não usu-
que não coincide sempre com a atividade fruem de seus direitos básicos pode ser uma
das Forças e Corpos de Segurança, posto sociedade segura, mas definitivamente nela
que nele se incluem questões externas a ela” não há segurança pública na medida em que
(CUDOLÀ, 2007, p. 50-51).22 não se proporciona a liberdade.
Quando a ordem pública é vista como Identificar ordem pública com oposição
a harmonização com as condições socio- a desordem, normalidade ou paz gera
econômicas, a sua manutenção inclui a frustração na medida em que a manutenção
proteção de bens e pessoas. É impossível da ordem pública não acontece, já que desor-
haver segurança cidadã sem que haja ordem dem, normalidade e paz não são conceitos
pública, bem como é inconcebível imaginar precisos. Com isso, segurança pública não
ordem pública sem que estejam respeitados se firma. Considerar que segurança pública
bens e pessoas da sociedade. ideal seria aquela em que os ilícitos houves-
A concepção de ordem pública oposta a sem desaparecido também é insatisfatório.
“desordem” sofre dos mesmos problemas Naquele quadro em que os ilícitos não mais
quando se toma ordem pública como “nor- existam comporia a segurança pública per-
malidade”. Enquanto os limites da “ordem” feita. Mas, postos os limites da realidade, a
são identificáveis pela zona de estabilidade, segurança pública “ideal” é aquela na qual a
ainda que não precisamente, o mesmo não criminalidade é mantida na zona de estabili-
se diz a respeito de “normalidade”, dado o dade. Como sempre, haverá criminalidade,
seu caráter de extrema subjetividade e im- qualquer que seja a sociedade; a segurança
pública ideal jamais será perfeita, a não ser
22
No original: “conviene desgajar el concepto
de seguridad ciudadana del de seguridad pública.
que como tal se tome a segurança pública
El segundo designa [...] un ámbito material que no na qual a criminalidade seja mantida no
coincide siempre con la actividad de las Fuerzas y patamar da zona de estabilidade.
Cuerpos de Seguridad puesto que en él se incluyen Realmente, a ideia de ordem pública
cuestiones ajenas a ella.”
E complementa: “[...] Dicho de otra manera: si la como situação pacífica, isto é, isenta de
seguridad pública desborda lo policial y la seguridad ameaça de violência ou de sublevação que
ciudadana se ciñe a lo policial, la segunda estará sin possa produzir a prática de crimes, não
duda inserta en la primera, pero la primera desbor-
prevalece porque, se toda sociedade tem
dará los limites de la segunda para extenderse hacia
otros ámbitos no propiamente policiales” (CUDOLÀ, crimes, então não haveria sociedade em
2007, p. 50-51). ordem pública. E, não havendo sociedade em

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 145


ordem pública, não haveria também que se índices de criminalidade, resultando a
falar em segurança pública. De fato, para que manutenção da ordem pública num processo
algo seja mantido – no caso, a ordem pública de perpetuação de insegurança pública. Ou
–, é preciso que esse algo exista, afinal, não seja, neste caso, para ordem pública igual a
se mantém o inexistente. ordem jurídica, depararíamos com a falta de
Ao se falar em segurança pública, não se parâmetros práticos para uma ação con-
pode postular o afastamento de todo perigo creta do Estado que garantisse seguranças
ou de todo mal que possa afetar a ordem pú- jurídica e material na forma de liberdade
blica. Segurança pública implica manutenção possível aos indivíduos.
da ordem, e pode-se afirmar que ela existe
mesmo quando nem todo perigo ou mal 3. Conclusão
tenha sido afastado, desde que este perigo
ou mal, compondo o que denomina crimi- Conclui-se que persiste a escassez de
nalidade, esteja na zona de estabilidade. estudos sobre ordem pública observada há
Não se concebe que ordem pública seja duas décadas. O exame das poucas concep-
uma noção que só possa ser nacional ções difundidas permite dizer que não há
porque varia no tempo e no espaço, de consenso doutrinário a respeito.
país para país, e até mesmo em um país Concebendo segurança pública como
de uma época para outra. O conceito de manutenção da ordem pública, tem-se que
ordem pública é único e não varia no tempo os entendimentos acerca de ordem pública
ou no espaço. Ordem pública tem o mesmo postos na doutrina não são compatíveis
significado em qualquer país, em qualquer com a abordagem sistêmica proposta. Por
época. O que varia são as condições socio- meio desta, postula-se preservar a convi-
econômicas que definem a zona de estabili- vência social livre, com fixação de limites
dade, mas ordem pública, conceitualmente para a atuação estatal na repressão da
falando, é uma só. criminalidade.
Finalmente, há que se reafirmar que A noção precisa do que seja ordem públi-
ordem pública não pode ser confundida ca se faz necessária na medida em que per-
com ordem jurídica e nem é esta que define mite políticas de segurança pública atentas
a ordem pública em um país. Fossem ordem aos efeitos da extensão e intensidade das
pública e ordem jurídica a mesma coisa, por ações delas decorrentes, de forma a não
um lado teríamos que a noção de ordem comprometerem a liberdade de convivên-
pública seria uma só em qualquer país, o cia social.
que seria positivo sob o ponto de vista
conceitual. Mas, por outro lado, teríamos
de enfrentar o absurdo de se ter segurança Referências
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Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 147


Interpretação conforme à Constituição
A lei fundamental como vetor hermenêutico

Julio de Melo Ribeiro

Sumário
Introdução. 1. Interpretação das leis e her-
menêutica. 1.1. Conceito de interpretação. 1.2. O
mito da lei clara. 1.3. A diferença entre texto e
norma. 1.4. Interpretação e aplicação do Direito.
1.5. Outro mito: o da única interpretação correta.
1.6. O papel da hermenêutica: racionalidade e
controlabilidade. 1.7. O método sistemático e a
constitucionalização do Direito. 2. Fundamentos
da interpretação conforme à Constituição. 2.1.
Espécie de interpretação sistemática ou técnica
de controle de constitucionalidade? 2.2. Outros
fundamentos da interpretação conforme. 3. Li-
mites da interpretação conforme à Constituição.
3.1. A letra da lei como duplo limite à interpreta-
ção conforme. 3.2. A vontade do legislador. 3.2.1.
Voluntas legis x Voluntas legislatoris. 3.3. Decisões
corretivas e modificativas. 4. Conclusão.

Introdução
Nos últimos anos, tem-se discutido
muito acerca do crescente ativismo judicial
do Supremo Tribunal Federal. A Suprema
Corte brasileira tem assumido papel de
destaque na vida política do país, sendo sua
a última palavra em questões importantes.
Fenômeno não tão perceptível, mas que
Julio de Melo Ribeiro é bacharel em Direito integra o mesmo processo de expansão
pela Universidade Federal de Sergipe (UFS) e
informal das competências do Supremo
especialista em Direito Constitucional pela Uni-
Tribunal Federal, é a maneira como se tem
versidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL).
Foi Procurador do Banco Central do Brasil e é lidado com a técnica da interpretação con-
Advogado da União. Atualmente ocupa o cargo forme à Constituição.
de assessor do Presidente do Tribunal Superior Desde suas origens americanas e ale-
Eleitoral. mãs, a interpretação conforme à Consti-
Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 149
tuição significa uma atitude de deferência a determinado objeto [...].” Nas lições clás-
ao Poder Legislativo. Isso porque se evita a sicas de Carlos Maximiliano (2002, p. 1):
declaração de inconstitucionalidade da lei, “As leis positivas são formuladas em
por existir uma interpretação compatível termos gerais; fixam regras, consoli-
com a Lei Fundamental. Esse respeito ao dam princípios, estabelecem normas,
trabalho do legislador se manifesta pela em linguagem clara e precisa, porém
estrita observância de dois limites: a letra ampla, sem descer a minúcias. É tare-
da lei e a vontade do legislador. Sucede que, fa primordial do executor a pesquisa
ao negligenciar esses limites (o da vontade da relação entre o texto abstrato e o
do legislador principalmente), o Supremo caso concreto, entre a norma jurídica
Tribunal Federal acaba, muitas vezes, por e o fato social, isto é, aplicar o Direi-
elastecer suas competências, em detrimento to. Para o conseguir, se faz mister
do Poder Legislativo. um trabalho preliminar: descobrir e
O presente estudo, surgido na ambiên- fixar o sentido verdadeiro da regra
cia do debate político e acadêmico sobre positiva; e, logo depois, o respectivo
o ativismo judicial, objetiva lançar olhos alcance, a sua extensão. Em resumo,
mais atentos sobre um poderoso – e pouco o executor extrai da norma tudo o
discutido – instrumento desse ativismo. Daí que na mesma se contém: é o que se
a necessidade de assentar, previamente, a chama interpretar, isto é, determinar
natureza jurídica da interpretação confor- o sentido e o alcance das expressões do
me à Constituição (espécie de interpretação Direito.”
sistemática ou técnica de decisão no con- Para Konrad Hesse (1992, p. 35),
trole de constitucionalidade?), bem como “El cometido de la interpretación es el
seus fundamentos. Para só então proceder de hallar el resultado constitucional-
à análise dos limites da interpretação con- mente ‘correcto’ a través de un pro-
forme à Constituição. cedimiento racional y controlable, el
fundamentar este resultado, de modo
1. Interpretação das leis e hermenêutica igualmente racional y controlable,
creando, de este modo, certeza y pre-
1.1. Conceito de interpretação
visibilidad jurídicas, y no, acaso, el de
Para bem se compreender o instituto la simple decisión por la decisión.”
da interpretação conforme à Constituição, Interpretar o Direito é, portanto, fixar
necessário observar, preliminarmente, al- o sentido e o alcance das normas jurídicas,
guns aspectos da atividade interpretativa. mediante um processo racional e controlá-
O primeiro deles, logicamente, é o próprio vel. Normas que se veiculam, geralmente,
conceito de interpretação. Em que consiste por leis escritas. Leis que, a seu turno,
o ato de interpretar? valem-se da linguagem para que suas
Segundo Paulo Bonavides (2007, p. prescrições sejam amplamente conhecidas
437), a interpretação é uma “[...] operação e respeitadas. Em síntese de Santi Romano
lógica, de caráter técnico mediante a qual se (apud BONAVIDES, 2007, p. 458), “[...] a
investiga o significado exato de uma norma interpretação do direito é operação difícil e
jurídica, nem sempre clara ou precisa.” Para complexa, que constitui objeto de uma sutil
Inocêncio Mártires Coelho (2007, p. 3), “se doutrina e de uma delicadíssima arte.”
o direito, como toda criação do homem,
é uma forma significativa, um substrato 1.2. O mito da lei clara
dotado de sentido, então, a tarefa do intér- Muito bem. A questão que agora se
prete, ao fim e ao cabo, será trazer à tona põe é a de saber se toda e qualquer norma
ou revelar o significado que se incorporou jurídica precisa ser interpretada. Em outras

150 Revista de Informação Legislativa


palavras, a lei clara demanda um processo ma. Para se concluir que não existe
hermenêutico para a fixação de seu sentido atrás de um texto claro uma intenção
e alcance? efetiva desnaturada por expressões
A resposta é afirmativa. Em primeiro impróprias, é necessário realizar
lugar, por mais minudente que seja a lei, prévio labor interpretativo.”
será ela formulada em termos gerais e abs- Segundo historia Carlos Maximiliano
tratos. Isso para que cumpra sua função de (2002, p. 27-28), a exegese em Roma não
regular uma multifacetada gama de fatos se limitava aos textos obscuros. Graças a
e relações sociais. E a linguagem geral e essa largueza de visão foi que o Digesto
abstrata, ainda que muito clara, sempre atravessou os séculos e regeu institutos que
suscitará controvérsia, mormente quanto a Papiniano jamais pudera prever. Só que
seu alcance. São palavras de Carlos Ayres passou a haver um abuso. Apelava-se em
Britto (2007, p. 57-58): demasia para o argumento de autoridade,
“Como de remansoso conhecimen- os pareceres dos doutores substituíam os
to, a lei em sentido material quer textos, as glosas tomavam o lugar da lei.
valer para todas as ações a que se Contra isso tudo, reagiu-se com a regra in
refere e por isso é que se adorna claris non fit interpretatio. Para os grandes
do atributo da generalidade. Quer males, os remédios violentos.
valer para todos os sujeitos a que se O brocardo de que a lei clara não neces-
destina e por esse motivo se confere sita de interpretação encontrou ressonância
a característica da impessoalidade. com o advento do Estado liberal. Com a
Quer valer para sempre (enquanto derrocada do absolutismo, a ascensão da
não for revogada ou formalmente liberdade como valor supremo e a pri-
mexida, lógico) e daí o seu traço de mazia do Poder Legislativo, porta-voz da
abstratividade. Ora, querendo-se vontade do povo (leia-se, da burguesia),
assim genérica, impessoal e abstra- a tarefa do juiz, que antes era a de repetir
ta – é dizer, querendo-se, de um só a vontade do soberano, passou a ser a de
cajadada, imperante para tudo, para cumprir, rigidamente, a lei emanada do
todos e para sempre, a lei não tem Poder Legislativo. “[...] O perfil neutro do
como fugir do discurso esquemático Estado Liberal visava à preservação de
ou clicherizador da realidade; que é um status quo social já estabelecido, o que
um discurso inescondivelmente sim- contribuía enormemente para a timidez
plista. Donde ter que pagar um preço judicial na interpretação da lei. Cabia ao
por esse discurso-rótulo, e esse preço juiz tão-somente aplicar a lei e fazer valer
que a lei paga por incidir num tipo de os contratos celebrados entre ‘iguais’.”
comunicação verbal reducionista é a (COLNAGO, 2007, p. 38)
sua exposição a interpretações polis- Esse panorama se alterou após o sur-
sêmicas e à contínua rebeldia da vida gimento do Estado social. Estado cuja
(cambiante por natureza).” concepção é a de atuar positivamente para
Ademais, como anota Carlos Maximi- reduzir as desigualdades sociais. Mais do
liano (2002, p. 30-31), para saber se uma lei que garantir uma igualdade formal, passou
é clara, ou seja, se seu sentido corresponde a incumbir ao Poder Público a adoção de
à letra do texto, medidas concretas, inspiradas na máxima
“[...] é força procurar conhecer o aristotélica de tratar igualmente os iguais
sentido, isto é, interpretar. A verifi- e desigualmente os desiguais. Daí o Poder
cação da clareza, portanto, ao invés Judiciário, nesse contexto, “[...] usufruir de
de dispensar a exegese, implica-a, uma maior liberdade interpretativa, dada
pressupõe o uso preliminar da mes- a utilização, pelos novos textos constitu-

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 151


cionais, de expressões de baixa densidade jurídico. [...].” Conforme ressalta Cláudio
semântica. [...].” (COLNAGO, 2007, p. 38) de Oliveira Santos Colnago (2007, p. 31),
Pois bem, a Constituição brasileira de “[...] o intérprete não é totalmente livre em
1988 e o ordenamento jurídico dela deri- sua atividade de formulação normativa:
vado se inserem nesse modelo de Estado normas e enunciados são duas realidades
Social. Atualmente, avulta a importância distintas, mas diretamente dependentes.
dos princípios e se utilizam cada vez mais [...].” É verdade que o intérprete vai além do
os conceitos jurídicos indeterminados. Mais texto para alcançar a norma. Nessa tarefa,
do que nunca se mostra verdadeira a asser- no entanto, não pode desbordar dos limites
tiva de que toda norma jurídica, incluída a positivos e negativos do texto.1
lei clara, demanda interpretação.
1.4. Interpretação e aplicação do Direito
1.3. A diferença entre texto e norma Se a norma é resultante do processo
Fixada a ideia de que toda norma jurí- interpretativo do texto, não se há de negar
dica é de ser interpretada, emerge, quase a importância do intérprete. Sem ele, o
que logicamente, a conclusão de que texto texto não se transforma em norma. Essa
e norma não se confundem. A segunda é função eminente do intérprete no processo
resultado da interpretação do primeiro. hermenêutico é decisiva não apenas para
Conforme ensina José Joaquim Gomes Ca- a obtenção do resultado da interpretação.
notilho (2003, p. 1202), disposição é parte de O próprio ponto de partida depende, em
um texto ainda não interpretado, enquanto larga escala, das pré-compreensões do
a norma consiste num texto (ou parte dele) hermeneuta. Nas palavras de Inocêncio
já interpretado. Na dicção de Humberto Mártires Coelho (2007, p. 2), “um dos mais
Ávila (2007, p. 30), ricos achados da hermenêutica filosófica
“Normas não são textos nem o conjun- contemporânea foi a descoberta de que
to deles, mas os sentidos construídos a compreensão do sentido de uma coisa,
a partir da interpretação sistemática de um acontecimento ou de uma situação
de textos normativos. Daí se afirmar qualquer pressupõe um pré-conhecimento
que os dispositivos se constituem no daquilo que se quer compreender. [...].”
objeto da interpretação; e as normas, Pré-conhecimento, este, determinado pela
no seu resultado. O importante é que própria personalidade do intérprete, por
não existe correspondência entre nor- sua história e experiências de vida. Conti-
ma e dispositivo, no sentido de que nua o citado autor:
sempre que houver um dispositivo “Pois bem, se observarmos todos
haverá uma norma, ou sempre que esses ‘conselhos’ também no ensino
houver uma norma deverá haver do direito constitucional, podere-
um dispositivo que lhe sirva de su- mos constatar, desde logo, que a
porte.” sua compreensão, embora não de-
Ocorre que, conquanto texto e norma terminada, será inevitavelmente con-
não se igualem, um não se desliga do dicionada por fatores aparentemente
outro, pelo menos no Direito de tradição aleatórios, que dirigem e modelam
romano-germânica. Nas palavras de Lenio a nossa visão inicial sobre a matéria,
Luiz Streck (2007, p. 318), “[...] embora a o mesmo valendo, obviamente, para
norma seja sempre o produto da atribuição a compreensão do direito, em geral,
de sentido a um texto, isto não significa 1
Como se verá adiante, a letra da lei, ao tempo
que o intérprete – nem mesmo o Supre- em que funciona como ponto de partida (e não como
mo Tribunal Federal – detenha o poder ponto de chegada) do processo hermenêutico, limita
de atribuir qualquer sentido a um texto o campo de atuação do intérprete.

152 Revista de Informação Legislativa


enquanto instrumento ordenador de Como se vê, a interpretação ocorre no
situações existenciais que, de alguma bojo do processo de aplicação do Direito.
forma, já foram vivenciadas por nós e, É sua etapa preliminar. Mais do que isso:
precisamente por isso, guiarão nossos não tem razão de ser senão dentro desse
passos na caminhada da reflexão.” processo. O juiz, antes de (e para) fixar a
(COELHO, 2007, p. 4) norma de decisão numa lide, interpreta o
Além de suas pré-compreensões, outros Direito. O administrador público, antes de
fatores condicionam a atividade do intér- (e para) executar um comando normativo,
prete. O processo hermenêutico opera sem- procede à sua interpretação. O particular,
pre dentro de um contexto jurídico, social, antes de (e para) cumprir a lei, busca seu
cultural e econômico.2 Daí haver, até com sentido e alcance.
certa (e, às vezes, demasiada) frequência, “Interpretação e aplicação, assim, se
alteração no sentido das normas, sem modi- confundiriam, na medida em que não
ficação do texto.3 É que as relações fáticas e é possível dissociar, temporalmente,
as peculiaridades do caso concreto, sempre a compreensão e interpretação de
cambiantes, predispõem – não de forma um texto com a sua aplicação, ainda
absoluta, esclareça-se – o convencimento que o intérprete não esteja a operar
do hermeneuta. Segundo Felice Battaglia com um fato concreto, como observa
(apud BONAVIDES, 2007, p. 438), “[...] o com agudeza Lenio Streck: ‘Mesmo
momento da interpretação vincula a norma quando o Tribunal realiza o controle
geral às conexões concretas, conduz do abstrato de constitucionalidade, terá
abstrato ao concreto, insere a realidade no em vista o campo de aplicação da-
esquema.” Para Inocêncio Mártires Coelho quela norma’.” (ANDRADE, 2003,
(2007, p. 23), “[...] pode-se dizer que as situ- p. 104).
ações da vida são constitutivas do significa- Daí as palavras de Hans Kelsen (2006,
do das regras de direito, porque o sentido p. 387), para quem
e o alcance dos enunciados normativos só “[...] A interpretação é, portanto, uma
se revelam, em plenitude, no momento da operação mental que acompanha o
sua aplicação aos casos concretos.” processo da aplicação do Direito no
seu progredir de um escalão supe-
2
Conforme relata Marcelo Neves (2001, p. 360- rior para um escalão inferior. [...] na
361), a Teoria Jurídica Estruturante de Friedrich Müller hipótese da interpretação da lei, deve
concebe a norma como uma implicação recíproca entre
o programa e o âmbito normativos, sendo este último o
responder-se à questão de saber qual
“conjunto dos dados reais normativamente relevantes o conteúdo que se há de dar à norma
para a concretização individual.” individual de uma sentença judicial
3
Essa alteração de sentido da norma, sem modifi-
cação do texto, também ocorre com a Constituição. É o uma mudança da situação. Se o sentido de uma propo-
que se chama de mutação constitucional. Ela certamen- sição normativa não pode mais ser realizado, a revisão
te cumpre um importante papel de atualização da Lei constitucional afigura-se inevitável. Do contrário, ter-
Fundamental, de adaptação da norma constitucional se-ia a supressão da tensão entre norma e realidade
à nova realidade fática. É preciso, no entanto, atentar com a supressão do próprio direito. Uma interpretação
para que a realidade fática não acabe por aniquilar a construtiva é sempre possível e necessária dentro
força normativa da Constituição. Assim adverte Kon- desses limites. A dinâmica existente na interpretação
rad Hesse (1991, p. 23): “Em outras palavras, uma mu- construtiva constitui condição fundamental da força
dança das relações fáticas pode – ou deve – provocar normativa da Constituição e, por conseguinte, de sua
mudanças na interpretação da Constituição. Ao mesmo estabilidade. Caso ela venha a faltar, tornar-se-á ine-
tempo, o sentido da proposição jurídica estabelece o vitável, cedo ou tarde, a ruptura da situação jurídica
limite da interpretação e, por conseguinte, o limite de vigente.” Como se analisará mais à frente, a viagem
qualquer mutação normativa. A finalidade (Telos) de do intérprete para além do texto não pode ignorar os
uma proposição constitucional e sua nítida vontade limites postos pela letra da lei, sob pena de se retirar da
normativa não devem ser sacrificadas em virtude de própria lei (e da Constituição) sua força normativa.

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 153


ou de uma resolução administrativa, mesma interpretação cognoscitiva.
norma essa a deduzir da norma geral [...].”
da lei na sua aplicação a um caso Dito de outro modo, uma lei e, com mais
concreto. [...].” razão, o texto constitucional não possuem
Cabe, então, o seguinte questionamen- única interpretação. Carlos Maximiliano
to: essa operação mental, que caminha da (2002, p. 12) parece divergir dessa assertiva,
norma mais genérica até o mandamento in- ao falar que o trabalho do intérprete tem
dividualizado do caso concreto, comporta sempre cunho científico e que “[...] procura
mais de um resultado correto? Em outras reconhecer a norma em sua verdade, a fim
palavras, é possível dizer que a lei tem uma de aplicá-la, com acerto, à vida real.” Se-
única e verdadeira interpretação? gundo ele, não compete ao intérprete “[...]
apenas procurar atrás das palavras os pen-
1.5. Outro mito: o da única samentos possíveis, mas também entre os
interpretação correta pensamentos possíveis o único apropriado,
É o próprio Hans Kelsen quem responde correto, jurídico” (MAXIMILIANO, 2002, p.
à questão. Segundo ele, o ato de aplicação 13). Pois bem, é induvidoso que compete ao
do Direito nem sempre é determinado. Às intérprete/aplicador do Direito, na resolu-
vezes, a norma superior é intencionalmente ção do caso concreto, apontar uma única
genérica, para possibilitar ao aplicador do solução. Do contrário, permaneceria sem
Direito a escolha de uma solução dentro resposta a questão concreta sob análise. O
daquele quadro normativo. Outras vezes, que defende Hans Kelsen é que essa única
essa indeterminação não é intencional. solução é escolhida (ato de vontade) pelo
Ocorre quando o sentido da norma não é intérprete entre as possibilidades possíveis
unívoco (KELSEN, 2006, p. 388-389). Assim, (ato de conhecimento), não havendo uma
frequentemente se colocam à disposição do resposta correta, apropriada, que se possa
aplicador do Direito várias possibilidades encontrar cientificamente. No dizer de
interpretativas. Daí haver concluído o juris- Marcelo Neves (2001, p. 366),
ta da Escola de Viena que “[...] o resultado “[...] na interpretação jurídica não
de uma interpretação jurídica somente pode se trata de extrair arbitrariamente
ser a fixação da moldura que representa o de uma infinidade de sentidos dos
Direito a interpretar e, conseqüentemente, textos normativos a decisão concre-
o conhecimento das várias possibilidades tizadora, nos termos de um contex-
que dentro desta moldura existem. [...]” tualismo decisionista. Mas também
(KELSEN, 2006, p. 390). Em maior ou menor é inaceitável a concepção ilusória de
amplitude, o que se tem é uma moldura que só há uma solução correta para
que comporta algumas soluções para o cada caso, conforme os critérios de
caso concreto. Moldura que se determina um juiz hipotético racionalmente
por um ato de conhecimento e solução que justo. A possibilidade de mais de
se identifica mediante um ato de vontade. uma decisão justificável à luz dos
Ainda conforme Kelsen (2006, p. 394), princípios e regras constitucionais
“[...] na aplicação do Direito por um parece-nos evidente. O problema está
órgão jurídico, a interpretação cog- exatamente em delimitar as fronteiras
noscitiva (obtida por uma operação entre as interpretações justificáveis e
de conhecimento) do Direito a aplicar as que não são ‘atribuíveis’ aos textos
combina-se com um ato de vontade constitucionais e legais no Estado
em que o órgão aplicador do Direito Democrático de Direito. [...].”
efetua uma escolha entre as possibi- Enfim, assim como o pensamento de
lidades reveladas através daquela que não se interpreta a lei clara, a ideia

154 Revista de Informação Legislativa


de uma única interpretação correta não que se destina. A interpretação lógica, a
passa de um mito. De ordinário, todo texto seu turno, segundo Paulo Bonavides (2007,
jurídico suscita, em maior ou menor grau, p. 442), tem prolongamentos históricos e
controvérsia quanto a seu sentido e alcance. teleológicos. Por fim, o método sistemático
Controvérsia para a qual não existe uma encara a lei dentro do sistema jurídico, de
resposta cientificamente verdadeira. Pode- maneira a que o sentido de uma norma
se certificar, no máximo, que normas não somente se alcance pela análise de todo
se contêm num texto (e mesmo essa certeza o ordenamento. Atualmente, e devido às
não é absoluta). especificidades da interpretação constitu-
cional, utilizam-se também outros métodos,
1.6. O papel da hermenêutica: como o tópico-problemático, o hermenêu-
racionalidade e controlabilidade tico-concretizador, o científico-espiritual e
Conforme se afirmou acima, interpretar o normativo-estruturante. Isso sem falar
o Direito é fixar o sentido e o alcance das nos cânones hermenêuticos identificados
normas jurídicas, mediante um processo pela doutrina para balizar a interpretação
racional e controlável. Sucede que, como constitucional (postulados da unidade da
também já se disse, não há como identificar, Constituição, da concordância prática, da
com rigor científico, a única interpretação correção funcional, da eficácia integrado-
correta de uma lei. Isso porque, ao ato de ra, da força normativa da Constituição,
conhecimento da moldura legal (várias da máxima efetividade e da interpretação
possibilidades interpretativas), se sucede conforme à Constituição).4
um ato de escolha voluntária do intérprete Todos esses métodos, que interagem e se
(interpretação a ser aplicada ao caso con- complementam, visam a conferir racionali-
creto). dade ao processo de interpretação/aplica-
Para que a interpretação da lei, no en- ção do Direito. Racionalidade, no entanto,
tanto, não descambe para um ato inteira- que não é absoluta, principalmente por
mente de vontade, arbitrário, é que existe a inexistir um método pelo qual se certifique
hermenêutica jurídica. Esta descobre e fixa a correção das escolhas metodológicas do
os princípios que regem a interpretação intérprete. No dizer de Inocêncio Mártires
(MAXIMILIANO, 2002, p. 1). Nas palavras Coelho (2007, p. 80),
de Inocêncio Mártires Coelho (2007, p. “Em suma, desprovidos de uma
6), “[...] a hermenêutica é uma atividade teoria que lhes dê sustentação e
racional, que se ocupa com processos consistência na seleção de métodos
total ou parcialmente irracionais – como e princípios que organizem os seus
o da aplicação do direito – da forma mais acessos à Constituição – num pano-
racional possível.” Daí a importância de se rama ‘desolador’, é a expressão de
estabelecerem padrões mínimos de racio- Raúl Canosa Usera –, os intérpretes
nalidade e controlabilidade da atividade e aplicadores acabam por escolher
interpretativa. esses instrumentos ao sabor de sen-
Com esse objetivo foi que surgiram os timentos e intuições, critérios que
métodos tradicionais de interpretação. En- talvez lhes pacifiquem a consciência,
quanto o método literal, gramatical, textual mas certamente nada nos dirão sobre
ou filológico propugna pela busca do senti- a racionalidade dessas opções.”
do e alcance da norma por meio da simples Daí esse autor afirmar a importância
leitura do texto, o método histórico conduz do princípio do devido processo legal e
o intérprete aos antecedentes da proposi- 4
Sobre os métodos tradicionais e modernos de
ção legislativa. Pelo método teleológico, interpretação, conferir Paulo Bonavides (2007) e Ino-
analisa-se o objetivo da lei, a finalidade a cêncio Mártires Coelho (2007).

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 155


das garantias judiciais (máxime o dever sistemático de interpretação visa a conferir
de fundamentação das decisões), pois são unidade a todo o sistema jurídico, é claro
instrumentos de otimização do debate pro- que a Constituição, que funda e sustenta
cessual e, consequentemente, de controle e todo o ordenamento, exerce papel de des-
legitimação de seus resultados (COELHO, taque. Por que o intérprete, na busca do
2007, p. 35-36). Já que não é possível al- sentido e alcance de uma norma, colheria
cançar uma racionalidade absoluta com subsídios em toda a ordem jurídica, menos
o simples manejo dos métodos criados em sua lei fundamental?
pela hermenêutica, que sejam ao menos A Constituição funciona, assim, não
controláveis os resultados do processo de somente como parâmetro para o controle
interpretação/aplicação do Direito. de validade das leis, mas também como
vetor hermenêutico.5 O conteúdo das nor-
1.7. O método sistemático e a mas constitucionais é, em muitos casos,
constitucionalização do Direito decisivo para que se ultime a interpretação
Um dos métodos de interpretação mais de um dispositivo legal. As leis hão de ser
utilizados na atualidade é o sistemático. interpretadas em consonância com a Cons-
Para se fixar uma adequada exegese da tituição. E essa consonância, nas palavras
norma, recorre-se às demais proposições de Konrad Hesse (1991, p. 50-51),
jurídicas da própria lei em que se encontra “[...] no sólo existe allí donde la
o dispositivo interpretando, bem como a ley, sin el recurso a puntos de vista
todas as normas do ordenamento jurídico. jurídico-constitucionales permite
É nisso que constitui o método sistemático una interpretación compatible con
de interpretação: o sentido e o alcance de la Constitución; puede tener igual-
uma norma são fixados com o auxílio das mente lugar cuando um contenido
demais normas do ordenamento jurídico; os ambíguo o indeterminado de la ley
textos hão de ser lidos e entendidos no seu resulta precisado gracias a los con-
conjunto; o conteúdo de uma norma influi, tenidos de la Constitución. Así pues,
às vezes decisivamente, na tarefa de precisar em el marco de la interpretación con-
o próprio conteúdo de outra norma jurídica. forme las normas constitucionales no
Segundo Paulo Bonavides (2007, p. 445), son solamente ‘normas-parámetro’
“A interpretação começa natural- (Prüfungsnormen) sino también ‘nor-
mente onde se concebe a norma mas de contenido’ (Sachnormen) em
como parte de um sistema – a ordem la determinación del contenido de las
jurídica, que compõe um todo ou uni- leyes ordinarias. [...].”
dade objetiva, única a emprestar-lhe Segundo Jorge Miranda (2002, p. 659),
o verdadeiro sentido, impossível de “Trata-se, antes de mais, de conceder
obter-se se a considerássemos insu- todo o relevo, dentro do elemento
lada, individualizada, fora, portanto, sistemático da interpretação, à refe-
do contexto das leis e das conexões rência à Constituição. Com efeito,
lógicas do sistema.”
A interpretação sistemática põe em rele-
5
Rui Medeiros (1999, p. 301) enumera quatro fun-
ções do apelo à Constituição em sede hermenêutica:
vo o postulado da unidade do ordenamento 1) função de apoio ou confirmação de um sentido da
jurídico. Unidade que tem na Constituição norma já sugerido pelos outros métodos de interpre-
o seu ponto de engate. Daí ser intuitivo tação; 2) função de escolha entre vários sentidos que
afirmar que as normas constitucionais, não se mostrem incompatíveis com a letra da lei; 3)
função de correção dos sentidos literais possíveis; 4)
mais do que quaisquer outras, deverão função de revisão da lei, dando à Constituição um peso
ser levadas em conta na interpretação do decisivo e superior aos outros elementos tradicionais
Direito infraconstitucional. Se o método de interpretação.

156 Revista de Informação Legislativa


cada norma legal não tem somente de legalidade encontra-se hoje superada
ser captada no conjunto das normas pela ideia de osmose Constituição/
da mesma lei e no conjunto da ordem lei: os princípios da constitucionali-
legislativa; tem outrossim de se con- dade e da legalidade são elementos
siderar no contexto da ordem cons- integrantes da juridicidade, fazendo
titucional; e isso tanto mais quanto a Constituição parte da própria
mais se tem dilatado, no século XX, a legalidade. Ora, em sistemas que
esfera de acção desta como centro de atribuem à Constituição uma força
energias dinamizadoras das demais normativa plena e o estatuto de Lei
normas da ordem jurídica positiva.” Fundamental, o elemento sistemáti-
Esse fenômeno que coloca a Constitui- co-teleológico não pode, à partida,
ção como “centro de energias dinamizado- dispensar o apelo à Constituição. A
ras das demais normas da ordem jurídica” principal manifestação da preemi-
é chamado de constitucionalização do nência normativa da Constituição
Direito. Conforme ensina André Ramos consiste, justamente, em que toda a
Tavares, uma das formas de constitucio- ordem jurídica deve ser lida à luz dela
nalizar o Direito é prever várias matérias e passada pelo seu crivo.”
no próprio texto constitucional. A outra, de Interpretação conforme à Constituição
que cuida este trabalho, é a Constituição se é, portanto, em essência, uma espécie de
apresentar “[...] como vetor valorativo para interpretação sistemática. Interpretação
qualquer discurso hermenêutico das leis e que, na procura do sentido e alcance de
atos normativos em geral. [...].” (TAVARES, determinado dispositivo legal, não se limita
2006, p. 134). Luís Roberto Barroso (2006, p. a olhar para o lado (para as demais normas
324) chama essa última variante de filtra- infraconstitucionais), mirando também no
gem constitucional. Segundo ele, “a partir ápice do ordenamento jurídico (na Cons-
da passagem da Constituição para o centro, tituição).
passou ela a funcionar como a lente, o filtro
através do qual se deve olhar para o direito 2. Fundamentos da interpretação
de uma maneira geral. [...] a Constituição
conforme à Constituição
condiciona a interpretação de todas as
normas do sistema jurídico.” Como já se deixou claro, a interpretação
Pronto! Tem-se aí a conhecida interpre- conforme à Constituição em nada difere
tação conforme à Constituição. Ela nada do tão conhecido método sistemático de
mais é do que uma interpretação sistemá- interpretação das leis. Assim também
tica da lei. Como assevera Rui Medeiros entende Rui Medeiros (1999, p. 295-296),
(1999, p. 297), para quem
“O reconhecimento de um princípio “[...] o princípio da interpretação
de interpretação das leis em con- conforme à Constituição, que obriga
formidade com a Constituição não o intérprete a tomar inclusivamente
constitui, neste contexto, uma solução em consideração os princípios cons-
estranha ou anômala [à interpretação titucionais na tarefa de interpretação
sistemático-teleológica]. As normas de toda e qualquer norma infraconsti-
constitucionais, já o sabemos, não se tucional, material ou procedimental,
dirigem apenas ao legislador e não não constitui um corpo estranho na
existe qualquer espécie de Muro de metodologia jurídica, apresentando-
Berlim entre a ordem constitucional e se como simples concretização da
a ordem jurídica em geral. A tradicio- interpretação sistemático-teleológica.
nal dicotomia constitucionalidade/ [...].”

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 157


Daí concluir esse jurista português, clusões diversas. Isso se explica porque o
acertadamente, que o fundamento último postulado da supremacia da Constituição
da interpretação conforme à Constituição tem duplo significado: é regra de colisão
se confunde com o próprio fundamento e critério de interpretação (MEDEIROS,
do método de interpretação sistemático- 1999, p. 289). No primeiro caso, as normas
teleológico. Método que, por sua vez, constitucionais impõem sua autoridade
lastreia-se nos postulados da supremacia invalidando as leis que com elas estejam
da Constituição e da unidade do ordena- em desacordo. Na segunda hipótese, a
mento jurídico. supremacia da Constituição se apresenta
na medida em que a Carta Magna influi no
2.1. Espécie de interpretação sistemática ou sentido e alcance de todas as normas infra-
técnica de controle de constitucionalidade? constitucionais.6 A interpretação conforme
Não é o que pensa, entretanto, parte à Constituição se fundamenta também no
da doutrina e da jurisprudência nacional postulado da supremacia da Constituição
e estrangeira. Aloysio Vilarino dos San- (e, em decorrência, no da unidade do orde-
tos (2008), André Ramos Tavares (2006), namento jurídico), mas não em sua vertente
Clèmerson Merlin Clève (2000), Eduardo de regra de colisão, que justifica o controle
Fernando Appio (2002), Gerson dos Santos de constitucionalidade.7 A interpretação
Sicca (1999), Inocêncio Mártires Coelho das leis em conformidade com a Constitui-
(2007), Jorge Miranda (2002), Luís Roberto ção é critério hermenêutico segundo o qual
Barroso (2006), Paulo de Oliveira Lanzellotti se deve ler o Direito infraconstitucional em
Baldez (2003), Silvio Luiz Maciel (2005) e consonância com a Lei Maior. É expressão,
Zeno Veloso (2003), por exemplo, compre- portanto, do fenômeno já referido da cons-
endem a interpretação conforme à Consti- titucionalização do Direito ou da filtragem
tuição como técnica de controle de consti- constitucional. Assim reconhece André
tucionalidade, e não como simples regra de Ramos Tavares (2006, p. 133-134), embora
interpretação. O Tribunal Constitucional conclua de forma diversa:
alemão, segundo relata Cláudio de Oliveira “Em outras palavras, a Constituição
Santos Colnago (2007, p. 93), enxerga a in- desempenha, nessa linha, um papel
terpretação conforme à Constituição como de standard interpretativo. Quando se
uma técnica interpretativa de controle. fala, portanto, da constitucionaliza-
Também o Supremo Tribunal Federal bra- ção do Direito, não se está apenas
sileiro, na Representação 1.417, julgada em querendo fazer referência à supre-
09 de dezembro de 1987, sufragou a tese de macia formal da Constituição. Evi-
que “o princípio da interpretação conforme 6
Humberto Ávila (2007, p. 128), ao tratar da eficácia
à Constituição (Verfassungskonforme Aus- interna dos princípios, menciona sua função interpreta-
legung) é princípio que se situa no âmbito tiva. Segundo ele, “[...] O relacionamento vertical entre
do controle da constitucionalidade, e não as normas (normas constitucionais e normas infracons-
titucionais, por exemplo) deve ser apresentado de tal
apenas simples regra de interpretação.” forma que o conteúdo de sentido da norma inferior
Tal entendimento se funda no postulado deve ser aquele que ‘mais intensamente’ corresponder
da supremacia da Constituição. É de ser ao conteúdo de sentido da norma superior. [...].”
excluída do ordenamento jurídico a inter-
7
Cláudio de Oliveira Santos Colnago (2007, p.
130) critica o entendimento de que a interpretação
pretação que afronte a Lei Fundamental. conforme à Constituição se funda no postulado da
Entre duas interpretações possíveis do texto supremacia da Constituição. Isto porque, sob essa
da lei, deve-se preferir aquela que respeite ótica, as decisões interpretativas teriam o mesmo
fundamento do controle de constitucionalidade, que
a Constituição.
justifica a declaração de inconstitucionalidade. Ocorre
Como se vê, do mesmo fundamento que este autor parece não haver atentado para a dupla
(primazia da Constituição) se chega a con- significação do postulado da primazia da Lei Maior.

158 Revista de Informação Legislativa


dentemente que é ela um pressuposto (salvo o da inconstitucionalidade por
necessário. Sem se admitir que as leis omissão) um juízo de incompatibili-
e todos atos [sic] normativos devem dade entre uma norma ou princípio
conformação à Constituição (uma das constitucional e uma norma infracons-
dimensões da supremacia da Cons- titucional (...). Isso implica necessaria-
tituição), não haveria como falar em mente uma tarefa de interpretação,
constitucionalização do Direito.” não apenas da Constituição, mas
Dessarte, importante ter em mente a também da norma infraconstitucional
diferença entre o papel da Lei Fundamen- em causa. [...].”
tal como vetor hermenêutico e sua função Pois bem, a interpretação conforme à
de controle de normas. No primeiro caso, Constituição se dá, por inteiro, na primei-
a Constituição atua, juntamente com as ra fase. O cotejo que se faz entre o texto
demais normas do ordenamento jurídico, constitucional e a lei tem o propósito de
no processo de interpretação da lei; a Carta precisar o conteúdo desta última. É que,
Magna auxilia o intérprete a fixar o sentido nas palavras de Humberto Ávila (2007, p.
e o alcance do texto legal. No segundo caso, 131), “[...] a direta ou indireta ‘reconduti-
diferentemente, o sentido e o alcance da bilidade’ (Zurückführbarkeit) de uma norma
norma já foram definidos, funcionando a a um princípio superior [...] faz com que
Constituição como parâmetro de controle; todas as normas obtidas por meio de uma
diante da(s) prescrição(ões) normativa(s) do vinculação sintática ou semântica incorpo-
texto legal, verifica-se sua compatibilidade rem o mesmo significado jurídico da norma
vertical com a lei de hierarquia superior. superior. [...].” A Constituição e todas as
Todo processo de controle de normas normas do sistema jurídico são levadas
se desenrola, ainda que involuntária e im- em conta, numa verdadeira interpretação
perceptivelmente, por etapas. Primeiro se sistemática. Aqui ainda não se pode falar
interpretam as normas controladas, fixan- em controle de constitucionalidade, pois
do-se seu sentido e alcance. Busca-se saber nem se conhece a norma a ser controlada.
o que a lei regulou, como regulou e em que O confronto posterior entre lei e Constitui-
extensão. Também a Constituição é objeto ção, aí sim, visa à checagem da validade do
de atividade interpretativa. Somente após diploma legal.
se conhecerem os conteúdos das normas- O pensamento de que a interpretação
objeto e das normas-parâmetro é que se conforme à Constituição é técnica de
verifica a compatibilidade daquelas com controle de constitucionalidade tem uma
estas. Sem antes saber o que a lei diz, não se explicação histórica. É que ela despontou
pode fazer controle de constitucionalidade. na seara jurídica por meio de decisões de
Nas palavras de Zeno Veloso (2003, p. 169), Tribunais Constitucionais, em processos
“[...] a interpretação, portanto, é pressupos- de controle de constitucionalidade. Nos
to, operação prévia do processo em que se Estados Unidos, por exemplo, as decisões
pretende investigar se determinado pre- interpretativas da Suprema Corte surgiram
ceito normativo está ou não em harmonia com a doutrina da evitação (avoidance doctri-
com seu modelo obrigatório e supremo.” ne), pela qual a Corte deve ser comedida na
Segundo Rui Medeiros (1999, p. 335), hora de declarar uma lei inconstitucional.
“[...] De facto, o confronto entre a Também na Alemanha, a interpretação
lei e a Constituição exige, sempre, o conforme à Constituição surgiu para evitar
prévio esclarecimento do sentido do a declaração de inconstitucionalidade. E o
preceito legal objecto de fiscalização. Supremo Tribunal Federal brasileiro, sob
Não se esqueça, com efeito, que o juí- nítida influência alemã, seguiu o mesmo
zo de inconstitucionalidade é sempre caminho (COLNAGO, 2007).

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 159


Ocorre que a interpretação da lei em Daí concluir que a interpretação confor-
conformidade com a Constituição tem me à Constituição, em que pese o respeitável
lugar não somente quando em jogo uma entendimento em contrário, não configura
declaração de inconstitucionalidade. Como uma técnica de decisão no controle de cons-
afirma Rui Medeiros (1999, p. 290), “[...] o titucionalidade, embora com ela se asseme-
recurso à interpretação conforme à Cons- lhe, principalmente quando utilizada num
tituição também se justifica nos casos em processo de controle abstrato de normas.10
que nenhuma das interpretações possíveis
da lei conduz à sua inconstitucionalidade. 2.2. Outros fundamentos da
Fala-se, por vezes, a este propósito, em in- interpretação conforme
terpretação orientada para a Constituição. [...].” Além dos postulados da supremacia da
É que, da polissemia do texto legal, podem Constituição e da unidade do ordenamento
resultar uma norma constitucional e outra jurídico, outros fundamentos se colocam
mais constitucional. Noutro dizer, o intérpre- a justificar a interpretação conforme à
te do Direito pode estar diante de normas Constituição. Um deles é a presunção de
igualmente constitucionais, cabendo-lhe constitucionalidade das leis. Na dúvida quan-
aplicar aquela que, no caso concreto, realiza to à interpretação de uma norma, deve-se
em maior grau a Constituição.8 entender que o legislador não quis afrontar
Ademais, não só o Poder Judiciário o texto constitucional. Nas palavras de Rui
interpreta as leis e a Constituição. O ad- Medeiros (1999, p. 291), “[...] trata-se de
ministrador público, para desempenhar uma espécie de benefício da dúvida que se
sua tarefa, procede à interpretação das deve conceder a todo o legislador democra-
normas jurídicas, sendo necessário que o ticamente eleito e presumivelmente fiel ao
faça em conformidade com a Lei Maior.9 texto fundamental.” É o que se chama de
Também os particulares interpretam a lei favor legis ou favor legislatoris.
para cumpri-la. E é salutar que, em caso Também o postulado da conservação de
de dúvida, sigam uma interpretação da normas ou máximo aproveitamento dos atos
lei conforme à Constituição. Como afirma normativos é invocado como fundamento
Jorge Miranda (2003, p. 42), “todo o tribunal da interpretação conforme à Constituição.
e, em geral, todo o operador jurídico fazem Segundo ele, sempre que possível, deve-se
interpretação conforme à Constituição. preferir a manutenção da norma no ordena-
Quer dizer: acolhem, entre vários sentidos mento jurídico, dando-se à lei um sentido
a priori configuráveis da norma infracons- compatível com a Constituição. Esse fun-
titucional, aquele que lhe seja conforme ou damento se conecta com um outro: o da
mais conforme [...].” segurança jurídica. É salutar que se evite o
vazio normativo decorrente da expulsão da
8
A interpretação conforme à Constituição não é norma do ordenamento jurídico, bem como
exclusividade dos processos de controle de constitu-
cionalidade em abstrato. Essa técnica de interpretação
a insegurança gerada pela eficácia retroati-
também é comum na jurisdição ordinária e não implica va da decisão de inconstitucionalidade.
uma declaração de inconstitucionalidade. Há que se referir ainda ao princípio da
9
A própria Constituição brasileira de 1988 criou harmonia entre os Poderes. Como constata
órgão incumbido, entre outras funções, de prestar
consultoria jurídica ao Poder Executivo da União (art.
Cláudio de Oliveira Santos Colnago (2007,
131 da CF). Trata-se da Advocacia-Geral da União, p. 59),
cuja lei orgânica (Lei Complementar no 73, de 10 de
fevereiro de 1993) estabelece, no inciso X de seu art. 4o, 10
Essa confusão se dá, principalmente, porque
ser atribuição do Advogado-Geral da União “fixar a os resultados práticos da interpretação conforme à
interpretação da Constituição, das leis, dos tratados e Constituição e da declaração de inconstitucionalidade
demais atos normativos, a ser uniformemente seguida parcial sem redução de texto parecem ser os mesmos.
pelos órgãos e entidades da Administração Federal”. Apenas parecem, no entanto.

160 Revista de Informação Legislativa


“[...] a pronúncia da inconstituciona- há que se falar, por sua vez, em conserva-
lidade de uma lei, ainda que não re- ção de normas quando não esteja em jogo
presente em indevida intervenção de interpretação inconstitucional.
um Poder sobre o outro, traz consigo As razões de segurança jurídica também
a aptidão para instalar um tensiona- já perderam um pouco de sua utilidade.
mento entre Judiciário e Legislativo, Sendo possível ao Supremo Tribunal Fe-
já que o primeiro estará interferindo deral, nos termos do art. 27 da Lei no 9.868,
sobre a atividade primordial do se- de 10 de novembro de 1999, “restringir os
gundo. A questão se agrava com a efeitos [da] declaração [de inconstituciona-
constatação de que os representantes lidade] ou decidir que ela só tenha eficácia
do Legislativo são democraticamente a partir de seu trânsito em julgado ou de
legitimados pelo voto, o que não outro momento que venha a ser fixado”,
ocorre com o Judiciário.” desnecessário salvar uma lei inconstitu-
Pois bem, uma decisão interpretativa, cional, mediante uma forçada decisão
em lugar de uma declaração de inconsti- interpretativa, apenas para evitar o vazio
tucionalidade, constitui uma intervenção normativo ou o indesejado desfazimento
menor do Poder Judiciário no trabalho do de atos e situações consolidados. Por fim,
Poder Legislativo. A interpretação confor- a interpretação das leis em conformidade
me à Constituição funcionaria, portanto, com a Constituição é uma verdadeira faca
como uma forma de suavizar a tensão entre de dois gumes no que concerne ao princípio
Poderes.11 da harmonia entre os Poderes. Ao mesmo
Esses fundamentos, embora deem tempo em que, se bem utilizada, arrefece a
resposta satisfatória à maioria dos casos tensão entre os Poderes Judiciário e Legis-
de interpretação conforme à Constituição, lativo, pode acirrar ainda mais o embate
deixam algumas situações a descoberto. A institucional, caso não se atenha a seus
presunção de constitucionalidade das leis, limites.
por exemplo, não lastreia a interpretação
conforme à Constituição das leis pré-cons-
3. Limites da interpretação
titucionais, já que não se pode presumir
que o legislador quis respeitar um texto conforme à Constituição
inexistente à época da edição da lei.12 Não Os limites da interpretação conforme à
Constituição não diferem, substancialmen-
11
Segundo Cláudio de Oliveira Santos Colnago te, daqueles com que se defronta a interpre-
(2007, p. 132), “[...] as decisões interpretativas justifi-
cam-se em razão da necessidade de harmonia entre os tação jurídica em geral. A grande questão
Poderes e busca pela estabilidade necessária ao Estado continua sendo a de precisar os espaços
de Direito [...].” Diz ele que, “[...] para a obtenção de de atuação do legislador e do intérprete.
tais resultados, porém, torna-se imprescindível partir Até que ponto o intérprete pode avançar
de uma posição de autocontenção judicial para um
estágio final em que se aplicam altas doses de ativis- em sua construção hermenêutica sem se
mo na interpretação dos enunciados legais perante transformar em legislador?
a Constituição, razão pela qual a discricionariedade Como já se destacou acima, toda lei de-
do Supremo Tribunal Federal também surge como manda interpretação, não se confundindo o
fundamento para a utilização das decisões interpre-
tativas.” Não parece adequado o manejo da decisão texto com a norma. Conforme já se assentou
interpretativa como instrumento de desenfreado linhas atrás, o intérprete participa criativa-
ativismo judicial. Como se verá no tópico seguinte, a
interpretação conforme à Constituição está adstrita a em inconstitucionalidade superveniente, exatamente
limites que não se devem ultrapassar. porque não se pode exigir do legislador fidelidade
12
Perceba-se, a propósito, que o descompasso a um texto constitucional futuro. Nesse sentido é a
entre lei anterior e Constituição posterior se resolve na jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal
mera revogação daquela por esta. Não há que se falar (ADI 2, Rel. Min. Moreira Alves).

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 161


mente do processo de aplicação do Direito. suem um significado a priori, incorporado
Isso não faz dele (intérprete), no entanto, pelo uso comum e técnico da linguagem.
um legislador. Há duas importantes balizas Daí se dizer que a letra da lei é um ponto
a serem conjugadamente observadas: a) o de partida.
texto da lei; b) a vontade do legislador. A Não é, entretanto, necessariamente, um
Corte Constitucional alemã, em decisão ponto de chegada. Isso porque ao programa
de 11 de junho de 1958, já identificava normativo se incorporam elementos em-
como limites evidentes da interpretação píricos (pré-compreensões do intérprete,
conforme à Constituição o sentido claro do contextos jurídico, social, cultural e eco-
texto e o fim contemplado pelo legislador nômico) que moldam a melhor aplicação
(BONAVIDES, 2007, p. 522). do Direito ao caso concreto. Ao final desse
processo, tem-se não mais um significado
3.1. A letra da lei como duplo limite à a priori da lei, mas a(s) própria(s) norma(s)
interpretação conforme jurídica(s). Acontece que a incidência do
É comum se afirmar que a interpretação âmbito normativo não pode quebrantar a
das leis em conformidade com a Constitui- conexão da(s) norma(s) com o texto. Daí se
ção somente tem lugar quando o texto legal dizer que a letra da lei funciona como baliza
é polissêmico, plurissignificativo. Também interpretativa.
se diz com frequência que não é dado ao Em suma, o texto delimita positivamen-
intérprete ignorar o texto, atribuindo-lhe te o espaço de movimentação do intérprete
um significado arbitrário e operando mala- e atua, negativamente, para impedir que
barismo com as palavras. Segundo Gilmar se chegue a uma norma sem a mínima
Ferreira Mendes (1993, p. 9-39), a expressão recondutibilidade nele (no texto). Ensina
literal assume dupla função: sua pluris- José Joaquim Gomes Canotilho (2003, p.
significatividade permite que se proceda 1220) que
à interpretação conforme à Constituição, “O programa normativo tem uma
mas, ao mesmo tempo, constitui um limite à função de filtro relativamente ao domí-
atividade do intérprete. Como explicar esse nio normativo, sob um duplo ponto
aparente paradoxo, segundo o qual o texto de vista: (a) como limite negativo;
cuja imprecisão dá ensejo à interpretação (b) como determinante positiva do
conforme à Constituição limita essa mesma domínio normativo. Esta função de
interpretação? filtro do programa normativo signi-
A resposta está em que o texto é, con- fica ser ele que separa os factos com
comitantemente, ponto de partida e baliza efeitos normativos dos factos que,
do processo interpretativo. Como afirma por extravazarem desse programa,
Marcelo Neves (2001, p. 360), ao comentar não pertencem ao sector ou domínio
a teoria jurídica estruturante de Friedrich normativo (função positiva do pro-
Müller, a norma resulta da implicação recí- grama normativo). Além disso, como
proca de dados primariamente linguísticos o programa normativo é obtido prin-
(programa normativo) e de dados da rea- cipalmente a partir da interpretação
lidade (âmbito normativo). Pois bem, toda dos dados linguísticos, deduz-se o
interpretação jurídica começa pela análise efeito de limite negativo do texto da nor-
dos dados linguísticos.13 Dados que já pos- ma (TN): prevalência dos elementos
de concretização referidos ao texto
13
Assim dispõe José Joaquim Gomes Canotilho
(2003, p. 1215): “[...] independentemente do sentido ciados linguísticos do texto constitucional.” Também
que se der ao elemento literal (=gramatical, filológico), Jorge Miranda (2002, p. 650-651) afirma que “[...] só
o processo concretizador da norma da constituição através dela, a partir da letra, mas sem parar na letra,
começa com a atribuição de um significado aos enun- se encontra a norma ou o sentido da norma. [...].”

162 Revista de Informação Legislativa


(gramaticais, sistemáticos) no caso o que também sufragou o Supremo Tribu-
de conflito dos vários elementos de nal Federal na ADI 1.344-MC, ao assentar,
interpretação. Consequentemente, o no caso, a “impossibilidade [...] de se dar
espaço de interpretação, ou melhor, interpretação conforme à Constituição,
o âmbito de liberdade de interpretação do pois essa técnica só é utilizável quando
aplicador-concretizador das normas a norma impugnada admite, dentre as
constitucionais, tem também o texto várias interpretações possíveis, uma que
da norma como limite: só os progra- a compatibilize com a Carta Magna, e não
mas normativos que se consideram quando o sentido da norma é unívoco [...].”
compatíveis com o texto da norma (BRASIL, 1996)
constitucional podem ser admitidos Por fim, não cabe ao intérprete forçar
como resultados constitucionalmente uma polissemia que não tenha referência,
aceitáveis derivados de interpretação pelo menos mediata, no texto da lei (princí-
do texto da norma. [...].” pio da exclusão da interpretação conforme
A interpretação conforme à Constitui- à Constituição contra legem) (CANOTILHO,
ção sofre, portanto, essa dupla limitação. 2003, p. 1227). É como ensina Konrad Hesse
Quando o significado preliminar dos sig- (1992, p. 49): “[...] Para una interpretación
nos linguísticos não for dúbio, nem surgir constitucional que parte de la primacía del
essa dubiedade com a consideração dos texto constituye este último el límite infran-
elementos empíricos,14 inviável o manejo queable de su actuación. Las posibilidades
da interpretação conforme à Constituição. de comprensión del texto delimitam el
Nas lições de Canotilho (2003, p. 1227), “[...] campo de sus posibilidades tópicas. [...].”
a interpretação conforme a constituição Tão equivocado quanto conferir à lei (e
só é legítima quando existe um espaço de ao legislador) uma aura de sacralidade é
decisão (=espaço de interpretação) aberto a defender a figura do juiz soberano.
várias propostas interpretativas [...].”15 Foi
3.2. A vontade do legislador
14
A polissemia que dá ensejo à interpretação da
lei em conformidade com a Constituição pode resultar
O outro limite da interpretação confor-
da própria generalidade ou equivocidade dos signos me à Constituição é a vontade do legislador.
linguísticos (princípios e conceitos jurídicos indeter- Não basta que a letra da lei permita várias
minados, por exemplo). Um texto aparentemente interpretações. É mister que não se deturpe
claro, conciso e coerente, no entanto, também pode
ensejar dúvida, quando confrontado com os dados a finalidade claramente reconhecível da
da realidade. Um texto unívoco hoje pode não sê-lo norma. No dizer de Canotilho (2003, p.
amanhã. Exemplo disso se encontra na Arguição de 1227),
Descumprimento de Preceito Fundamental 54, em que “[...] a interpretação das leis em
o Supremo Tribunal Federal discute se as descrições
típicas dos arts. 124 e 126 do Código Penal abrangem a conformidade com a constituição
interrupção da gravidez de feto anencefálico. A leitura deve afastar-se quando, em lugar do
desses dispositivos legais, na década de 40 do século resultado querido pelo legislador, se
passado (quando, inclusive, era impossível detectar
essa anomalia fetal), certamente não daria ensejo à in-
obtém uma regulação nova e distinta,
terpretação conforme à Constituição. Hoje, porém, sob em contradição com o sentido literal
o influxo de uma sociedade moderna, num contexto ou sentido objectivo claramente re-
jurídico em que se privilegia o princípio da dignidade cognoscível da lei ou em manifesta
da pessoa humana e os direitos fundamentais (entre
eles a liberdade e saúde da gestante), esse mesmo dessintonia com os objectivos pre-
texto gera controvérsia. O Ministro Carlos Ayres tendidos pelo legislador.”
Britto, por exemplo, vislumbrou três possibilidades
hermenêuticas. e outras [estão] em desconformidade com ela [...].”
15
O autor complementa este excerto dizendo que, Sucede que, embora não seja a hipótese mais comum,
das propostas interpretativas, umas estão “em confor- a interpretação conforme à Constituição pode envolver
midade com a constituição e [...] devem ser preferidas, apenas interpretações constitucionais.

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 163


3.2.1. Voluntas legis x exatamente porque o objetivo da lei era
Voluntas legislatoris claramente contrário à interpretação que
Quando se fala em vontade do legisla- se lhe pretendia conferir. Casos houve, no
dor como limite à interpretação conforme entanto, – e é, aparentemente, uma ten-
à Constituição, quer-se referir à vontade dência atual do Supremo Tribunal Federal
subjetiva daqueles que participaram do – em que se deixou essa vontade de lado,
processo legislativo ou à vontade objetiva partindo-se para decisões que espelham um
plasmada na lei? questionável ativismo judicial (ADI 2.652,
Essa questão remonta à disputa entre Rel. Min. Maurício Corrêa; ADI 2.209, Rel.
subjetivistas e objetivistas na teoria da Min. Maurício Corrêa; ADI 2.596, Rel. Min.
interpretação. Conforme sintetiza Paulo Sepúlveda Pertence, entre outros).
Bonavides (2007, p. 452), para a corrente O que importa, então: a voluntas legis
subjetivista, “[...] a nota interpretativa (teoria objetivista) ou a voluntas legislatoris
dominante se voltava sempre para o le- (teoria subjetivista)? Quando se cogita da
gislador de preferência à lei. Tratava-se de vontade do legislador como limite à inter-
um agudo esforço por determinar a mens pretação conforme à Constituição, parece
legis, entendida como a vontade oculta do mais correto se tratar da vontade subjetiva.
autor da proposição normativa, vontade Não se está a dizer (como pregava a Escola
que ao intérprete incumbiria revelar com francesa da Exegese) que o sentido e o al-
fidelidade [...].” Por outro lado, cance da norma jurídica se revelam, única e
“A tese básica da corrente objetivista exclusivamente, pela vontade subjetiva do
gira, no dizer de Karl Engisch, ao re- legislador, nem que a tarefa principal seja
dor da lei, do texto, ‘da palavra que se essa. Explique-se:
fez vontade’. A lei que se desprende Não há dúvida de que a lei, uma vez
do legislador não só se formula como editada, (a) adquire autonomia, (b) pode
adquire autonomia para seguir com regular situações nunca imaginadas pelo
seu conteúdo um curso autônomo, legislador, (c) adapta-se às transformações
amoldando-se, na totalidade e uni- da realidade e (d) sofre a influência das
dade do sistema jurídico, àquelas concepções do intérprete. Afinal de contas,
exigências impostas segundo as a aplicação do Direito se dá no presente.
circunstâncias e as necessidades do Ocorre que a pesquisa da vontade objetiva
processo de evolução do direito.” da lei, exatamente por girar em torno do
(BONAVIDES, 2007, p. 454) texto, “da palavra que se fez vontade”,
O Tribunal Constitucional alemão, insere-se quando da análise do programa
segundo Konrad Hesse (1992), adota a te- e âmbito normativos (conceitos já referidos
oria objetiva da interpretação. Para aquela no item anterior). É dizer: o reconhecimento
Corte, o que importa é a vontade objetiva da letra da lei como limite à interpretação
do legislador manifestada por meio do pre- conforme à Constituição já contempla a
ceito legal, tal como se deduz do texto e do corrente objetivista da interpretação.
contexto. No Brasil, o Supremo Tribunal Fe- Por isso que, quando se fala em von-
deral historicamente privilegiou a vontade tade do legislador como outro limite à
subjetiva do legislador. Na Representação interpretação da lei em conformidade com
1.417, julgada em 09 de dezembro de 1987, a Constituição, deve-se entender a vonta-
isso fica bastante claro com as reiteradas de subjetiva. A questão é a de saber se se
remissões aos pronunciamentos dos parla- respeitará o querer subjetivo do legislador,
mentares no processo legislativo. Na ADI quando se possa claramente identificá-lo.
3.046, de 15 de abril de 2004, afastou-se Helmut Michel (apud BONAVIDES, 2007,
a interpretação conforme à Constituição p. 521) bem captou essa problemática:

164 Revista de Informação Legislativa


“Os partidários da teoria subjetiva ao juiz modificar a lei, mesmo editada sob
entram em conflito com o manda- um regime anterior.
mento da interpretação conforme a Rui Medeiros (1999, p. 312) reconhece
Constituição na medida em que de- a indispensável vinculação do intérprete
vem decidir se a despeito – segundo às intenções legais e às opções do Poder
sua concepção – da necessidade de Legislativo, ao dizer que
acatar-se a vontade do legislador se “[...] O apelo à Constituição em sede
permita uma correção do resultado de interpretação em sentido estrito
da interpretação, quando essa vontade não pode, neste sentido, contrariar a
for anticonstitucional. Os partidários letra e a intenção claramente reconhe-
da teoria objetiva, ao contrário, não cível do legislador ou, numa versão
devem ter dúvidas, se eles, apesar da mais restritiva, a intenção que está
– segundo sua concepção – omissibili- subjacente à tendência geral da lei
dade da vontade do legislador, admi- ou às opções fundamentais nela con-
tem (ainda) a interpretação conforme a sagradas.”
Constituição, quando a vontade iden- E não se argumente, como o fazem
tificável das pessoas que participaram Carlos Maximiliano (2002, p. 21-23), Edu-
no processo legislativo exigiria uma ardo Fernando Appio (2002, p. 30) e André
interpretação contra a Constituição. Gustavo Corrêa de Andrade (2003, p. 110),
Em qualquer das hipóteses, trata-se que a vontade subjetiva do legislador é de
de determinar se mediante a inter- difícil precisão. Não se nega que o seja.16
pretação conforme a Constituição, No entanto, quando essa vontade for cla-
em virtude da especial problemática ramente perceptível, não pode o juiz dar à
jurídico-constitucional, a vontade do lei interpretação conforme à Constituição
legislador excepcionalmente (teoria para sufragar um sentido contrário, sob
subjetiva) ou com maior razão (teoria pena de se transformar em legislador. A
objetiva) pode ser negada. [...].” interpretação conforme à Constituição
O aplicador do Direito deve ler o texto, somente se coloca quando, após a análise
incluí-lo num contexto jurídico e social, da letra da lei e da vontade do legislador,
buscar sua finalidade e razão de ser atu- a dúvida hermenêutica permanece.
ais (vontade objetiva). Sucede que, não Quando não for possível, contudo, fi-
raramente, esse processo conduz a mais xar, com alto grau de precisão, a intenção
de uma possibilidade hermenêutica. Pois do legislador, não fica o juiz impedido de
bem, nesse caso, a investigação do processo utilizar a interpretação conforme à Consti-
legislativo, dos motivos da lei, dos debates tuição (foi o que se deu, por exemplo, no
parlamentares, das publicações oficiais, julgamento da ADI 1.946 pelo Supremo
enfim, da occasio legis, será de grande im- Tribunal Federal). Assim afirma Cláudio de
portância. Em se identificando o propósito Oliveira Santos Colnago (2007, p. 143):
de quem elaborou a lei, inviável se tornará “[...] Se, por um lado, deve-se presu-
a interpretação em sentido contrário, ain- mir que o legislador não quis criar
da que a título de conformar a lei com a uma lei inconstitucional, por outro
Constituição (neste caso, restará ao juiz lado esta presunção é relativa e deve
a declaração de inconstitucionalidade da ser possível infirmá-la, desde que a
norma). Mesmo às leis pré-constitucionais análise do processo legislativo permita
se aplica esse raciocínio. É certo que, quanto inferir de forma segura que o legislador
mais o tempo passa, mais peso se atribui
aos elementos objetivos. Também verda- 16
Até porque também a vontade objetiva não é
deira, porém, é a assertiva de que não cabe de fácil apreensão.

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 165


quis de fato produzir uma norma que como reconhece ao legislador uma
seria incompatível com a Constituição. posição de hegemonia no ato da con-
De fato, em situações como tal, o cretização constitucional, o que está
Judiciário não tem motivos para de todo acorde com o princípio demo-
se autoconter, pois o legislador crático encarnado no legislativo.”
trai a confiança a ele conferida ao Num Estado Democrático de Direito,
manifestar uma vontade de ferir a em que “todo o poder emana do povo”
Constituição. Inexistindo dúvidas (parágrafo único do art. 1o da Constituição
acerca disso, deve-se pronunciar a brasileira de 1988), é natural que a tarefa
inconstitucionalidade da lei, já que de concretização da Carta Magna incum-
adaptá-la para que se apresente em ba, preferencialmente, ao Poder que mais
conformidade com a Constituição reflete a diversidade cultural, econômica
importaria em criar uma norma não e ideológica do povo. Em razão dessa
desejada pelo Poder Legislativo e, primazia do Poder Legislativo, impõe-se
como tal, usurpar função essencial enxergar os limites da interpretação con-
daquele Poder. forme à Constituição (letra da lei e vontade
Por outro lado, esta limitação só tem do legislador) como um freio a eventuais
sentido quando seja possível chegar a abusos dos Poderes Executivo e Judiciá-
uma conclusão uniforme e segura da rio. Toda vez que se desrespeitarem esses
interpretação do processo legislativo. limites, em xeque se colocará o princípio da
Caso, todavia, a interpretação dos fatos separação dos Poderes, cláusula pétrea do
ocorridos quando da formação da lei sistema constitucional brasileiro (inciso III
permita conclusões díspares acerca da do § 4o do art. 60 da CF).
real vontade do legislador, não se deve Questão delicada, no entanto, é a de
obstaculizar a decisão interpretativa, vis- saber se cabível a interpretação conforme
to que neste caso não haverá, em último à Constituição quando o texto da lei e a
caso, violação do dogma da Separação de vontade do legislador apontarem em senti-
Poderes.” (grifo nosso) dos diversos. Se, por exemplo, o legislador
quis, claramente, regular dada matéria de
3.3. Decisões corretivas e modificativas uma forma e o texto, por um erro material,
Como já se disse, os limites da inter- não reflete essa vontade, cabe ao intérprete
pretação conforme à Constituição visam proceder à correção?
precisar os espaços de atuação do legislador A resposta é de ser positiva. Como dito
e do intérprete. E, como é facilmente per- acima, os limites da interpretação conforme
ceptível, resolvem a questão em benefício à Constituição devem atuar conjugadamen-
do primeiro. Isso porque há uma prefe- te. Quando houver discrepância entre a
rência do Poder Legislativo como órgão vontade do legislador e a expressão verbal
concretizador da Constituição. Segundo da lei, “[...] tem de aceitar-se como possível
Paulo Bonavides (2007, p. 523), investigá-la a partir de outras fontes que
“[...] na medida em que o método [da não a expressão verbal da própria norma,
interpretação conforme à Constitui- na medida em que possa presumir-se que
ção] confessadamente se emprega esta não corresponde à vontade de quem es-
para manter a lei com o máximo de tabeleceu a norma” (KELSEN, 2006, p. 389).
constitucionalidade que for possível É o que se dá, sem maiores contestações,
nela vislumbrar, em face de situações na interpretação dos negócios jurídicos,
ou interpretações ambíguas, não resta afirmando o art. 112 do Código Civil que
dúvida de que ele não só preserva o “nas declarações de vontade se atenderá
princípio da separação de poderes mais à intenção nelas consubstanciada do

166 Revista de Informação Legislativa


que ao sentido literal da linguagem.” Na A correcção da lei significa apenas cor-
interpretação da lei em conformidade com a recção da letra da lei, não podendo ser
Constituição, ocorre o mesmo: se for possí- realizada quando os sentidos literais
vel identificar com clareza a vontade do le- correspondem à intenção do legislador
gislador, atender-se-á mais a essa intenção ou quando o resultado que se pretende
do que ao sentido literal da linguagem. alcançar não se harmonize com a teleo-
Rui Medeiros (1999, p. 305) aceita a logia imanente à lei. Para além disso,
interpretação corretiva da lei, desde que por mais desejável que se apresente
atendidos pressupostos especiais. Segundo uma alteração do sistema normativo,
ele, essa alteração pertence às fontes de
“[...] Os sentidos literais possíveis direito, não ao intérprete (...). Razões
não constituem, de per si, limites à extremamente ponderosas de segu-
interpretação lato sensu correctiva rança e de defesa contra o arbítrio
da lei, porque, nesta sede, à letra se alicerçam esta conclusão. Isto já para
pode preferir o sentido que a letra não falar do princípio da separação
traiu. A concepção hoje largamente de poderes. A interpretação correc-
dominante considera, na realidade, tiva da lei em conformidade com a
que importa mais o fim e a razão de Constituição não se traduz, portanto,
ser do preceito do que o respectivo numa revisão da lei em conformidade
sentido literal. A interpretação teleo- com a Lei Fundamental.”
lógica tem, neste contexto, um lugar Sendo assim, em hipótese alguma se
de destaque. Assim, e no que toca deve tolerar uma decisão judicial ou in-
concretamente à relação entre a inter- terpretação empreendida pelo Poder Exe-
pretação teleológica e a gramatical, é cutivo que, a título de interpretar a lei em
geralmente aceite que o sentido e o conformidade com a Constituição, modifi-
escopo da lei devem prevalecer sobre que seu sentido e alcance, em detrimento
o seu teor. [...].” da vontade democraticamente retratada
Isso não quer dizer que a interpretação no ato legislativo. Não por outro motivo é
das leis em conformidade com a Consti- que a decisão modificativa é amplamente
tuição pode contrariar o sentido inequí- rejeitada pela doutrina nacional e estrangei-
voco que se extrai da fórmula normativa ra. Nesse sentido, ensina Canotilho (2003,
objetivada no texto, ainda que o elemento p. 1311):
teleológico torne mais fluido esse limite “[...] Se os órgãos aplicadores do direi-
(MEDEIROS, 1999, p. 312). Muito menos to, sobretudo os tribunais, chegarem
significa que se admite uma interpretação à conclusão, por via interpretativa, de
modificativa da vontade do legislador. que uma lei contraria a constituição,
Ainda Rui Medeiros (1999, p. 316-317): a sua atitude correcta só poderá ser a
“A interpretação correctiva conforme de desencadear os mecanismos cons-
à Constituição, no sentido restritivo titucionais tendentes à apreciação da
aqui admitido, deve assentar na inconstitucionalidade da lei. Daqui se
valoração de elementos que o texto, conclui também que a interpretação
mesmo que defeituosamente, refere conforme a constituição só permite a
e, sobretudo, não pode ser contrária escolha entre dois ou mais sentidos
à posição tomada pelo legislador, ao possíveis da lei mas nunca uma revi-
seu querer e ao escopo que persegue são do seu conteúdo. [...].”
(quebrando apenas os limites do seu Konrad Hesse (1992, p. 52-53), ao tratar
sentido literal). [...] da primazia do legislador como órgão con-
[...] cretizador da Constituição, afirma:

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 167


“[...] Al tribunal constitucional le norma objeto de análise (decisão modifica-
está vedado discutir esta primacía tiva), aceitando, no máximo, uma correção
al legislador, pues ello acarrearia de flagrante erro no texto da lei (decisão
um desplazamiento de las funciones corretiva). Flagrante porque em confronto
constitucionalmente encomendadas. com a evidente intenção do legislador.
[...] primacía que puede resultar
anulada cuando el precio es excesi-
4. Conclusão
vamente alto, cuando el contenido
que, a través de la interpretación A interpretação das leis e da Constitui-
conforme, el tribunal da a la ley con- ção é, sem dúvida, tarefa das mais comple-
tiene no ya um minus sino um aliud xas. Se é certo estar ultrapassado o enten-
frente al contenido original de la ley. dimento de que in claris non fit interpretatio,
Em este caso, el tribunal interfiere las não menos verdadeira é a necessidade de
competencias del legislador com más aplicar o Direito com o máximo possível de
intensidad incluso que em el supues- rigor científico, ainda que a hermenêutica
to de una declaración de nulidad, e seus métodos de interpretação jurídica
puesto que es él mismo quien con- não forneçam racionalidade absoluta. A
forma positivamente, mientras que propósito, é conveniente relembrar que
em el caso de declaración de nulidad o antiquado pensamento de que o juiz é
la nueva conformación sigue siendo apenas a boca da lei nasceu, no passado,
asunto del legislador. [...].” como resposta à exacerbação do volunta-
Também Paulo Bonavides (2007, p. 519), rismo dos intérpretes (MAXIMILIANO,
ao discorrer sobre a interpretação confor- 2002, p. 27-28).
me à Constituição, adverte que “urge [...] Não se pode perder de vista que é o Po-
que o intérprete na adoção desse método der Legislativo o órgão detentor da prima-
não vá tão longe que chegue a ‘falsear ou zia em concretizar a Constituição. E, num
perder de vista num ponto essencial o fim Estado Democrático de Direito, é natural
contemplado pelo legislador’”. Da mesma que essa tarefa incumba, preferencialmen-
forma, Gilmar Ferreira Mendes (1993, p. te, ao Poder que mais reflete a diversidade
26) rechaça a decisão modificativa da lei, cultural, econômica e ideológica do povo.
ao dizer que Este estudo pretendeu resgatar um pouco
“o princípio da interpretação confor- essa ideia, sem menoscabar, porém, a deci-
me à Constituição não contém [...] siva contribuição dos agentes dos Poderes
uma delegação ao Tribunal para que Executivo e Judiciário na interpretação
proceda à melhoria ou ao aperfeiço- das leis.
amento da lei. Qualquer alteração do Por isso o realce que se deu aos limites
conteúdo da lei mediante pretensa da interpretação conforme à Constituição.
interpretação conforme à Constitui- O respeito à letra da lei e à vontade do
ção significa uma intervenção mais legislador é essencial para que o manejo
drástica na esfera de competência da interpretação conforme à Constituição
do legislador do que a pronúncia de não implique violação ao princípio consti-
nulidade, uma vez que esta assegura tucional da separação dos Poderes. Limites,
ao ente legiferante a possibilidade de no entanto, que não colocam a letra da lei
imprimir uma nova conformação à como ponto, ao mesmo tempo, de partida
matéria.” e de chegada da atividade interpretativa,
A interpretação conforme à Constitui- nem transformam a descoberta da vontade
ção, portanto, como toda interpretação jurí- do legislador em única – ou na mais impor-
dica, não admite um resultado que altere a tante – tarefa do aplicador do Direito. O

168 Revista de Informação Legislativa


que se preconiza é que a interpretação das ______. O novo direito constitucional e a constitu-
leis em conformidade com a Constituição cionalização do direito. In: Diálogos constitucionais:
direito, neoliberalismo e desenvolvimento em países
não abandone a atitude de deferência ao periféricos. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
Poder Legislativo. Para tanto, basta que se
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 21
rechacem normas jurídicas sem nenhuma
ed. São Paulo: Malheiros, 2007.
recondutibilidade no texto ou que estejam
em confronto com a vontade do legislador, BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Representação
nº 1.417. Relator: Ministro Moreira Alves. Brasília,
quando possível identificá-la.
09 de dezembro de 1987. Diário da Justiça, Brasília,
Não se quis, com este trabalho, inibir 15 abr. 1988.
o uso da interpretação conforme à Cons-
______. ______. Medida Cautelar na Ação Direta de
tituição. Tanto que, ao reconhecer a Lei Inconstitucionalidade nº 1.344. Relator: Ministro Mo-
Fundamental como ponto de engate de reira Alves. Brasília, 18 de dezembro de 1995. Diário
todo o ordenamento jurídico e caracterizar da Justiça, Brasília, 19 abr. 1996.
a interpretação conforme à Constituição BRITTO, Carlos Ayres. O humanismo como categoria
como espécie de interpretação sistemático- constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2007.
teleológica (a despeito do entendimento
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria
da doutrina brasileira majoritária, que a da constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2003.
reputa uma técnica de decisão no controle
CHAGAS, Fernando Cerqueira. A relação entre o
de constitucionalidade), concluiu-se pela princípio da proporcionalidade (razoabilidade) e a
necessidade (mais do que possibilidade) de interpretação conforme à constituição no estado demo-
a lei ser interpretada em conformidade com crático de direito. In: A constitucionalização do direito: a
a Constituição por todos os operadores do constituição como locus da hermenêutica jurídica. Rio
Direito, agentes públicos dos três Poderes de Janeiro: Lumen Juris, 2003.
e particulares. Quanto mais a Constituição CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da
servir como vetor hermenêutico da legisla- constitucionalidade no direito brasileiro. 2 ed. rev., atual.
e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
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MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do SICCA, Gerson dos Santos. A interpretação conforme
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SANTOS, Aloysio Vilarino dos. Atualização constante
da interpretação constitucional. Revista de Direito

170 Revista de Informação Legislativa


Legitimação da Defensoria Pública para
propor Ação Civil Pública

Antonio Carlos Fontes Cintra

Sumário
Introdução. 1. Defensoria Pública como
instrumento do exercício da cidadania. 2. De-
fensoria Pública e acesso à Justiça. 3. Defensoria
Pública e sua missão. 4. A Ação Civil Pública.
5. A ratio legis da ampliação dos legitimados. 6.
Dificuldades do sistema de tutela coletiva. 7.
Inclusão da Defensoria Pública com legitimada
para propor ações coletivas. 8. Fundamentos de
legitimação anteriores à edição da Lei 11.448/07.
9. Argumentos em prol da limitação da atuação
da Defensoria Pública. 10. ADI proposta contr
a lei que legitimou a Defensoria Pública. 11.
Estaria a Defensoria Pública de fato usurpando
função própria do Ministério Público? 12. Posi-
ção jurisprudencial a respeito da legitimidade
da Defensoria Pública. 12.1. Contrariamente à
legitimidade da Defensoria Pública. 12.2. Enten-
dimento jurisprudencial favorável à legitimida-
de da Defensoria Pública. Conclusão.

Introdução
O caminho a ser percorrido em ações
individuais, com suas complicações e difi-
culdades, é insuficiente e anti-econômico.
A legitimidade sobre o direito a corrigir é
restrita e o resultado insatisfatório. Indi-
vidualmente há desestímulo na busca da
reparação porque esta seria pequena de-
Antonio Carlos Fontes Cintra é Defensor mais, não compensando o temor de perder
Público do Distrito Federal, mestre pela UMESP, a causa e as consequências de tal perda.
professor de Direito Civil e do Consumidor da Assim, aos indivíduos resta confiar na
Faculdade de Direito da UPIS-DF e da FOR- ação governamental para a proteção de in-
TIUM – preparatório para concurso. teresses difusos, pois a organização de seus

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 171


interesses, individualmente, sofre a inferên- Esse trabalho conta o encontro do insti-
cia de diversas barreiras, principalmente a tuto público com a instituição também pú-
carência de informação, o desestímulo do blica, na busca do caminho da distribuição
resultado a ser alcançado ou combinação da justiça para o privado.
de estratégias comuns.
A Ação Civil Pública surgiu como uma 1. Defensoria Pública como instrumento
busca por um instrumento hábil a dar do exercício da cidadania
solução a danos em larga escala de difícil
reparação nas esferas individuais e que No atual estágio da sociedade capita-
acabavam criando grandes injustiças, ater- lista, o consumo passa a ser a força motriz
ramento de garantias individuais e domínio da economia e os olhos daqueles que esta-
do poderio econômico, em especial nas belecem o poder se voltam para o fomento
relações de consumo. desse. Dessa forma, aqueles que dirigem o
Por sua vez, a Defensoria Pública surge sistema econômico passam a se preocupar
na Constituição Federal de 1988 com a de forma imediata principalmente com o
missão de reequilibrar as forças economi- consumo em detrimento das demais esferas
camente desiguais, garantindo-se o Estado da vida social. Já em 1925, um jornal de
Democrático de Direito ao assegurar o aces- Middletown afirmava: “a maior impor-
so à justiça até mesmo para as camadas mais tância do cidadão norte-americano não é
pobres, desprovidas da condição de custear mais de cidadão, mas a de consumidor”
um processo e em especial um advogado. (MARSHALL, 1967, p. 205).
Com o advento da Lei 11.448/07, o A preocupação da política estatal não
caminho do instituto e da instituição men- pode se voltar, todavia, apenas para os
cionados se encontram, gerando grandes interesses imediatistas, que de uma forma
polêmicas, provocando até mesmo a propo- geral, tragam riquezas à nação, prosperi-
situra de Ação Declaratória de Inconstitu- dade à economia, crescimento econômico
cionalidade (3.943 de relatoria da Ministra e desenvolvimento. Outrossim, ao menos
Carmen Lúcia) por parte da Associação dentro de uma concepção de um estado
Nacional dos Membros do Ministério Pú- democrático de direito, é necessário se as-
blico (CONAMP), alegando usurpação de segurar que o impulso econômico não deixe
funções próprias do Ministério Público. às margens os menos favorecidos dentro
Em um Estado tão desigual como o Es- desse mesmo sistema, sufragando assim,
tado brasileiro, que ocupa o segundo lugar direitos e garantias individuais.
no ranking de diferença de distribuição de Nesse contexto, o acesso pleno e iguali-
renda, atrás apenas do pobre país de Serra tário à justiça é pressuposto do estado de-
Leoa, devemos buscar caminhos de dimi- mocrático de direito. Para que possa haver
nuição do impacto de tal desigualdade na justiça, deve-se garantir o direito de ação, a
realização da justiça, dentro de uma idéia ampla defesa e o devido processo legal, que
tanto distributiva como equânime, capazes se traduzem na isonomia processual.
e ao mesmo tempo legítimos, para se ga- Falar em democracia é falar em igualda-
rantir a igualdade de direitos dentro de um de. É sabido que o princípio da isonomia só
estado social e economicamente desigual. será garantido se formos capazes de tratar
Isso deve ser buscado nas diversas esferas os iguais de maneira igual e os desiguais de
políticas, cabendo a nós a contribuição da maneira desigual1. Em um Estado tão desi-
análise desse novo caminho buscado pela 1“
De hecho, en este contexto es aplicable el carácter
ampliação da legitimação da Ação Civil ‘correctivo’ de la justicia. Sin caer en las tesis extremas
Pública também à Defensoria, que como o de que la administración de justicia debe recomponer
instituto, também é pública. un equilibrio perdido en la distribución de la riqueza, lo

172 Revista de Informação Legislativa


gual como o Estado brasileiro, que ocupa duzir resultados que sejam individual e
o segundo lugar no ranking de diferença socialmente justos”. (CAPPELLETTI, 1988,
de distribuição de renda, atrás apenas da p. 7).
pobre Serra Leoa, mister se faz compre- O direito à Justiça é originário da
ender os parâmetros de desigualdade de Declaração Universal dos Direitos do
tratamento, capazes e ao mesmo tempo Homem, aprovada pela Assembléia Geral
legítimos, para se garantir a igualdade de das Nações Unidas em 1948, sendo reco-
direitos dentro de um estado social e eco- nhecido como direito essencial a todos os
nomicamente desigual. Isso irá passar por indivíduos. Devido à sua importância no
diversas esferas. Incumbe-nos por hora a contexto democrático, foi priorizado pelo
preocupação com o acesso ao judiciário. constituinte originário.
Não basta que se garanta assistência “Artigo X. Todo homem tem direito,
judiciária gratuita, é necessário se assegu- em plena igualdade, a uma justa e
rar que esta de fato seja eficaz, de forma pública audiência por parte de um
a garantir o mesmo acesso e prerrogati- tribunal independente e imparcial,
vas de que dispõem os economicamente para decidir de seus direitos e deve-
suficientes, assegurando a “paridade de res ou do fundamento de qualquer
armas” entre os litigantes, vetoriando-se no acusação criminal contra ele”.2
princípio da igualdade, em sua dimensão O conceito de acesso à Justiça, em
dinâmica. Na linha do pensamento liberal, verdade, não deve estar limitado aos
os sujeitos de direito privado, só encontra- órgãos judiciais, conforme leciona
vam limites nas contingências da situação Kazuo Watanabe. A questão não se
natural da sociedade; agora, porém, eles se refere “apenas a possibilitar o acesso
chocam com os projetos paternalistas de à Justiça enquanto instituição estatal,
uma vontade superior, que deve garantir e sim viabilizar o acesso à ordem
a repartição igual das liberdades de ação jurídica justa” (WATANABE, 1988,
subjetivas (HABERMAS. Direito e Demo- p. 128-135).
cracia, 2002, p. 144). Tal garantia viabiliza o acesso a todos
os direitos inerentes à pessoa humana, para
2. Defensoria Pública e acesso à justiça que se possa viver dignamente em socie-
dade. Segundo as palavras do sociólogo
O Direito regulamenta, conforme a português Boaventura de Sousa Santos,
teoria processualística, a cooperação entre o acesso efetivo à justiça é “um direito
as pessoas a fim de evitar o surgimento cuja denegação acarretaria a de todos os
do conflito ou por fim a este. É um instru- demais” (SANTOS, 2005. p. 167). O cida-
mento eficiente de controle social, que atua dão tem como direito inalienável o acesso
quando determinada conduta ultrapassa igualitário à justiça e assistência jurídica
os limites do inconveniente e ameaça a adequada.
harmonia social, com potencial supressão Assim, a fonte imediata da garantia ao
de direitos alheios (BEZERRA, 2001). acesso à justiça é a própria lei. Por inter-
Cappelletti e Garth atribuem duas fi- médio das leis é que começa o processo de
nalidades ao sistema jurídico, quais sejam: distribuição de justiça. Afirma Cappelletti
“primeiro, o sistema deve ser igualmente (1988, p. 12):
acessível a todos; segundo, ele deve pro- “O acesso à justiça pode, portanto,
cierto es que nadie puede negar que el trato igual a los ser encarado como o requisito fun-
desiguales es tan injusto en esencia como el trato desi- damental – o mais básico dos direitos
gual a los iguales, al punto de llegar a constituir discri-
minaciones o infracciones al principio de igualdad ante 2
Disponível em: <http://www.unicrio.org.br/
la ley o su aplicación.” (THOMPSON, 2000, p. 27) Textos/udhr.htm>. Acesso em: 20 maio 2006.

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 173


humanos – de um sistema jurídico jurídica e a defesa, em todos os graus, dos
moderno e igualitário que pretenda necessitados, na forma do art. 5o, LXXIV.”
garantir, e não apenas proclamar os Até o do ano de 2005, ainda existiam Es-
direitos de todos”. tados nos quais não haviam sido instaladas
O artigo 5 o, inciso XXXV, da Carta Defensorias Públicas: Santa Catarina e São
Magna3 prescreve o amplo acesso ao Poder Paulo. Hoje São Paulo já conta com mais de
Judiciário. A positivação da garantia de tu- 400 defensores. Os estados do Rio Grande
tela aos direitos lesados ou ameaçados pelo do Norte e Goiás aprovaram a criação, mas
órgão do Estado permite a afirmação de não implementaram ainda.
que “a democratização do acesso à Justiça A procura de caminhos para a estrutu-
possa ser vivida como arena para aquisição ração e efetiva prestação dos serviços da
de direitos, credenciamento à cidadania e assistência judiciária gratuita condiz com
animação de uma cultura cívica que dê vida o objetivo de um Estado Democrático de
à República” (VIANNA et. al 1999. p. 44). direito, no qual as diferenças sociais são
A “Constituição Cidadã” estabeleceu reduzidas e os direitos humanos são res-
de forma principiológica, mas ainda pouco peitados4.
pragmática, os direitos do cidadão. Mas ao
garantir o acesso à justiça e todas as suas
vertentes dentre os direitos e garantias in-
3. Defensoria Pública e sua missão
dividuais previstos no artigo 5o, o primeiro Buscando a compreensão da realidade
passo estava dado e como garantia funda- das Defensorias Públicas, o Ministério da
mental, o acesso ao judiciário se tornou Justiça, realizou, em 2004, um mapeamen-
meta de nossa nação (CUNHA, 2001). A to em âmbito nacional sobre a estrutura,
implementação do sistema de acesso demo- o funcionamento e o perfil dos membros
crático ao judiciário não foi tido pelos ide- da instituição, incluindo as Defensorias
alizadores de nossa Carta Magna, quando Estaduais e da União. O perfil institucional
rompiam com o antigo regime autoritário, e a caracterização de seus integrantes e
como uma “fórmula mágica” de fácil im- opiniões sobre determinados temas foram
plantação imediata. Em verdade, o processo os aspectos abordados pela pesquisa.
implica a descoberta de mecanismos que Conforme ressaltado pelo ex-presidente
sustentem o ideal principiológico constitu- da Associação Nacional dos Defensores Pú-
cionalmente estabelecido, a qual seria feita blicos, Leopoldo Portella Júnior (BRASIL,
e levada a cabo pelas futuras gerações, às 2004a), os estudos demonstraram a alta
quais, “competiria garantir a efetividade produtividade dos defensores públicos (em
do sistema de direitos constitucionalmente 2003, cada defensor público no país ajuizou
assegurados por meio dos recursos proce- ou respondeu, em média, 308,2 ações cíveis,
dimentais dispostos em seu próprio texto” 112,8 ações criminais, realizou 1.594,3 aten-
(VIANNA, et. al. 1999. p. 40).
Assim, para possível implementação
4
Por isso, é preciso decidir caso a caso, se e
em que condições o tratamento jurídico igual das
da garantia do acesso à justiça para todos, pessoas, privada e publicamente autônomas, exige
inclusive para aqueles incapazes de pagar uma equiparação fática. O paradigma jurídico pro-
um advogado, incumbe à Defensoria Pú- cedimentalista coloca em relevo esse duplo aspecto
blica esse mister nos termos do artigo 134 da relação normativa entre igualdade de direito e de
fato, e a autonomia privada e pública, de outro lado, e
da Carta Magna: “A Defensoria Pública é autonomia privada e pública de outro e caracteriza as
instituição essencial à função jurisdicional arenas nas quais deve desenrolar-se discursivamente
do Estado, incumbindo-lhe a orientação a disputa política acerca dos critérios controversos da
igualdade de tratamento, sempre que se pretende que
3
Art. 5o XXXV a lei não excluirá da apreciação do o fluxo do poder do sistema político siga na direção do
Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; . Estado de direito . (HABERMAS, 2002, p. 154)

174 Revista de Informação Legislativa


dimentos e participou de 298,7 audiências), dução industrial, 50% da tecnologia e 90%
apesar do pequeno investimento do Poder do sistema financeiro nacional. Nos Estados
Público nos serviços de assistência jurídi- Unidos, essa marca só é atingida quando se
ca integral e gratuita. Apenas 6,15% dos soma a produção dos três maiores estados.
gastos com o sistema de Justiça cabem à As estratégias de implantação do acesso à
Defensoria Pública. justiça devem considerar as desigualdades
É importante também que nos voltemos acentuadas de regiões do país6.
para estatísticas que revelem a desigual- Segundo a lei, é hipossuficiente todo
dade sócio-econômica brasileira, capaz de aquele que não pode suportar as despesas
traçar o perfil do povo brasileiro e o tama- e custas processuais, bem como não pode
nho de sua consequente necessidade de as- arcar com os honorários de advogado,
sistência judiciária gratuita. Segundo dados sem prejuízo do próprio sustento ou de
do IPEA e do IBGE, dentre os países em seus familiares, podendo ser atendido
desenvolvimento, o Brasil ocupa o 9o lugar pela Defensoria Pública. Como mais de
em renda per capita. Mas cai para o 25o lu- 70 milhões de brasileiros vivem abaixo da
gar quando se fala em proporção de pobres. linha da pobreza, conforme dados do IBGE,
Isso coloca o Brasil entre os países de alta e 92 milhões recebem renda inferior a 2
renda e alta pobreza, um dos primeiros do salários mínimos, torna-se urgente adoção
mundo em desigualdade social. Aqui, 1% de políticas públicas que tornem efetiva a
dos mais ricos se apropria do mesmo valor instalação das Defensorias Públicas nos Es-
que os 50% mais pobres. A renda de uma tados que ainda não atenderam à imposição
pessoa rica é 25 a 30 vezes maior que a de constitucional.
uma pessoa pobre. Na Suécia, a diferença Mas não basta garantir o acesso formal,
de renda entre ricos e pobres é de no má- é necessário que esse seja real. Como equa-
ximo seis vezes. Nos Estados Unidos e no lizar essa disparidade de forças, de modo
Uruguai, de dez vezes. A renda per capita que o acesso ao judiciário não seja apenas
do brasileiro é de 3400 dólares, maior do material, mas em verdade garantido em
que a de 55% dos países do mundo e mais equilíbrio com aqueles capazes de dispor
de 10 vezes o valor de países da África. dos serviços de um bom advogado? Para
Contudo, apenas 10% da população usufrui tanto, o artigo 134 da Constituição Federal,
de 50% das riquezas, enquanto outros 50% continua em seus parágrafos:
dividem 10%. Os demais 40% dividem 40% “§ 1o Lei complementar organizará
da renda, representando a classe média. O a Defensoria Pública da União e do
Brasil conta atualmente com 56,9 milhões Distrito Federal e dos Territórios e
de pessoas abaixo da linha de pobreza, prescreverá normas gerais para sua
sendo que 24,7 milhões estão abaixo da organização nos Estados, em cargos
linha de indigência. de carreira, providos, na classe inicial,
Além da diferença na distribuição de mediante concurso público de provas
renda, há uma notória diferença entre as e títulos, assegurada a seus integran-
regiões deste imenso país. No estado de tes a garantia da inamovibilidade e
São Paulo, segundo o consultor T. Kearney5, vedado o exercício da advocacia fora
há tal concentração econômica como não das atribuições institucionais. (Renu-
ocorre nos grandes países. Os paulistas, que merado pela Emenda Constitucional
representam 20% da população do Brasil, no 45, de 2004)
mantêm 35% das exportações, 45% da pro- 6
Fontes: Instituto de Pesquisa Econômica Aplica-
5
In: WEINBERG, Mônica. A renda engessa da IPEA e IBGE 2003. Pesquisa Nacional por Amostra
tudo. Artigo disponível em: <http://www.care.org. de Domicílios – PNAD: síntese de indicadores 2002.
br/?pobreza_artigos11>. IBGE, Rio de Janeiro.  

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 175


§ 2o Às Defensorias Públicas Estaduais e Justiça do Senado Federal, em 10.02.04,
são asseguradas autonomia funcional posicionou-se favoravelmente à autonomia
e administrativa e a iniciativa de sua da Defensoria Pública, considerando que o
proposta orçamentária dentro dos órgão deveria ser um espelho do Ministério
limites estabelecidos na lei de dire- Público. O jornal Folha de S. Paulo, edição
trizes orçamentárias e subordinação de 16.11.03, também revelou ser prioridade
ao disposto no art. 99, § 2o. (Incluído do Governo Federal a Emenda da Reforma
pela Emenda Constitucional no 45, do Judiciário, listando como ponto essen-
de 2004)” cial a autonomia da Defensoria Pública. Já
Assim, o cargo de Defensor Público o jornal Correio Braziliense, de 17.03.04,
deve ser provido por concurso público, que revelou: “a Defensoria terá autonomia para
não só satisfaz a lisura no emprego de verba definir seu próprio orçamento. Terá uma
pública, como também garante a seleção autonomia semelhante à do MP”.
de profissionais de qualidade, hábeis para A literatura jurídica recente, inter-
opor-se com qualidade e eficácia aos inte- pretando o que é claro, tem revelado as
resses daqueles que, capazes de servir-se de novidades da Emenda 45 da Constituição
advogados qualificados, pleiteiam contra Federal em que se fala da descentralização
o hipossuficiente econômico. Não basta e da autonomia funcional, administrativa
que haja acesso ao judiciário, é necessário e financeira da Defensoria Pública Esta-
se garantir que tal acesso seja capaz de dual (LENZA, 2007). Tem-se asseverado
reequilibrar o desequilíbrio causado pela que às Defensorias Públicas Estaduais são
diferença sócio-economica e consequentes agora asseguradas autonomia funcional,
oportunidades existentes nas mãos dos administrativa e financeira e a iniciativa
litigantes mais afortunados. Nesse sentido, de sua proposta orçamentária dentro dos
afirma Pietro Calamandrei: limites estabelecidos na lei de diretrizes
“(...) não basta que perante o juiz orçamentárias e subordinação ao disposto
haja duas partes em contraditório, no art. 99, § 2o, devendo os recursos e as
de modo que o juiz possa ouvir as dotações orçamentárias, compreendidos os
razões das duas; mas é preciso além créditos suplementares, ser-lhes entregues,
disso que essas duas partes se encon- igualmente como ao Judiciário e Ministério
trem em condições de igualdade não Público, até o dia 20 de cada mês, em duo-
meramente jurídica (que pode querer décimos na forma de Lei Complementar,
dizer meramente teórica), mas que conforme art. 168. (MACHADO, 2007)
haja entre elas uma efetiva igualdade A Constituição Federal garantiu a
prática, que quer dizer igualdade téc- assistência jurídica aos pobres no âmbito
nica e também igualdade econômica preventivo, extraprocessual e em juízo. O
(MARINONI, 1993, p. 29).” artigo 5o, LXXIV, viabiliza aos que não tem
A autonomia da Defensoria Pública veio recursos financeiros, o aconselhamento
a ser consagrada com a emenda constitu- sobre direitos, a gratuidade abrange ho-
cional 45, mas ainda se sujeita a diversas norários advocatícios, periciais, e custas
polêmicas, estando ainda em pauta no Con- judiciais ou extra-judiciais.
gresso Nacional a PEC 437/05 e a 144/07, A Defensoria Pública, como asseverado,
que buscam dar outras prerrogativas não é instituição essencial à Justiça, conforme
abarcadas na reforma do judiciário promo- artigo 134 da CF. O Brasil, “ao determinar
vidas pela EC 45. seu caráter constitucional revelou ter matu-
Quando ainda se discutia o Projeto da ridade democrática”. (BRASIL, 2004a)
Emenda, o Ministro Márcio Thomaz Bas- Afirma a procuradora Raquel Elias Fer-
tos, reunido na Comissão de Constituição reira Dodge que,

176 Revista de Informação Legislativa


“estes princípios influíram decisiva- A propósito da caracterização dos direi-
mente na idéia processual de manter tos como difusos, coletivos ou individuais
o equilíbrio da situação das partes em homogêneos, lecionam Nelson Nery Junior e
juízo, garantindo-lhes igualdade de Rosa Maria Andrade Nery (1999, p. 1864):
oportunidades no processo judicial, “Direitos difusos. (...). São direitos
como forma também de assegurar-lhe cujos titulares não se pode determi-
o direito ao contraditório e a ampla nar. A ligação entre os titulares se dá
defesa” (DODGE, 2003. p. 19). por circunstâncias de fato. O objeto
Nesse sentido, assevera Leonardo desses direitos é indivisível, não pode
Greco que “o acesso ao Direito não estará ser cindido. (...).
concretamente assegurado se o Estado não Direitos coletivos. Aqui os titulares
oferecer a todos a possibilidade de receber são indeterminados, mas determiná-
aconselhamento jurídico a respeito de seus veis, ligados entre si, ou com a parte
direitos” (GRECO, p. 74). contrária, por relação jurídica base.
A Defensoria Pública existe “em virtude Assim como nos direitos difusos, o
da relevância da cidadania e dos direitos objeto desse direito também é indi-
humanos e ganhando a importância como visível. (...).
instrumento constitucional e necessário à Direitos individuais homogêneos.
eficácia desses dois elementos”. (FANTA- São os direitos individuais cujo titular
ZZINI, 2003, p. 28) é perfeitamente identificável e cujo
Tendo como missão constitucional objeto é divisível e cindível. O que
garantir os princípios constitucionais de caracteriza um direito individual
acesso à justiça e igualdade entre as partes como homogêneo é sua origem co-
(ao romper as barreiras da estrutura econô- mum (...).”
mica), e o direito à efetivação de direitos e
liberdades fundamentais (o direito de ter
5. A ratio legis da ampliação
direitos), a Defensoria Pública está tratada
constitucionalmente no mesmo plano de dos legitimados
importância que a Magistratura e o Minis- Diante das dificuldades encontradas em
tério Público. razão dos inúmeros processos individuais
versando sobre a mesma matéria, o legisla-
dor tem despertado, como leciona Cândido
4. A Ação Civil Pública
Rangel Dinamarco (1996, p. 20), para:
Instituída pela Lei 7.347/85 e elevada “... a abertura do processo aos in-
ao status de ação constitucional pelo artigo fluxos metajurídicos que a ele che-
129, III, capaz de fazer coisa julgada erga gam pela via do direito material, a
omnes, a Ação Civil Pública é utilizada transmigração do individual para o
para casos que envolvem responsabilidade coletivo (Barbosa Moreira) e a neces-
por danos causados ao meio ambiente, ao sidade de operacionalizar o sistema,
consumidor, a bens e direitos de valor artís- desburocratizá-lo ou desformalizá-lo
tico, estético, histórico e paisagístico. A Lei tanto quanto possível, com vista a
8.078/90, Código de Defesa do Consumidor facilitar a obtenção dos resultados
veio a ampliar o sistema. justos que dele é lícito esperar.”
O objeto jurídico tutelado por tal ação Como o Judiciário, pelo princípio do
transcende à esfera individual, atingindo dispositivo, somente age por provocação,
uma coletividade de pessoas. Nesse senti- o processo é instrumento de atuação dos
do, surgem os chamados direitos difusos, órgãos jurisdicionais, visando a eliminação
os coletivos e os individuais homogêneos. do conflito. Tem função política, pois é

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 177


instrumento à disposição do cidadão para rantidor destes deve ser o Estado, por vezes
fazer atuar a tutela jurisdicional do Estado criando, por outras, gerindo e fiscalizando
e, assim, efetivar garantias constitucionais. e por outras tão-somente incentivando.
A jurisdição é o poder, função e atividade Não é à toa que legislador tem amplia-
do Estado para “formular e fazer atuar do, em tudo que possível e tocante a inte-
praticamente a regra jurídica concreta que, resses transindividuais, a legitimidade para
por força do direito vigente, disciplina de- se propor ações que beneficiem de uma
terminada situação jurídica” (THEODORO só vez a coletividade de pessoas lesadas.
JUNIOR, 1997). Conforme Carnelutti, ne- Assim, temos não só com a ampliação dos
cessita da invocação dos interessados para legitimados para a propositura da Ação Ci-
atuar nos casos concretos de conflitos de vil Pública que iremos tratar, como também
interesses qualificado por uma pretensão para o Mandado de Segurança Coletivo,
resistida (lide). instrumento aplicável para tutelar direitos
Diante de um país com tamanha despro- coletivos relacionados à atividade dos as-
porção na distribuição de renda, podemos sociados, conforme preceitua o artigo 5o,
afirmar que se deixássemos a tutela de LXIX da Constituição Federal7.
interesses coletivos relevantes ao encargo A preocupação de nossa Carta Magna em
dos particulares lesados, teríamos como ampliar os legitimados para propor ações
resultado uma distribuição também dís- de cunho coletivo e legitimar entidades
pare da justiça. Uma economia capitalista, públicas ou de caráter público para a prote-
maculada de tamanha desigualdade social ção de interesses transindividuais é clara e
e regional, leva ao problema a que bem ad- transparece em suas regras principiológicas
verte Habermas: “à medida que o Estado e e programáticas a exemplo: artigo 5o, incisos
a economia, institucionalizados através dos XXI, XXXII, LXX8, da Constituição Federal.
mesmos direitos, desenvolvem um sentido
sistêmico próprio, levando os cidadãos 6. Dificuldades do sistema
a assumir o papel periférico de simples de tutela coletiva
membros de uma organização, torna-se
evidente a síndrome entre a privatização da O interesse de enfrentar demanda
cidadania e o exercício do papel de cidadão individual, que em geral apresenta com-
do ponto de vista da defesa de interesses plicações e dificuldades, é insuficiente e
de clientes. Os sistemas da economia e da anti-econômico. A legitimidade sobre o
administração tendem a fechar-se contra direito a corrigir é restrita e o prêmio para
os seus respectivos ambientes, obedecendo 7
“Art. 5o LXX – o mandado de segurança coletivo
apenas aos imperativos do dinheiro e do pode ser impetrado por: a) partido político com re-
poder”. (HABERMAS, 2002, p. 294) presentação no Congresso Nacional; b) organização
Segundo Mauro Cappelletti (1994, p. sindical, entidade de classe ou associação legalmente
constituída e em funcionamento há pelo menos um
15), na concepção revolucionária do acesso ano, em defesa dos interesses de seus membros ou
à justiça, a atenção do processualista se associados;”
amplia para uma visão tridimensional do 8
“Artigo 5o: XXI – as entidades associativas,
direito. Sob essa nova perspectiva, o direito quando expressamente autorizadas, têm legitimidade
para representar seus filiados judicial ou extrajudi-
não é encarado apenas do ponto de vista cialmente; XXXII – o Estado promoverá, na forma
dos seus produtores e do seu produto (as da lei, a defesa do consumidor; LXX – o mandado de
normas gerais e especiais); mas é encarado segurança coletivo pode ser impetrado por: a) partido
principalmente, pelo ângulo dos consumi- político com representação no Congresso Nacional; b)
organização sindical, entidade de classe ou associação
dores do direito e da justiça, enfim, sob o legalmente constituída e em funcionamento há pelo
ponto de vista dos serviços processuais. menos um ano, em defesa dos interesses de seus
Tais serviços precisam ser eficazes e o ga- membros ou associados;”

178 Revista de Informação Legislativa


tal é pequeno. Individualmente a pessoa Aquele que deveria facilitar o acesso à
não tende a buscar a reparação, porque esta justiça e a celeridade do processo, o Estado,
seria pequena demais, não compensando o é, entretanto, o maior causador da morosi-
temor de perder a causa e as consequências dade, pois encontra-se em muito à frente do
de tal perda. Os indivíduos são levados ranking dos maiores usuários do sistema,
a confiar na ação governamental para a na medida em que 80% dos processos e
proteção de interesses difusos, pois a orga- recursos nos tribunais superiores são do
nização de seus interesses individualmente interesse do governo, conforme se verifica
sofre a influência de diversas barreiras, na tabela a seguir9:
principalmente a carência de informação ou
Processos Entes Públicos Percentual
combinação de estratégias comuns.
Por outro lado, a tutela de interesses União 41.152 9,20%
difusos, no sistema processual civil tradi- INSS 51.439 11,50%
cional, encontra uma série de dificuldades Caixa
(legitimidade, procedimentos e atuação dos Econômica 196.811 44,00%
Federal
juízes). A decisão tem efeito erga omnes,
ampliando a coisa julgada. A relutância Banco Central 447 0,10%
em legitimar indivíduos para representar Estados 36.678 8,20%
interesses difusos faz com que apenas de- Municípios 26.838 6,00%
terminadas instituições sejam legitimadas, Total 353.365 79,00%
mas estas costumam estar sujeitas à pressão
política (ausência de independência), ha- O judiciário se torna moroso e atolado
vendo dificuldade para defender interesses de ações em razão de manobras procrasti-
difusos contra entidades governamentais. natórias do Estado ou, ainda, o que é pior,
Os departamentos governamentais re- em razão de frontal desobediência à Lei. Já
presentativos de classes lesadas de maneira se tornou comum que municípios lancem
coletiva, apresentam problemas intrínsecos tributos em total desconformidade com a
aos sistemas burocráticos. Os Procons, por Lei ou mesmo de maneira inconstitucional,
exemplo, estão instalados de maneira bas- sabendo que o pior que poderá lhe suceder
tante heterogênea em todos país, ausentes é o judiciário mandar que se abstenha da
em alguns estados, presentes em outros, cobrança ou a faça de outra maneira ou em
mas com características muito díspares. Em outro montante. Ou seja, condenar a cobrar
alguns Estados são fundação, em outros o que desde o início deveria ter cobrado.
autarquia, em outros sem personalidade A tutela judicial nesse caso, em razão de
jurídica definida, presentes como órgãos jurisprudência já pacificada no STJ (REsp
de certa secretaria. Na maioria das vezes 106993, REsp 478958), não é possível se dar
não têm funcionários de carreira, os que ali por Ação Civil Pública, obrigando cada
atuam carecem de formação, treinamento particular a ingressar com seu respectivo
e ocupam os cargos por razões políticas e Mandado de Segurança e ainda todo ano,
não funcionais. já que este não faz coisa julgada para o
Assim, há grande limitação da máquina próximo exercício financeiro.
burocrática que tende a se tornar lenta, É imperioso que se pense em novos me-
inflexível e passiva. Os tipos de demanda canismos legais para conter a procrastina-
de interesses difusos costumam ser contra ção estatal em pagar o devido e outros que
organizações que têm disponibilidade imponham sanções para a desobediência
financeira e são litigantes habituais, conse- frontal aos parâmetros legais, de forma a
guindo exercer pressão sobre as decisões do 9
Estudo Diagnóstico do Judiciário promovido
governo, como é o caso dos bancos. pelo Ministério da Justiça.

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 179


evitar que o judiciário se torne moroso em das, mas pouco atenta aos pleitos de
razão do especial cuidado que está tendo de cidadania.” (SADEK, 2001, p. 41)
empregar com ações de interesse estatal.
Mazzilli (1998, p. 46-47) ressalta, “que 7. Inclusão da Defensoria Pública com
não é Justiça um serviço público que é ab-
legitimada para propor ações coletivas.
surdamente caro, lento e formalista, e que
discute muito mais o próprio processo do Como advento da Lei 11.448 de 2007,
que o próprio objeto da ação”. a Defensoria pública tornou-se um dos
A Ação Civil Pública, assim, tem apre- legitimados para a propositura da Ação
sentado grandes dificuldades em atingir Civil Pública previstos no rol do artigo 5o
seus objetivos, não atendendo as expec- da Lei 7347/85:
tativas que ensejaram a sua edição. Os “Art. 5o Têm legitimidade para pro-
legitimados são insuficientes, a burocracia por a ação principal e a ação cautelar:
é grande e o estado é mal aparelhado. (Redação dada pela Lei no 11.448, de
A legitimação de outros órgãos estatais 2007).
para a propositura de tal ação é medida I – o Ministério Público; (Redação
que deve ser incentivada. Segundo análise dada pela Lei no 11.448, de 2007).
de Paulo Cezar Carneiro (2000, p. 177-224), II – a Defensoria Pública; (Redação
acerca de pesquisas efetuadas na cidade dada pela Lei no 11.448, de 2007).”
do Rio de Janeiro, mais de 87% das ações Em razão disso, parte do Ministério Pú-
coletivas são interpostas pelo Ministério blico tem se insurgido contra a legitimação
Público e outros órgãos públicos, não ha- conferida por tal lei, sob a bandeira de tal
vendo grande atuação das associações que disposição representar usurpação de fun-
a lei buscou gerar. ções próprias ao Ministério Público.
A legislação sobre essa matéria, merece Por isso, faz-se mister a compreensão
evoluir, na “extensão da legitimidade ati- se tal legitimação decorre de fato de tal
va para particulares, agindo em nome da alteração legislativa ou se precede a eles
coletividade, assim como a ampliação dos ou mesmo à própria natureza das funções
interesses tutelados, pois não há razão para exercidas pela Defensoria Pública.
restringir as ações coletivas aos temas que
a lei, numeros clausus, delimita.” (BARRO-
8. Fundamentos de legitimação
SO, 1993, p. 140-141)
Diante dessas considerações, deve-se anteriores à edição da Lei 11.448/07
salientar a observação de Sadek, Lima e Em verdade, a discussão sobre a le-
Araújo: gitimidade da Defensoria Pública para
“(...) é necessário que se qualifique de a propositura da Ação Civil Pública re-
que acesso se fala. Pois a excessiva fa- monta, ainda que de forma acanhada, há
cilidade para um certo tipo de litigan- longa data, antes mesmo do advento da Lei
te ou o estímulo à litigiosidade podem 11.448/2007, que veio a incluir no rol dos
transformar a Justiça em uma Justiça legitimados do artigo 5o da Lei 7.347/85 a
não apenas seletiva, mas sobretudo Defensoria Pública.
inchada. Isto é, repleta de demandas Com o advento do Código de Defesa do
que pouco têm a ver com a garantia Consumidor, Lei 8078/90, foram incluídos,
de direitos – esta sim uma condição dentre os legitimados para a propositura da
indispensável ao Estado Democrático Ação Civil Pública, previstos no artigo 82,
de Direito e às liberdades individuais. “as entidades e órgãos da Administração
(...) temos hoje uma Justiça muito Pública, direta ou indireta, ainda que sem
receptiva a um certo tipo de deman- personalidade jurídica, especificamente

180 Revista de Informação Legislativa


destinados à defesa dos interesses e direitos reitos e interesses difusos, coletivos
protegidos por este código;” (inciso III). e individuais, a doutrina e jurispru-
Ora, conforme disciplina o art. 4o da Lei dência pátrias, embora de maneira
Complementar no 80/94, é função institu- ainda acanhada, vêm firmando o
cional da Defensoria Pública defender os entendimento de que, para fins de
interesses dos consumidores. Isso inclui a publicização da Ação Civil Pública,
Defensoria no conceito do inciso III do artigo deve-se utilizar um critério pluralista,
82 do CDC. Há quem argumente que a in- de forma a incluir entre os legitima-
tenção do legislador era conferir neste inciso dos para a propositura de tal ação até
legitimidade aos Procons, mas não se pode mesmo entidades ou órgãos públicos
negar que o conceito adequa-se perfeita- sem personalidade jurídica.”
mente à Defensoria Pública, visto ser órgão Tratando especificamente da legitimida-
público destinado, pela Lei Complementar de da Defensoria, Marivaldo Pereira (2007)
80 e pelas legislações estaduais que costu- acrescenta:
mam acompanhar a redação desta, à defesa “Sem dúvida alguma, a atribuição
dos interesses e direitos do consumidor. de legitimidade à Defensoria Públi-
Por sua vez, o inciso II, do art. 5o, da Lei ca para a propositura de Ação Civil
7.347 de 1985, antes do advento da citada Pública em defesa de direitos difusos,
Lei 11.448 de 2007, legitimava os órgãos coletivos e individuais homogêneos
que possuíssem finalidades institucionais representou um passo fundamental
de proteção ao consumidor à proposição de rumo à concretização dos direitos e
Ação Civil Pública. Assim era sua redação: garantias fundamentais da parcela
“Art. 5o – A ação principal e a cau- mais pobre da população brasileira,
telar PODERÃO SER PROPOSTAS com a qual o Estado encontra-se em
pelo Ministério Público, pela União, débito desde os seus primórdios.
pelos Estados e Municípios. Poderão Juridicamente, a medida encontra-se
também ser propostas por autarquia, em perfeita harmonia com o ordena-
empresa pública, fundação, sociedade mento em vigor, devendo-se rechaçar
de economia mista ou por associação a afirmação de que afetaria diretamen-
que: (...) II – inclua entre suas finalida- te as atribuições do Ministério Público,
des institucionais a proteção ao meio pois, apesar de eleger a propositura da
ambiente, ao consumidor, à ordem Ação Civil Pública como função insti-
econômica, à livre concorrência, ou ao tucional desse órgão, conforme dispõe
patrimônio artístico, estético, históri- em seu artigo 129, III, a Constituição
co, turístico e paisagístico: (...).” ressalva expressamente que a legiti-
Novamente, encontramos pelos mesmos mação atribuída ao Parquet não exclui
argumentos já alinhavados a subsunção da a de terceiros, ainda que nas mesmas
descrição da norma às funções exercidas hipóteses e mesmo que estipulada por
pela Defensoria Pública. norma infraconstitucional, conforme
Assim, antes do advento da Lei 11.448/07, é possível depreender de seu artigo
que como vimos, veio a incluir a Defensoria 129, parágrafo 1o.”
Pública expressamente no rol dos legitima-
dos, Cláudia Queiroz (2005) já alertava: 9. Argumentos em prol da limitação da
“Deste modo, diante da determinação
atuação da Defensoria Pública
contida no art. 117 da Lei n. 8.078/90
de aplicação, no que for cabível, dos Questão, no mínimo, controversa é trazi-
dispositivos constantes no Título III da por André Melo (2007) em seu texto “De-
do CODECON para a defesa dos di- fesa dos pobres: Limites da Defensoria para

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ajuizar Ação Civil Pública”. O autor primei- A CONAMP alega que a possibilidade
ramente analisa a questão da necessidade de da Defensoria Pública propor, sem restri-
comprovação da carência dos atendidos no ção, Ação Civil Pública, “afeta diretamente”
âmbito da Defensoria Pública, já que, muitas as atribuições do Ministério Público. A
vezes, acaba-se atendendo pessoas de classe norma impugnada afrontaria os arts. 5o,
média ou até mesmo alta em detrimento dos inc. LXXIV e 134, caput, da Constituição da
que realmente necessitam. Posteriormente República, que versam sobre as funções da
parte para a análise dos limites da defensoria Defensoria Pública de prestar assistência
no tocante à ACP e conclui que ela deve agir jurídica integral e gratuita aos que não
sempre que for invocada pelo cidadão, já possuem recursos suficientes.
que se propusesse em nome próprio estaria Argumenta a Autora que:
a usurpar competência do MP: “a inclusão da Defensoria Pública
“Ou seja, as entidades querem é no rol dos legitimados impede, pois,
assistência jurídica e não serem subs- o Ministério Público de exercer,
tituídas na ação, pois nesse caso não plenamente, as suas atividades, pois
têm voz ativa. Porém, o órgão que concede à Defensoria Pública atribui-
deveria prestar a assistência jurídica, ção não permitida pelo ordenamento
a Defensoria, vem querendo é atuar constitucional, e mais, contrariando
em nome próprio e assumir o controle os requisitos necessários para a Ação
da ação, o que refoge de sua atribui- Civil Pública, cuja titularidade per-
ção e gera um custo alto. Afinal, é tence ao Ministério Público, consoan-
uma função que já tem o Ministério te disposição constitucional” (fl. 5).
Público, o qual não pode atuar por re- E pondera que, nos termos dos artigos
presentação processual (advocacia) e constitucionais citados:
assim teríamos duas Instituições com “a Defensoria Pública foi criada para
função similar e a assistência jurídica atender, gratuitamente, aos necessi-
relegada a segundo plano. tados, aqueles que possuem recur-
[...] sua atribuição para ajuizamento sos insuficientes para se defender
de ações coletivas, inclusive ação po- judicialmente ou que precisam de
pular, pode dar-se apenas represen- orientação jurídica. Assim, a Defen-
tando processualmente um cidadão soria Pública pode, somente, atender
comprovadamente carente ou uma aos necessitados que comprovarem,
associação ligada aos carentes, sendo individualmente, carência financeira.
que a Lei 11.448/07 deve ser interpre- Portanto, aqueles que são atendidos
tada à luz da Constituição Federal pela Defensoria Pública devem ser,
sobre a atribuição da Defensoria, não pelo menos, individualizáveis, identi-
podendo agir de ofício (SIC).” ficáveis, para que se saiba, realmente,
que a pessoa atendida pela Instituição
10. ADI proposta contra a lei que não possui recursos suficientes para
o ingresso em Juízo. Por isso, não há
legitimou a Defensoria Pública
possibilidade alguma de a Defensoria
A Associação Nacional dos Membros Pública atuar na defesa de interesses
do Ministério Público (CONAMP) ajuizou difusos, coletivos ou individuais
Ação Direta de Inconstitucionalidade (no homogêneos, como possuidora de
ADI 3943 de relatoria da Ministra Carmen legitimação extraordinária” (fl. 6). 10
Lúcia), no STF, para contestar a lei que le- 10
A Associação Nacional dos Defensores Públicos
gitima a Defensoria Pública a propor Ação da União – ANDPU e a Associação Nacional dos Defen-
Civil Pública (Lei 7.347/85 em seu art. 5o). sores Públicos já foram admitidas como amicus curiae.

182 Revista de Informação Legislativa


Alega, também que “aqueles que são com Ação Civil Pública para tutelar todo e
atendidos pela Defensoria Pública devem qualquer interesse individual homogêneo,
ser, pelo menos, individualizáveis, identi- argumentando parte da doutrina que deve
ficáveis”, portanto, “não há possibilidade haver prova de interesse social relevante.
alguma de a Defensoria Pública atuar na Para Carvalho Filho, o Ministério Públi-
defesa de interesses difusos, coletivos ou co só terá legitimidade para a propositura
individuais”. de ACP, quando o interesse for indisponí-
Contra esse entendimento que moti- vel, já que a própria CF, em seu art. 12711,
vou o MP a ajuizar ADI questionando a definiu como missão institucional do MP a
legitimidade da DP, manifesta Cristina defesa de tais direitos:
Gonçalvez (2007, grifo nosso), defensora “Entretanto, somente se pode admitir
pública em SP: tal legitimidade se os interesses indi-
“A democratização dos instrumentos viduais homogêneos se qualificarem
de acesso à Justiça, antes de dividir, como indisponíveis, porque, como
deve ser vista como um fator de soma já visto, a constituição deixou claro
na busca de uma sociedade mais li- que a tutela do MP deve ser dirigida
vre, justa e solidária, efetivando dessa a interesses sociais e individuais in-
forma um dos mais importantes disponíveis (art. 127). (grifos presentes
objetivos fundamentais da Repúbli- no original) (CARVALHO FILHO,
ca Federativa do Brasil previsto na 2007, p. 127)”
Constituição Federal. Quando o mesmo eminente doutrinador
A Defensoria Pública não busca a define o que seriam tais direitos indisponí-
exclusividade na propositura da veis, deixa claro sua posição de exclusão da
Ação Civil Pública, mas que, isto sim, legitimação do Ministério Público para a
essa ação seja um meio para atacar e defesa de direitos individuais homogêneos.
corrigir as violações de direitos, em Assim, para Carvalho Filho, indisponível é
especial de direitos sociais, sofridas aquele direito em que:
pela população carente. “1) o titular não puder decidir, por
[...] si só, se deve, ou não, adotar as
A Defensoria Pública pretende de- providências necessárias para sua
sempenhar suas atribuições com defesa, e isso porque, queira ou não,
responsabilidade, imbuída do senso haverá outra pessoa ou órgão a quem
de que seus membros são servidores a ordem jurídica confere legitimação
públicos que devem salvaguardar para fazê-lo;
os direitos da população pobre bra- 2) tiver a qualificação de transindi-
sileira, que representa significativa vidual, porque sendo indivisível,
parcela da população nacional. E, por não há como identificar a dimensão
isso, temos certeza da constituciona- jurídica parcial pertencente a cada
lidade da legitimidade conferida à integrante do grupo, tornando-se,
Defensoria para propor Ação Civil pois, irrelevante a vontade individu-
Pública.” al. (Idem, p. 128)”
Vejamos então, que, para o eminente
11. Estaria a Defensoria Pública jurista, o Ministério Público só se encontra
de fato usurpando função 11
Art. 127. O Ministério Público é instituição per-
própria do Ministério Público? manente, essencial à função jurisdicional do Estado,
incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime
Há divergência doutrinária se o Ministé- democrático e dos interesses sociais e individuais
rio Público teria legitimidade para ingressar indisponíveis. (CF, grifo nosso)

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 183


legitimado para a propositura de Ação se como expoente de tais interesses,
Civil Pública, quando na defesa de direito o que bem se compreende, pois a
transindividual de natureza indivisível, capacidade postulatória, no caso de
em que o titular não possa decidir sobre a interesses meramente individuais,
propositura de ação individual. Ora, ten- agrupados ou não, é deferida à classe
do em vista que nos direitos individuais do advogados”.
homogêneos há sempre determinação dos Desta forma, a jurisprudência tem
sujeitos e divisibilidade do objeto, não há feito uso do conceito de interesse social
de se falar em legitimação do Ministério relevante para se averiguar a legitimidade
Público, para a propositura de Ação Civil do Ministério Público. Já se manifestou o
Pública, quando se tratar da tutela de tais Superior Tribunal de Justiça dizendo: “O
direitos. Ministério Público tem legitimidade ativa
Outrossim, assevera o próprio Hugo para ajuizar ação civil publica em defesa
Nigro Mazzili (1995, p. 83), respeitável de direitos individuais homogêneos, des-
doutrinador representante do Ministério de que esteja configurado interesse social
Público e profundo conhecedor de suas relevante”, (REsp 58682 / MG, Ministro
atribuições, como muitas obras publicadas Carlos Alberto Menezes Direito, Terceira
sobre o tema: Turma, DJ 16.12.1996, p. 50864, LEXSTJ v.
“a defesa dos interesses de meros 94, p. 130).
grupos determinados de pessoas Também tem se posicionado o STJ no
(como consumidores individual- sentido de que a falta de configuração de
mente lesados) só se pode fazer pelo real interesse coletivo afasta a legitimidade
Ministério Público quando isto con- do Ministério Público para promover Ação
venha à coletividade como um todo Civil Pública (REsp 236161 / DF; Ministro
(...); se é extraordinária a dispersão Aldir Passarinho Junior, Quarta Turma,
de lesados; se a questão envolve de- DJ 02.05.2006, p. 333 e REsp 53074 / SP,
fesa da saúde ou da segurança dos Ministro Garcia Vieira, Primeira Turma,
consumidores; se a intervenção mi- DJ 31.10.1994, p. 29480). Apesar de não ser
nisterial é necessária para assegurar assunto comum à manifestação do STF,
o funcionamento de todo um sistema também tem sinalizado esta corte com o
econômico, social ou jurídico. Não mesmo entendimento (RE 163231 / SP – São
se tratando de hipótese semelhante, Paulo, Min. Maurício Corrêa, Julgamento:
a defesa de interesses de consumi- 26/02/1997, Órgão Julgador: Tribunal
dores individuais deve ser feita por Pleno, DJ 29-06-2001, PP-00055).
meio de legitimação ordinária, ou,
se por substituição processual, por 12. Posição Jurisprudencial a respeito da
outros órgãos e entidades que não legitimidade da Defensoria Pública
o Ministério Público, sob pena de
ferir-se a destinação institucional 12.1. Contrariamente à
deste último.” legitimidade da Defensoria Pública
No mesmo diapasão, arremata Rodolfo Argumentação semelhante à da Asso-
Mancuso (2007, p. 30): ciação Nacional do Ministério Público, ao
“onde o interesse individual homo- propor a citada ADI contra a legitimidade
gêneo não se qualifica pelas notas de da Defensoria, é tecida por um magistra-
indisponibilidade, ou da relevância do de São Paulo, analisando uma ACP
social, ou ao menos pelo número no- proposta pela DP/SP, visando proteger
tável dos sujeitos concernentes, não cidadãos contra demolição de construções
poderia mesmo o Parquet apresentar- irregulares em área de manancial. Para

184 Revista de Informação Legislativa


este, a Defensoria Pública do Estado de cionalmente atribuída a defesa de interesse
São Paulo não teria legitimidade para dessa natureza”. (Idem)
questionar as demolições de construções Em outra Ação Civil Pública ajuizada
irregulares recentes em áreas de mananciais pelo Núcleo de Defesa do Consumidor da
feitas pela prefeitura de São Paulo, como Defensoria Pública do Estado do Rio de
parte da Operação Defesa das Águas. Foi Janeiro – NUDECON, em defesa dos consu-
o que decidiu o juiz Elias Júnior de Aguiar midores de energia elétrica daquele Estado,
Bezerra, da 2a Vara da Fazenda Pública de contra Light Serviços de Eletricidade S/A e
São Paulo, que extinguiu, sem julgamento CERJ – Companhia de Eletricidade do Rio
do mérito, Ação Civil Pública movida pela de Janeiro, se postulava a ilegalidade de
Defensoria contra a Prefeitura, em razão artigos da Portaria no 466/97 do DNAEE,
das demolições. A sentença foi publicada com a abstenção das rés em suspender o
na última sexta-feira (28/09). fornecimento de energia elétrica, bem como
Ao propor a Ação Civil Pública, a Defen- em calcular a dívida dos consumidores com
soria de São Paulo questionou a legalidade base em tal regramento legal, condenando
da Ordem Interna da Prefeitura que regu- aquelas na repetição de valores pagos in-
lamenta o poder de polícia do Município, devidamente. A respeito da legitimidade
base legal para as operações de desfazimen- da Defensoria Pública, assim se manifestou
to. A Defensoria também sustentou que as o STJ:
demolições violam a ordem urbanística e “A Defensoria Pública não possui
não podem ser realizadas sem ordem judi- legitimidade para propor ação cole-
cial. Com base nisso, requereu a concessão tiva, em nome próprio, na defesa do
de liminar para impedir as demolições. Nas direito de consumidores, porquanto,
palavras do magistrado: nos moldes do art. 82, inciso III, do
“Não se justifica reconhecer a legitimi- Código de Defesa do Consumidor,
dade da Defensoria para a propositura não foi especificamente destinada
de Ação Civil Pública que tem por para tanto, sendo que sua finalidade
destinatário grupo indeterminado de institucional é a tutela dos neces-
pessoas, revelando que se propõe à sitados. IV – O Supremo Tribunal
defesa de interesse difuso”, escreveu Federal, reforçando o entendimento
o juiz na sentença. “Aliás, dessa apa- sufragado, por meio da ADIN no
rente indeterminação ressalta ainda 558-8/MC, exarou entendimento
mais a ilegitimidade ad causam da no sentido da legitimidade da De-
autora (Defensoria), pois, se não pode fensoria Pública para intentar ação
precisar quais foram os atingidos pela coletiva tão-somente para representar
Ordem Interna impugnada, não pode judicialmente associação desprovida
também afirmar se todos são, ou não, dos meios necessários para tanto, não
hipossuficientes.” (JUSTIÇA ..., 2007) possibilitando a atuação do referido
No entendimento exarado, a tentativa órgão como substituto processual,
de proibir as demolições não cabe à Defen- mesmo porque desprovido de au-
soria Pública, mas apenas ao Ministério Pú- torização legal, a teor do art. 6o do
blico: “Como, no caso em espécie, não está CPC. Recursos especiais providos,
se cogitando de obrigação necessariamente para determinar a ilegitimidade ati-
pecuniária, sujeita à liquidação, e sim de va ad causam do NUDECON, com
um fazer ou não-fazer, os interesses aqui a consequente extinção do processo
em litígio se caracterizam como difusos, de sem julgamento de mérito, restando
forma que sua proteção deve ser reservada prejudicada a apreciação acerca do
ao Ministério Público, a quem foi constitu- prazo em dobro para o recorrido

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 185


apelar. (REsp 734176 / RJ, Ministro Também entendeu o STJ que a Procu-
FRANCISCO FALCÃO, PRIMEIRA radoria de Assistência Judiciária, antigo
TURMA, DJ 27.03.2006, p. 196, RB órgão da Procuradoria do Estado de São
vol. 511, p. 25).” Paulo que fazia as vezes da Defensoria
Entretanto, na maioria das vezes a juris- Pública, tem legitimidade ativa para propor
prudência se posicionou favoravelmente à Ação Civil Pública, objetivando indeniza-
legitimidade da Defensoria Pública, como ção por danos materiais e morais decor-
veremos a seguir. rentes de explosão de estabelecimento que
explorava o comércio de fogos de artifício
12.2. Entendimento jurisprudencial favorável e congêneres, porquanto, no que se refere
à legitimidade da Defensoria Pública à defesa dos interesses do consumidor
Em Ação Civil Pública objetivando a por meio de ações coletivas, a intenção do
defesa dos interesses da coletividade de legislador pátrio foi ampliar o campo da
consumidores, que assumiram contratos legitimação ativa, conforme se depreende
de arrendamento mercantil, para aquisição do artigo 82 e incisos do CDC, bem assim
de veículos automotores, com cláusula de do artigo 5o, inciso XXXII, da Constituição
indexação monetária atrelada à variação Federal, ao dispor expressamente que in-
cambial, entendeu o STJ que, no que se re- cumbe ao “Estado promover, na forma da
fere à defesa dos interesses do consumidor lei, a defesa do consumidor”. (REsp 181580
por meio de ações coletivas, a intenção do / SP, Ministro CASTRO FILHO, Terceira
legislador pátrio foi ampliar o campo da Turma, DJ 22.03.2004, p. 292)
legitimação ativa, conforme se depreende Também o Tribunal de Justiça do Rio
do artigo 82 e incisos do CDC, bem assim Grande do Sul entendeu pela legitimidade
do artigo 5o, inciso XXXII, da Constituição da Defensoria Pública em ação coletiva
Federal, ao dispor, expressamente, que questionando a interrupção do forneci-
incumbe ao “Estado promover, na forma mento de energia elétrica, motivada pelo
da lei, a defesa do consumidor”: não pagamento das contas (TJRJ, AgrIns no
“O NUDECON, órgão especializado, 2003.002.23562. Rel. Des. Manoel Marques.
vinculado à Defensoria Pública do 13a Câmara Cível. Julgado em 02 de junho
Estado do Rio de Janeiro, tem legiti- de 2004).
midade ativa para propor. Finalmente, cumpre ressaltarmos o teor
(...) da seguinte ementa de decisão proferida
Reconhecida a relevância social, pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro:
ainda que se trate de direitos essen- “Ação Civil Pública – Defensoria Pú-
cialmente individuais, vislumbra-se blica – Legitimidade Ativa – Crédito
o interesse da sociedade na solução Educativo – Agravo de instrumento.
coletiva do litígio, seja como forma de Ação Civil Pública. Crédito Educati-
atender às políticas judiciárias no sen- vo. Legitimidade ativa da Defensoria,
tido de se propiciar a defesa plena do para propô-la. Como órgão essencial
consumidor, com a consequente faci- à função jurisdicional do Estado, sen-
litação ao acesso à Justiça, seja para do, pois, integrante da Administração
garantir a segurança jurídica em tema Pública, tem a Assistência Judiciária
de extrema relevância, evitando-se a legitimidade autônoma e concorren-
existência de decisões conflitantes. te, para propor Ação Civil Pública,
Recurso especial provido. (REsp em prol dos estudantes carentes,
555111 / RJ, Relator(a) Ministro CAS- beneficiados pelo Programa do Cré-
TRO FILHO, TERCEIRA TURMA, DJ dito Educativo. Assim, a decisão que
18.12.2006, p. 363)” rejeitou a arguição de ilegitimidade

186 Revista de Informação Legislativa


ativa, levantada pelo Parquet, não lhe garantia dos princípios basilares de nossa
causou qualquer gravame, ajustando- constituição significam a destruição de
se, in casu, à restrição acolhida na tudo até então conquistado. Todavia, é essa
ADIN 558-8-RJ – Recurso reputado a pressão que exercerão as forças dominan-
prejudicado em parte e em parte des- tes e, repita-se, somente um sistema fortale-
provido. (AI 3274/96. Reg. 040497. cido de ações de peso, conjuntas, capazes de
Cód. 96.002.03274 – Vassouras. 2a beneficiar a toda uma coletividade, poderá
Câmara Cível. Rel. Des. Luiz Odilon conter tal ímpeto. Nesse mister, surge a
Bandeira – julgado em 25 de fevereiro idealização da Ação Civil Pública.
de 1997).” Assim, a junção da Ação Civil Pública
Assim, em todos os acórdãos citados, com a Defensoria, conferindo a esta últi-
notamos que tais decisões foram proferidas ma a legitimação para a propositura, nos
antes mesmo da vigência da Lei 11.448 de parece a reafirmação do fortalecimento do
2007, que incluiu a Defensoria Pública no caminho democrático trilhado por nossa
rol dos legitimados para a propositura Constituição.
da Ação Civil Pública. O argumento na Afirma a CONAMP que a legitimidade
maioria das decisões é justamente a inter- para a propositura da Ação Civil Pública
pretação ampliativa do rol dos legitimados pertence ao Ministério Público, o que após
para atingir a todos os órgãos públicos que uma análise ainda superficial do argumen-
tenham a função de defender os interesses to, já transparece sua precariedade, pois
concernentes à tutela coletiva. Talvez ins- simplesmente ignora que há muito tempo
pirado nessa perspectiva moderna, tenha o já compartilhava, de forma concorrente, tal
legislador se motivado a incluir, em 2007, a atribuição com outras instituições públicas
Defensoria Pública no rol dos legitimados da administração pública direta e indireta,
para propor Ação Civil Pública. entes estatais e até mesmo privados, como
é o caso das associações.
Ademais, devemos nos lembrar que
Conclusão
o artigo 129, III, da Constituição Federal
Falar em democracia é falar em igual- ressalva que a legitimação atribuída ao Par-
dade e a Defensoria Pública surge como quet não exclui a de terceiros, ainda que nas
ente estatal essencial para se garantir o mesmas hipóteses e mesmo que estipulada
reequilíbrio de forças dentro de um país por norma infraconstitucional, conforme
tão socialmente desigual. parágrafo primeiro do mesmo artigo
Em uma sociedade capitalista, onde o O argumento também de que para atu-
poder do dinheiro passa superar o equilí- ar deveria comprovar a atuação em favor
brio de forças idealizado por Montesquieu, daqueles que não têm condições de custear
configurado na tripartição entre executivo, um advogado e demais encargos proces-
legislativo e judiciário, é imperioso que suais e que isso seria impossível, em razão
um novo sistema de freios e contrapesos dos lesados não poderem ser identificados,
venha a surgir. O caminho para isso é a também não pode prevalecer. Primeiro,
fortificação de entes públicos destinados à porque como vimos, tal indeterminação de
defesa dos menos favorecidos, em especial sujeitos só existe para os direitos coletivos e
das relações de consumo, onde o ímpeto difusos, mas não para os individuais homo-
do poder econômico se mostra com mais gêneos. Em segundo lugar, porque, como
força. Nessa missão surge a instituição da também pudemos observar, a massa de
Defensoria Pública. pessoas carentes em nosso país é imensa e a
Políticas imediatistas que tragam bene- dificuldade verdadeira é conseguir excluir
fício econômico sem preocupar-se com a a possibilidade de uma Ação Civil Pública

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 187


não vir a beneficiar qualquer hipossuficien- fesa dos interesses e direitos protegidos por
te jurídico-econômico. aquela norma.
Por outro lado, tem argumentado doutri- Ora, o artigo art. 4o, da Lei Complemen-
na e jurisprudência que o Ministério Público tar no 80/94, atribui à Defensoria Pública
só tem legitimidade para propor Ação Civil justamente a função institucional de defen-
Pública para tutelar direitos individuais ho- der os interesses dos consumidores. Por sua
mogêneos quando o interesse for indisponí- vez, o inciso II, do art. 5o, da Lei 7.347 de
vel, que por sua vez, tem sido definido como 1985, antes do advento da citada Lei 11.448
aquele em que o titular não pode decidir, de 2007, também já legitimava os órgãos
por si só, se pleiteará ou não seu direito em que possuíssem finalidades institucionais
juízo, visto que há outra pessoa legitimada de proteção ao consumidor à proposição
para tanto, sendo o interesse indivisível e de Ação Civil Pública.
impossível de se determinar a dimensão Finalmente cumpre frisar, que a dou-
jurídica parcial pertencente a cada um. trina e jurisprudência pátria já vinham
Ora, tendo em vista que, como vimos, firmando o entendimento de que se deve
nos direitos individuais homogêneos há adotar um critério pluralista quando se fala
sempre determinação dos sujeitos e divi- em legitimação de órgãos para a proposi-
sibilidade do objeto, sendo perfeitamente tura da Ação Civil Pública.
identificável o dano sofrido por cada um Assim, podemos concluir que a Lei
e havendo plena capacidade dos sujeitos 11.448 de 2007 só veio reafirmar algo que há
individuais pleitearem por si só tais direi- muito já estava consagrado, a legitimidade
tos (do contrário não seriam individuais), da Defensoria Pública, que já decorria de sua
não há de se falar, então, em legitimação missão constitucional, das normas infracons-
do Ministério Público para a propositura titucionais citadas e da sua própria razão
de Ação Civil Pública quando se tratar da de existência. Sendo a Ação Civil Pública
tutela de tais direitos. instrumento de grande força para reequili-
Podemos afirmar ao final, que a legiti- brar relações entre partes economicamente
midade da Defensoria Pública para a pro- desiguais e sendo esta a função essencial da
positura da Ação Civil Pública antecede à própria Defensoria Pública, instituto e insti-
Lei 11.448/2007, que veio a incluir no rol tuição não podem andar separados!
dos legitimados do artigo 5o da Lei 7.347/85
a Defensoria Pública.
Primeiro, pelos postulados constitucio- Referências
nais que justificam sua própria existência e
a colocam como instituição essencial para a BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e
garantia da democracia, em especial no que a efetividade de suas normas: limites e possibilidades
toca ao reequilíbrio de forças dos economi- da constituição brasileira. Rio de Janeiro: Renovar,
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econômico de outros, tudo, conforme já BEZERRA, Paulo César Santos. Acesso à justiça: um
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190 Revista de Informação Legislativa


Novos modelos contratuais para uma nova
matriz energética
Aspectos jurídico-econômicos para produção de
biocombustíveis no Brasil

Nunziata Stefania Valenza Paiva

Sumário
Apresentação: a origem do PNPB. 1. Marco
legal dos biocombustíveis no Brasil. 2. O fenô-
meno da quase-integração. 3. Aspectos jurídicos
das relações contratuais de produção integrada
no Brasil. 4. Os contratos de integração verti-
cal agroindustriais na produção do biodiesel.
4.1. Eficiências e ineficiências do PNPB sob o
enfoque da análise econômica do direito e das
organizações. 5. Conclusões.

Apresentação: a origem do PNPB


Não seria possível discorrer acerca dos
contratos de integração para a produção de
biocombustíveis no Brasil, tema central des-
te trabalho, sem antes fazer uma referência,
ainda que breve, ao Programa Nacional
de Produção e Uso de Biodiesel (PNPB)
lançado oficialmente em 6 de dezembro
de 2004. O PNPB nasceu após os estudos
de viabilidade da produção e uso do bio-
diesel no Brasil realizado por um Grupo
de Trabalho Interministerial (GTI) com
ampla participação dos setores interessados
(universidades, pesquisadores, fabricantes,
Nunziata Stefania Valenza Paiva é Profes- produtores, governos e indústria automo-
sora de Direito Internacional Privado e Direito bilística, entre outros). O debate levou à
Civil da Escola de Estudos Superiores de Viçosa conclusão de que o biodiesel poderia ser
– ESUV; mestre em Direito Civil pela Faculdade
de Direito da UFMG; ex-bolsista do Istituto di
um vetor de contribuição para a promoção
Diritto Agrário Internazionale e Comparato – da inclusão social de pequenos agricultores
Firenze – Itália; bacharel em direito pela Univer- em regime de economia familiar, para a
sidade Federal de Viçosa – UFV; advogada. geração de renda e diminuição das desi-

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 191


gualdades regionais, para a economia de de uma normativa legal. Assim, pode-se
divisas e redução da “petrodependência”1. referir a um marco legal para a produção e
Enfim, para a redução da emissão de po- uso do biodiesel no Brasil um conjunto de
luentes com impacto positivo nas questões leis ordinárias complementadas por inú-
ambientais e da sanidade da população. É meros decretos e resoluções emitidos pelo
preciso ainda ressaltar que a palavra “bio- Ministério do Desenvolvimento Agrário
diesel” até então não existia legalmente no (MDA) e pela Agência Nacional de Petró-
Brasil, tendo sido criada pela lei 11.097 de leo, Gás Natural e Biocombustíveis, que
13.01.2005, que o definiu como “biocom- manteve a sigla ANP, embora tenha sofrido
bustível derivado de biomassa renovável o acréscimo de competência para fiscalizar
para uso em motores a combustão interna e regular a produção e comercialização de
com ignição por compressão, ou, conforme biocombustíveis. Entre as leis ordinárias,
regulamento, para geração de outro tipo de destacam-se a lei 11.097, de 13 de janeiro
energia que possa substituir parcial ou to- de 2005, que dispõe sobre a introdução do
talmente combustíveis de origem fóssil”2. biodiesel na matriz energética brasileira
A razão motivadora da criação do definindo o biodiesel, estabelecendo a mis-
PNPB assenta-se basicamente nos seguintes tura obrigatória nos combustíveis fósseis
pontos: a energia é espécie de combustí- utilizados de 2% e 5% até 2013, e ainda
vel indispensável ao desenvolvimento; amplia a competência da ANP.
o petróleo, até então principal fonte de Igualmente relevante como fonte nor-
combustíveis, tende a esgotar em prazos mativa de base é a lei ordinária 11.116, de
relativamente curtos; o Brasil tem nítido 18 de maio de 2005, que dispõe sobre a exi-
potencial, pelas condições de solo e clima, gência de registro, na Secretaria da Receita
para produção de biomassa. Sendo assim, Federal, do produtor e do importador de
a definitiva segurança energética passa biocombustíveis e, ainda, sobre a incidência
pela capacidade de cada país de produzir de tributos federais diferenciados por re-
combustíveis de fontes renováveis, e o bio- gião, por matéria-prima e tipo de agricultor.
diesel é uma dessas possibilidades. Nesse A lei-base do chamado “modelo tributário
contexto, o governo pretendeu engajar pe- aplicado ao biodiesel” é complementada
quenos produtores da agricultura familiar pelo Decreto 5.297 de 2004 e seu diploma
e aqueles das regiões mais pobres do país alterador, Decreto 5.457 de 2005, que criam
na cadeia produtiva do biodiesel, por meio o Selo Combustível Social e instituem os
de incentivos normativos como a criação coeficientes de redução do PIS/CONFINS.
do Selo Combustível Social e reduções Por fim, as instruções normativas do MDA
tributárias. no 01 de 5 de julho de 2005 e a no 02 de 30
de setembro de 2005 dispõem sobre os
critérios para o enquadramento social das
1. Marco legal dos
empresas produtoras de biodiesel; sobre
biocombustíveis no Brasil os percentuais mínimos de aquisição de
Como dito anteriormente, a palavra bio- matéria-prima de produtores agrícolas em
diesel foi efetivamente construída por força regime familiar para que a empresa possa
obter os benefícios da lei; a obrigatorie-
1
Denominação dada à clássica dependência do dade da co-participação das instituições
petróleo importado. representativas dos produtores rurais nas
2
Lei 11.097/05 de 13 de janeiro de 2005. Dispõe propostas de contrato de cultivo e venda de
sobre a introdução do biodiesel na matriz energética
brasileira e dá outras providências. Diário Oficial (da)
matéria-prima para as indústrias processa-
República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 14 jan. 2005. doras do biocombustível; sobre o conteúdo
Seção 1, p. 8. mínimo desses contratos.

192 Revista de Informação Legislativa


2. O fenômeno da quase-integração indústrias de alimentos e aos produtores de
gêneros alimentícios, atualmente pode-se
No contexto das sociedades industriali-
a afirmar que a coordenação dos setores
zadas, as mutações qualitativas das relações
industrial e rural atinge áreas diversas
entre a agricultura e a indústria constituem tais como a produção de biocombustíveis.
um dado novo. As modificações mais signi- Cresce, assim, a importância de estudos
ficativas, segundo Jannarelli (1993), surgem sistematizados dessa modalidade contratu-
das profundas transformações ocorridas no al cuja função socioeconômica poderia ser
setor industrial e que interessam, a princí- sintetizada no seu potencial de fortalecer
pio, às indústrias alimentícias. a atividade empresarial pela minimização
As indústrias alimentícias, buscando dos riscos existentes, sobretudo às oscila-
posicionar-se no mercado competitivo cada ções de mercado.
vez mais agressivo, adotaram modernas Preliminarmente, faz-se necessária uma
técnicas de marketing, fundadas prefe- definição geral do fenômeno da integra-
rencialmente sobre a diferenciação dos ção, que deverá referir-se ao fenômeno de
produtos a serem oferecidos no mercado origem econômica, enquanto a definição
consumidor. Particularmente, para asse- jurídica só é possível de se obter a partir da
gurar fontes constantes de fornecimento de análise da disciplina legal de cada país.
matéria-prima idônea destinada à transfor- O fenômeno da integração indica certo
mação industrial, optaram por uma política tipo de interação econômica entre duas par-
contratual de integração. Nesse sentido tes que desenvolvem uma das operações
afirma Jannarelli (1993, p.111) do ciclo produtivo referentes à produção,
“In alternativa alla soluzione, econo- transformação e venda de um determina-
micamente non sempre praticabile, do produto. Existe um centro de decisões
di inglobare nell’attività di impresa que se concentra na parte que desenvolve
anche la fase agricola (integrazione ao menos duas das operações descritas
verticale in senso stretto), ossia quella anteriormente e que normalmente seriam
legata alla produzione della materia desenvolvidas por diferentes núcleos ope-
prima, l’integrazione mediante con- rativos. São possíveis formas de integração
tratto (ossia la quasi-integrazione) em diferentes níveis, como, por exemplo,
ha rappresentato il veicolo attra- no setor distributivo para ligar o produtor
verso il quale l’impresa industriale ao varejista. Distinguem-se duas formas
o commerciale operante nel settore de integração, quais sejam, a horizontal, na
dell’alimentazione si è indirizzata alla qual as partes pertencem à mesma categoria
creazione di una propria rete di forni- econômica, e a vertical, em que as partes
tori di prodotti agricoli con l’obiettivo, pertencem a categorias diferentes.
soppratutto, di orientare l’offerta Mas deve-se observar que, na realidade,
alle esigenze specifiche proprie dei frequentemente não se realiza uma verda-
processi di trasformazione e di com- deira e própria integração vertical, mas sim-
mercializzazione dei prodotti.” plesmente o fenômeno que os economistas
Assim, pode-se dizer que os contratos chamam de “quase-integração”, e que cor-
de integração vertical agroindustriais, responde ao meio-termo entre a integração
nesse âmbito, realizam o importante papel total e o livre mercado3. Também chamada
de instrumento de modernização da agri- 3
Vide Jannarelli (1981, p. 327), segundo o qual
cultura, por meio da cooperação entre os “l’espressione quasi-integrazione, ovvero integrazione
setores produtivo, transformador e comer- mediante contratti, è usata nella letteratura economica
per descrivere quei rapportiche su base contrattuale
cializador. Se, a princípio, esse fenômeno si organizzano tra diversi settori produttivi al fine
de “quase-integração” interessa apenas às di coordinare l’attività di imprese operanti nei vari

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 193


de integração contratual, tal forma inte- do campo em que o mecanismo do preço
grativa conserva a independência jurídica competitivo pode surtir efeitos. Por isso, as
das partes, ao contrário da integração total, formas de associação de produtores, como
em que haveria a perda da independência as cooperativas e consórcios, são sempre
econômica e jurídica de uma das partes, e bem vistas e numerosas as normativas que
do livre mercado, no qual se conservam a incentivam tais associações.
independência econômica e jurídica4. A forma integrativa vertical é menos
As formas de integração mencionadas presente na prática, pois implica a con-
podem ser encontradas basicamente em centração de custos e riscos e pode ser
todos os setores produtivos, e, particular- representada por uma empresa industrial
mente, no setor produtivo agrícola a inte- ou comercial que cultiva um fundo agrí-
gração é frequente, seja na forma horizontal cola próprio, utilizando a produção na
como na vertical. A integração horizontal própria atividade de transformação ou
é fundamental para a correção dos efeitos comercialização. As condições econômicas
negativos derivados da excessiva frag- que levam a empresa a efetuar a integração
mentação das unidades produtivas, e isso vertical podem ser resumidas da seguinte
seja do ponto de vista de poder contratual forma: a primeira refere-se ao fato de que
em relação aos setores fornecedores de a integração pode reduzir ou eliminar al-
insumos e adquirentes de matéria-prima guns custos de transferência dos produtos
agrícola, seja da obtenção da economia de de uma fase a outra; a segunda consiste
escala para específicas funções produtivas5. na possibilidade de se assegurar tanto o
A integração horizontal favorece ainda abastecimento quanto a venda de produtos
uma maior homogeneidade da produção e serviços que, de outra forma, poderiam
agrícola, de forma que o mercado possa encontrar obstáculos no mercado; a terceira
ser abastecido de produtos padronizados, deriva do fato de que a integração pode
segundo tipos bem definidos, e possam ser determinada por condições de riscos
subtrair os agricultores da bem conhecida existentes no canal distributivo relativos a
inferioridade contratual nas relações com preços no momento de venda ou aquisição
os demais setores da economia. Portanto, o e características qualitativas da oferta e da
objetivo fundamental dessa forma de inte- demanda futura (comunicação e informa-
gração é a correção das distorções de mer- ções mais eficientes reduzem o risco da
cado dos produtos agrícolas e a expansão atividade comercial); a última refere-se à
possibilidade de alcançar algum controle
segmenti della catena produzione – trasformazione
do mercado pela capacidade de influenciar
distribuzione dei beni sotto la direzione di un polo
integratore . Tais relações desenvolvem, sem dúvida, a formação dos preços ou colocar em ação
um papel restritivo no mercado, o que nos leva a uma políticas de mercado a seu favor.
interessante análise de sua compatibilidade com as No entanto, a forma de integração que
normas vedam as restrições à concorrência.
vem se desenvolvendo com maior fre-
4
O contrato de sous-traitance realiza perfeitamente
o fenômeno da quase-integração, desenvolvendo a tare- quência é a contratual, representada por
fa de ligar economicamente os sous-traitants à empresa uma empresa industrial ou comercial que
chefe, permitindo-lhes conservar a plena independência adquire os produtos necessários à própria
econômica. Em particular, vide Traisci (1992, p. 555).
atividade, mediante um ou mais contra-
5
Pela economia de escala, que se torna possível
utilizar os processos que dão lugar a economia dos tos de cultivo ou de criação de animais,
custos unitários, economias conexas à utilização ótima estabelecidos com uma empresa agrícola.
dos equipamentos, da atividade administrativa e de Essa chamada integração contratual ou
outros serviços que de forma alguma as empresas
quase-integração, que atua por meio de
não integradas poderiam conseguir sozinhas devido
a sua insuficiente dimensão. Vide Cecchi; Cianferoni; contratos, pode apresentar um vínculo de
Pacciani (1991, p. 279-309). agregação mais ou menos estreito entre as

194 Revista de Informação Legislativa


partes. Assim, haverá a quase-integração de biocombustíveis no Brasil, tais como
parcial quando o vínculo entre as partes mamona, soja, dendê, pinhão-manso, vêm
for mais brando, de forma que a empresa sendo construídos consoante a lógica da
industrial ou comercial se integre à empresa integração vertical parcial e em formato
agrícola para garantir o seu fornecimento contratual bastante semelhante à já conso-
de matéria-prima. De outra forma, haverá lidada prática brasileira de integração nos
a quase-integração total quando a parte setores da avicultura e suinocultura. Con-
agrícola se vincula à parte industrial ou co- tudo, a pronta intervenção do Estado em
mercial, garantindo-lhe o fornecimento de regulamentar essa específica inter-relação,
matéria-prima e recebendo dela provisões conferindo ainda incentivos sob a forma
de insumos, financiamentos e assistência das sanções premiais ­– no binômio selo so-
técnica. cial e isenção fiscal –, bem como a preocupa-
Do ponto de vista econômico, resul- ção em traçar limites para a confecção dos
tados de observações empíricas6 indicam contratos individuais e, de alguma forma,
que a atividade regulada por contratos de exigindo a participação de entes coletivos
integração gera profundas transformações representativos dos produtores, são, sem
tecnológicas e organizacionais, além de dúvida, traços distintivos entre o modelo
caracterizar os produtores integrados como de integração contratual praticado no setor
um conjunto diferenciado de produtores alimentício sem qualquer intervenção do
rurais. Na verdade, as empresas integra- Estado e o modelo esboçado para a cadeia
doras esperam que os integrados atuem produtiva do biodiesel.
como empresários e tenham disposição
para investir, buscando assim assegurar o
fornecimento constante de matéria-prima
3. Aspectos jurídicos das
e sua estabilização. relações contratuais de
Os contratos de integração vertical vêm produção integrada no Brasil
sendo fortemente utilizados tanto nos seto- No Brasil, a utilização de modelos con-
res da industrialização como da comerciali- tratuais distanciados no seu conteúdo e
zação. A maioria da produção de legumes função dos modelos típicos do Código Civil
para processamento industrial na França, e que regulam as relações de colaboração
na Holanda, no Reino Unido, na Itália, na entre os setores produtivos agropecuário e
Espanha e no Brasil, somente para citar al- agroindustrial é uma realidade latente há
guns países, é produzida sob contratos que mais de vinte anos. A observação na prática
não são meramente de entrega e de venda, dos negócios indica uma nítida multiplica-
mas se constituem em “contratos de trans- ção dessa modalidade contratual no Brasil,
ferência administrativa ou empresarial”, no mesmo ritmo em que se modernizam
em que as firmas contratantes são respon- as relações agricultura-indústria, mas se
sáveis por muitas ou todas as tomadas de trata ainda de uma modalidade contra-
decisão, ou pela execução de atividades do
tual autônoma desprovida de tutela legal
processo de produção agrícola, incluindo
específica. A lacuna deixada pela falta de
oferta de insumos, determinação das épo-
regulamentação legal, bem como da precisa
cas de plantio e tratamento, e até mesmo
qualificação doutrinária e jurisprudencial,
realizando a colheita e o transporte.
precisa ser vencida. Mormente quando se
Os contratos que começam a ser celebra-
observa o espraiar-se dos modelos contra-
dos no Brasil entre produtores de matérias-
tuais de integração vertical agroindustriais,
primas cujo uso destina-se à produção
antes terreno solitário da matéria-prima
6
Nesse sentido, vide Bando (1998, p. 9); Alves alimentícia, para o novel setor de produ-
(1998, p. 7-9); Silveira (1997); Valenza (2005). ção de biocombustíveis. Nesse sentido,

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 195


uma adequada conceituação, classificação primeira vez, o Estado intervém de forma a
e interpretação sistematizada da doutrina estimular a participação de setores produti-
jurídica é de grande importância, inclusive vos excluídos, como a agricultura familiar,
porque se entende não seja possível separar sem a injeção própria de recursos públicos,
economia, direito e organizações. O avanço mas criando uma rede de incentivos para a
no plano econômico do Plano Nacional colaboração das empresas privadas e com
de Produção de Biodiesel depende da a legitimação contratual por parte do sin-
construção e re-construção de instituições, dicalismo. Segundo Accarini (2006, p. 61),
entre as quais o Direito, mais adequadas à no que se refere ao programa nacional de
nova demanda social. Segundo Zylberstajn biodiesel, “o papel das políticas públicas
e Sztajn (2005, p.7), tem sido o de propiciar condições para que
“As organizações são relações con- o mercado de biodiesel funcione de forma
tratuais coordenadas (governadas) mais eficiente possível e de dar suporte aos
por mecanismos idealizados pelos elos mais frágeis do mercado”, que seriam
agentes produtivos. Se a firma pode os agricultores familiares de um lado e os
ser entendida como um nexo de con- consumidores de combustíveis na outra
tratos, então problemas de quebras ponta da cadeia. Quanto à questão da efici-
contratuais, de salvaguardas, de me- ência do programa brasileiro de biodiesel, o
canismos criados para manter os con- uso da ferramenta da análise econômica do
tratos e, especialmente, mecanismos direito e das organizações é de fundamental
que permitam resolver problemas importância, pois pode permitir perceber
de inadimplemento, total ou parcial, riscos futuros potenciais inerentes ao am-
dos contratos, sejam tribunais ou biente institucional desenhado e com isso
mecanismos privados, passam a ter permitir a criação de salvaguardas.
destaque na Economia. Além disso, Grande é a dificuldade ao se dar tra-
fazem a ponte para as Organizações, tamento jurídico às formas de integração
através do Direito.” contratual que apresentam problemas de
A integração do setor primário ao setor reequilíbrio do poder contratual e buscam
industrial provocou uma profunda revolu- soluções jurídicas diversas daquelas desti-
ção no mundo agrícola. A importância des- nadas simplesmente a regular a colocação
sas formas integrativas destinadas a uma dos produtos no mercado. É preciso estar
forma de organização dos mercados (oferta atento para o grau de intervencionismo na
de produtos agrícolas orientada, em última matéria que originariamente é de domínio
instância, pelo mercado consumidor) levou dos particulares.
os Estados a se ocuparem de algumas for- A intervenção estatal por meio de legis-
mas de intervenção. Entre as muitas téc- lação específica é importante para garantia
nicas e modelos utilizados, nota-se que as do produtor, uma vez que este se encontra
legislações europeias privilegiaram o incen- em posição contratual mais fraca, e para
tivo ao desenvolvimento de associações de garantia da agroindústria, uma vez que
produtores e à organização dos mercados permite sejam fixadas as definições e os
agrícolas pelas chamadas “leis de orienta- limites para a aplicação das normas jurídi-
ção agrícola”, que preveem dispositivos de cas vigentes no país, sobretudo em termos
acordos entre setores produtivos diversos. tributários, trabalhistas e previdenciários.
É o que acontece na Itália com os “accordi É importante, ainda, para a própria existên-
interprofessionali” e na França com os “ac- cia dessa categoria contratual destinada a
cords interprofessionels a long terme”. No servir de instrumento de organização do
Brasil, o modelo proposto para a produção mercado agrícola. Contudo, é preciso que
de biodiesel tem algo de inédito, pois, pela esse intervencionismo não comprometa

196 Revista de Informação Legislativa


a necessária autonomia da vontade das (na entidade coletiva de organização dos
partes. Por isso, muitas vezes, a opção trabalhadores rurais) para selecionar seus
das legislações europeias em disciplinar fornecedores de matéria-prima, bem como
os contratos de integração vertical agroin- para negociar os contratos e organizar a
dustriais junto à disciplina das associações oferta de matéria-prima, controlando a qua-
parece ser mais sábia, pois coloca lado a lidade do produto mediante um aparato
lado a autonomia individual e a autonomia de assistência técnica que ocorre durante
coletiva: uma garantindo a liberdade na todo o processo produtivo no campo, sendo
contratação, e a outra o equilíbrio entre as garantido aos produtores um preço mínimo
partes no contrato. e garantia de compra do produto. Nesse
Embora o marco legal até o momento quadro, o Estado participa oferecendo os
editado não tenha se preocupado com a incentivos adequados, entre os quais crian-
questão da normatização dos contratos do o selo social que permite aos detentores
de integração, nem tenha avançado na dessa “certificação” participar dos leilões
disciplina das organizações coletivas in- organizados pela Agência Nacional do
terprofissionais como entes legitimados Petróleo, assim como usufruir importantes
a representar os interesses das partes isenções fiscais.
contratantes, produtores e industriais, nas A dimensão da produção do biodiesel
negociações e na fase de cumprimento dos ultrapassa certamente o campo da produ-
contratos, algum avanço pode ser sentido ção e colocação do produto no mercado.
quando o Estado, por meio de incentivos Abre caminho para a incorporação de
positivos, vincula a produção do biodiesel temas como a responsabilidade social das
à participação colaborativa das empresas empresas, a segurança alimentar na inte-
privadas, dos produtores familiares e dos gração com a produção de alimentos e a
sindicatos, que vão legitimar as contra- preservação ambiental na medida em que
tações de matérias-primas destinadas à biocombustíveis ajudam na diminuição
indústria. de gases poluentes e trabalham a integri-
dade ecológica dos territórios agrícolas
4. Os contratos de integração por onde os produtos da matéria-prima se
vertical agroindustriais na expandem.
Basicamente três são os atores sociais
produção do biodiesel
envolvidos na produção do biodiesel: as
A política pública de incentivo ao uso e empresas que produzem o biodiesel, os
à produção do biodiesel no Brasil tem como produtores rurais, entre estes os agricul-
um de seus objetivos o de ser um instru- tores familiares, os sindicatos dos traba-
mento de promoção da inclusão social de lhadores rurais e o Estado, por meio do
agricultores familiares mediante a geração Ministério do Desenvolvimento Agrário
de renda devido ao engajamento na cadeia (MDA). Segundo Abramovat e Magalhães
produtiva do biodiesel. Segundo Abramo- (2007), não se trata do mesmo tipo de rela-
vat e Magalhães (2007), a integração con- ção que empresas integradoras de peque-
tratual que ocorre na produção do biodiesel nos animais mantêm com os agricultores do
proposta no PNPB é mais do que um caso Sul do país, porque, no caso do biodiesel,
típico, já conhecido nas cadeias de produ- os contratos são “monitorados socialmente,
ção de alimentos como na avicultura e fru- regulamentados pelo governo e sujeitos a
ticultura. O que se tem é um padrão inédito negociações que não se limitam à empresa
de funcionamento do próprio mercado e e aos agricultores”. Os sindicatos teriam um
sua coordenação. Nesse novo padrão, as papel que vai além da defesa dos interesses
empresas se apóiam no movimento sindical dos agricultores para assumirem um vivo

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 197


papel normativo na formulação e execução geográfica onde se encontra, com o objetivo
dos contratos. transversal de promover para atenuar as
A base do incentivo estatal à participa- disparidades regionais no Brasil. Assim, no
ção das empresas no PNPB é a normativa Nordeste e semiárido, o percentual mínimo
que determina como obrigatória a mistura de aquisição de matéria-prima advinda de
de 2%, começando em 2008 e atingindo 5% agricultores familiares integrados é de 50%,
em 2013, de matéria-prima energética não para as regiões Sudeste e Sul 30%, e para o
fóssil na composição do óleo diesel mineral. Norte e Centro Oeste 10%.
Essa regra normativa cria de alguma forma No entanto, a garantia de compra do
uma garantia de que haverá mercado para produto representada pelo selo social
o produto e um mercado crescente. Uma não é o único incentivo normativo criado
vez dado o incentivo pela norma, é possí- para fazer com que as empresas negociem
vel inserir medidas de caráter social, que com os pequenos agricultores. Há ainda
seria a promoção da participação na cadeia importantes isenções fiscais. Nesse ponto,
produtiva dos agricultores familiares 7, o incentivo tem caráter dúplice: visa esti-
uma categoria marginalizada no mercado mular a relação contratual entre empresas
e que de outra forma provavelmente não e agricultores familiares e ainda beneficia o
participaria dessa cadeia produtiva. A uso de matérias-primas pouco empregadas
norma dispõe que as empresas somente na produção do biodiesel, como a mamona
poderão participar dos leilões nos quais a e o dendê, mais adaptáveis ao sistema de
PETROBRAS realiza a compra antecipada produção familiar. Além disso, a norma se
da produção de biodiesel (novamente a revela em importante incentivo a policul-
ideia de garantia de mercado) e precisam tura no lugar das monótonas monoculturas
apresentar o selo social. até hoje implantadas como fontes para a
O selo social é espécie de certificação produção de biocombustíveis, e que se
social atribuída pelo MDA, tendo por base expandem por vastas áreas, inclusive con-
uma minuciosa análise do contrato de in- tribuindo com o crescente desmatamento,
tegração que as empresas e os produtores como o que ocorre com a cana de açúcar
firmaram, com a participação do sindicato e a soja.
de trabalhadores rurais do município, O controle sobre o cumprimento das
em que a produção da matéria-prima do percentagens estabelecidas na lei vem
biodiesel será efetivada. A norma, contida dos contratos de integração individuais
na Instrução Normativa do MDA no 02, de assinados com os produtores, mas que são
30 de setembro de 2005, art. 3o, fixa os pa- também assinados e monitorados pelos
râmetros para a obtenção do selo, criando Sindicatos dos Trabalhadores do Município
percentuais diversos de participação obri- em questão.
gatória da agricultura familiar no montante Quanto à forma e ao conteúdo desses
de matéria-prima adquirida pela empresa “novos” modelos contratuais de integração,
processadora, dependendo ainda da região o art. 5o da Instrução Normativa do MDA no
02, de 30 de setembro de 2005, dispõe que a
7
Agricultor familiar é aquele que explora direta e proposta de contratos terá a participação de
pessoalmente com auxílio de sua família propriedade
familiar. Esta é definida pelo art. 4, inciso II, Estatuto
pelo menos uma representação dos agricul-
da Terra (lei 4.504/64) como sendo “o imóvel rural tores familiares. A interpretação literal da
que, direta e pessoalmente explorado pelo agricultor norma indica que já na fase de negociação
e sua família, lhes absorva toda a força de trabalho, do contrato deverá existir a participação
garantindo-lhes a subsistência e o progresso social e
econômico, com área máxima fixada para cada região
dos sindicatos, e não a mera aposição de
e tipo de exploração, e eventualmente trabalhado com assinatura deste no instrumento contratual
a ajuda de terceiros”. pré-elaborado pela empresa industrial. O

198 Revista de Informação Legislativa


parágrafo único do mesmo artigo deter- os sujeitos da relação, que são sempre o
mina o conteúdo mínimo a ser observado produtor agrícola de um lado e a empresa
nos contratos: prazo contratual; o preço industrial do outro, ou melhor, a empresa
de compra do produto e os critérios de agrária de um lado e a empresa industrial
reajustes de preços; condições de entrega ou comercial do outro lado.
da matéria-prima; as garantias contratuais; A diferença entre os contratos da ca-
a assinatura de concordância da entidade deia do biodiesel e os contratos da cadeia
representativa do agricultor familiar que alimentícia parece residir no arranjo insti-
participou das negociações comerciais. tucional criado pelo Estado, que permitiu
Dispõe a norma supracitada que se a sua intervenção indireta por meio de
constitui em requisito obrigatório para mecanismos entrelaçados de incentivos,
a obtenção do selo social que a empresa dentro de uma política pública de uso e
disponibilize e opere um plano de assistên- produção de biocombustíveis, enquanto
cia e capacitação técnica dos agricultores que na cadeia alimentícia, no tocante aos
familiares, que serão atendidos individu- contratos de integração, nota-se uma abso-
almente. luta abstenção do Estado em intervir, dei-
Enfim, por todas as características con- xando completamente lacunosa a disciplina
tratuais apresentadas, pode-se concluir a ser dada às relações privadas nascidas dos
que o PNPB absorveu o modelo contratual contratos de integração agroindustriais.
autônomo que realiza o fenômeno da qua- Contudo, a partir dos primeiros marcos
se-integração já amplamente utilizado em legais da produção do biodiesel, conforme
outros setores, como a integração operada tratado no item 1, impõem-se os seguintes
nos setores avícola e suinícola, entre outros. questionamentos: pode-se dizer que no
A construção de um conceito dos contra- Brasil a partir da a Instrução Normativa no
tos de integração vertical agroindustriais, 02, de 30 de setembro de 2005, do MDA,
certamente, terá por base os elementos que dispõe entre outras coisas a obrigato-
essenciais que os caracterizam. São estes: riedade da co-participação das instituições
a reciprocidade das obrigações de fazer e representativas dos produtores rurais nas
de dar8; o fornecimento recíproco de bens propostas de contrato de cultivo e venda de
ou serviços; a dominação, que é um critério matéria-prima para as indústrias processa-
identificável no poder de controle e direção doras do biocombustível e sobre o conteúdo
exercido pelo pólo integrador na busca da mínimo desses contratos, que haveria uma
qualidade dos produtos; a função de troca tipificação legal direta dos contratos de
e de cooperação pela qual se pretende integração vertical agroindustriais? Não
resolver o problema da irregularidade na haveria também a possibilidade de se con-
oferta de matéria-prima para a indústria siderar uma tipificação indireta a partir
e a dificuldade de colocação no mercado dos modelos contratuais-tipos formulados
dos produtos agrícolas pelo produtor; pelas empresas e sindicatos dos trabalhado-
res rurais/agricultores familiares? Terão os
8
A dependência recíproca entre agentes econô- sindicatos condições de serem bem sucedi-
micos torna o planejamento especial, dando-lhe perfil
dos na tarefa normativa, ou seja, contribuir
menos competitivo. Não que isso signifique o desapare-
cimento da concorrência, mas há uma espécie de rotina para elaboração de contratos de integração
associativa entre unidades produtivas que aparece fora de cunho coletivo (tarefa essa já bem con-
do tradicional esquema de constituição de sociedades. solidada no direito do trabalho)?
Ocorre sob outras formas para facilitar o exercício da Certamente a inter-relação empresa–
atividade em regime de especialização e cooperação de
longo prazo. Não há necessidade de ter um único centro
agricultor familiar, criada na cadeia do
de imputação da atividade, que se exerce ao longo da biodiesel, ainda não foi estabilizada e nada
cadeia produtiva. Vide Sztajn (2004, p. 14). garante que terá vida longa; contudo, o

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 199


mérito reside no avanço institucional signi- a satisfação humana medida pela vontade
ficativo que numa análise, ainda que breve, de pagar por produtos e serviços, alcance o
parece ter fortes chances de se consolidar. nível máximo (Cf. ALPA, 1982, p. 11).
Por sua vez, o critério da eficiência não
4.1. Eficiências e ineficiências do PNPB é uma ideia afastada do Direito, muito pelo
no enfoque da análise econômica do contrário, pois aferir a eficiência ou inefici-
direito e das organizações ência de leis e decisões judiciais condiz com
A Economia pode, de forma simplifica- a produção melhor ou pior dos efeitos pre-
da, ser conceituada como ramo das ciências tendidos pela norma em abstrato no mundo
sociais aplicadas destinado à análise da das relações concretas. Pode-se partir da
forma pela qual a sociedade gera, organiza ideia de que o “direito não dá comandos
e usufrui dos limitados recursos materiais impossíveis, pois comandos impossíveis
com o objetivo de atender as suas neces- não serão cumpridos” (Cf. ALPA, 1982, p.
sidades. O Direito, por sua vez, também 11), compreender que a maior ou menor
numa concepção simplificada, pode ser efetividade das normas está relacionada
conceituado como ramo das ciências sociais com a escolha pela norma dos incentivos
aplicadas destinado ao estudo de princípios (sanções restritivas e sanções premiais)
e regras destinados a reger as condutas das mais ou menos adequados. Embora a
pessoas na sociedade e que, no seu con- eficiência econômica, corporificada pela
junto, vão compor um sistema jurídico. A maximização na geração e distribuição da
princípio poder-se-ia pensar, como de fato riqueza disponível em uma dada socieda-
ocorria há algumas décadas, na existência de, não seja o único valor a ser perseguido
de um abismo intransponível entre Direito pelo ordenamento jurídico, é certamente
e Economia, pois ao Direito alinhava-se a um dos valores a serem implementados.
ideia de valores entre os quais a justiça, Trata-se de valor-meio na medida em que
enquanto a Economia dizia respeito à efici- consiste num instrumento pelo qual se
ência. Contudo os estudos interdisciplina- permite ao indivíduo a plenitude de outros
res, que, numa discussão contemporânea, valores fundamentais, tais como a liber-
tem como pioneiros Ronald Coase, Guido dade e dignidade humana (Cf. COOTER;
Calabresi e Trimarcchi, apontaram novos ULEN, 2005, p. 4).
aspectos na relação Economia e Direito, A partir da ideia defendida por Coase
contribuindo para o esmorecimento do de que “as instituições legais impactam
mito da existência da completa incomunica- significativamente o comportamento dos
bilidade entre Ciência econômica e Ciência agentes econômicos” e de Guido Calabresi
jurídica. Algumas interfaces podem, de de que “uma análise jurídica adequada não
plano, serem percebidas. prescinde do tratamento econômico das
O economista de hoje não é desprovido questões” (Cf. ZYLBERSTAJN; SZTAJN,
de uma escala de valores e o fundamento 2005, p. 2), torna-se clara a relevância dos
dessa escala de valores é a eficiência econômica estudos interdisciplinares da Economia e do
com a suposição de que o homem é um ma- Direito levados a efeito pela Análise Econô-
ximizador racional dos objetivos de sua vida mica do Direito que, conforme Silva (2006,
e de suas satisfações. Os instrumentos con- p. 3), “é a aplicação da teoria econômica e
ceituais de Posner são a noção de preço, de dos métodos econométricos no estudo da
custo, de custo de oportunidade, de alocação formação, dos processos e do impacto das
dos recursos da maneira mais vantajosa. normas e instituições jurídicas, sendo estas
Eficiência no trabalho de Posner significa, vistas como variáveis dentro do sistema
portanto, o aproveitamento dos recursos econômico e não como fatores externos a
econômicos de modo que o valor, ou seja, ele”. A análise econômica deve considerar

200 Revista de Informação Legislativa


o “ambiente normativo” que envolve os original ainda que recebam, em dinheiro, o
agentes econômicos para não “correr o ris- valor correspondente ao acréscimo em seus
co de chegar a conclusões equivocadas ou bens e serviços que a medida ou conduta
imprecisas”, por não ter em consideração em análise os atribuiu”. A análise econômi-
às sanções impostas ao comportamento ca do direito pressupõe que a conduta con-
dos agentes (Cf. ZYLBERSTAJN; SZTAJN, forme a lei ou desconforme a ela é decidida
2005, p. 2). a partir de seus interesses e dos incentivos
A análise econômica tem aspectos posi- que encontra para efetuá-la ou não. Os
tivos e normativos. No primeiro, a função agentes pautam suas condutas analisando
da análise econômica seria o de prever os previamente a melhor relação custo versus
efeitos das regras de direito, analisando benefício. Assim, a sanção jurídica será o
como os agentes econômicos vão reagir às elemento encorajador ou desencorajador
mudanças nas regras jurídicas. Esse tipo do cumprimento do preceito contido na
de análise posteriormente pode ser usado norma de direito; não será o mero temor
com fins normativos, ou seja, a partir dos ao poder de coerção do Estado a fazer com
esclarecimentos produzidos na análise que indivíduos dirijam suas condutas de
positivista, procura-se estabelecer reco- acordo com o dispõem as normas, será,
mendações de políticas públicas e modelos em primeira e última instância, uma aná-
normativos diversos baseados nas várias lise econômica de custos e benefícios nos
conseqüências econômicas (Cf. PINHEIRO; quais incorrerão caso o façam ou deixem
SADDI, s.d, p. 23). A análise econômica tem de fazê-lo.
um papel explicativo e prescritivo do mo- Na perspectiva de análise custo/be-
delo normativo do Programa Nacional de nefício, podem ser elucidadas algumas
Produção e Uso do Biodiesel. Em primeiro vantagens e algumas desvantagens (ris-
lugar, porque permite denunciar os efeitos cos) extraídas do modelo legal, base do
das normas criadas para permitir a implan- Programa Nacional de Produção e Uso do
tação do programa, e depois porque, uma Biodiesel.
vez identificados os efeitos, caberá ao le- Para que a indústria fabricante do bio-
gislador, a partir dessa informação, decidir diesel venha aderir ao PNPB, contratando
se esses efeitos são ou não adequados aos a compra de matéria-prima dos pequenos
valores prevalentes na sociedade, podendo agricultores familiares na forma descrita
inclusive modificar a normativa de forma pela instrução normativa no 02 de 30 de
a tornar o PNPB mais eficiente. setembro de 2005 do MDA, ou seja, obede-
Enfim, é preciso estabelecer um signifi- cendo ao percentual mínimo de quantidade
cado para a eficiência. Diz-se que o Direito é a ser contratada e fazendo-o com a inter-
eficiente, segundo a regra de Pareto, “quan- mediação dos sindicatos de trabalhadores
do molda a conduta dos indivíduos de for- rurais, dois importantes incentivos foram
ma a incentivá-los a alocar os recursos ma- dados a elas. Trata-se da redução da carga
teriais disponíveis na propriedade daqueles tributária federal incidente sobre o biodie-
que mais os desejem.” Para Pimenta (2006, sel, tendo sido fixada alíquota zero para o
p. 164), numa outra concepção de eficiên- IPI, não incidência da CIDE-petróleo, redu-
cia “haverá um ganho real no bem-estar e ção proporcional do PIS/Pasep e Cofins. A
riqueza da sociedade quando determinada tabela9 apresentada a seguir mostra resumi-
conduta ou ato economicamente relevante damente a incidência de tributos federais e
redistribuir os bens e serviços disponíveis a comparação com o diesel mineral.
de forma que os agentes econômicos afeta- 9
Fonte: Decretos no 5.298 de 06.12.2004; 5.297 de
dos pelos efeitos dessa medida econômica 06.12.2004 e 5.457 de 06.06.2005;Vide ainda: ABRA-
não estejam dispostos a retornar à posição MOVAY; MAGALHÃES, (2007).

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 201


Tributos federais incidentes sobre o biodiesel por tipo/origem da matéria-prima
Norte,
Agricultura Nordeste e
familiar Semi-árido
no Norte e com mamona
Tributos Agricultura
Nordeste e ou palma Diesel mineral
Federais familiar
Semi-árido Fornecedor
com mamona diverso
ou palma agricultura
familiar
IPI Alíquota zero Alíquota zero Alíquota zero Alíquota zero

CIDE Inexistente Inexistente Inexistente R$ 0,070

PIS/Pasep e Redução de Redução de Redução de


R$ 0,148
Cofins até 100% até 68% até 32%
Total de
tributos em R$0,00 R$ 0,070 R$ 0,218 R$ 0,218
R$/litro

A redução da carga tributária estabe- to. Aponta-se ainda como desvantagem


lecendo um vínculo entre a agricultura genérica dos programas de produção de
familiar e as localidades brasileiras onde biocombustíveis a ameaça à segurança
os níveis de desenvolvimento humano e alimentar mundial, pois, como afirmam
econômico são mais críticos, bem como Abramovay e Magalhães (2007), citando
ao produto que servirá de matéria-prima Jean-Marc Boussard, a “generalização e
para o biodiesel (mamona e palma) diverso a exclusividade no uso de biocarburantes
daqueles já praticados no Brasil em sistema como fonte de energia poderia constituir
de plantio em grandes áreas, com alta tec- uma pressão insuportável sobre as terras
nologia e monocultura, como é o caso da agrícolas”. Os produtos que inicialmente
cana de açúcar e da soja, são medidas que constituíam matéria-prima primordial-
contribuem, em parte, para atenuar uma já mente alimentar, agora passariam tam-
apontada desvantagem do programa, que bém a se constituírem em matéria-prima
seria a degradação ambiental e o perigo de um importante setor de produção de
para a segurança alimentar. A expansão da combustíveis, o que levaria a redução dos
cana-de-açúcar no centro oeste brasileiro, estoques mundiais de alimentos e aumento
por exemplo, cultivada em grandes super- dos preços dos produtos agrícolas, que são
fícies territoriais, levando a consequente base da alimentação da população mundial,
monotonia da paisagem agrícola e com notadamente, milho e soja.
base em degradantes condições de trabalho Contudo, em contraponto às desvan-
dos cortadores de cana, poderia levar ao tagens expostas anteriormente, o PNPB
deslocamento da pecuária e do cultivo de criou incentivos positivos, redução de carga
soja cada vez mais em direção à Amazônia, tributária é um deles, para que se privilegie
aumentando ainda mais o desmatamen- a produção de matéria-prima para a indús-

202 Revista de Informação Legislativa


tria do biodiesel que não estão na base da segurará a assistência e capacitação técnica
alimentação, como o dendê e a mamona, a todos os agricultores familiares de quem
e que podem ser cultivados por pequenos adquira a matéria-prima.
agricultores, inclusive aproveitando áreas O selo combustível social confere ao
que já se encontram degradadas, como o seu possuidor o caráter de promotor de
semi-árido brasileiro. inclusão social dos agricultores familiares
Outra estratégia de incentivos estabe- enquadrados no Programa Nacional de
lecida pela normativa do PNPB é a criação Fortalecimento da Agricultura Familiar
do selo social para o biodiesel. Trata-se de PRONAF. Terá validade de 5 (cinco) anos
espécie de certificação ainda restrita ao as- a partir da data de publicação no Diário
pecto social que é dada pelo Ministério do Oficial da União. O MDA avaliará, em
Desenvolvimento Agrário às indústrias que uma frequência anual, o cumprimento,
cumpram os seguintes requisitos expressos pelo produtor de biodiesel, dos critérios
nos artigos 2o, 6o, 7o da Instrução Normativa de concessão de uso do selo combustível
do MDA no 01 de 5 de julho de 2005: social, mediante realização de avaliação
• Os percentuais mínimos de aquisições externa.
de matéria-prima do agricultor familiar, A obtenção do selo social traz para a
feitas pelo produtor de biodiesel para con- indústria do biodiesel vantagens como a
cessão de uso do selo combustível social garantia de mercado representada pelo
estabelecidos em 50% (cinqüenta por cento) direito de participar dos leilões de compra
para a região Nordeste e semi-árido, 30% de biodiesel realizados antecipadamente
(trinta por cento) para as regiões Sudeste e pela PETROBRAS, e ainda atribui ao seu
Sul e 10% (dez por cento) para as regiões produto uma marca social que poderá
Norte e Centro-Oeste. lhes proporcionar maiores oportunidades
• Para concessão de uso do selo combus- de acesso e menores riscos de contestação
tível social, o produtor de biodiesel deverá por parte dos consumidores. Atualmente
celebrar previamente contratos com todos não se nega mais a dimensão ética que per-
os agricultores familiares ou suas coope- meia a atividade negocial, complementar
rativas agropecuárias de quem adquira às dimensões econômica e legal. O PNPB
matérias-primas. As negociações contratu- busca encorajar a formação do mercado
ais terão participação de pelo menos uma do biodiesel no Brasil, notadamente, com
representação dos agricultores familiares, a dimensão da responsabilidade social que,
que poderá ser feita por: I. Sindicatos de segundo Abramovay e Magalhães (2007),
Trabalhadores Rurais, ou de Trabalhadores é o resultado da coalizão de três atores
na Agricultura Familiar, ou Federações sociais: empresas que passaram a adotar
filiadas à Confederação Nacional dos a responsabilidade social como núcleo de
Trabalhadores na Agricultura Contag; II. seus negócios; os movimentos sociais que
Sindicatos de Trabalhadores Rurais, ou de de uma postura de contestação passaram
Trabalhadores na Agricultura Familiar, ou a condição de parceiros nos negócios; e o
Federações filiadas a Federação dos Traba- Estado que passou a exercer um papel de
lhadores da Agricultura Familiar Fetraf; coordenação de antigos interesses antagô-
III. Sindicatos de Trabalhadores Rurais nicos dos sujeitos envolvidos no processo.
ou de Agricultores Familiares ligados à O termo responsabilidade social cor-
Associação Nacional dos Pequenos Agri- porativa significa de maneira ampla que
cultores ANPA; e IV. outras instituições as decisões a serem tomadas nos negócios
credenciadas pelo MDA. serão permeadas por valores éticos que
• Para concessão de uso do selo com- incorporam o respeito pelas pessoas, pelas
bustível social, o produtor de biodiesel as- comunidades e pelo meio ambiente. Agin-

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 203


do dessa forma, as empresas tendem a con- consideráveis, como para a prestação da
quistar o respeito das pessoas e comunida- assistência técnica individualizada dos
des atingidas por suas ações, o engajamento seus integrados, os agricultores familiares
dos seus colaboradores e a preferência dos contam com vantagens conforme já discu-
consumidores (Cf. MACHADO FILHO; tido anteriormente, além do fato de que a
ZYLBERSZTAJN, 2007). intermediação dos sindicatos pode reduzir
Assim, supõe-se que as vantagens da os custos na busca de novos integrados,
certificação social sejam superiores às bem como na execução dos contratos que
desvantagens da indústria em restringir passam a ser fiscalizados pelos sindicatos,
sua liberdade de atuação no mercado con- o que tende a reduzir os riscos de quebra-
substanciado na obrigação de vincular-se contratual.
por contrato de aquisição de matéria-prima
aos agricultores familiares, nos percentuais
5. Conclusões
mínimos fixados em lei e na forma contra-
tual estabelecida. O Programa Nacional de Produção e
Ainda no contexto das vantagens e des- Uso de Biodiesel representa um esforço do
vantagens da contratação entre a indústria governo brasileiro em criar condições para
produtora de biodiesel e os agricultores formação de um novo mercado em que há
familiares representados por seus sindi- coparticipação de indústrias produtoras
catos ou associações, tem-se o seguinte de biodiesel, agricultores familiares, mo-
panorama: para as indústrias de biodiesel, vimentos sociais e órgãos governamentais
a integração contratual representa uma no esforço conjunto de favorecer o uso de
estabilização das fontes de abastecimento biocombustíveis cujo impacto ambiental
de matéria-prima, aliada a vantagem de positivo é de fundamental importância em
não ficarem dependentes de um só tipo de face dos índices de poluição causados pelos
matéria-prima (como ocorre com a produ- combustíveis fósseis, de reduzir as desi-
ção de etanol a partir da cana-de-açúcar) gualdades regionais e atenuar os índices
e se beneficiarem dos menores custos de de miséria criando uma alternativa rentável
produção da agricultura familiar. Em para pequenos produtores.
contrapartida, para os produtores rurais O PNPB utiliza para tanto uma técnica
envolvidos no processo, há a vantagem da normativa de função promocional do or-
inserção na cadeia produtiva do biodiesel denamento jurídico (Cf. BOBBIO, 1999, p.
que de outra forma não seria possível para 13). Essa função pode ser assim explicada:
a pequena produção, pois historicamente a quando o ordenamento atua na função
produção de matéria-prima para indústria repressiva e protetora, procura provocar
de combustíveis sempre foi privilégio de certas condutas e atua sempre de forma
grandes proprietários de terras (latifundi- negativa, prevalecendo a técnica do de-
ários). A integração contratual com a in- sencorajamento; quando atua na função
dústria garante-lhes a compra do produto, promocional, a técnica típica é positiva, ou
o preço mínimo pré-estabelecido, o aporte seja, há o encorajamento de certas condutas
de tecnologia, uma vez que o PNPB exige a que, para se produzirem, necessitam das
execução de um plano de assistência técnica sanções positivas também ditas premiais.
a cargo da indústria, além do que a interme- As sanções premiais lançadas pelo PNPB
diação dos sindicatos pode agir diretamente foram a redução de tributos específicos e
na negociação dos preços da matéria-prima a criação do selo combustível social, que
e na organização do novo mercado. dá às empresas produtoras de biodiesel
Embora a indústria com a inserção vantagens mediante a contratação com a
no PNBP incorra em custos e despesas agricultura familiar, nos percentuais mí-

204 Revista de Informação Legislativa


nimos e com a obrigatória intermediação A direção e o sentido do desenvolvimen-
dos sindicatos. to do mercado do biodiesel deverão voltar-
Contudo, alguns desafios ainda devem se para a qualidade e sustentabilidade não
ser superados. Um deles seria o de estimu- somente econômica, mas também social,
lar e apoiar a organização dos agricultores ambiental e tecnológica. O papel do Direito
familiares em associações, cooperativas e será o de escolher os incentivos adequados
outras formas de aglutinação social, para insertos nas normas jurídicas de modo a
o fortalecimento do próprio sistema de promover a segurança e as condições favo-
integração contratual agroindustrial. É ráveis para o funcionamento dos mercados
necessário começar a pensar numa regula- e outros arranjos institucionais.
mentação incentivadora do papel normati-
vo a ser desempenhada pelos sindicatos e
demais organizações dos produtores rurais, Referências
a exemplo, do que já ocorre no direito do
trabalho e nas chamadas organizações in- ABRAMOVAY, Ricardo; MAGALHÃES, Reginaldo.
terprofissionais atuantes em alguns países O acesso dos agricultores familiares aos mercados de biodie-
sel: parcerias entre grandes empresas e movimentos
europeus. sociais. Disponível em: <http://www.fipe.org.br/
Outro desafio a ser considerado no web/publicacoes/discussao/textos/texto_06_2007.
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de produção de alimentos e de energia atual e perspectivas. Periódico Bahia Análise & Dados,
com aproveitamento, por exemplo, dos Salvador, v. 16, n. 1, jun. 2006.
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biogás, na produção de energia elétrica e
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em compostos agrícolas que retornariam dora e integrados: o caso da agroindústria suinícola no
para a produção de alimentos. O plano de meio oeste catarinense, 1998. Dissertação (Mestrado
assistência técnica elaborado pelas indús- Extensão Rural) Departamento de Economia Rural,
trias em benefício dos agricultores fami- Universidade Federal de Viçosa, Viçosa.
liares integrados poderia conter previsão BANDO, Paulo Massanore. Coordenação vertical no
obrigatória de técnicas já disponibilizadas complexo agro-industrial frutícola brasileiro: uma pro-
pela Ciência agrária de produção integrada posta para a Zona da Mata Mineira, 1998. Dissertação
(Mestrado em Economia Rural). Departamento de
de energia e alimentos.
Economia Rural. Universidade Federal de Viçosa.
Enfim, ainda se impõe o desafio de am-
pliar o movimento de certificação, presente BOBBIO, Noberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tra-
dução de Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. 10
no PNPB por meio do Selo Combustível
ed. Brasília, Editora Unb, 1999.
Social, que, a princípio, aborda somente a
dimensão da inclusão social da agricultura BRASIL. Decreto 5297 , de 6 de dezembro de 2004.
Dispõe sobre os coeficientes de redução das alíquotas
familiar à cadeia do biodiesel, incluindo-se da contribuição para o PIS/PASEP e da COFINS inci-
a certificação ambiental da produção de dentes na produção e na comercialização de biodiesel,
biodiesel, considerando-se que o esforço in- sobre os termos e as condições para a utilização das
ternacional de certificação e rastreabilidade alíquotas diferenciadas, e dá outras providencias.
dos biocombustíveis é um sinal importante Diário Oficial (da) República Federativa do Brasil, Brasília,
DF, 07 dez. 2004. Seção 1, p. 2.
do problema produzir matéria-prima para
biocombustíveis sem promover maior ______. Decreto 5298 , de 6 de dezembro de 2004.
degradação ambiental ou, ainda, promo- Altera a alíquota do Imposto sobre Produtos Indus-
trializados incidente sobre o produto que menciona.
vendo a recomposição ambiental de áreas Diário Oficial (da) República Federativa do Brasil, Brasília,
já degradadas. DF, 07 dez. 2004. Seção 1, p. 3.

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 205


______. Decreto 5457, de 6 de junho de 2005. Dá nova esperienza francese. In: Rivista di Diritto Agrario, I,
redação ao art. 3º do Decreto 5297 que reduz as alíquo- Milano: Giuffrè, 1981.
tas da contribuição para o PIS/PASEP e da COFINS
MACHADO FILHO, Cláudio Antonio Pinheiro;
incidentes sobre a importação e comercialização do
ZYLBERSZTAJN, Décio. Responsabilidade social corpo-
biodiesel. Diário Oficial (da) República Federativa do
rativa e a criação de valor para as organizações. Série de
Brasil, Brasília, DF, 07 jun. 2005. Seção 1, p. 1.
Working Papers n. 03/024, Faculdade de Economia,
______. Lei 11.097/05 de 13 de janeiro de 2005. Dispõe Administração e Contabilidade, Universidade de São
sobre a introdução do biodiesel na matriz energética Paulo. Disponível em: <http://www.ead.fea.usp.b/
brasileira e dá outras providencias. Diário Oficial (da) wpapers>. Acesso em: 27 set. 2007.
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Registro Especial, na Secretaria da Receita Federal do
PINHEIRO, Armando Castelar; SADDI, Jairo. Curso de
Ministério da Fazenda, de produtor ou importador de
law & economics. Rio de Janeiro: Ed. Campus, s.d.
biodiesel e sobre a incidência da Contribuição para o
PIS/Pasep e da Cofins sobre as receitas decorrentes da SILVA, Mariana Duarte. A economia de um direito
venda desse produto e dá outras providências. Diário humano: análise econômica do direito à liberdade
Oficial (da) República Federativa do Brasil, Brasília, DF, de expressão garantido na Convenção Européia dos
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2005. Ministério do Desenvolvimento Agrário. Dispõe SILVEIRA, Carla Diniz. Estrutura e desempenho da
sobre os critérios e procedimentos relativos a conces- agroindústria alimentícia no Brasil: evolução e tendên-
são de uso do Selo Combustível Social. Diário Oficial cias, 1997. Dissertação (Mestrado em Economia Rural).
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de 2005. Ministério do Desenvolvimento Agrário. saria e mercados. São Paulo: Atlas, 2004.
Dispõe sobre os critérios e procedimentos relativos
ao enquadramento de projetos de produção de bio- TRAISCI, Francesco Paolo. I contratti di integrazione
diesel ao Selo Combustível Social. Diário Oficial (da) verticale in agricoltura in Francia, Germania e Italia.
República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 30 set. 2005. Rivista di Diritto Agrario, parte. 1. Milano, 1992.
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CECCHI, C.; CIANFERONI, R.; PACCIANI, A. Eco- integração vertical agroindustriais: a viabilidade de uma
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e Economia, Rio de Janeiro: Elsevier, 2005.
______. Disciplina legale e prassi applicativa nei
contratti di Integrazione verticale in agricoltura: l

206 Revista de Informação Legislativa


O método de construção da teoria da
justiça e a posição original

Roberto Bueno

Sumário
1. Metodologia e instrumental da teoria da
justiça. 2. O objeto da teoria da justiça. 3. A lista
de bens primários tutelados. 4. A aplicação dos
princípios de justiça à estrutura básica. 5. Con-
siderações finais.

1. Metodologia e instrumental
da teoria da justiça
O ponto de partida de Rawls é o con-
tratualismo, e isso é algo que fica claro
já nas primeiras linhas de sua primeira
grande obra (cf. RAWLS, 1993a, p. 19-23).
Por meio do conceito de contratualismo do
qual se socorre junto à tradição filosófico-
política liberal, Rawls propõe-se estabelecer
princípios a partir dos quais se possa fazer
derivar algumas concepções sobre o justo
que denominará princípios de justiça. Ela-
borados na posição original, eles orientam
as relações que virão a ser travadas no
marco das organizações e instituições so-
ciopolíticas informadas pela justiça, bem
como a própria estrutura delas.
Para alcançar seus propósitos, Rawls
busca construir sua própria teoria ideal,
ou seja, tem em vista caracterizar o que
seja uma boa e justa organização para que
todos exerçam suas próprias concepções
Roberto Bueno é Professor da Faculdade do bem na vida em sociedade. Essas con-
de Direito da Universidade Federal de Uber- cepções de bem, no entanto, não podem ser
lândia. entendidas como livremente exercíveis por

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 207


todos os cidadãos. Ao contrário, sua limi- realmente existentes (cf. BIDET, 1995, p. 14).
tação encontra-se no quadro proposto pelo Não restam dúvidas de que a teoria da jus-
ordenamento legal derivado dos princípios tiça de Rawls não é uma “justiça perfeita”,
de justiça. Portanto, como diz Grondona mas, antes e precisamente, representa uma
(2000, p. 148), “o bem deve ser obtido no justiça “possível” de realização entre os
quadro do direito, nunca fora dele” e isso seres racionais e humanos que habitam as
porque é altíssimo o risco de abandonar a sociedades históricas. Segundo Bidet, a teo-
interpretação do que seja o bem àqueles que ria de Rawls torna-se, assim, um parâmetro
detêm o poder de em última análise dizer ideal para uma teoria real ou concreta, a
o direito. Desde logo, isso seria fugir à tra- qual cabe aplicar diretamente ao mundo.
dição filosófico-política da manutenção da Isso significa precisamente a tentativa de
tutela às liberdades que consiste na defesa proceder a uma substituição no âmbito da
da primazia do legal sobre o bom. Filosofia Política da mítica figura do Leviatã
Esse é um ponto importante da teoria pela da Justiça (cf. HÖFFE, 1991, p. 16).
rawlsiana da justiça, angular mesmo, na Antes de seguir adiante com a aborda-
medida em que, segundo ele, a justiça é gem da teoria da justiça propriamente dita,
“a primeira das virtudes das instituições é necessário destacar uma das expressões
sociais” (RAWLS, 1993a, p. 19). Ela repre- que Rawls frequentemente utiliza: socie-
senta para uma teoria social o mesmo que a dade bem organizada. Para Rawls, uma
verdade representa para todo aquele que se sociedade pode receber o adjetivo de bem
ocupe das questões científicas. Trata-se de organizada quando sua estrutura básica
um valor inerente ao próprio exercício de está projetada não só para promover o bem
sua função de teórico da sociedade. de seus membros como também se encontra
Para deixar patente esse princípio da regulada por uma concepção de justiça.
justiça como virtude das instituições so- Desse modo, a sociedade bem organi-
ciais e, por conseguinte, a necessidade de zada de Rawls apresentará os seguintes
ocupar-se dela, o harvardiano sustenta não requisitos:
importar que as leis e instituições estejam a) que cada um dos indivíduos aceite
ordenadas e sejam eficientes; se elas são in- e saiba que os outros aceitam os mesmos
justas, terão de ser reformadas ou abolidas princípios de justiça (aqui já está implícita
(cf. RAWLS, 1993a, p. 19). O fundamento de a ideia que desenvolverá dos princípios de
tudo e também a preocupação primeira é, publicidade e reciprocidade);
portanto, a organização justa sobre a qual b) que as instituições básicas satisfaçam,
as instituições serão erigidas. em regra, esses princípios (cf. RAWLS,
Tudo isso serve para ilustrar um dos 1993a, p. 21).
aspectos importantes de sua teoria, a saber, A ideia básica de Rawls (1993a, p. 21)
que se trata de um ponto de partida ideal nesse ponto é de que, quando os indiví-
alicerçado na criticidade da analítica social duos, que, por definição, são socialmente
concreta e não de uma pura proposição geradores de conflitos, possam todos re-
transcendental inaplicável às vicissitudes conhecer alguns pontos de vista como de
do mundo empírico. Nesse sentido, há valia e interesse em comum ao que julguem
quem argumente que o aparato rawlsiano capaz de dirimir suas contendas, eles ser-
apresenta uma estrutura de base ideal mas virão como garantidores da convivência
cuja perfeita justiça de que fala o filósofo social segura e, consequentemente, serão
harvardiano não denota senão a condição o “traço característico de uma sociedade
de possibilidade para o desenvolvimento bem organizada”. Nesse sentido, a tradi-
de uma “teoria impura” passível de apli- ção rawlsiana parece permitir estabelecer
cação a todas as sociedades imperfeitas diálogo com Carnelutti em sua defesa do

208 Revista de Informação Legislativa


direito como um instrumento de mediação eu deixe que outra pessoa desfrute da posse
de conflito quando o italiano sustenta que de seus bens, dado que esta pessoa atuará
“dove conflitto di interesi no c’è, ivi non da mesma maneira contigo” (HUME, 1992,
puo essere diritto percè ivi non é bisogno p. 659). Como se observa, essa é uma formu-
di diritto. Non existe fenomeno giuridico, lação bastante próxima daquilo que propõe
alla radice del quale l’analise non rintracci Rawls no primeiro princípio de justiça logo
tale conflito” (CARNELUTTI, 1940, p. 71). acima enunciado.
Para o eminente processualista italiano, o A ação política desses seres racionais
conflito passa a ocupar o centro do direito, parte de pressuposto caro à teoria liberal
elemento para o qual todo o ordenamento clássica de que “a completa liberdade de
jurídico está voltado. contradizer e desaprovar nossa opinião
Em Rawls (1999d, p. 61), embora sob constitui a condição que nos justifica assu-
outro enfoque, a ideia apresentada por mir sua validade para fins práticos” (MILL,
Carnelutti se fazia presente já em um de 1991, p. 91). Essa teoria aplicada à filosofia
seus primeiros escritos, o artigo Outline rawlsiana implica que intervenham em
of a decision procedure for ethics (1951), no diálogo para criar princípios de justiça
qual, já em suas primeiras linhas, deixava compartilhados por meio de um convênio
clara a existência de concepções e interesses social que lhes permita aplicá-los a uma
rivais que ensejam conflitos. Não se trata, estrutura básica que será o marco de sua
exatamente, de um tema novo. Ainda em convivência cotidiana, dentro da qual as
seus últimos anos, Bobbio (2005, p. 11-13) diversas concepções morais (tomada essa
retomava o tema para mencionar tratar- expressão em sentido amplo) poderão en-
se de um antigo assunto que envolvia as contrar lugar para expressar-se.
relações entre moral e política. Rawls oferece sua ideia de sociedade
No fundo, quando Rawls menciona a bem organizada mas, não obstante, está
problemática que envolve os conflitos em atento ao fato de que essas características
sociedade, o que faz é reconduzir ao centro existem muito raramente, pois as socieda-
do debate a questão hobbesiana da ani- des existentes estão, em regra, a discutir
mosidade natural dos seres humanos que o que é justo ou injusto, e os homens em
necessitam de uma instância pacificadora, desacordo sobre quais são os princípios que
bem ao contrário da percepção rousseau- devem definir basicamente sua sociedade.
niana do doce homem vivente no estado Assim, é necessário recorrer à ideia de uma
de natureza (cf. ROUSSEAU, 1990, p. 170). posição original em que se faz constar um
Ao contrário do filósofo de Malmesbury, no consenso sobre ideias basilares e fundamen-
entanto, sua alternativa não é a da constitui- tais como, por exemplo, a noção do justo.
ção de um poder forte, senão, ao contrário, a
construção de uma opção racional por meio
2. O objeto da teoria da justiça
da ação de homens livres que, ao procurar
tutelar seus interesses, não poderão menos Atribuímos o adjetivo justo ou injusto
do que proteger os interesses de toda a a uma diversidade considerável de obje-
sociedade em que viverão. tos, entre os quais as leis, as instituições,
Uma das formas de reduzir essa tensão é os sistemas sociais e as ações particulares
a que Rawls encontra na retomada do argu- de cada um dos indivíduos ou, mesmo,
mento humeano derivado do convenciona- de grupos. Tudo o quanto se disse, diga
lismo que sustenta que os homens podem e venha a ser dito sobre esse tema ainda
encontrar-se propensos a pacificar suas conterá profunda carência de detalhamen-
relações quando “eu me dou conta de que tos e continuará a apresentar brechas que
redundará em meu proveito o fato de que manterão graves problemas insolúveis,

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 209


entre os quais a tentativa das teorias de Mill, Rawls apresenta proximidades. Mill
explicar como ela poderá tornar operativa sustenta, por exemplo, que os homens sen-
em sociedade um determinado conceito tem necessidade de porem-se à salvo das
de justiça, seja ele qual for, haja vista ser maiores injúrias, que se interessam pela
unânime entre os teóricos a inoperância cooperação como forma de atingir seus
de qualquer sistema ou regime político que objetivos e, por conseguinte, não tendo em
abra mão dessa ideia1. vista tão somente interesses individuais,
Queríamos resumir o objeto da teoria mas segundo a orientação de um inte-
da justiça em nada mais do que uma linha resse coletivo4. Tal orientação não exclui
e talvez devêssemos dizer que se trata de a perspectiva dos interesses individuais,
colocar os fundamentos para uma sociedade pois conclama a intervenção da noção de
bem organizada (cf. MAFFETTONE, 1983, p. reciprocidade, a qual, em Rawls (1996, p.
13) a partir de uma concepção de justiça. 41), não é apenas entendida como mútua
Embora as definições preliminares in- vantagem mas, antes, como “uma relação
teressem, há necessidade de um conceito entre cidadãos em uma sociedade bem or-
operativo de justiça, pois, ainda que provi- denada [...], expressada por sua concepção
sório, as sociedades necessitam dele. Esse é política pública da justiça”.
um bom motivo para que Rawls faça seu o Muito embora apresente que se trata de
tema da justiça social que visa determinar mera condição para a cooperação social, o
como as instituições sociais procederão à fato é que a proposta em si da sobreposi-
distribuição de direitos e deveres funda- ção do interesse social ao individual como
mentais, assim como às vantagens prove- ponto de chegada, e também de partida,
nientes da vida cooperativa em sociedade2. desconstitui as possibilidades de realização
(Cf. RAWLS, 1993a, p. 23)3 de uma teoria da justiça voltada ao cidadão.
No que concerne à necessidade da vida Não obstante, é o próprio Rawls (1993, p.
em sociedade, encontramos um ponto que 396) quem reconhece nos seres humanos
Rawls herda diretamente da tradição con- uma inclinação para que seu bem-estar
tratualista. Mesmo com um dos utilitaris- encontre a devida complementação no
tas com cuja obra dialogou intensamente, sucesso e alegria dos demais concidadãos.
1
Autor que transita em linha paralela à de Rawls
Com isso, a teoria rawlsiana delineia um
e, por isso mesmo, insuspeito de corroborar suas te- perfil de pessoa humana que foge a um cor-
ses, Hayek (1988, p. 119) dedica todo o capítulo oito te predominantemente egoístico ou, pelo
de um de seus livros para sublinhar a importância menos, que lhe reconhece outras dimensões
do conceito de justiça “como fundamental ponto de
partida de qualquer esquema legal [assim] como de
que exercem um papel importante na de-
sua adequada limitação”. terminação das estruturas sociais vigentes
2
Não resta dúvida de que fora apenas por esse que transcendem com sobras uma mera
aspecto e todos que vivemos em sociedades profun- concepção individualista atomizada pre-
damente desigualitárias e, em certa medida, também
profundamente injustas, conquanto não disponi-
ponderante na maioria das sociedades oci-
bilizadoras de oportunidades similares a todos, já dentais democráticas contemporâneas5.
disporíamos de razões suficientes para nos ocupar do 4
Conforme foi ressaltado no capítulo II, item 4, em
pensamento filosófico político de Rawls. que trato da filosofia liberal e utilitária de Mill, seu libe-
3
Por outro lado, também interessa sublinhar ralismo possui uma argumentação que, por vezes, abre
que a necessidade de promover a distribuição tem as portas para as práticas socialistas, e nesse momento
antecedente teórico em Aristóteles. Quando este em que apresenta a argumentação da necessidade de
faz referência a que os bens devem ser desfrutados sobrepor o interesse coletivo ao individual nos depa-
proporcionalmente, mesmo pelo governante, põe as ramos com um exemplo cabal desta leitura.
bases argumentativas para o debate de uma sociedade 5
Desde logo, não é o escopo deste trabalho
em que a ilimitada desigualdade não é um bem em si, aprofundar nessa questão, mas interessaria explorar
mas sim, ao contrário, que o valor igualdade deve ser a questão de como a publicidade reforça o papel do
levado em consideração. indivíduo, e não o das relações coletivas (e quando a

210 Revista de Informação Legislativa


Nesse contexto, torna-se valiosa a ob- quais, não obstante, permanecem divididos
servação de Day (1996, p. 221) quanto ao pela defesa de diferentes doutrinas (cf. RA-
objetivo de Rawls não consistir na elabo- WLS, 1996, p. 29). Ainda resta por esclarecer
ração de uma teoria geral mas, isso sim, na quais são as instituições mais importantes
formulação de princípios de justiça social, que devem ser protegidas, e Rawls não
expressão cujo alcance é o da promoção de é ambíguo a esse respeito: “constituição
direitos, deveres e vantagens na sociedade. política e as principais disposições econô-
O conceito de justiça na sociedade implica, micas e sociais. Assim, a proteção jurídica
fundamentalmente, em como esses bens se- da liberdade de pensamento e de consciên-
rão distribuídos (Idem). Parte-se, portanto, cia, a competição mercantil, a propriedade
de uma ideia visceralmente distinta da de privada dos meios de produção e a família
Hayek (1988, p. 131), por exemplo, que sus- monogâmica [...]”. (RAWLS, 1993a, p. 23)
tenta não existir princípio algum capaz de Para Rawls (1993a, p. 23), contudo, a
orientar condutas individuais que configu- aplicação do conceito de justiça tem como
rem um modelo de distribuição que, nessa objeto de primeira preocupação7 sua apli-
qualidade, possa receber o adjetivo justo.6 cação de uma estrutura básica da sociedade
Mas a que vem o desenvolvimento de antes (ver item 3.2) que a concessão de
uma teoria da justiça para uma sociedade prioridade a qualquer grau importante de
justa, estável e democrática? A resposta igualitarismo8. Essa sua atenção à estrutura
parece ser a de que vem para tornar possí- primária diz respeito às pré-condições para
vel existir durante um tempo prolongado a estabilidade social e, por conseguinte,
uma sociedade de homens livres e iguais, os para a existência pacífica dos indivíduos
em sociedade, os quais, naturalmente,
publicidade foca o grupo o faz tendo em mira a decisão podem ser tomados como proclives senão
do indivíduo) que tem lugar em sociedade. Interessaria
tabular em um trabalho interdisciplinar envolvendo a
a comportamentos egoísticos, pelo menos,
psicologia, a sociologia e a ciência política, entre outros tendentes à proteção de seus interesses
ramos do saber, qual o impacto das peças publicitárias pessoais. Ao assumir esse ponto de vista
na formação da percepção do hiperdimensionamento e, portanto, distanciando-se de Mill9, Rawls
da figura do indivíduo na sociedade e da formação de
uma sociedade hedonista radical. 7
A esse respeito, o ator é bastante claro quando for-
6
Desde logo, Rawls não poderá passar ao largo mula já nas primeiras linhas de Uma teoria da justiça que
de argumentos desse tipo e muito embora não esta- “a justiça é a primeira virtude das instituições sociais
beleça o debate aberto com a obra hayekiana em seus [...] não importa que as leis e as instituições estejam
trabalhos, isto sim, encontra-se implícito em seu pen- ordenadas e sejam eficientes: se forem injustas elas têm
samento assim como em todos os seus interlocutores de ser reformadas ou abolidas” (RAWLS, 1993a, p. 19).
uma série de problemas levantados pelo mestre vienês Nesse sentido, discorda Parekh (2005, p. 137), argu-
(1899-1992). Desde logo, do ponto de vista cronológico, mentando que a justiça “não é a primeira das virtudes
não teria existido impedimento para o estabelecimen- sociais porque parte de um conjunto de outras virtudes
to do diálogo entre ambas as obras. Não tendo sido nas quais está inserida, e porque sua existência não é,
direto, como apontei, ocorre por via dos discípulos de senão, uma das muitas condições prévias necessárias
Hayek e de sua alimentação à teoria liberal por meio para garantir a estabilidade social e política”.
de seus trabalhos, aliás, é justamente em seu período 8
Como diz Day (1996, p. 239), trata-se aqui de um
de maturidade em que encontram-se localizadas suas clássico do “egalitarianism”, mas não de um igualita-
preocupações com a economia política, com filosofia rismo absoluto, o qual, desde logo, renega.
política e com a filosofia do direito, consagrando seu 9
Mill é direto quando sustenta uma posição
pensamento econômico como voltado às grandes antropológica menos pessimista ou realista do que a
questões sócio-políticas. Talvez o marco dessas preo- de Rawls, mais proclive ao hobbesianismo. Segundo
cupações políticas possa ser dado com seu clássico e Mill (1976, p. 28), “não há necessidade intrínseca de
muito popular livro Road to serfdom (1944), obra que que qualquer ser humano seja um interessado egoísta,
conta com diversas traduções para o português. Uma divorciado de todo o sentimento ou cuidado que se não
delas é HAYEK, (1994). Para uma brevíssima e bem centre na sua própria e miserável individualidade”.
colocada biografia de Hayek ver: <http://www.insti- Mas ao que Mill liga tal comportamento socialmente
tutoliberal.org.br/galeria_autor.asp?cdc=928>. interessado? Segundo o autor, ainda que em graus

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 211


tomará como ponto de partida, como diz imediatas sobre as quais estamos mais
Habermas (1991, p. 161), uma posição ori- ou menos certos, tendo em vista dois
ginal em que necessitará colocar restrições objetivos. O primeiro é que esta estru-
de ordem normativa sob as quais os indi- tura de princípios deve explicar as con-
víduos livres, iguais e racionais intervirão vicções demonstrando os pressupostos
na eleição dos princípios de justiça que subjacentes que refletem. Em segundo
intervirão em suas vidas por meio de sua lugar, deve proporcionar orientação
aplicação à estrutura básica da sociedade. para aqueles casos a respeito dos quais
O que o liberalismo político tem por não temos convicções, ou quando es-
objetivo em sua proposta de uma justiça sas são débeis ou contraditórias.”
como imparcialidade é o da elaboração de Essa argumentação apresentada signifi-
uma concepção política da justiça, isto é, ca trabalhar com os pontos de convergência
uma de tal tipo que possa angariar o apoio entre os intervenientes no debate de sorte a
de um consenso por sobreposição das dou- ir ampliando essa zona de convergência éti-
trinas razoáveis presentes na sociedade, ca. Dessa maneira, como diz Oliveira (2003,
tanto em matéria religiosa como filosófica p. 15), evita-se “resolver os problemas de
e moral. Nesse ponto, o que Rawls realiza é fundamentação moral, como nos modelos
a construção do equilíbrio reflexivo, o qual metafísicos tradicionais, mas apenas apre-
consiste na assunção de que há questões senta argumentos razoavelmente defen-
morais cujo consenso é inviável e, portanto, sáveis” e, ao evitar tal sorte de problemas
a única chave para deslindar o problema é filosóficos de fundo, abrimos as portas para
partir para a realização de juízos pondera- a possibilidade do diálogo público.
dos. Segundo Dworkin (1989, p. 241), de Nesse contexto, devemos entender por
acordo com o equilíbrio reflexivo é doutrinas razoáveis aquelas que aceitam
“a tarefa da filosofia moral propor- que os indivíduos são seres livres e iguais,
cionar uma estrutura de princípios concedendo-se um status de independência
que fundamente essas convicções ao âmbito do político. Por outro lado, são
reputadas como não razoáveis aquelas dou-
desiguais de interesse, é possível esperar que os indi- trinas que assim não entendem a posição
víduos nutram verdadeiro interesse pelos destinos da
sociedade, isto é, apresentem-se genuinamente ocupa-
do homem no mundo, adjetivando-se-lhes
dos com o bem público desde que se lhe possa qualificar como irracionais ou, como chega a dizer
como um “ser humano rectamente educado” (Ib.). Aqui Rawls (1993b, p. 17), “loucas”. Não obstan-
há dois pressupostos intrínsecos à tese de que parte o te, Nozick (1988, p. 319), por exemplo, não
argumento milliano. O primeiro, filosófico, inextrica-
velmente ligado às promessas do Iluminismo quanto
defende ideia demasiado distinta sobre a
ao desenvolvimento moral do ser humano. O outro existência de indivíduos protegidos em sua
pressuposto, de que a educação não apenas exerce um dignidade. Ao final de seu mais celebrado
papel determinante nas opções morais do ser humano livro sustenta que
como, ainda, que o fato de que ele realmente tenha in-
teresse nos assuntos públicos é algo realmente virtuoso.
“[...] o Estado mínimo nos trata como
O que dizer, então, de uma opção moral e política de indivíduos invioláveis, que não
desinteresse pelos assuntos públicos? Poderíamos de al- podem ser usados por outros como
guma forma desestimular tal tipo de concepção de vida meios, ferramentas, instrumentos ou
e forma de experiência vital? Parece difícil aceitar essa
proposta. Rawls, com certeza, no âmbito de sua pro-
recursos, mas nos trata como pessoas
posta de consenso por sobreposição, não argumentará que têm direitos individuais como a
de forma similar. As exclusões de formas de vida que dignidade [...] Que nos tratem com
propõe não têm por objetivo atingir enormes planícies respeito relativamente aos nossos
axiológicas, antes pelo contrário, apenas aqueles que se
demonstrem ampla e irreconciliavelmente como não
direitos nos permite, individualmen-
razoáveis, irracionais ou, como chega a dizer, “loucas”. te ou com quem escolhamos decidir
(RAWLS, 1993b, p. 17) nossa vida, alcançar nossos fins e

212 Revista de Informação Legislativa


nossa concepção de nós próprios, remete à constituição política de uma socie-
tanto como possamos, ajudados pela dade, a qual deve ser alvo de atenção por
cooperação voluntária de outros que parte das instituições, devendo estimular os
possuam a mesma dignidade.” cidadãos a reinterpretarem continuamente
Decididamente, muito do que se encon- suas concepções abrangentes de justiça à
tra presente nessas últimas linhas da obra luz daquela concepção política de justiça já
visceralmente crítica à Rawls não diverge elaborada na posição original pelas partes
de muitos propósitos de Rawls e, ainda, deliberantes racionais. Essa constituição
celebra um de seus pontos centrais, a saber, política mantém estritos laços com as prin-
a influência da ética kantiana. Mas as dife- cipais instituições econômicas e sociais que
renças afloram à medida que consideramos regem a sociedade.
os meios de que lança mão Nozick em Dentro dessas instituições se encontra
sua obra para alcançar esses mesmos fins. a proteção jurídica da liberdade de pen-
Ademais, a concepção de “indivíduos in- samento e de consciência, a propriedade
violáveis” de Nozick parte de pressupostos privada dos meios de produção, algo con-
bastante diversos da de Rawls. Em Nozick, siderado por Rawls como indispensável
nada há que fazer em sentido contrário à ao avanço econômico e, enfim, para tornar
objeção de Berlin quanto à injustiça das operativo o segundo princípio da justiça,
extremadas misérias e desigualdades que isto é, aquele que melhora a situação dos
a vida em sociedade pode proporcionar (cf. menos favorecidos quando os mais bem
BERLIN, 1996, p. 194). situados também obtêm melhoras para si
Rawls toma às ações desses indivíduos próprios por meio da melhor organização
livres e racionais como seu ponto de partida. e produtividade de suas atividades. Além
Isso torna claro como apenas cumprindo tal dos elementos que vinham sendo citados
suposto necessário é que se poderá aplicar no período imediatamente antecedente,
a ideia de justiça social a uma sociedade também é necessário mencionar a compe-
que se queira bem ordenar ou regular. Esse tição comercial.
objeto da teoria da justiça, conteúdo que Especialmente quanto à ideia de que
Rawls denominaria no desenvolvimento de ele considera a competição comercial
seu trabalho como liberalismo político. como uma das instituições sociais mais
Nesse contexto, surge uma questão importantes e, logo, protegidas já desde
que cobra prioridade no que tange ao seu a proposição da estrutura básica, avalio
esclarecimento. Trata-se do entendimento existir uma aporia em seu pensamento,
acerca do que Rawls compreende por pois bem adiante em sua obra diria que
estrutura básica da sociedade. Segundo o toda sua teoria da justiça é compatível tanto
filósofo harvardiano, esse conceito deve com o capitalismo como com o socialismo.
ser apreendido como o “modo em que as Há entre nós quem, como Möller, em seus
instituições sociais mais importantes distri- primeiros estudos, veja em nosso autor
buem os direitos e deveres fundamentais e uma espécie de “liberal-igualitário”, quiçá
determinam a divisão das vantagens pro- de forma não muito dissimile daquela a
venientes da cooperação social”. (RAWLS, que muitos também tentaram ver ao pen-
1993a, p. 23)10 samento de Bobbio.
Quando Rawls se refere a “instituições Ainda outro aspecto a ressaltar sobre a
sociais mais importantes”, na verdade, mencionada competição comercial é que
Rawls a entende como indispensável ao
10
Nesse primeiro momento, fica posta essa pri-
meira aproximação à ideia de estrutura básica que,
avanço econômico e, enfim, para tornar
contudo, carece de maior detalhamento, conforme operativo o segundo princípio da justiça,
voltaremos a ver no decorrer do livro. melhorando, assim, a situação dos menos

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favorecidos. Além desses elementos com- Rawls torna explícito um problema que
ponentes da estrutura básica que merecem mais adiante tratará de combater ao aplicar
a atenção dos princípios de justiça, entre a noção de justiça social (o que realiza ao
eles também é incluída a família mono- lançar mão de seus princípios de justiça)
gâmica, assim como outros componentes à estrutura básica da sociedade, na qual,
das instituições da estrutura básica da originariamente, encontramos imperfei-
sociedade que visceralmente interferem ções agudas no que concerne à situação
nas perspectivas de vida de cada um dos de partida para que cada indivíduo possa
membros da sociedade. dedicar-se à persecução de seus planos de
Rawls (1993a, p. 23) concede importân- vida, o que se materializa por meio das
cia capital à ideia de aplicar a justiça social diferentes oportunidades iniciais na vida,
– a definir mais adiante qual o significado quer sejam postas pela natureza quer pelas
que essa expressão cobra em seu pensamen- instituições sociais ou, ainda, por ambas ou
to – à estrutura básica porque, quando esta apenas reforçada pelas últimas.
define os direitos e deveres dos homens, Rawls sustenta que todos os cidadãos
acaba por influir em suas perspectivas de dispõem de uma noção intuitiva, qual seja,
vida, quando então mostra quão profundos a de que a estrutura básica das sociedades já
são os seus efeitos. Acaso pensemos em existentes contém várias posições sociais e
uma sociedade justa, haverá que mitigar que os homens nascidos em posições sociais
os efeitos da loteria natural, seja ela relati- diferentes terão diferentes expectativas na
va aos lugares que a sociedade lhe atribui vida, em suma, de alcançá-las. Este é fato
ou àquelas outras vantagens derivadas de que se deve tanto ao sistema político vigente
talentos ou capacidades naturais. Nesse como a circunstâncias econômicas e sociais.
particular, é interessante a crítica de Parekh, Dessa maneira, a conclusão é óbvia: temos
segundo quem a teoria de Rawls apresenta- instituições sociais que favorecem certas
se pouco convincente devido ao fato de que posições iniciais em detrimento de outras.
nem todas as teorias sociais (em sentido Esse favorecimento inicial que as ins-
amplo) ou religiosas compartilham da visão tituições sociais concedem a alguns cida-
do filósofo de Harvard sobre a necessidade dãos em detrimento de outros não pode
de combater o mérito, uma vez que tanto fundamentar-se em noções de mérito ou
hinduístas, budistas, jainitas e outros [...] demérito, ao menos não quando o que
pensam que os talentos naturais são o pro- tenhamos em vista seja organização de
duto de atos meritórios do agente em uma uma sociedade segundo parâmetros de
vida passada e, por tanto, indubitavelmente justiça. Já a seu tempo, Mill (1976, p. 83)
merecidos (cf. PAREKH, 2005, p. 139). advertia que “uma pessoa tem direito ao
Devido a esses argumentos, então, po- que possa ganhar em honesta competição
demos sustentar que a doutrina de Rawls profissional, porque a sociedade não deve
dá suficientes mostras de ser abrangente permitir que qualquer pessoa estorve os
(comprehensive moral doctrine) quando pre- seus esforços para ganhar dessa maneira
cisamente apresenta-se como combativa tudo quanto possa”. Ainda no contexto
dela e procurando consensos sobrepostos. dessa mesma questão, Mill sugere analogia
Enfim, a crítica de Parekh (2005, p. 139) se com uma associação industrial cooperativa.
centra em que Rawls exige que os demais se Sobre ela questiona se é ou não justo que o
abstenham da defesa de suas teorias abran- “talento ou a habilidade dêem direito a uma
gentes (compreensivas) mas, no entanto, remuneração mais elevada?” (MILL, 1976,
“retém e capitaliza injustamente as suas”. p. 88). A isso Mill (Idem) não hesita em
Precisamente no que concerne ao ata- responder que “a resposta negativa apoia-
que ao triunfo do talento e do mérito é que se em que todos os que fazem o melhor

214 Revista de Informação Legislativa


que podem têm igual merecimento e não Desde logo, como Mill responderia à
devem, com justiça, ser colocados numa questão acerca da competição em igual-
posição de inferioridade por faltas de que dade de condições mas que não tivera
não sejam culpados”. como pressuposto um equânime ponto
O primeiro desse par de argumentos de partida entre os competidores ou, ain-
expostos em favor da meritocracia poderia da, como poderia resolver a questão das
ir bem, mas apenas superficialmente, pois incomensuravelmente maiores chances
não resistiria a uma segunda vista, mais de- dos mais bem posicionados – ou, mesmo,
talhada. Por sua vez, o segundo, melhor ex- privilegiados – quanto a elementos abso-
posto, parece convergir um pouco mais com lutamente decisivos como o acesso à edu-
o pensamento redistributivista de Rawls ao cação? Efetivamente, o liberal-utilitarismo
não colocar a questão da distribuição dos re- de Mill não respondeu satisfatoriamente
cursos – no caso o da retribuição pelo talento a essas questões, senão que as deixou em
ou habilidade – como algo indissociado aberto. Sua resposta é claramente insatis-
da aplicação do “melhor de si próprios”, fatória desde uma perspectiva rawlsiana,
e não unicamente ligados ao talento e/ou por exemplo, quando atribui à sociedade o
habilidade que a loteria natural lhes tenha dever de não permitir que qualquer pessoa
conferido ou, então, os arranjos sociais lhes estorve os esforços de cada um por ganhar
tenham possibilitado de modo diferenciado tudo quanto possa. Este é um princípio
ao acesso concedido a outras pessoas. Mas claramente anti-intervencionista que casa
o próprio Mill reitera que esse é o princípio à perfeição com os preceitos de uma teoria
abstrato mais elevado da justiça social e (neo)liberal como a de Hayek, mas não com
redistributiva (cf. MILL, 1976, p. 93). os preceitos enunciados por Rawls em seu
Bem mais próximo aos nossos dias segundo princípio da diferença12.
surgem argumentos de uma esquerda de
ra não tivesse ainda surgido sua obra máxima quando
caráter nacionalista-desenvolvimentista da publicação desse livro de Jaguaribe, cuja edição
que não se distancia disso. Jaguaribe, por nacional foi publicada tão-somente em 1969 e cuja
exemplo, defende que o conceito em si de primeira edição encontrou lugar em Stanford, onde o
desenvolvimento e o de crescimento eco- pensador brasileiro trabalhava à época, em 1967. Não
obstante certa possibilidade de acercamento, resta
nômico diferem. Seu raciocínio se conecta todavia por sublinhar a nítida maior proximidade de
com a teoria rawlsiana na medida em que Jaguaribe do pensamento de esquerda. O que se depre-
esta, ao buscar justiça, tende à promoção de ende desse seu período sessentista é que se apresenta
recursos e, por seu turno, Jaguaribe (1969, p. mais próximo, por exemplo, do desenvolvimento per-
passado por certa planificação econômica, antes do que
13), ao diferenciar desenvolvimento de cres- por um maior grau de atuação das forças de mercado
cimento econômico, o faz por meio da ideia (JAGUARIBE, 1969, p. 17). O autor não nega o que
de que o primeiro conceito envolve “um chama de “desenvolvimento espontâneo”, conceito
aperfeiçoamento qualitativo da economia”, aproximado ao da mão invisível smithiana. Contudo,
sua tese é de que esta é uma “hipótese estatisticamente
feito “através de melhor divisão social remota” (Idem). A inclinação à esquerda de Jaguaribe
do trabalho [ideia que em Rawls poderia (1969, p. 18) é exposta em sua preferência pelo modelo
encontrar-se representada pela igualdade intervencionista (dirigista moderado?) do típico mo-
de acesso às oportunidades], do emprego delo de Estado francês e alemão, dos quais diz que, ao
menos, pode admitir-se que suas economias sofreram
de melhor tecnologia e da melhor utilização alguma dose de condicionamento político.
dos recursos naturais e do capital”11. 12
Esse é um ponto que deve ficar bastante claro,
pois se trata de dois tipos bastante diversos de libe-
11
É interessante sublinhar que Jaguaribe é autor ralismo. O liberalismo de Hayek, conhecido como
que dialogou com a cultura norte-americana dos anos neoliberalismo e, por outro lado, o de Rawls, cujo
sessenta e, por conseguinte, não passou distante de liberalismo tem o sentido que desfruta a expressão
uma série de doutrinas que, direta ou indiretamente, nos EUA, a saber, o corte das filosofias políticas que
dialogaram com o pensamento de Rawls, muito embo- inspiram o pensamento democrata norte-americano.

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Por outro lado, Mill (1976, p. 88) pa- dência é a produção de justiça nas circuns-
rece antecipar consideravelmente alguns tâncias da vida concreta. Acaso pensemos
aspectos do pensamento de Rawls e, em em sociedade justa, haverá que mitigar os
alguns momentos, até mesmo seu linguajar, efeitos da loteria natural (seja dos lugares
quando sustenta que a sociedade que al- que a sociedade lhe atribui ou aquelas
meja o título de justa necessita “compensar outras vantagens derivadas de talentos ou
os menos favorecidos por esta imerecida capacidades naturais (cf. RAWLS, 1967-
desigualdade de vantagens, de preferência 1968, p. 132).
a agravá-la”. Contrariar essa tese implica À guisa de conclusão, é perceptível que
aceitar o princípio de que o trabalhador que para Rawls a concepção de justiça social
rende mais ou, em outros termos, é mais concebida na posição original deve pro-
eficiente, deve mesmo obter maior retorno porcionar uma pauta teórica que supere as
financeiro por seu trabalho, quer seja pelo diversas, e individuais, concepções sobre
empregador direto ou pela sociedade (cf. a justiça. Nesse sentido, Rawls supõe que
MILL, 1976, p. 88)13. os homens podem fazer mais do que agir
Assim, Rawls (1993a, p. 23) conclui de meramente guiados por seus instintos ou,
modo taxativo que “é a estas desigualda- ainda, conforme uma pauta egoística. Sua
des da estrutura básica de toda sociedade, suposição é de que os homens são seres
provavelmente inevitáveis, às quais se morais e daí deriva a possibilidade de que
devem aplicar em primeira instância os possam realizar escolhas com transcendên-
princípios de justiça social”. O filósofo não cia moral e retratando instituições de con-
ataca as raízes da desigualdade com o fito vívio que reflitam a moralidade intrínseca
de extirpá-las mas, isto sim, com o escopo a todos os cidadãos, resguardando-lhes
de amenizá-las. Como diz Grondona (2000, direitos essenciais como a liberdade e a
p. 146), Rawls compreendeu que a desigual- dignidade, tomada esta em sentido amplo
dade é uma condição para o progresso e que abrange direitos diversos, tais como a
que, “no limite, a igualdade e o progresso educação, a igualdade de oportunidades
excluem-se de modo recíproco”. Desde etc.
logo, essa última ideia de Grondona pode Como recorda Waldron (1999, p. 89), a
ser subscrita sempre e quando entendamos justiça social não é apenas algo que pode-
que o “limite” ao qual se refere seja o de mos fazer por nós próprios mas, isto sim,
uma sociedade em que triunfe a igualdade que temos de realizar em conjunto, e uma
plenamente abrangente, a saber, total e ação em conjunto demanda que tenhamos
irrestrita em todas as dimensões possíveis. valores compartilhados desde os quais
Isso não seria compatível com a liberdade possamos tornar os valores uma prática
nem com o progresso econômico14. política concreta. Essa ideia ilustra que
Pela iniciativa de aplicar os princípios devemos valorar os aspectos distributivos
de justiça social à estrutura básica, a ten- inerentes aos debates que se põem na es-
trutura básica da sociedade, algo a que vai
13
Acerca de uma possível área de diálogo do uti- unido o conceito de justiça – observe-se
litarismo com a teoria da justiça rawlsiana, uma obra
tratar de algo aristotélico (ver ARISTÓ-
bastante útil é a de Maffettone (1983).
14
A esse respeito cabe acrescer que a igualdade TELES, 1952, p. 155-161)15 – ao qual cabe
torna-se incompatível com o desenvolvimento e pro- designar direitos e deveres e definir as
gresso econômico bem antes dessa curva que termina vantagens sociais segundo os termos de
em estabilização que revela a plenitude da igualdade, justiça concebidos.
cujo exemplo histórico são os países socialistas, que,
embora longe de configurar uma sociedade plenamen- 15
Há algo de aristotélico na argumentação rawl-
te igualitária, fizeram ruir seus respectivos sistemas siana, ainda que ele não adote exata ou explicitamente
econômicos. algumas posições do estagirita.

216 Revista de Informação Legislativa


3. A lista de bens em pauta a elaboração de listagem com
primários tutelados bens primários (primary goods), visa atacar
o problema que se centrará na abordagem
A tradição de reflexões filosófico-políti- que Mill reserva à felicidade, e que a tra-
cas acerca do atendimento às necessidades dição, de Locke a Jefferson e aos Founding
humanas, assim como às suas organizações Fathers, de uma ou outra forma também
institucionais que lhe deem lugar, remete se preocupara. Rawls o faz, como diz Day
aos clássicos do contratualismo moderno (1996, p. 230), para promover a distribuição
mas, também, a pensadores não expressa- equitativa na sociedade desses bens primá-
mente mencionados, como Khaldun, se- rios que o conjunto da sociedade auxiliar
gundo quem as necessidades fundamentais na produção.
encontraram, historicamente, maior aten- Mas Rawls, ao ocupar-se do tema, evita
ção nas sociedades nômades. Uma vez feita a determinação do sentido substantivo da
a transmigração para as cidades, sustenta, felicidade, o que efetivamente seria incon-
teve lugar a satisfação de outras necessida- gruente com uma teoria moral abrangente
des, a saber, aquelas “oriundas do luxo e de (comprehensive moral doctrine), como a que
aperfeiçoar tudo o que se relaciona com o defende em seus escritos de maturidade.
seu estado e modo de viver” (KHALDUN, Sua perspectiva é a de promover a distribui-
1958, p. 207). Mas temos de admitir que os ção desses bens primários ou básicos para
cidadãos das urbes contemporâneas não todos, de sorte que seus planos de vida ou
se satisfazem com os mesmos itens que os concepções de bem possam ser realizadas
campesinos aos quais se referia Khaldun por cidadãos que, em sua totalidade, na
nem com aquilo solicitado por outros. qualidade de livres, possuem capacidade
O ponto de partida da argumentação moral para nutrir uma concepção do bem
em torno a quaisquer seleções possíveis (cf. RAWLS, 1996, p. 51). Enfim, se trata
de bens que entendamos por primários daquilo que Day (1996, p. 230) diz ser as
ou, se se preferir, vitais, creio que deve ser coisas que todas as pessoas especialmente
a compreensão de que este tipo de bens valorizam para atingir seus fins, concep-
necessários à vida são escassos, e isso não se ções essas que são variáveis no decorrer da
refere tão somente àqueles indispensáveis à vida conforme os fins que são igualmente
vida humana. Mesmo quando temos bens alteráveis.
que garantem a vida, dá-se o fenômeno A teoria rawlsiana parte de um con-
da insaciabilidade dos bens necessários ao junto de princípios de justiça elaborados
espírito. Em seu tempo, Hume (1992, p. 656) racionalmente e em definitivo; a sociedade
recordava que “nunca se tem uma quanti- empírica haverá que contar com o apoio
dade tal de bens que satisfaçam a cada um dos cidadãos concretos. Isso dependerá
de nossos desejos e necessidades”. em boa parte não apenas da racionalidade
Desde logo, a pergunta que emerge é dos atores que colocaram os princípios de
por que se importar em alguma medida justiça que são aplicados sobre a estrutura
com a satisfação dos cidadãos? Isso tem básica sobre a qual vivem os cidadãos con-
a ver com a busca da felicidade? Se tem, cretos, mas, em boa parte, também devido
deve ela ser puramente individual, dirigida à aderência desses cidadãos históricos, algo
pelo governo ou apenas parametrizada que depende fundamentalmente de como,
por ele? Mill (1976, p. 95), por exemplo, com o passar dos tempos, alterarão seus
sugere que todos têm direito à felicidade, planos de vida, suas perspectivas e, mesmo,
mas, para que isso se torne real, há de ser as doutrinas compreensivas.
materializado “o direito igual a todos os Parece que devemos reconhecer que os
meios de a alcançar”. Quando Rawls põe cidadãos realmente já não se satisfazem

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 217


tão-somente com o atendimento das necessi- os papéis desempenhados por cada um
dades básicas – e dito seja de passagem que deles na busca por seus fins (cf. RAWLS,
todavia muitos Estados não lograram cum- 1993b, p. 41).
prir com funções básicas, que permanecem Mas e o que são, do ponto de vista
amplamente desatendidas – e com o atendi- conceitual, os bens primários? Segundo
mento de outras necessidades, tais como as Rawls (2000, p. 165), eles “são bens geral-
que Khaldun denomina luxuosas. As de nos- mente necessários como condições sociais
so tempo são necessidades superiores que e como meios polivalentes que permitam
ora conjugam essas enunciadas por Khaldun às pessoas buscar suas concepções deter-
ora as transcendem, apontando a dimensões minadas do bem e desenvolver e exercer as
abstratas e de autorrealização. Esses são duas faculdades morais”17. Eles permitem,
valores importantes para a realização de em suma, que cada um busque seus fins
uma teoria da justiça e, por conseguinte, da últimos na medida em que constituem
proposta de uma sociedade bem organizada, um mínimo denominador entre as di-
como encontramos em Rawls. versas moralidades e planos de vida que
Realizada a observação de que a ausên- coexistem em um determinado momento
cia de uma proteção mínima importará em histórico. Temos como exemplo disso as
prejuízos e danos de distinta monta às par- noções de autorrespeito (self-respect) e
tes deliberantes (livres, racionais e iguais, de autoestima (self-esteem), que se fazem
além de morais) e à própria estrutura básica ainda acompanhar das liberdades básicas,
de uma sociedade justa que pretenda erigir, rendas e direitos à educação e saúde. To-
eis que elas se relacionam no momento de dos esses são bens cuja instrumentalidade
elaborar princípios de justiça, de forma a é patente e se tornam comuns para que as
cooperar na suplantação de circunstâncias pessoas atinjam seus fins e cumpram seus
impeditivas à afirmação de bens primários planos de vida. Isto sim, todos realizam
socialmente compartilháveis. Esse é um uma calibragem desses bens à medida
princípio de justiça cuja efetiva proteção que resultam proveitosos segundo suas
dependerá de que em momentos poste- concepções morais e seus planos de vida.
riores (fase constitucional, legislativa ou A mescla deles é, parafraseando Nozick,
judiciária)16 sejam encontrados mecanismos uma mescla original.
para resolver o problema posto. Segundo Rawls (2000, p. 165), é media-
A filosofia jurídica que perpassa o es- namente claro por meio de sumária análise
pírito dos seres racionais deliberantes não que os projetos racionais de vida possuem
os insere em uma tradição próxima a ver- uma “certa estrutura” e, por conseguinte,
tentes jusnaturalistas. Ao contrário, Rawls essa estrutura é que deve procurar ser
sustenta que a sociedade bem organizada protegida quando da listagem dos bens
supõe que seus cidadãos não pensam nem primários.
estão condicionados por antecedentes fins Será com essa finalidade que Rawls
sociais que justifiquem seus pontos de vista desenvolverá boa parte de seus trabalhos
e da forma como a sociedade deva vir a acadêmicos. Ele intervém sugerindo que
ser organizada. Isso se dá à diferença de a questão pode, não sem esforço, ser resu-
muitas sociedades do passado nas quais mida em assegurar bens sociais primários
os valores e fins que informavam as vidas que representam um mínimo denominador
e a sociedade condicionavam o direito e o
status dos indivíduos e classes, assim como
17
As duas faculdades morais (as quais Rawls de-
nominaria “os dois casos fundamentais”, aparecem na
16
A definição dessas três etapas encontra-se em seção VII do artigo As liberdades básicas e sua prioridade)
diversos trechos da obra de Rawls. Apenas a título são a capacidade de ser razoável e a capacidade de ser
exemplificativo, ver RAWLS (2000, p. 153). racional (RAWLS, 2000, p. 162-163).

218 Revista de Informação Legislativa


de bens que são não apenas de interesse liberdades básicas iguais para todos são as
geral como necessários à generalidade das mesmas para cada cidadão [...]” (RAWLS,
pessoas. Eles são bens-meios e bens-fins, isto 2000, p. 177), cuja importância fica marcada
é, utilizáveis para obter outro dos quais pelo fato de realizar-se sua tarefa protetora
todos os humanos necessitam ou, no se- já nos arranjos sociais iniciais por meio dos
gundo caso, aspiramos por nossa própria princípios de justiça.
condição, do que é exemplo a liberdade18, Sem embargo, desde uma perspecti-
e que todos compartilharão em igualdade va histórica e teórica, trata-se menos de
de condições. aceitar que a sociedade atribua direitos
Na relação desses bens sociais primários, do que em compreender que eles provêm
podem ser listados direitos tais como liber- do entendimento de que os homens os
dades, igualdade de oportunidades, igual conquistaram por meio da evolução das
acesso ao exercício e/ou disputa pelo poder, relações sociopolíticas. Por outro lado, e
obtenção de receita, possibilidade concreta com o intuito de melhor caracterizar os
de ter acesso e desenvolver o autorrespeito bens sociais primários, pode ser dito que
ou, como prefiro denominar, de estruturas eles constituem todos aqueles que, em
sóciopsíquicas de autoestima. Esses são oposição aos que a natureza pode atribuir
bens que, segundo a linguagem do consti- diretamente aos homens, tais como certa
tucionalismo, podem ser considerados ina- dosagem de inteligência (ou grau de ha-
lienáveis. Dessa forma, mesmo o indivíduo bilidade mental específica, de força física
menos privilegiado jamais poderá ver-se etc.), eles estão alicerçados firmemente em
alijado do desfrute desses bens. É esse o teto uma teoria que vislumbra a necessidade
mínimo proposto por Rawls para a sua teo- de que o homem intervenha no processo
ria da justiça como equidade19 que, por sua legislativo, de sorte a corrigir disfunções e
vez, o utilitarismo não possui e que, quiçá, injustiças socialmente provocadas e moral-
possa entender-se como sendo o seu tendão mente insustentáveis.
de Aquiles enquanto teoria da justiça. Uma vez que, como disse Rousseau
Em síntese, pode ser dito que bens so- (1990, p. 7), “o espírito tem suas necessi-
ciais primários são todos aqueles conferidos dades assim como o corpo e ambas são o
pela sociedade bem organizada e, portanto, fundamento da sociedade”. Tal espécie de
justa, a partir da compreensão de que ne- abordagem teórica se sustenta em deter-
nhum indivíduo pode viver sem eles e que minados princípios, os quais aparecem na
devem, portanto, recebê-los de forma equi- teoria da justiça como equidade de Rawls.
tativa seu processo de distribuição. Enfim, Nela sobressai, por exemplo, o quanto são
“na teoria da justiça como equidade [...] as aceitáveis a utilização dos princípios de
justiça como instrumentos para a realização
18
Encontro-me proclive a admitir que a liberdade é
tanto um bem-meio (instrumento apto a que alcancemos
de qualquer plano racional de vida que con-
diversos objetivos) como um bem-fim (desfrutável em si sidere igualmente o mesmo respeito pelos
mesma) do qual não podemos abrir mão quando temos planos alheios (e/ou concorrentes) de vida
em vista um projeto de vida ao qual apreciamos, seja racional, as quais os demais indivíduos se
ele qual for, e temos em vista seu cumprimento.
19
Interessa recuperar nesse momento a advertência proponham realizar20.
que com muita propriedade realizou Bittar acerca da
completa distinção existente entre o conceito de equi-
20
Pode-se objetar a esse trecho (embora não tenha
dade em seu sentido clássico, aristotélico, e tal como por escopo neste momento desenvolver tal possibi-
ele aparece em Rawls. Segundo o jusfilósofo pátrio, em lidade analítica) que Rawls retoma uma articulação
Aristóteles, o conceito se encontra relacionado como lógica de inspiração aristotélica, a saber, que o “bom”
sendo um “corretivo da lei”, isto é, “como algo superior (ao menos aquilo que Rawls considera bom e/ou
a um tipo de justiça, à justiça legal (dikaíou nomimón), desejável, a saber, uma sociedade livre e todas as ins-
e utilizada como corretivo da mesma (epanpthoma tituições necessárias) deriva da aplicação prática do
nomímou dikaíou)”. (BITTAR, 2004, p. 382). conceito de razão. Isso não está longe do que propõe

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 219


A exposição do parágrafo acima conec- Contudo, essa posição de Rawls encon-
ta-se com o princípio e, ao mesmo tempo, tra-se longe de ser hegemônica ou gozar
problema prático, de que os homens têm de irrefutáveis argumentos. Hayek, em sua
certas expectativas em suas vidas que não bem escrita e fundamentada Direito, legisla-
podem ver frustradas sem que isso encontre ção e liberdade, retoma a mesma questão de
mediação em graves conflitos sociais. Ra- uma ótica visceralmente distinta. Segundo
wls detecta e recepciona em sua obra a ideia o autor, em uma sociedade livre (conceito
de que as diferenças, sejam elas naturais ou que não é nada estranho para Rawls nem
sociais, intervêm de forma decisiva muitas para a tradição liberal a que pertence),
vezes nessas expectativas, legítimas, que os “a incidência dos resultados sobre os di-
seres humanos nutrem para o desenvolver ferentes sujeitos faz caso omisso de toda
de suas vidas. Como diz ele, “homens nas- consideração relativa à justiça” (HAYEK,
cidos em posições sociais diferentes têm 1988, p. 131). Enfim, o que nos diz, e por
diferentes expectativas de vida, determi- valer-nos de categorias rawlsianas para
nadas, em parte, tanto pelo sistema político facilitar o trânsito e diálogo entre ambos, é
como pelas circunstâncias econômicas e que as diferenças no ponto de partida não
sociais”. (RAWLS, 1993a, p. 24) podem ser tomadas como justas ou injustas
Da legitimidade dessas expectativas e nem, portanto, encontrar em algum mo-
expostas ao fim do parágrafo anterior e mento legitimação política em outro ponto
da frustração potencial advinda de que as para apoiar a inversão da ordem de coisas
variáveis naturais ou sociais podem pro- postas. Também não vai muito longe o
porcionar, deriva a concepção rawlsiana de próprio Nozick quando argumenta que não
corte construtivista de que há de intervir, há como intervir nas livres escolhas reali-
ao menos até certo ponto, no sentido de que zadas pelos indivíduos, senão quando não
tenhamos como mediadora das relações so- possuam um justo título de propriedade.
ciais um conceito de justiça potencialmente Ao fim e ao cabo, para Hayek (1988, p. 131),
equilibrado e equilibrador dessas relações, ali onde tenhamos uma sociedade em que
pois é sabido o quanto a sociedade favorece os indivíduos e grupos ocupam posições
algumas posições iniciais de uns diante das que não dependem de ninguém, eis que as
ocupadas por outros (cf. RAWLS, 1993a, diferenças de receitas que cada um obtenha
p. 24). São essas as desigualdades relativa- encontram-se perfeitamente legitimadas.
mente às estruturas básicas com as quais Nesse aspecto, o autor abre clara linha
há de enfrentar-se uma teoria como a rawl- de debate com a posterior teoria rawlsiana,
siana que visa à justiça social, sejam quais uma vez que implicitamente menciona um
forem as críticas que ela possa supor21. dos elementos dos princípios de justiça, a
saber, a igualdade de oportunidades e o
Aristóteles (1994, p. 90) quando diz que “a virtude mo- igual acesso às oportunidades sem discri-
ral é uma disposição relativa à eleição, e a eleição é um
desejo deliberado, o raciocínio tem que ser verdadeiro
minações. Contudo, Hayek contenta-se com
e o desejo reto para que a eleição seja boa”. isso, não vai além em suas exigências para
21
Desde logo, minha primeira referência teórica admitir as desigualdades sociais. Rawls
entre os críticos da “justiça social” ou “distributiva” percorrerá caminho oposto, como temos
é Hayek. O autor não se mostra tímido em suas crí-
ticas a esse conceito. Em resumidas contas, o autor
oportunidade de observar ao examinar seus
sintetiza a ótica ameaçadora por meio da qual seu princípios de justiça.
liberalismo observa o avanço desse conceito: “[...]
ameaça destruir essa específica forma de interpretar redistributivista como o de justiça social. Muito em-
a lei que converteu o direito em eficaz salvaguarda da bora não tenha sido oportunizado o seu debate com a
liberdade individual” (HAYEK, 1988, p. 119). Desde obra rawlsiana, é de se supor o nível de esforços que
logo, um liberal da estirpe de Hayek não poderia poderia ter empregado para contrapor-se à influência
deixar de se contrapor a um conceito eminentemente do pensamento rawlsiano.

220 Revista de Informação Legislativa


Todo esse debate propõe um problema, donar quaisquer dos seus objetivos, ainda
qual seja, da circunstância de que todos que os outros disponham de mais meios para
desejam maximizar sua participação na satisfazer os seus (RAWLS, 1993a, p. 171),
distribuição desses bens sociais primários? ainda que isso não implique elidir a ideia
Este seria um caso a resolver? A questão de que se encontrem sujeitos à mudança de
aqui não é respondida por Rawls com base planos, objetivos e/ou valores.
em um jogo de barganha (bargaining game) Essas linhas recém postas expõem uma
ou simplesmente barganha, território onde reflexão rawlsiana algo distanciada de uma
teriam lugar disputas quase infinitas pela filosofia como a que caracteriza boa parte da
maximização individual por tais bens. A sociedade moderna, vale dizer, considera-
alternativa de Rawls busca objetar a essa velmente hedonista, quando não hedonista
questão recorrendo mais uma vez ao con- radical; todavia, ela é maximizadora não
ceito de racionalidade. Segundo ele, esse apenas de seus desejos como também poten-
conceito levaria as partes a uma conduta cializadora do sentimento de inveja, o que
mutuamente desinteressada, isto é, elas torna ainda mais difícil satisfazer seus de-
buscariam não a vitória no “jogo”, mas, sim, sejos. Daí os conflitos que o próprio Rawls,
se adstrinjam à obtenção para si próprias do de fato, não desconheceu, pois, assim como
maior número de pontos em conformidade fora ressaltado por Hobbes, eles se apresen-
com o seu sistema de fins, sem preocupar-se tam como inevitáveis em sociedade.
em diminuir a pontuação das outras partes, Rawls não se descuida da necessidade de
ou sequer preocupar-se em maximizar ou proceder a uma listagem dos bens primários
minimizar a diferença entre seus êxitos e o na teoria da justiça como equidade. Já em seu
dos outros (cf. RAWLS, 1993b, p. 172). artigo As liberdades básicas e sua prioridade, Ra-
É nesse ponto que surge a discussão wls (2000, p. 166-170) volta ao tema e anuncia
sobre se o sentimento de inveja não estaria cinco categorias de bens primários, a saber:
sendo insuficientemente considerado ou, 1) as liberdades básicas (entre as quais, a de
até, desprezado pelo autor em seu sistema. A pensamento e a de consciência); 2) liberdade
verdade é que Rawls o considera, mas, logo de movimento e a livre escolha da ocupa-
após, termina por excluí-lo devido a que aos ção; 3) os poderes e suas prerrogativas das
indivíduos, com seus fins e ações racionais funções e dos postos de responsabilidade;
“não lhes resultaria insuportável saber ou 4) a renda e a riqueza, consideradas em seu
dar-se conta de que outros têm uma quan- valor de troca; 5) as bases sociais do respeito
tidade maior de bens sociais primários [...]” próprio. O que se vislumbra aqui é uma inte-
(RAWLS, 1993ba, p. 170). Isso ocorre porque ressante listagem mas que, como diz o autor,
a eles o que realmente interessa é que cada não pode comprometer-se com a extensão
um possua um plano de vida que é próprio sob pena de provocar o debilitamento da
suficiente para si, e o alcançá-lo lhe basta, proteção das liberdades mais essenciais (cf.
sem mais22. Os indivíduos possuem um sen- RAWLS, 2000, p. 152).
timento seguro do próprio valor (e querem Desde logo, uma das críticas que podem
realizá-lo), assim como de seu plano de vida ser opostas ao apresentado no parágrafo
racional. Isso faz com que não desejem aban- acima, subjacente à atuação dos indiví-
duos deliberantes na posição original, é o
22
De minha parte, não compartilho da visão de expressivo e qualitativamente considerável
que mesmo o mais racional entre os indivíduos histó-
ricos possua um plano de vida com limites tão claros
volume de informações às quais não têm
a perseguir e que seu contentamento dê-se, inexora- acesso devido à operatividade do véu da
velmente, com atingi-los, sem o acréscimo de outros, ignorância23. Sendo assim, como esses indi-
por não falar em trocas ou substituições de objetivos,
algo derivado das alternativas que a dinâmica da vida 23
Entre os aspectos que os parceiros que deliberam
impõe, assim como aos valores que lhe subjazem. na posição original desconhecem, encontra-se o conte-

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 221


víduos representativos poderiam discernir e Kant (1724-1804). Desde logo, o que Ra-
não só os interesses como os valores morais wls propõe é uma teoria cuja sofisticação
desejáveis pelo conjunto dos representados transcende os limites dos clássicos, muito
na posição original? Efetivamente, do que embora mantenha muito de Kant, como se
se trata é da observância da existência de percebe do que foi apresentado até aqui.
características e/ou necessidades e valores Rawls (1993a, p. 19, 28) pretende apresentar
mínimos compartilhados por todos quanto uma concepção da justiça que, segundo ele,
almejem a proteção de seus interesses, o “leve a um nível mais elevado de abstração
desenvolvimento histórico da sociedade em à conhecida teoria do contrato social” tal
que esteja inserido, assim como a busca e como advém dos filósofos do classicismo
afirmação de seu(s) plano(s) de vida. contratualista, notadamente da tríade
O não conhecimento dos representados nomeada logo ao início do parágrafo (cf.
e de inúmeros outros aspectos do mundo RAWLS, 1999a, p. 159).
empírico que lhes envolve não é obstá- Dessa forma, esses princípios de justiça
culo suficientemente forte para impedir acordados sob o véu da ignorância termi-
a elaboração da supracitada lista de bens nam por ser aplicados à estrutura básica
primários. Rawls propõe um conceito de da sociedade (basic structure of society). Ela
pessoa sobre o qual os seres deliberantes se consiste na atribuição de direitos e deveres
apoiam no sentido de elaborar a listagem aos cidadãos, os quais efetivamente termi-
desses bens primários. O que efetiva e posi- narão por determinar as expectativas vitais
tivamente permitirá que os parceiros na po- dos cidadãos no que concerne aos valores e
sição original elaborem tal lista é a estrutura várias dimensões da vida (economia, mora-
geral dos projetos de vida racionais (que lidade, projetos pessoais, etc.). Sendo assim,
encontra limitações quanto à sua admissi- sua importância não pode ser relevada. A
bilidade tão-somente no que concerne aos teoria rawlsiana compreende seu papel e
propósitos atentatórios aos princípios de concebe a estrutura básica da sociedade
justiça) das pessoas – esses sim conhecidos como objeto primário de justiça, o que se
pelos seres racionais deliberantes envoltos deve a que
sob o véu da ignorância na posição origi- “[...] seus efeitos são profundos e
nal –, os quais contêm e expressam dados estão presentes desde o começo.
gerais sobre a psicologia humana (mas não [...] A justiça de um esquema social
conhecem detalhes sobre sua própria) tanto depende essencialmente de como se
quanto sobre o funcionamento das institui- atribuem direitos e deveres funda-
ções (cf. RAWLS, 2000, p. 169). mentais e das oportunidades econô-
micas e condições sociais que existem
4. A aplicação dos princípios de nos vários setores da sociedade”.
justiça à estrutura básica (RAWLS, 1993a, p. 23)
Na concepção do filósofo harvardiano, e
Como é sobejamente sabido, Rawls não sem razão, há elementos componentes
insere-se na tradição contratualista de ma- da estrutura básica cuja repercussão é tão
tiz liberal que remete à filosofia política de ampla que verdadeiramente condiciona as
Locke (1632-1704), Rousseau (1712-1778) chances de cada indivíduo, as possibilidade
údo das concepções de bem das pessoas representadas de alcançar suas metas, quer do ponto de
assim como os fins últimos a que se propõem realizar. vista moral ou profissional e também o
Igualmente desconhecem os objetos de seus compromis- desenvolvimento ulterior de toda uma so-
sos e de suas fidelidades, assim como a visão que têm da
ciedade histórica. Logo ao início de sua obra
sua relação com o mundo (religiosa, filosófica ou moral)
com referência à qual essas finalidades e essas fidelida- magna, o autor dá mostras de alguns deles,
des são compreendidas (cf. RAWLS, 2000, p. 169). enunciando, por exemplo, a constituição

222 Revista de Informação Legislativa


política e os principais acordos econômicos para a operacionalização de uma sociedade
e sociais (cf. RAWLS, 1993a, p. 23). Espe- justa e bem organizada.
cificamente, Rawls (1993a, p. 23) nos diz Na posição original, deparamo-nos com
que fazem parte deles a “proteção legal à seres livres, iguais e racionais cujo perfil
liberdade de pensamento e de consciência, é similar ao que propõe Kant (1989). Essa
os mercados competitivos, a propriedade vontade legisladora autônoma do homem
particular no âmbito dos meios de produ- evidencia-se ao estabelecer os princípios
ção e a família monogâmica”. de justiça que delimitam o campo de ação
Essa linhagem de valores que bem po- dentro do qual será possível os homens
dem ser interpretados como liberais (ver entregarem-se à procura da satisfação de
PAREKH, 2005, p. 144) é ideia que voltaria seus interesses sem lesar a consecução dos
a ser trabalhada, desenvolvida e, em certa fins a que se propõem os demais que com
medida, revista, como tantas outras, nos eles convivem em sociedade. De qualquer
anos subsequentes à publicação da Teoria sorte, essa intervenção legisladora autô-
da justiça. De qualquer sorte, garantir a noma humana dialogará com seu entorno,
acessibilidade a esses elementos viabiliza traduzindo isso para o nível da conduta
condições de equidade para que os indiví- legisladora dos princípios de justiça pela
duos dediquem-se à busca da consecução proteção às liberdades segundo os termos
de seus diferentes planos de vida. Esses postos por sua tradição cultural, com o que
bens têm de permanecer acessíveis sempre mesmo utilitaristas põem-se de acordo25.
até porque os planos de vida e as concep- Enfim, nos deparamo-nos aqui com que
ções sobre o bem são alteráveis, como já re- essa proteção não pode, como diz Parekh
conhecia Rousseau24, e uma teoria finalista (2005, p. 136), resolver-se em um vazio
ou consequencialista não daria conta dessa histórico ou cultural, senão o contrário, é a
dimensão de forma satisfatória. partir de suas informações que tal proteção
Os princípios de justiça que Rawls (1993, deverá tornar-se possível. Portanto, o pré-
p. 28) propõem em sua teoria são aquela requisito para que elaboração de princípios
classe de “princípios que as pessoas livres de justiça é preenchido apenas quando
e racionais interessadas em promover “As pessoas vivem juntas durante
seus próprios interesses aceitariam em um certo período de tempo e desen-
uma posição inicial de igualdade como volvem interesses comuns, com uma
definidores dos termos fundamentais de língua compartilhada e uma cultura
sua associação”. É digno de nota que todos própria, hábitos de cooperação e, ao
aqueles que interferem na posição original menos, certo grau de comprometi-
o fazem segundo princípios de racionali- mento, encontram-se em situação de
dade, e também alicerçados em conceitos debates sobre uma concepção comum
antropológicos da proteção e maximização de justiça e de defini-la26 [...]”. (PA-
de suas concepções sobre o bem e seus REKH, 2005, p. 136)
interesses particulares. Aliás, não é por Segundo essa perspectiva, os princípios
outro motivo que Rawls tem de lançar mão de justiça carecem da prévia criação de va-
do conceito de véu da ignorância, artifício 25
Smart (1981, p. 62), por exemplo, sustenta que
teórico que constitui a única condição sob os homens são o “resultado da herança e do meio
a qual os seres deliberantes podem acordar ambiente”.
princípios de justiça virtualmente eficazes 26
Segundo Parekh (2005, p. 136), “isto se aplica
especialmente às sociedades profundamente divididas
24
A esse respeito, o autor foi bastante claro ao cujos membros não apenas não conseguem colocar-se
dizer que “nossas necessidades e nossos prazeres de acordo sobre a natureza, os critérios e os limites da
trocam de objeto ao longo do tempo”. (ROUSSEAU, justiça como geram novas fontes de tensão quando
1990, p. 201) tentam debates sobre o tema”.

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 223


lores comuns, de interesses e sentimentos vel igualitário mínimo. O norte-americano,
compartilhados. Os princípios de justiça contudo, é claro quanto ao seu propósito
estabelecidos – e os examinaremos adiante material ou substancialista em matéria de
no que diz respeito ao conteúdo – regu- justiça (cf. RAWLS, 1993a, p. 11).
larão, em síntese, os termos formais em Mas, enfim, a essa altura podemos ques-
que terá lugar a cooperação social, assim tionar sobre qual o conteúdo da estrutura
como as formas de governo que poderão, básica da sociedade na concepção rawlsia-
em congruência com tais princípios, ser na. Conceito importante em sua teoria, o
estabelecidas. Esse é o contexto em que se norte-americano logrou delimitá-lo com
dá a aplicação da justiça como equidade. clareza. Segundo ele, trata-se de eleger prin-
Essa ideia de cooperação é o que possibi- cípios sólidos o suficiente para “encorajar
lita e justifica que as instituições coletivas certas doutrinas compreensivas e modos
possam ser constituídas sob o manto da de vida” (cf. RAWLS, 1993b, p. 195). A
desigualdade. estrutura básica da sociedade, como bem
Em outros termos, como diz Maffettone ressalta Parekh, não apenas está constituída
(1983, p. 18), trata-se de um prévio juízo a por uma dimensão política e econômica,
favor dos menos privilegiados que tornam como foi dito por Rawls, como também
possível constituir a empresa cooperativa por uma outra diversa dimensão cultural.
que denominamos sociedade, em que a A justificativa de Parekh (2005, p. 314) é
desigualdade apenas poderá justificar-se que esse elemento cultural representa o elo
nos termos do princípio da diferença, mas entre os princípios de justiça, as liberdades
não com uma grande diferença entre os e os direitos e oportunidades culturais.
proveitos obtidos por meio dos princípios Por outro lado, o que concerne aos prin-
estabelecidos por todos os seus partícipes. cípios de justiça encorajar ou desencorajar
Essa é uma leitura que guarda simi- no âmbito de uma sociedade bem organi-
laridade com Mill, segundo quem as so- zada? Seguramente, cabe o desencorajar
ciedades, assim como os indivíduos, têm doutrinas compreensivas antagônicas aos
peculiaridades, guardam em si mesmas princípios de justiça e que estimulem, por
diferenças fundamentais, o suficiente para exemplo, a escravidão ou os conflitos ét-
que não sejam viáveis esquemas, arranjos nicos, a degradação de pessoas ou grupos
e filosofias políticas universais, exceto sob (cf. RAWLS, 1993b, p. 196). Essa é uma
a condição de que realizem adequações às interpretação que não termino de observar
suas próprias realidades ou, como diz Mill, muito claramente na leitura realizada por
quando se dê mediada por uma “filosofia Day (1996). Segundo ele, Rawls defende-
de caráter nacional”. ria, em situações extremas, até mesmo a
Não obstante a definição formal, que escravidão. Diz ele que “the owner of all
deita raízes em Kant, uma das críticas que the wealth is bound in any rearrangement.
podem ser feitas ao prussiano é de que sua Similarly, in certain circumstances, serfdom
limitação ao aspecto formal pode gerar de- would be justified, when there was no way
sigualdades consideráveis – e isso efetiva e of improving the lot of the serfs without
infelizmente tornou-se uma realidade – e, worsening the position of their lord”.
daí, dar lugar a falta de acesso à justiça (DAY, 1996, p. 236)
(cf. PILON, 2006, p. 69). Essa é uma tarefa
da qual Rawls não descuidou ao propor a
5. Considerações finais
estrutura básica da sociedade, na qual as
diferenças substanciais são limadas com a Ao fim e ao cabo, sempre cabe ponderar
finalidade de projetar a aplicação dessa es- que, como diz Mill, a história social e das
trutura a uma sociedade que goze de um ní- instituições que lhe conformam “deixam

224 Revista de Informação Legislativa


sucessivamente de ser considerados como políticas e sociais necessárias para o desen-
necessidades primárias da existência social volvimento (cf. RAWLS, 2000, p. 175).
para passarem à categoria de injustiças e Nesse contexto, e com o objetivo de
tiranias universalmente estigmatizadas. auxiliar a alcançar o objetivo, é concebida
Assim aconteceu com as distinções entre a estrutura básica da sociedade como uma
escravos e homens livres, nobres e servos “organização que maximiza os bens pri-
[...]” (MILL, 1976, p. 5-96). Sendo assim, mários à disposição dos menos favorecidos
essas estruturas cujos conteúdos morais nos para que eles utilizem as liberdades básicas
causam repelência não devem, contudo, que estão à disposição de todos” (cf. RA-
deixar de ser entendidas em perspectiva. WLS, 2000, p. 177).
Podemos entender algumas limitações Os princípios de justiça vão projetar-se
que lhes sejam postas para tornar factível sobre a estrutura básica da sociedade devi-
sua efetivação. Nesses temos, a proposta de do à necessidade de ordenar as principais
estrutura básica apresenta-se concebida por instituições sociais, de sorte que a inter-
Rawls (1993b, p. 11) para operar no marco relação entre todos permita o objetivo de
de uma “moderna democracia constitucio- cooperação. A operatividade do conceito
nal”, a qual sempre propôs como objeto de de justiça depende, portanto, de como eles
seus estudos (cf. OLIVEIRA, 2003, p. 21), estarão articulados na estrutura básica da
o que, por conseguinte, desautoriza a que sociedade e dos efeitos práticos – de justiça
a crítica ao seu trabalho seja pautada por como equidade – que possam surtir. Em
outros parâmetros, o que é, no mínimo, seus termos, Rawls (1993a, p. 23) explica-
cometer uma impropriedade. nos que a justiça na sociedade bem orga-
Desencorajar doutrinas antagônicas nizada depende, fundamentalmente, de
como essas, que defendem institutos como como “[...] se atribuem os direitos e deveres
a escravidão, pressupõe uma firme convic- fundamentais e das oportunidades econô-
ção e difusão de que esses valores não po- micas e condições sociais que existem nos
dem ser compartilhados por uma sociedade vários setores da sociedade [...]”.
bem organizada que apenas pode encontrar
seu perfeito desenvolvimento naquilo que
Rawls denomina de moderna democracia Referências
constitucional. ARISTÓTELES. Moral a Nicômaco. Buenos Aires:
Em outro trecho de sua obra, Rawls Espasa-Calpe, 1952.
remarca que a estrutura básica deve ser
BERLIN, Isaiah. Cuatro ensayos sobre la libertad. Madrid:
entendida como “the way in which the ma- Alianza, 1996.
jor social institutions fit together into one
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structure” (RAWLS, 1993b, p. 258). Será
CARNELUTTI, Francesco. Teoria generale del diritto.
na posição original, quando os indivíduos Roma: Foro Italiano, 1940.
deliberantes ocupar-se-ão da escolha dos
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226 Revista de Informação Legislativa


Os caminhos da cidadania
A legislação brasileira referente à pessoa idosa (1988-
2003)

Cristina de Cássia Pereira Moraes


Rildo Bento de Souza

Sumário
1. Introdução. 2. A Constituição de 1888: “A
Constituição Cidadã!”. 3. As políticas sociais da
década de 1990. 4. O Estatuto do Idoso (2003).
5. A cidadania e a legislação: os caminhos em
construção. 6. Considerações finais.

1. Introdução
Nas últimas décadas, o assunto do ace-
lerado crescimento da população idosa,
tanto no Brasil quanto no mundo, tornou-se
proeminente nos centros de discussões, e
isso refletiu na forma de se pensar a pessoa
idosa dentro da legislação brasileira.
A medida que essa população se fez re-
presentar numericamente dentro da nossa
sociedade, tentou-se remediar a situação
com políticas públicas, cujo intuito é o de
assegurar a harmonia dos diferentes gru-
pos etários. Dessa assertiva, porém, alguns
questionamentos emergem: que critérios
são utilizados para condicionar determi-
nada pessoa dentro de algum grupo etário,
como a velhice, por exemplo? Por que nas
últimas décadas houve tantas políticas
públicas voltadas para a população idosa?
O envelhecimento populacional pode ser
considerado, no Brasil, como um problema
Cristina de Cássia Pereira Moraes é Profes-
sora Adjunta do Departamento de História da social?
Universidade Federal de Goiás Nosso objetivo é, a partir da vasta legis-
Rildo Bento de Souza é Mestrando em His- lação brasileira que abordou a pessoa idosa,
tória da Universidade Federal de Goiás. identificar os caminhos que lhes garantiram

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 227


a cidadania dentro da sociedade de forma Entre todas as Constituições brasileiras é a
efetiva. mais democrática e a que mais se preocupa
com os direitos sociais2, fato que lhe valeu o
2. A Constituição de 1888: epíteto de “Constituição Cidadã”3 (SILVA,
“A Constituição Cidadã!” 1996, p. 343).
“A Constituição de 1988 ampliou
No ano de 1988 o Brasil promulgava (...), mais do que qualquer de suas
a sua oitava Constituição1, a primeira na antecedentes, os direitos sociais. Fi-
retomada do sistema democrático, após os xou em um salário mínimo o limite
21 anos do Regime Militar. Esse período, inferior para as aposentadorias e
conhecido como Nova República, se iniciou pensões e ordenou o pagamento
“em clima de otimismo, embalada pelo de pensão de um salário mínimo a
entusiasmo das grandes demonstrações todos os deficientes físicos e a todos
cívicas em favor das eleições diretas. O oti- os maiores de 65 anos, independen-
mismo prosseguiu na eleição de 1986 para temente de terem contribuído para
formar a Assembléia Nacional Constituinte, a previdência. Introduziu ainda a
a quarta da República” (CARVALHO, 2006, licença-paternidade, que dá aos pais
p. 200). cinco dias de licença do trabalho por
Realizada a eleição, o Congresso Nacio- ocasião do nascimento dos filhos.”
nal iniciou as atividades constituintes em (CARVALHO, 2006, p. 206)
1o de fevereiro de 1987, sob a liderança do No que se refere à pessoa idosa, a Cons-
deputado Ulisses Guimarães. Durante a tituição brasileira de 1988 introduziu, pela
Assembleia Constituinte, pela primeira vez primeira vez, direitos específicos para essa
na história do país, foram aceitas emendas parcela da população, consagrando antigas
populares; essas propostas, entretanto, de- reivindicações dos movimentos sociais e
veriam ser encaminhadas por pelo menos legislando sobre os vínculos familiares,
três organizações oriundas da sociedade ao definir as responsabilidades entre as
civil acompanhadas por 30 mil assinaturas. gerações que, até então, não haviam sido
Essas campanhas circulavam todo o país, explicitados (CABRAL, 2004, p. 7). Esses
visando incorporar medidas institucionais direitos específicos que a autora se refere
em favor dos trabalhadores, das minorias são, principalmente, os artigos 229 e 230.
raciais e sexuais, da mulher, da criança, do “Art. 229. Os pais têm o dever de
jovem e do meio ambiente, etc. (SILVA, assistir, criar e educar os filhos meno-
1996, p. 342-343) res, e os filhos maiores têm o dever de
A Constituição foi finalmente promul- ajudar e amparar os pais na velhice,
gada em 5 de outubro de 1988 apresentando carência e enfermidade (BRASIL,
“245 artigos e 70 disposições transitórias, 2001, p. 47)”.
tratando de vastíssima gama de assuntos”.
2
A Constituição considera direitos sociais a
Segundo Iglesias (1986), até o ano de 1986, o país
1
educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a
havia conhecido sete Constituições, a saber: 1824, 1891, segurança, a previdência social, a proteção à mater-
1934, 1937, 1946, 1967 e 1969. Sendo que “delas, só três nidade e à infância e a assistência aos desamparados
saíram de uma Assembléia Constituinte: 1891, 1934 e (BRASIL, 2001, p. 43).
1946. Em 1823 houve uma Constituinte que não fez 3
O autor analisa o processo Constitucional como
uma Constituição. A de 1967 foi feita por legislatura co- fruto de um jogo dos mais variados interesses, que
mum, completamente deformada em sua composição, permearam a discussão sobre alguns pontos, como,
com inúmeros parlamentares cassados, pela palavra por exemplo, a duração da jornada de trabalho, que
mais vida na crítica, pela contundência da denúncia dividiu patrões e sindicatos. Mesmo marcada por
ou simples capricho de algum poderoso eventual. A de grandes contradições, a Constituição foi elaborada
1969 por uma Junta Militar, sem mais, de modo ainda de tal forma que impedisse o retorno de governos
mais chocante” (IGLÉSIAS, 1986, p. 87). ditatoriais (SILVA, 1996, p. 344).

228 Revista de Informação Legislativa


Este artigo evidencia uma preocupação pelos filhos. O que quer dizer “assistir”? O
no tocante à assistência à pessoa idosa. Essa assistir refere-se à assistência, no sentido
assistência deveria ser feita pelos filhos. Essa mais amplo da palavra, que diz respeito a
troca de responsabilidades é muito interes- moradia, alimentação e saúde. Ora, esses
sante. Os filhos, que um dia foram assistidos também são responsabilidades do Estado.
pelos pais, agora teriam que retribuir essa Nessa perspectiva, o âmbito familiar com o
consideração. Com isso, a Constituição en- público se confundem na busca pela eman-
tra no âmbito familiar, delega atribuições cipação da pessoa idosa como portadora de
para os filhos, responsabilizando-os pelo direitos. Outrossim, o primeiro parágrafo do
trato aos pais que chegarem à velhice. Vale artigo 2304 reza que os programas que visam
lembrar que essa velhice não é estipulada amparar o idoso deverão ser executados,
cronologicamente, ou seja, não há uma ida- preferencialmente, em seus lares.
de, talvez porque a velhice neste caso esteja Ademais, o discurso da Constituição é
intrinsecamente ligada à saúde. claro: a pessoa idosa deve ser tratada como
Noutro passo, o artigo 230, complemen- um problema social, porém o locus desse
tando o anterior, reza que: problema se encontra na família, que tem
“Art. 230. A família, a sociedade e o dever de ampará-la. Os programas que
o Estado têm o dever de amparar futuramente seriam desenvolvidos pelo
as pessoas idosas, assegurando sua Estado ocorreriam no seio do lar. Porém,
participação na comunidade, defen- não se diz diretamente como seria trata-
dendo sua dignidade e bem-estar da a pessoa idosa que não disponha de
e garantindo-lhes o direito à vida.” recursos, nem de familiares. Nesse ponto
(BRASIL, 2001, p. 47) entraria a contribuição da sociedade. Seria
Isso posto, podemos constatar que, na a sociedade que garantiria a participação na
Constituição, a questão do envelhecimento comunidade, a dignidade e o bem-estar. O
populacional é tratada como um problema preferencialmente no primeiro parágrafo do
social. Um problema que ultrapassa o âmbi- artigo 230 evidencia que talvez essa pessoa
to familiar. Um problema que diz respeito idosa fosse atendida em outros lugares,
primeiramente à família, mas também à como os asilos, por exemplo.
sociedade e ao Estado. Há nas entrelinhas A partir, principalmente, dos artigos 229
um discurso que permeará todas as políti- e 230, mas também de outros que dizem
cas públicas que foram elaboradas poste- respeito a assistência social e a previdência,
riormente: a busca pela harmonia entre os foram elaborados, na década de 1990, um
grupos etários no Brasil. A pessoa idosa, amplo conjunto de leis que privilegiavam
não sendo somente de responsabilidade a pessoa idosa brasileira, entre eles desta-
da família, encontra, pelo menos hipoteti- camos a Lei Orgânica de Assistência Social
camente, amparo na sociedade e no Estado; (1993), a Política Nacional do Idoso (1994)
a estes, fica a responsabilidade de buscar e a Política Nacional de Saúde do Idoso
formas de inseri-la na comunidade. Ao de- (1999). É sobre esses três dispositivos que
fender a sua dignidade, garantir seu direito abordaremos a seguir.
primordial, que é o direito à vida, prega-se
uma doutrina que visa aglutinar no seio da 3. As políticas sociais da década de 1990
sociedade todos os grupos etários.
Ou seja, não se deve excluir a pessoa A redemocratização do país e a pro-
idosa, principalmente nos asilos; a família é mulgação de uma nova Constituição não
a principal responsável pela sua dignidade e 4
“§ 1o Os programas de amparo aos idosos serão
bem-estar. O artigo 229 já aponta suas diretri- executados preferencialmente em seus lares” (BRASIL,
zes, a de que a pessoa idosa deve ser assistida 2001, p. 47)

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 229


foram garantias de que os problemas que aplicação deste direito, para que ele possa
afligiam a maioria da população fossem ser pago ou exigido o seu pagamento5”
rapidamente resolvidos (CARVALHO, (FARIA, 1996, p. 78). Portanto, para que
2006, p. 203). Na década posterior, além este propósito fosse melhor aprofundado
das dificuldades características de países e discutido, a Lei Orgânica de Assistência
em desenvolvimento, como infraestrutu- Social (LOAS) no 8.742, de 7 de dezembro
ra, analfabetismo e saúde, a problemática de 1993, foi editada.
do idoso se descortinou como um dos A LOAS é constituída por 42 artigos,
grandes problemas a serem enfrentados, cujo objetivo é a promoção da assistência
principalmente pela escassez dos recursos social, como instrumento capaz de superar
(KALACHE, 1996, p. 14). as desigualdades existentes na população
Desse modo, durante toda a década de brasileira. Nesta dita população, a LOAS
noventa, a problemática em relação à pes- buscava, sobretudo, englobar em um
soa idosa foi amplamente discutida. O Es- único programa de assistência as famílias
tado brasileiro apropriou um discurso que carentes, as crianças, os adolescentes, os
visava fornecer um forte aparato legal em deficientes e os idosos. No entanto, como
relação à pessoa idosa, por intermédio das ação concreta de assistência social, privi-
políticas públicas. Porém, suas diretrizes fo- legiando a pessoa idosa, a LOAS garantia,
ram elaboradas com base em iniciativas de no seu artigo 20:
outros estados ou de determinados grupos “(...) 1 (um) salário mínimo mensal à
sociais (ABREU FILHO, 2004; CABRAL, pessoa portadora de deficiência e ao
2004; FARIA, 1996; MINAYO, 2004). idoso com 70 (setenta) anos6 ou mais
A pessoa idosa, como é responsabili- e que comprovem não possuir meios
dade da família, da sociedade e do estado, de prover a própria manutenção e
como reza a Constituição no seu artigo 230, nem de tê-la provida por sua família.”
no que concerne a este último, as iniciati- (BRASIL, 2003, p. 27)
vas não chegaram a ser modestas. Entre os Este programa foi chamado de “Benefí-
anos de 1993 a 1999, a pessoa idosa se viu cio de Prestação Continuada”. Trata-se de
representar em diversas políticas públicas. um benefício não contributivo, ou seja, não
Entre estas ressaltaremos a Lei Orgânica de é necessária contribuição prévia para obtê-
Assistência Social (1993), a Política Nacio- lo, como ocorre com as aposentadorias. O
nal do Idoso (1994) e a Política Nacional de dinheiro para o pagamento destes benefí-
Saúde do Idoso (1999). cios viria do Fundo Nacional de Assistência
Ainda no tocante à Constituição, o seu Social7, sendo, entretanto, repassados para o
artigo 203 é dedicado a assistência social, Instituto Nacional do Seguro Social (INSS),
cujos objetivos vão desde “a proteção à
família, à maternidade, à infância, à adoles- 5
“Com a promulgação da Constituição, um novo
conceito de política social foi materializado no conjun-
cência e à velhice”, até mesmo “a garantia to da Seguridade Social, compreendendo a Saúde e a
de um salário mínimo de beneficio mensal Previdência Social. Cada um desses elementos particu-
à pessoa portadora de deficiência e ao lariza um segmento da população brasileira. A Saúde,
idoso”, desde que comprovem não pos- direito de todos (...), é universal; a Previdência Social
atende aos que lhe são contribuintes e a Assistência
suir condições de se proverem, “conforme Social é prestada aos necessitados e desamparados”.
dispuser a lei” (BRASIL, 2001, p. 46-47). (FARIA, 1996, p. 77)
Contudo, o fato de possuir uma lei exposta 6
Em 2003, o Estatuto do Idoso, no Art. 34, reduziu
na Constituição não garante, entretanto, esta idade para 65 anos. (BRASIL, 2004, p. 15)
7
O Fundo Nacional de Assistência Social foi insti-
o seu cumprimento, já que a expressão tuído pela Lei no 8.742, a LOAS, e regulamentado pelo
“conforme dispuser a lei” “obriga a edição Decreto no 1.605, de 25 de agosto de 1995. (BRASIL,
de uma lei ordinária para regulamentar a 2003, p. 45)

230 Revista de Informação Legislativa


que efetivaria os pagamentos. Contudo, a partir da Constituição de 1988 e da
este benefício, ao contrário das aposenta- LOAS, estabeleceu-se (...) a diferença
dorias e pensões, não é vitalício, tendo, por marcante entre a Política Pública de
sua vez, que ser revisto no intervalo de dois Assistência Social e ‘assistencialismo’
anos, para que fossem novamente avaliadas vulgar praticado indiscriminadamen-
as condições que levaram uma pessoa a se te como um desvio ou doença da As-
enquadrar neste programa (BRASIL, 2003, sistência.” (PEREIRA, 2006, p. 37)
p. 29; PEREIRA, 2006, p. 40). Por conseguinte, no ano posterior à pro-
Para se ter uma ideia do impacto deste mulgação da Lei Orgânica de Assistência
programa ao erário público, no ano de Social, entrou em vigor a Política Nacional
2005, dois bilhões e novecentos milhões, do Idoso, Lei no 8.842 de 4 de janeiro de
cerca de 82% dos recursos reservados ao 1994, regulamentada pelo Decreto no 1.948,
programa “Proteção Social ao Idoso”, fo- de 3 de julho de 1996. Seguindo a linha
ram revertidos ao pagamento do “Benefício adotada pela Constituição de 1988 no seu
de Prestação Continuada” (SALVADOR, artigo 230, a texto da Política Nacional do
2006, p. 43). Idoso versa, no seu art. 3o, II parágrafo, que
A LOAS, entretanto, no que diz respeito o “processo de envelhecimento diz respeito
ao atendimento a pessoa idosa, designa à sociedade em geral, devendo ser objeto de
obrigações nas três esferas de governo: conhecimento e informações para todos”
o federal, o estadual e o municipal. No (BRASIL, 2003a, p. 7).
primeiro, a transferência de renda para os Ao analisar a vasta literatura produzida
idosos sem condições de se prover foram as neste período sobre a pessoa idosa, Cabral
medidas mais importantes, e já discutidas percebeu a importância que teve essa polí-
anteriormente. No que se refere as outras tica pública em nosso país, principalmente
duas esferas, suas funções englobam: a porque ela contribuiu:
destinação de recursos financeiros para “(...) para o reconhecimento dos
o pagamento de auxílios natalidade e fu- direitos dos cidadãos envelhecidos,
neral; executar projetos de enfrentamento ao mesmo tempo em que convoca a
da pobreza, em parceria com a sociedade sociedade para tomar posição frente
civil; atender ações assistenciais de caráter ao problema, sem considerá-lo de
de emergência, entre outros (BRASIL, 2003, forma alarmista, como aconteceu com
p. 15-18). outras sociedades, e sem ignorá-lo,
Nessa perspectiva, segundo Pereira, como acontecia até recentemente.
“a Assistência Social destaca-se como Pelo perfil jovem da população bra-
importante fonte de melhoria das condi- sileira, cujos interesses deviam ser
ções de vida e de cidadania desse estrato privilegiados para assegurar a conti-
populacional em irreversível crescimento” nuidade da sociedade, a população
(2006, p. 37). A autora ainda complementa idosa, pouco se fazia representar.
afirmando que, com a promulgação da Ademais, muitas noções equivoca-
Constituição de 1988, a Assistência Social das sobre a velhice impediam que se
ganhou nova institucionalidade, pautada refletisse sobre as necessidades de
pelo paradigma da cidadania. O fato de que legitimar as causas dos mais velhos”
a Assistência Social passou a ser regida por (CABRAL, 2004, p. 10).
uma Lei Federal: Tendo como objetivo a efetivação dessa
“(...) conferiu-lhe características que Política, em 1996, ano da sua regulamenta-
a fizeram distanciar-se de práticas ção, foi lançado o “Plano de Ação Governa-
‘assistencialistas’ com que sempre mental Integrado para Desenvolvimento da
foi identificada. Isso quer dizer que, Política Nacional do Idoso”, elaborado sob

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 231


a coordenação da Secretaria de Assistência para o fato de que desde os anos sessenta
Social, com um grupo interministerial8 e o Brasil possui a Sociedade Brasileira de
também com a participação da Sociedade Geriatria e Gerontologia – SBGG (LOPES,
Civil. Ou seja, esse decreto fez com que os apud CABRAL, 2004, p. 5).
Ministérios tivessem uma pauta voltada Entre as inúmeras atribuições dos
para garantir os interesses da população ministérios, que fazem parte da Política
idosa. Nacional do Idoso, destacaremos algumas
Na área da educação, esportes e lazer, mais abrangentes e relevantes que dizem
a Política Nacional do Idoso fez propostas respeito à pessoa idosa. Ao Ministério da
inovadoras, principalmente no tocante ao Previdência e Assistência Social competia
estimulo à educação para o envelhecimen- “coordenar as ações relativas à Política
to, como a criação das UNATIs – Universi- Nacional do Idoso” (BRASIL, 2003a, p.
dades Abertas para a Terceira Idade (BRA- 22). O Ministério da Justiça, por sua vez,
SIL, 2003a, p. 16). Entretanto, a maioria dos teria o dever de “zelar pela aplicação das
programas propostos se realiza desde os normas sobre o idoso determinando ações
anos setenta, porém para um grupo limita- para evitar abusos e lesões a seus direitos”,
do de idosos. Nessa perspectiva, podemos sendo que “todo cidadão tem o dever de
citar os clubes da terceira idade, que foram denunciar à autoridade competente qual-
criados na Europa na década de setenta, quer forma de negligência ou desrespeito
proliferando-se na década posterior. No ao idoso” (BRASIL, 2003a, p. 36).
Brasil, esses clubes e universidades, vol- A competência de estabelecer “alter-
tados para a pessoa idosa, foram criados nativas habitacionais adequadas para a
no decorrer da década de noventa, a título população idosa”, como “viabilizar linhas
de exemplo: as primeiras universidades de crédito visando o acesso a moradias para
voltadas para o atendimento à pessoa ido- o idoso”, ficaria sob a responsabilidade do
sa foram a Universidade Federal de Santa Ministério do Planejamento e Orçamento
Catarina e a Universidade do Estado do Rio (BRASIL, 2003a, p. 28). O Ministério da
de Janeiro, que trabalharam a reinclusão Saúde, por sua vez, estabeleceria condi-
dessas pessoas com outros grupos, rom- ções para “garantir ao idoso a assistência
pendo, assim, com o preconceito da idade integral à saúde9 (...) nos diversos níveis de
(CABRAL, 2004, p. 9-12). atendimento do Sistema Único de Saúde –
Ademais, a Política Nacional do Idoso, SUS” (BRASIL, 2003a, p. 30).
implementou os cursos de Geriatria e Ge- Curiosamente, ao Ministério do Traba-
rontologia “como disciplinas curriculares lho coube somente uma diretriz a ser cum-
nos cursos superiores”. Ainda houve a prida em relação à pessoa idosa: “garantir
inclusão da Geriatria “como especialidade mecanismos que impeçam a discriminação
clínica, para efeito de concursos públicos do idoso quanto à sua participação no mer-
federais, estaduais, do Distrito Federal e cado de trabalho” (BRASIL, 2003a, p. 34).
municipais” (BRASIL, 2003a, p. 14-15). Concomitante a isso, ao Instituto Nacional
Embora instituídas como disciplinas cur- de Seguridade Social – INSS, ficou a tarefa
riculares previstas em lei, somente a partir de estimular “com antecedência mínima
da década de noventa devemos nos atentar de dois anos (...) a criação e a manutenção
de programas de preparação para as apo-
8
Os órgãos que compunham essa iniciativa fo-
ram: Ministério da Previdência e Assistência Social,
sentadorias” (BRASIL, 2003a, p. 26-27). A
Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, Ministério
do Planejamento e Orçamento, Ministério da Saúde, 9
Segundo a Política Nacional do Idoso, o conceito
Ministério da Educação e do Desporto, Ministério do saúde é “entendida como o conjunto articulado e con-
Trabalho, Ministério da Cultura e Ministério da Justiça tínuo das ações e serviços preventivos e curativos”.
(BRASIL, 2003a, p. 21-36). (BRASIL, 2003a, p. 30)

232 Revista de Informação Legislativa


respeito dessa atribuição do INSS, Cabral não traz dados estatísticos, e sim ques-
(2004, p. 14) se mostra um pouco pessimista tionamentos. Qual a dimensão real das
ao afirmar que: realizações da Política Nacional do Idoso?
“Considerando-se as projeções para Que abrangência de atuação suas diretrizes
o contingente de pessoas que enve- conseguiram alcançar? Embora muito bem
lhecem e estarão se aposentando nos planejada, conseguiu a Política Nacional do
próximos anos, uma atividade de tal Idoso melhorar a qualidade de vida do seu
envergadura implicará, necessaria- público alvo?
mente, não só num efetivo quadro Poeticamente, ou até mesmo ironica-
de especialistas qualificados, mas, mente, a Política Nacional do Idoso traz
também, em recursos para torná-lo esse seguinte propósito:
acessível a todos.” “Valorizar o registro da memória e a
Nessa premissa, Cabral (2004) lança transmissão de informações e habili-
três impedimentos que dificultariam a dades do idoso aos mais jovens, como
viabilização desses objetivos. Em primeiro meio de garantir a continuidade e a
lugar, a falta de especialistas qualificados identidade cultural” (BRASIL, 2003a,
em tratar diretamente com a pessoa idosa; p. 18).
e o segundo, ainda mais problemático, que Há, nesta citação, algo que é percebido
é a questão dos recursos financeiros para tal quando analisado nas suas entrelinhas: a
empreitada, que, de acordo com a autora, busca pela harmonia entre os grupos de
constitui em um problema axial. Partindo idade no Brasil, que já chamamos a atenção
do pressuposto de que se consigam os páginas atrás. No final, o propósito dessa
recursos, um terceiro impedimento se des- política, como ressaltamos no primeiro
cortina: a abrangência do programa. Esse parágrafo, é o de inserir este contingente
exemplo levanta uma série de questões que de pessoas acima de sessenta anos dentro
pretendemos aprofundar na última parte da dinâmica da nossa sociedade. À época,
deste artigo, em que tentaremos articular mobilizaram quase todos os ministérios,
o discurso dessa legislação à guisa do con- estabeleceram diretrizes e investiram re-
ceito de cidadania. cursos. Conseguiram alcançar o objetivo?
Por fim, nos resta ainda mencionar uma A resposta para tal pergunta não se valem
última e importante diretriz que a Política dos tão recorrentes monossílabos, sim ou
Nacional do Idoso estabeleceu: o Conselho não; porém, podemos presumir que o seu
do Idoso. Estes, por sua vez, atuariam em objetivo era muito mais complexo do que
todas as esferas de governo: o federal, o os autores dessa política imaginaram.
estadual e o municipal, cujo objetivo seria No fim da década de noventa, em 1999,
“a formulação, coordenação, supervisão e atendendo reivindicações expressas na
avaliação da política nacional do idoso, no Política Nacional do Idoso para a área da
âmbito das respectivas instâncias político- saúde10, o governo brasileiro, considerando
administrativas” (BRASIL, 2003a, p. 11). a necessidade desse setor dispor de uma
Outrossim, os primeiros conselhos do idoso política relacionada à saúde do idoso, insti-
foram instituídos no inicio da década de tuiu a Política Nacional de Saúde do Idoso,
oitenta (CABRAL, 2004, p. 6). Entretanto, Portaria no 1.395/GM, de 10 de dezembro
foram necessários mais de dez anos para de 1999.
que essa iniciativa fosse institucionalizada
em forma de uma lei federal. 10
Entre essas reivindicações, destaca-se o segundo
parágrafo do Art. 10, inciso 2, que reitera como função
Ao lançarmos um olhar sobre a Política do Ministério da Saúde, “prevenir, promover, proteger
Nacional do Idoso, deparamo-nos com um e recuperar a saúde do idoso, mediante programas e
quadro perturbador. Porém, esse quadro medidas profiláticas” (BRASIL, 2003a, p. 14).

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 233


O seu processo de elaboração envolveu Como aparato legal, a Política Nacional
consultas a diferentes segmentos envolvi- de Saúde do Idoso apresenta entre as suas
dos direta ou indiretamente com o tema. principais diretrizes12: “a promoção do
Com isso, o Ministério da Saúde teve que envelhecimento saudável”; “a manutenção
readequar seus planos, programas, projetos da capacidade funcional”; “a assistência
e atividades na conformidade das diretrizes às necessidades de saúde do idoso”; “a
e responsabilidades estabelecidas na referi- reabilitação da capacidade funcional com-
da política (BRASIL, 1999, p. 1). prometida”; “a capacitação de recursos
Logo na sua introdução, a Política Na- humanos especializados”; “o apoio ao
cional de Saúde do Idoso reconhece que o desenvolvimento de cuidados informais”;
principal problema que afeta a pessoa ido- e “o apoio a estudos e pesquisas” (BRASIL,
sa, como conseqüência da evolução de suas 1999, p. 7).
enfermidades e de seu estilo de vida, é a Todas essas diretrizes convergem
perda da sua capacidade funcional, ou seja, para um único objetivo: o de assegurar a
a perda das habilidades físicas e mentais. cidadania para a pessoa idosa no setor de
Nesse sentido, a política apresenta: saúde. Essa relação entre pessoas idosas e
“(...) como propósito basilar a promo- saúde pública revela um quadro desani-
ção do envelhecimento saudável, a mador. Em primeiro lugar, “é amplamente
manutenção e a melhoria, ao máximo, conhecido que os idosos são usuários dos
da capacidade funcional11 dos idosos, serviços de saúde em taxa mais alta do
a prevenção de doenças, a recupe- que os demais grupos etários” (VERAS,
ração da saúde dos que adoecem e 1996, p. 390). Em decorrência da perda da
a reabilitação daqueles que venham capacidade funcional:
a ter a sua capacidade funcional “(...) os problemas de saúde dos ido-
restringida, de modo a garantir-lhes sos, além de serem de longa duração,
permanência no meio em que vivem, requerem pessoal qualificado, equipe
exercendo de forma independente multidisciplinar, equipamentos e
suas funções na sociedade” (BRASIL, exames complementarem de alto
1999, p. 6). custo, ou seja, exigem o máximo da
parafernália do complexo médico-
11
“O conceito de capacidade funcional é par- industrial da área da saúde” (VERAS,
ticularmente útil no contexto do envelhecimento. 1996, p. 391).
Envelhecer, mantendo todas as funções, não significa
problema, quer para o individuo ou para a comuni- A Política Nacional de Saúde do Idoso
dade. Quando as funções começam a se deteriorar é reconhece esses atenuantes no tratamen-
que os problemas começam a surgir. O conceito está to da pessoa idosa, pois, em geral, suas
intimamente ligado à manutenção de autonomia (...)” doenças são crônicas e acarretam outras,
(VERAS, 1996, p. 384). Segundo o texto da Política
Nacional de Saúde do Idoso, “o conceito de capaci-
elas também “perduram por vários anos
dade funcional, ou seja, a capacidade de manter as e exigem acompanhamento médico e de
habilidades físicas e mentais necessárias para uma 12
Para colocar em prática essas diretrizes, o
vida independente e autônoma. Do ponto de vista Ministério da Saúde tinha por propósito estabelecer
da saúde pública, a capacidade funcional surge como articulações com outros ministérios e secretarias do
um novo conceito de saúde, mais adequado para governo federal, além de instâncias dos governos es-
instrumentalizar e operacionalizar a atenção à saúde taduais e municipais, a saber: Ministério da Educação,
do idoso. As ações preventivas, assistenciais e de re- Ministério da Previdência e Assistência Social, Mi-
abilitação devem objetivar a melhoria da capacidade nistério do Trabalho e Emprego, Secretaria de Estado
funcional ou, no mínimo, a sua manutenção e, sempre do Desenvolvimento Urbano, Ministério da Justiça,
que possível, a recuperação desta capacidade que foi Ministério do Esporte e Turismo, Ministério da Ciência
perdida pelo idoso. Trata-se, portanto, de um enforque e Tecnologia, Secretaria Estadual de Saúde, Secretaria
que transcende o simples diagnóstico e tratamento de Municipal de Saúde ou organismos correspondentes.
doenças especificas” (BRASIL, 1999, p. 5) (BRASIL, 1999, p. 14-18)

234 Revista de Informação Legislativa


equipes multidisciplinares permanentes e foram determinantes para que, em 2003,
intervenções contínuas”. Por fim, concluí mais precisamente no dia 1o de outubro,
que “o apoio aos idosos praticado no Brasil o Estatuto do Idoso fosse sancionado pelo
ainda é bastante precário” (BRASIL, 1999, Presidente da República Luiz Inácio Lula
p. 3). Todos esses agravantes elevam o custo da Silva.
do atendimento médico à pessoa idosa, O projeto do Estatuto, Lei Federal no
pois, além disso, “os riscos de complicações 10.741, foi elaborado pelo, à época, deputa-
secundárias decorrentes de internações são do Paulo Paim (PT-RS) e ficou sete anos tra-
maiores” (VERAS, 1996, p. 392). mitando pelo Congresso Nacional (MUSSI;
Porém, para que as a pessoa idosa, PIARDI, 2004, p. 11). Entre as diretrizes, o
consiga de fato, um melhor sistema de Estatuto do Idoso “estabelece como dever
saúde que esteja preparado para atender de todos prevenir a ameaça ou violação
e compreender suas especificidades, o go- aos direitos dos idosos e zelar pela sua
verno necessita entender que “saúde não dignidade13” (ABREU FILHO; FRAGOSO,
é sinônimo de assistência” (VERAS, 1996, 2004, p. 86).
p. 391). Principalmente nessa fase da vida, O Estatuto do Idoso considera uma pes-
em que o organismo naturalmente tende a soa como sendo idosa aquela “com idade
diminuir sua capacidade funcional, é que igual ou superior a 60 (sessenta) anos”
se deve investir em medidas preventivas, a (BRASIL, 2004, p. 9). O principal objetivo
começar na infância e continuar pela vida era o de estabelecer medidas de proteção
adulta. a este contingente considerável da popula-
ção. Ademais, o Estatuto também:
4. O Estatuto do Idoso (2003) “(...) regulamenta os direitos dos
idosos, determina obrigações às
Em 2003, as estatísticas do Instituto entidades assistenciais, estabelece
Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, penalidades para diversas situações
com dados referentes a 2002, apontavam de desrespeito aos idosos, além de
que 43%, dos que tinham 60 anos ou mais, atribuir uma série de competências e
possuíam renda per capita abaixo de um responsabilidades ao Ministério Pú-
salário mínimo. O mais agravante é que blico.” (MUSSI; PIARDI, 2004, p. 11)
4.870.336 (30,4%) de idosos continuavam a Além de descrever e enumerar os direi-
trabalhar, seja para se autossustentar, seja tos dos idosos e estabelecer prioridades, o
para auxiliar na subsistência de sua família. Estatuto indica os mecanismos pelo qual o
Às vésperas de ser sancionado o Estatuto idoso pode estar exigindo o cumprimento
do Idoso, o país não havia conseguido ofe- de seus direitos fundamentais, exercendo
recer uma velhice tranqüila a seus cidadãos desse modo sua cidadania. Para tanto, a
envelhecidos (MINAYO, 2004, p. 9). participação dos idosos nesse processo
Enquanto o Estado dedicava tempo e se daria “por intermédio de entidades
recursos na elaboração de várias políticas representativas” (ABREU FILHO, 2004, p.
públicas, como vimos anteriormente, essas, 9). Dessas entidades, que atuariam como
por sua vez, não absorviam a maior parte fiscalizadoras nesse processo, destacam-se:
do seu público alvo, principalmente pelo o Ministério Público, o Conselho do Idoso,
rápido crescimento da população idosa na a Ordem dos Advogados do Brasil e “asso-
sociedade brasileira. ciações que contenham em seus estatutos
Esse quadro despertou, no início do
século XX, grande preocupação de vários 13
Os autores, neste caso, consideram dignidade
“colocar o idoso a salvo de qualquer tratamento desu-
setores da sociedade. Diversos fatores,
mano, violento, aterrorizante, vexatório ou constran-
como pretendemos abordar mais adiante, gedor”. (ABREU FILHO; FRAGOSO, 2004, p. 86)

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sociais a possibilidade de demandar em “O Estatuto que prevê um país
juízo para garantia de direito dos idosos” generoso com os seus velhos tem
(MUSSI; PIARDI, 2004, p. 23). problemas na prática: na destinação
Nisso concerne a importância do Estatu- de recursos, na disponibilização de
to do Idoso, que é o de colocar à disposição equipamentos e na construção de ins-
do idoso instrumentos que lhe assegurem trumentos concretos de atuação”.
seus direitos que tanto podem ser as O próprio Estatuto no seu artigo 115
políticas públicas, que é uma atuação do postula que, enquanto não fosse criado o
governo, quanto instrumentos judiciais, a Fundo Nacional do Idoso, os recursos para
primeira atuando de forma preventiva e a prover os “programas e ações relativos ao
segunda de modo repressivo “minorando idoso” seriam destinados ao Fundo Na-
as conseqüências de possíveis violações cional de Assistência Social, por meio do
ocorridas” contra a pessoa idosa (ABREU Orçamento da Seguridade Social (BRASIL,
FILHO; SILVA, 2004, p. 23). 2004, p. 32).
Ao longo dos seus 118 artigos, o Estatu- Para além disso, uma outra importante
to do Idoso privilegia como sendo direito medida, até mesmo para futuras análises do
da pessoa idosa a saúde, a alimentação, a processo de envelhecimento populacional,
educação, a cultura, o esporte, o lazer e o foi a inclusão “nos censos demográficos
trabalho. A esses direitos somam-se outros, dados relativos à população idosa do País”
que são decorrentes dos primeiros, como a (BRASIL, 2004, p. 33).
cidadania, a liberdade, a dignidade e o res- Após essas breves considerações, uma
peito. Para cada direito o Estatuto lança as questão emerge: por que 2003? Esse ques-
mais variadas diretrizes. É justamente nisso tionamento, um tanto pobre no sentido
que está o maior desafio a ser enfrentado: a de tentar inquirir o nosso objeto, faz todo
viabilização de recursos para a implemen- sentido quando é lançado dentro de um
tação dessas medidas. processo, cujo centro deste é a sociedade
“(...) torna-se subjetiva e difícil a abor- brasileira. Se havia sete anos que o projeto
dagem, conclusiva e concreta, quanto do Estatuto do Idoso estava tramitando no
ao comportamento do Estado Brasi- Congresso Nacional, por que foi sanciona-
leiro na consolidação do Estatuto do do somente em 2003? Será que a burocracia
Idoso, como Carta de Cidadania. Isto do sistema democrático emperrou o anda-
porque, tanto a União, quanto os Es- mento do processo ou este foi adiantado
tados e Municípios devem viabilizar devido a algumas circunstâncias? Em 2003,
a constituição do Fundo Especial para o Estatuto do Idoso seria levado a votação
apoio da política do idoso; o quadro de qualquer modo ou o levaram por pres-
de servidores efetivos que desenvol- são externa?
verão, junto ao Conselho do Idoso, a O certo é que a discussão e a votação do
função de fiscalização das entidades Estatuto do Idoso poderia ocorrer em qual-
de atendimento governamentais e quer ano, porém o ano de 2003 foi frutífero
não governamentais; e a edição da no que concerne a uma familiarização com
legislação que estabelecerá os pro- o problema do envelhecimento populacio-
cedimentos jurídico-administrativos nal, por parte dos mais distintos segmentos
para expedição e processamento dos da sociedade. Para tentarmos responder
autos de imposição de penalidades” essas questões, ressaltamos dois aconteci-
(ABREU FILHO; ABREU; SILVA, mentos que fizeram com que a sociedade
2004, p. 81). refletisse sobre essa a condição do idoso
Seguindo esse mesmo discurso, Minayo em 2003. O primeiro deles é a Campanha
(2004, p. 38) complementa: da Fraternidade, da Conferência Nacional

236 Revista de Informação Legislativa


dos Bispos do Brasil – CNBB, cujo título Portanto, o objetivo da Campanha da
era: “Fraternidade e Pessoas Idosas. Vida, Fraternidade era refletir sobre a condição
dignidade e esperança”. O outro fator foi a da pessoa idosa, dentro da sociedade
novela “Mulheres Apaixonadas”, da Rede moderna. Com um discurso alertando a
Globo. Nessa perspectiva, Minayo (2004, p. sociedade para o acelerado crescimento po-
11) salienta que: pulacional, a sociedade brasileira começou
“A decisão política de universalizar a perceber que mais de quinze milhões de
direitos e proteger a todos os idosos pessoas passavam por determinados pro-
é uma atitude nova, própria deste blemas, característicos da idade, mas que
momento histórico da consciência eram agravados pela forma como a mesma
nacional. É um avanço do pensa- sociedade tratava esses indivíduos.
mento que precisa ser concretizado Porém, foi com a novela Mulheres
na prática”. Apaixonadas que a situação ganhou uma
Ou seja, a preocupação da sociedade dimensão enorme dentro dos grupos de
com a problemática da pessoa idosa está in- discussão. De autoria de Manoel Carlos,
trinsecamente ligada ao momento histórico. a novela retratava o drama de um casal
Este, por sua vez, passou pela mediação, a de idosos, Leopoldo e Flora, interpretados
nosso entender, primeiramente da Igreja e por Oswaldo Louzada e Carmem Silva,
depois da mídia, sendo que esta última, ob- respectivamente, que dividiam o aparta-
viamente, conseguiu atingir a um número mento com o filho. A indignação popular
maior de pessoas. No que concerne à pri- se mostrava na forma como a neta tratava
meira, a Igreja Católica, sempre no início da seus avós, evidenciando “uma situação
quaresma, período que antecede a Páscoa, de desrespeito e intolerância com pessoas
por meio da CNBB, realiza a Campanha idosas” (PITTA, 2003, p. 67).
da Fraternidade, cujo objetivo é pautar as Se o objetivo da novela era chamar a
reflexões dos católicos, principalmente du- atenção para os problemas enfrentados
rante as missas. Desse modo, a CNBB lança, pela pessoa idosa na nossa sociedade, con-
anualmente, um tema novo para ser deba- seguiram com muito êxito. O que evidencia
tido e discutido. Em 2003, o tema escolhido a influência da mídia são os números do
foi a pessoa idosa, em que o texto-base da Disque-Denúncia, que aumentaram 85%
Campanha da Fraternidade ressalta: durante o período em que a novela esteve
“(...) os reflexos que as mudanças no ar, em comparação com o mesmo perí-
culturais vêm provocando em nossa odo do ano anterior, ou seja, 2002 (ABREU
sociedade. Nele, é refletido que a FILHO; FRAGOSO, 2004, p. 90).
tecnologia acaba por determinar os Tanto a Campanha da Fraternidade
rumos da modernidade, pois coloca quanto a novela “Mulheres Apaixonadas”,
as pessoas a seu serviço, criando da Rede Globo, contribuíram para que, à
novas necessidades. Esses avanços época do Estatuto do Idoso, a sociedade
tecnológicos parecem inconciliáveis brasileira tivesse pronta para discutir o
com pessoas menos ágeis, ou de tema. Entretanto, não foi com um Estatuto
mais idade, que não acompanharam que se resolveu o problema do idoso den-
o desenvolvimento desses aparatos. tro da sociedade. As medidas são muito
(...) O conhecimento originário das válidas, porém é preciso serem consolida-
vivências e experiência de vida, que das na prática. Como vimos no primeiro
as pessoas idosas têm muito a con- parágrafo, a situação do idoso na nossa
tribuir, às vezes, é substituído pelo sociedade é preocupante. Eles são muitos
domínio dos saberes tecnológicos.” e vivem em realidades tão distintas que o
(SILVA JUNIOR, 2003, p. 149) primeiro passo para se tentar caminhar,

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rumo à consolidação desses direitos, seria de acordo com os padrões que prevalecem
reconhecer no idoso uma pessoa que “goza na sociedade”. Outrossim, o sistema edu-
de todos os direitos fundamentais inerentes cacional e os serviços sociais são exemplos
à pessoa humana”, e que cabe à família, à de ação do elemento social (MARSHALL,
comunidade, à sociedade, e ao Poder Públi- 1988, p. 9). Em síntese, o cidadão, segundo
co assegurar o seu “direito à vida, à saúde, Marshall, era aquele individuo que usu-
à alimentação, à educação, à cultura, ao fruía desses três elementos igualmente. O
esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, referido autor também pontuou os séculos
à liberdade, à dignidade” (BRASIL, 2004, XVIII, XIX e XX como os períodos em que
p. 9). Resumindo: cidadania. se conquistaram os direitos civis, políticos
e sociais respectivamente.
5. A cidadania e a legislação: Entretanto, essa teoria se distancia
num universo utópico e pouco concreto,
os caminhos em construção
quando tentamos pensar o Brasil. Pensar
Após essa breve síntese das políticas a cidadania como uma síntese conquista-
públicas que contemplaram a pessoa da dos direitos civis, políticos e sociais é
idosa, podemos concluir que essa parcela muito bonito; entretanto, na prática, quan-
da população é amparada por uma vasta do tomamos a legislação brasileira para
legislação. Entretanto, a legislação é um analisarmos a situação da pessoa idosa na
dispositivo que necessita de determina- sociedade, concluímos que ainda resta um
dos mecanismos para se efetivar de fato. longo caminho a ser percorrido. Destarte,
São esses mecanismos, ou caminhos, que as iniciativas não chegaram a ser modestas;
pretendemos explorar à guisa do conceito a legislação é vasta, porém, não consegue
de cidadania. atender a todos os direitos expostos por
Um dos principais teóricos que pauta- Marshall para compreender a cidadania.
ram suas reflexões sobre este conceito foi Partindo do pressuposto que a realidade
o sociólogo britânico T. H. Marshall, cuja brasileira é diferente da Inglaterra dos idos
análise parte da Inglaterra e como ocorreu de 1950, sociedade de Marshall, é de fun-
o processo da conquista de cidadania nes- damental importância que estudemos esse
te país. Para tanto, a conquista, para esse processo a partir de análises brasileiras.
autor, se efetuou via “elementos”, que se Nesse contexto, o riquíssimo ensaio de José
desmembram em três, a saber: o civil, o Murilo de Carvalho: “Cidadania no Brasil:
político e o social. O elemento civil são o longo caminho” se descortina como um
aqueles direitos “necessários à liberdade precioso achado para compreendermos a
individual”, entre eles os de ir e vir, a liber- cidadania em nosso país.
dade de imprensa, de pensamento, de fé, A respectiva análise de Carvalho parte
de propriedade, e principalmente o direito da teoria de Marshall; entretanto, o referido
à justiça. O elemento político, por sua vez, autor defende que a aquisição dos direitos
se constitui como “o direito de participar que compõem a cidadania no Brasil se de-
no exercício do poder político, como um ram de forma inversa. Enquanto na Inglater-
membro de um organismo investido da ra primeiro vieram os direitos civis, depois
autoridade política ou como um eleitor os políticos e posteriormente os sociais; no
dos membros de tal organismo”. Noutro Brasil, primeiro vieram os direitos sociais,
passo, o elemento social se constitui por cujo ápice se deu num período de supressão
todos aqueles direitos que vão desde ao dos direitos políticos, ou seja, na ditadura de
“bem-estar econômico e segurança ao direi- Getúlio Vargas. Outrossim, os direitos polí-
to de participar, por completo, na herança ticos, vieram de forma bizarra e basicamente
social e levar a vida de um ser civilizado se constituem no direito ao voto. Por fim,

238 Revista de Informação Legislativa


muitos direitos civis ainda estão inacessíveis A predita cidadania, portanto, se pro-
para a maioria da população. Ao transpor a cessa via conquista de direitos. Sobre esses
teoria de Marshall (2006, p. 219-220) para o direitos dedicamos todo o tópico anterior,
Brasil o autor conclui que a “pirâmide dos em que traçamos um quadro-síntese de toda
direitos foi colocada de cabeça para baixo”. a legislação que teve a pessoa idosa como
Ou seja, a cidadania brasileira pode ser objeto de suas discussões. Nesse ínterim,
resumida apenas na conquista dos direitos perpassamos a Constituição da República
sociais. Ademais, a proeminência de um dos Federativa do Brasil de 1988; as três polí-
direitos, o social, em detrimento de outros ticas mais importantes da década de 1990
dois, o civil e o político, torna-se um campo visando atender a pessoa idosa, a saber: a
fértil para inquirições. Lei Orgânica de Assistência Social (1993), a
“Assim, apesar de uma certa divisão Política Nacional do Idoso (1994) e a Política
entre direitos individuais e direitos Nacional de Saúde do Idoso (1999); e por
sociais, na realidade todos os direitos fim o Estatuto do Idoso (2003).
são sociais, na medida em que todos Por sua vez, todas essas políticas que
supõem interação entre pessoas ou privilegiaram a pessoa idosa, se partirmos
grupos, mas costuma-se chamar de das considerações de Carvalho, fizeram-no
sociais apenas os direitos à educação, assegurando somente os direitos sociais
à moradia, ao trabalho e às condições (2006). A título de exemplo, a síntese da Lei
de vida” (FARIA, 1996, p. 77). Orgânica de Assistência Social é a garantia
A autora citada acima possui uma con- de um salário mínimo àqueles idosos que
cepção muito ampla do que considera ser comprovarem não possuir meios para se
os direitos sociais; os direitos individuais prover.
estão no patamar dos direitos civis e polí- Mas a cidadania em relação à pessoa
ticos. Ademais, Faria (1996, p. 77) concebe idosa não se restringe a sua subsistência.
o direito social nesta acepção ampla devido Dever-se-á considerar o idoso como um
ao fato de que o mesmo “encara o homem cidadão igual a qualquer outro, de qual-
em sua realidade concreta e como membro quer idade, mas que a única diferença são
dos grupos sociais”. Contudo, vamos uti- as primaveras acumuladas. Por todas as
lizar os conceitos propostos por Marshall transformações orgânicas que acomete o
para caracterizar os direitos civis, políticos indivíduo na plenitude de sua existência,
e sociais, porque essa é à base da análise de que ganhou o nome de envelhecimento, é
José Murilo de Carvalho. basilar que o Estado brasileiro amparasse
De fato, consoante a conquista de direi- no seu discurso político essa parcela cres-
tos para a população brasileira, Silva (1996, cente da população, levando em consi-
p. 343) afirma se tratar da Constituição de deração essas singularidades produzidas
1988 o momento máximo dessa trajetória. pelo tempo.
Conforme afirmamos anteriormente, a “A transformação da velhice em um
última Carta-Magna do Brasil recebeu o problema social põe em jogo múl-
epíteto de “Constituição Cidadã” devido tiplas dimensões que vão desde as
“à incorporação de uma série de direitos iniciativas voltadas para propostas de
civis14 e sociais”. formas de bem-estar, que deveriam
acompanhar o avanço das idades,
14
No tocante aos direitos civis, Silva (1996, p. 343) até empreendimentos voltados para
considera como “clássicos” os resguardados pela Cons- o cálculo de custos financeiros que o
tituição de 1988 os seguintes: “liberdade de expressão,
reunião, privacidade garantida, a inviolabilidade do
envelhecimento da população trará
domicílio, da correspondência e das comunicações e para a contabilidade nacional” (DE-
a proibição de prisão sem decisão judicial”. BERT, 1996, p. 35)

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 239


Segundo Debert, aos poucos a velhice dois lados – um lado representado
foi sendo alvo da “solidariedade pública”. pela problemática tradicional do
Nesse processo, o trato à velhice, que an- subdesenvolvimento, o outro lado
tes era considerado de responsabilidade acumulando a carga representada
de instituições e associações filantrópi- pelo envelhecimento despreparado”
cas, foi sendo vagarosamente introjetado (KALACHE, 1996, p. 15).
por um discurso político, justamente por A conquista da cidadania é um pro-
considerar o envelhecimento e os indiví- cesso lento e perpassa o discurso político.
duos acometidos por ele como sendo uma Talvez, se o crescente envelhecimento
questão pública (DEBERT, 1996, p. 35). A populacional que ocorreu principalmente
partir de então, podemos verificar que o nas últimas décadas não tivesse ocorrido e
envelhecimento populacional perpassa por o tornar-se velho fosse algo raro, teríamos
todas essas estruturas de poder, da coisa políticas públicas voltadas para essa parce-
privada, familiar, para o âmbito público, ou la da população? O problema social que o
seja, para a responsabilidade de todos que envelhecimento produziu é, portanto, um
integram a sociedade brasileira. problema de ordem numérica. E isso fica
De acordo com Cabral (2004, p. 01-02), claramente exposto quando tomamos como
a constituição do problema social do enve- exemplo os índices estatísticos.
lhecimento ao longo do século XX: Em 1940, o Brasil possuía 979.839 pes-
“(...) é resultado da conjunção de soas com idade igual ou acima de 65 anos.
fatores que emergiram no processo Em 1950, esse número saltou para 1.348.035;
de mudanças na sociedade e que na década posterior, 1960, esse contingente
incluem desde as conquistas da já atingia 1.915.005. Na década de 1970 já
liberdade até as novas relações de contávamos com 2.929.476; em 1980 tínha-
poder, bem como o desenvolvimento mos 4.770.432; e em 1990 o número era de
das forças produtivas, aumento da 7.085.847 (IBGE apud BERQUÓ, 1996, p.
expectativa de vida, distribuição da 18). Atualmente, essa população já ultra-
riqueza, novos padrões culturais, passa os dezesseis milhões, e a tendência é
sistemas de controles sobre a vida o crescimento contínuo para as próximas
humana, conquistas na medicina, décadas.
elevação dos padrões educacionais, Uma hipótese que nos inquieta é que o
difusão dos sistemas de comunicação aumento progressivo do número de pesso-
e outros que formam a teia complexa as idosas, principalmente nas três últimas
da sociedade pós-moderna. décadas do século XX, impulsionou o poder
Por isso, segundo Kalache (1996, p. 14) público a tomar medidas que visassem
“envelhecer é um triunfo, mas para gozar amparar essa parcela da população; daí a
da velhice é preciso dispor de políticas quantidade de políticas públicas nos perí-
adequadas”, que assegurem uma boa quali- odos que houve maior crescimento.
dade de vida. O autor insiste que o governo Paralelo aos índices estatísticos, outra
deve desenvolver “políticas inteligentes, questão que emerge dessa problemática em
realistas e igualitárias”, que não beneficiem torno do envelhecimento populacional são
uma minoria da população, como ocorrem os critérios que definem uma pessoa como
com as “políticas fantásticas”. sendo idosa.
“Se não cuidarmos destas políticas “O processo biológico, que é real
para o bom envelhecer os setores e pode ser reconhecido por sinais
sociais do país, já sob tensão, pode- externos do corpo, é apropriado e ela-
rão explodir. A imagem é a de um borado simbolicamente por todas as
jumento de carga sobrecarregado dos sociedades, em rituais que definem,

240 Revista de Informação Legislativa


nas fronteiras etárias, um sentido po- os grupos e os interesses envolvidos na
lítico e organizador do sistema social” definição desses limites, e complementa
(MINAYO, 2004, p. 10) dizendo sobre a inviabilidade de adotar
Ou seja, somente quando esse processo dois limites etários diferentes com o intuito
biológico é reconhecido pelas sociedades, de classificar o mesmo segmento popula-
que em consequência disso elabora, simboli- cional. Dever-se-á, entretanto, considerar
camente, um sentido político, ou seja, atitu- que partindo da legislação brasileira não
des práticas para ser tomadas pelo coletivo existe um consenso nessa prerrogativa,
a partir de uma reflexão sobre a condição o que evidencia também quão nova é a
daquela parcela da sociedade que envelhe- questão da problemática do idoso na nossa
ceu, primeiramente há que se encontrar pa- sociedade15.
râmetros para classificar uma pessoa como Noutro passo, para caracterizarmos a
sendo pertencente àquele grupo. É neste complexidade dessa questão, retomaremos
ponto que entra a categoria de “fronteiras o Estatuto do Idoso como exemplo, uma vez
etárias” utilizada pelos autores. que este é “destinado a regular os direitos
Tomamos por “fronteiras etárias” a assegurados às pessoas com idade igual ou
idade limite que dada sociedade define superior a 60 anos” (BRASIL, 2004, p. 9).
como sendo o apogeu do envelhecimento, A pessoa idosa, portanto, seria todo esse
em que, no tempo seguinte àquele, a pessoa contingente de pessoas pertencentes a essa
é considerada idosa. Está exposto aí um faixa etária, ou a essa “fronteira etária”. Se,
dos nossos grandes problemas em relação por um lado, os idosos possuem seus direi-
ao envelhecimento: qual a faixa etária que tos assegurados, por outro encontramos
designa uma pessoa como sendo idosa? certas divergências, dentro até mesmo do
Segundo Cabral (2004, p. 3), existem próprio Estatuto.
análises demográficas que apontam para a No que diz respeito a gratuidade do
idade de 65 anos e outras para 60 anos. Nes- transporte coletivo, a “fronteira etária”
se processo existem alguns critérios, como, dos 60 anos é simplesmente ignorada pelo
por exemplo, as entidades internacionais Estatuto do Idoso no seu artigo 39, uma
definem como o corte inicial do envelhe- vez que somente às pessoas “maiores de
cimento com base se a sociedade é ou não 65 (sessenta e cinco) anos fica assegurado”
desenvolvida. Para as primeiras, prevalece este benefício. Outra controvérsia é no
a faixa etária mais alta (65 anos), e, se não, tocante ao assento vermelho reservado
ou em desenvolvimento, a pessoa é tida para deficientes físicos, gestantes e pessoas
como idosa a partir dos 60 anos. Esses da- idosas, acima de sessenta anos. (BRASIL,
dos são importantes porque essas entidades 2004, p. 16). Novamente encontramos uma
acreditam que, sendo a sociedade menos diferença de cinco anos, para que alguns
desenvolvida, envelhece-se mais cedo. Tais idosos possam ser assistidos, ou melhor,
conclusões estão ligadas, principalmente, possam usufruir daquilo que, a princípio,
às condições de vida que as pessoas idosas 15
Partindo da legislação brasileira, podemos ob-
usufruem em seus países. servar que não existe um critério absoluto. O Código
Nessa perspectiva, Cabral (2004, p. 4) Penal (1940) reza que, se forem cometidos crimes
salienta que essa diferença de cinco anos contra pessoas maiores de 70 anos, a pena é aumen-
tada. O Código de Processo Penal (1941) isenta os
existente entre as duas idades (60 ou 65 maiores de sessenta anos a integrar o serviço de júri.
anos), em qualquer período da vida, é O Código Eleitoral (1965) torna facultativo o voto para
um aspecto importante que não deve ser os maiores de 70 anos, lei esta que foi transposta para
relegado. Essa infindável discussão sobre a Constituição de 1988. Esta última, por sua vez, no
trato das aposentadorias, reza que o homem a recebe
as fronteiras de idade mostra a complexi- com 65 anos completados e a mulher com 60 anos
dade da questão, as suas implicações para (BARROSO, 2001).

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 241


era assegurado por lei a todos aqueles com brasileira. De acordo com Cabral (2004, p.
idade igual ou superior a 60 anos. Ou seja, 13), durante toda a década de 90 ocorreram
a pessoa idosa que possui 60 anos não é diversos eventos que tiveram como pauta
considerada totalmente beneficiada pelo principal as questões relacionadas ao en-
Estatuto do Idoso. velhecimento, entretanto não apontaram
Essa questão ilustra bem que o estabe- soluções, apenas debateram o problema.
lecimento de critérios de idade evidencia Para se ter um exemplo: o ano de 1999, tido
uma relação de poder muito intrínseca. como o Ano Internacional do Idoso, envolto
Considerar a pessoa idosa a partir dos 60 a discursos inflamados, foi marcado com a
ou dos 65 anos fará toda a diferença para ampliação da idade para a aposentadoria.
a “contabilidade nacional”, como Debert Com isso, no meio dos discursos, os idosos
afirmou acima. Os altos gastos com a imple- “são instados a continuarem ou voltarem às
mentação de políticas destinadas à pessoa atividades produtivas, buscando trabalho
idosa ocorrem porque são de ordem social, remunerado para garantirem a própria
ou seja, é uma “ajuda” do governo. sobrevivência”.
Devemos distinguir que o problema
social do envelhecimento não foi detectado
6. Considerações finais
a partir da Constituição de 1988; muito pelo
contrário, foi a partir dessa política que ele Após este breve levantamento sobre a
foi incorporado dentro de uma lei; porém situação da pessoa idosa, dentro de uma
a essência já existia. A Sociedade Brasileira legislação que se modificou, principalmen-
de Geriatria e Gerontologia – SBGG, por te no final do século XX, reiteramos que
exemplo, foi organizada nos idos de 1960, essas políticas públicas, se não possam ser
segundo Cabral (2004, p. 5). Ou seja, já consideradas modestas, deverão ser melhor
havia todo um conhecimento específico dinamizadas, para que se consiga superar
sobre a pessoa idosa, porém, a institucio- as desigualdades encontradas por esses
nalização legal (leia-se obrigatoriedade) das cidadãos quando chegarem à velhice.
disciplinas de Geriatria e Gerontologia nos Ademais, no meio desse processo con-
cursos superiores ocorreu somente a partir turbado, o mínimo que governo brasileiro,
da Política Nacional do Idoso (1994). O em parceria com a sociedade, podem fazer
Conselho do Idoso é outro exemplo, como é garantir a concretização de todas essas
explicitamos páginas atrás. A cidadania, atitudes de cunho político, que envolvem
portanto, é uma cidadania mediada pelas a pessoa idosa e, concomitantemente, asse-
políticas públicas. gurar a liberdade do idoso. O sentido dessa
“As políticas públicas de atendi- palavra neste contexto é muito mais amplo
mento aos interesses dos idosos em do que o seu direito constitucional de ir e
relação à saúde, trabalho, educação vir, é reconhecê-lo como um cidadão. Essa
(...), historicamente, não têm mere- é a principal empreitada de todos nós, se
cido a mesma importância daquelas não para conquistar mais direitos, mas, pelo
referentes à criança, à mulher, ou ao menos, para garantir os já conquistados,
trabalhador. Percebe-se, assim, que fazendo-os serem cumpridos.
a noção que hoje se tem de cidadania Outrossim, é identificar no idoso um
não incorpora as características des- portador de direitos individuais, que o
se importante, mas marginalizado caracterize como cidadão e que isso venha
segmento social” (ABREU FILHO; acompanhado por direitos civis e políticos,
ABREU; SILVA, 2004, p. 70). e simultaneamente sociais e culturais. Em
Os problemas, das mais variadas ordens, síntese, o dever de toda a sociedade é ga-
ainda acometem essa parcela da população rantir o pleno exercício da cidadania para

242 Revista de Informação Legislativa


estes milhões de brasileiros que convivem ______. Estatuto do Idoso. A lei. Brasília: Secretaria
em realidades desiguais, que passam por Especial dos Direitos Humanos, 2004.
dramas singulares, que veem a vida de CABRAL, Benedita Edina S. L. A superação das de-
modo muito particular; enxergam o mundo sigualdades na velhice: mais uma questão social no
com os olhos de quem muito já viveu, e que século XXI. In: VII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ci-
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Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 243


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244 Revista de Informação Legislativa


A proteção dos conhecimentos tradicionais
e expressões de folclore

Patrícia Pereira Tedeschi

Sumário
1. Introdução. 2. O contexto internacional
da proteção ao folclore e ao conhecimento tra-
dicional. 2.1. A Convenção para a Salvaguarda
do Patrimônio Cultural Imaterial. O conteúdo
da Convenção. 2.2. O atual estágio das dis-
cussões na OMPI. 2.3. Convenção de Berna. 3.
Considerações gerais sobre o direito autoral. O
conhecimento tradicional e o folclore em relação
ao direito autoral. 4. Conclusão.

1. Introdução
A proteção ao conhecimento tradicional
e às expressões de folclore é uma questão
complexa e polêmica devido a inúmeros
fatores. Questiona-se o que se deve prote-
ger, contra quem, com que objetivo e para
benefício de quem (WIPO, 2009, p. 4). Até
mesmo as definições de folclore e conheci-
mento tradicional apresentam dificuldades,
por abarcarem todo o conteúdo de tais
expressões.
Quanto ao conhecimento tradicional,
consideraremos as definições adotadas pela
Organização Mundial da Propriedade Inte-
lectual – OMPI, uma vez que, como se verá
adiante, a definição nacional é incompleta
e insatisfatória.
O secretariado da OMPI (WIPO, 2009, p.
Patrícia Pereira Tedeschi é Mestranda em Di- 4) tem duas definições para conhecimentos
reito do Estado pela Universidade de São Paulo, tradicionais: “o conhecimento que é resulta-
advogada em São Paulo e assessora jurídica da do da atividade intelectual em um contexto
Agência USP Inovação. tradicional e inclui know how, habilidades,

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 245


inovações, práticas e aprendizados que o desenvolvimento de mecanismos que
formam parte do sistema de conhecimentos protejam os conhecimentos tradicionais
tradicionais, e conhecimento que é incorpo- e o folclore contra a apropriação e o uso
rado no estilo de vida de uma comunidade indevidos (WIPO, 2009).
ou povo, ou está contido em sistemas de Na UNESCO, as discussões sobre a
conhecimento codificado passados entre proteção ao conhecimento tradicional e ao
gerações”; ou se refere aos trabalhos lite- folclore estão relacionadas à Convenção
rários, artísticos ou científicos; invenções, para a Salvaguarda do Patrimônio Cultu-
descobertas científicas, desenhos, marcas, ral Imaterial e são realizadas pelo Comitê
nomes e símbolos; informações confiden- Intergovernamental criado para promover
ciais baseadas na tradição (que foram trans- os objetivos da Convenção.
mitidas de geração em geração e pertencem No Brasil, as questões relacionadas à
a um povo ou seu território). O folclore proteção do conhecimento tradicional e do
estaria inserido nessa definição. folclore ainda são muito difusas em debates
Quando não considerado parte do co- no Ministério do Meio Ambiente, no Minis-
nhecimento tradicional, o folclore pode ser tério das Relações Exteriores e no Ministério
definido como “o conjunto de costumes, da Cultura por meio do Instituto do Patri-
lendas, crenças, superstições, indumentá- mônio Histórico e Artístico Nacional.
rias, danças, cantos e festas que, entre outras O parágrafo 1o do artigo 215 da Consti-
inúmeras manifestações artísticas tradicio- tuição Federal estabelece que:
nais populares, caracterizam a essência de “§ 1o O Estado protegerá as mani-
um povo” (ABRÃO, 2006, p. 327). As Dis- festações das culturas populares,
posições Tipo para as Leis Nacionais sobre a indígenas e afro-brasileiras, e das de
Proteção das Expressões de Folclore contra outros grupos participantes do pro-
a Exploração Ilícita e outras Ações Lesivas cesso civilizatório nacional.”
preparadas pela Conferência Geral da Or- Seu artigo 216 também define a forma
ganização das Nações Unidas para a Educa- de constituição do patrimônio cultural
ção, a Ciência e a Cultura – UNESCO e pela brasileiro e sua proteção:
OMPI estabelecem que as expressões de “Art.  216.  Constituem patrimônio
folclore consistem em elementos da herança cultural brasileiro os bens de natu-
artística tradicional desenvolvida e mantida reza material e imaterial, tomados
por uma comunidade ou por indivíduos de individualmente ou em conjunto,
um país, refletindo as expectativas artísticas portadores de referência à identida-
tradicionais de tal comunidade. de, à ação, à memória dos diferentes
Em âmbito internacional, as discussões grupos formadores da sociedade
vêm-se desenvolvendo especialmente na brasileira, nos quais se incluem:
OMPI e na UNESCO. I – as formas de expressão;
Na OMPI, além das discussões sobre a II – os modos de criar, fazer e viver;
compatibilização dos princípios da Con- III – as criações científicas, artísticas
venção da Diversidade Biológica – CDB1 ao e tecnológicas;
sistema de patentes, que não serão objeto IV  – as obras, objetos, documentos,
deste artigo, existe um foro de debate para edificações e demais espaços des-
tinados às manifestações artístico-
1
A CDB prevê a proteção aos recursos genéticos e culturais;
ao conhecimento tradicional associado, estabelecendo V – os conjuntos urbanos e sítios de
a divulgação da origem nos documentos de patentes
e repartição de benefícios do titular da tecnologia
valor histórico, paisagístico, artístico,
protegida com as comunidades provedoras do recurso arqueológico, paleontológico, ecoló-
genético ou do conhecimento tradicional associado. gico e científico.

246 Revista de Informação Legislativa


§ 1o O poder público, com a colabo- II – as de autor desconhecido, ressal-
ração da comunidade, promoverá vada a proteção legal aos conhecimentos
e protegerá o patrimônio cultural étnicos e tradicionais.”(grifo nosso)
brasileiro, por meio de inventários, Ora, a legislação hoje existente é clara
registros, vigilância, tombamento e quanto ao folclore e ao conhecimento tra-
desapropriação, e de outras formas dicional pertencerem ao domínio público,
de acautelamento e preservação.” mas não estabelece qualquer proteção legal
Na legislação ordinária, ainda existe aos conhecimentos étnicos e tradicionais.
uma lacuna sobre a forma como as expres- Assim, o objetivo do presente artigo é
sões culturais devem ser protegidas. A úni- discorrer sobre o tratamento conferido pe-
ca fonte legislativa que estabelece normas las organizações internacionais em relação
para a exploração econômica do conheci- à proteção do folclore e do conhecimento
mento tradicional é a MP 2186-16/01. tradicional, bem como o atual estágio da
No entanto, a referida medida provisória proteção no Brasil.
apenas aborda o entendimento do conheci-
mento tradicional associado como “infor- 2. O contexto internacional da proteção
mação ou prática individual ou coletiva de ao folclore e ao conhecimento tradicional
comunidade indígena ou de comunidade
local, com valor real ou potencial, associada Tendo em vista a insuficiência da le-
ao patrimônio genético” (art. 7o, V da MP gislação nacional, é necessário o estudo
2186-16/01), e quando ele for “relevante de alguns tratados internacionais que
à conservação da diversidade biológica, à versam sobre a proteção ou salvaguarda
integridade do patrimônio genético do País das expressões culturais tradicionais, espe-
e à utilização de seus componentes.” (art. cialmente a Convenção para a Salvaguarda
1o, II, da MP 2186-16/01). do Patrimônio Cultural Imaterial e a Con-
Verifica-se que a legislação existente venção de Berna, além de analisar o atual
não se preocupa com a proteção ao conhe- estágio das discussões na OMPI.
cimento tradicional e ao folclore conside-
2.1. A Convenção para a Salvaguarda
rados em si mesmos, mas apenas (e aqui
do Patrimônio Cultural Imaterial
só se refere ao conhecimento tradicional)
quando relevante para a conservação da A Convenção, que foi adotada em 2003,
biodiversidade. resultou de debates que começaram na
Portanto, a legislação nacional é insufi- década de 70. A partir da adoção da Con-
ciente para regular todas as diferentes situ- venção do Patrimônio Cultural e Natural,
ações que podem envolver o conhecimento em 1972, alguns membros demonstraram
tradicional, além de não ter previsões sobre interesse, também, na proteção do patri-
a proteção ao folclore. mônio imaterial.
Devido a essa lacuna existente, questio- Em 1973, a Bolívia apresentou na
na-se qual a natureza jurídica do conheci- UNESCO um protocolo que visava pro-
mento tradicional e do folclore, bem como teger o folclore. Tal documento deveria
a forma como eles devem ser protegidos. ser adicionado à Convenção Universal de
Além disso, a própria legislação autoral (Lei Direito Autoral (The Universal Copyright
9210/98) agrava a situação ao prever que: Convention).
“Art. 45. Além das obras em relação Nas décadas de 80 e 90, inúmeras con-
às quais decorreu o prazo de proteção ferências foram organizadas pela UNES-
aos diretos patrimoniais, pertencem CO com o fim de discutir a proteção ao
ao domínio público: patrimônio imaterial, o que culminou, em
(...) 2003, com a adoção da Convenção para a

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 247


Salvaguarda do Patrimônio Cultural Ima- inventários, pelos Estados Partes, do pa-
terial durante a 32a Conferência Geral da trimônio imaterial presente em seu terri-
UNESCO. A Convenção entrou em vigor tório. Tal medida é importante para que
em 20 de abril de 2006. se identifiquem a origem e o conteúdo
No Brasil, ela foi ratificada e ingressou do conhecimento e qual é a comunidade
no ordenamento jurídico nacional por meio provedora do patrimônio imaterial para
do Decreto 5.753 de 12 de abril de 2006. que, no caso de disputas por uso indevido
ou apropriação, por exemplo, a origem do
O conteúdo da Convenção patrimônio seja facilmente identificada,
O objetivo da Convenção é estabelecido evitando discussões desnecessárias, como
em quatro princípios: salvaguardar o patri- se verá abaixo.
mônio cultural imaterial; respeitar o patri- Outras medidas para salvaguardar o pa-
mônio cultural imaterial das comunidades, trimônio imaterial estão previstas no artigo
grupos e indivíduos envolvidos; realizar a 13 da Convenção e compreendem:
conscientização sobre a importância do pa- “a) adotar uma política geral visando
trimônio cultural imaterial e a cooperação promover a função do patrimônio
e assistência internacionais. cultural imaterial na sociedade e inte-
Os Estados Partes da Convenção devem grar sua salvaguarda em programas
tomar as medidas necessárias para salva- de planejamento;
guardar seu patrimônio imaterial mediante b) designar ou criar um ou vários
sua identificação, documentação, investi- organismos competentes para a
gação, preservação e proteção, promoção, salvaguarda do patrimônio cultural
valorização, transmissão e revitalização imaterial presente em seu território;
(art. 11 da Convenção). c) fomentar estudos científicos, técni-
Patrimônio cultural imaterial é definido cos e artísticos, bem como metodolo-
no artigo 2o como gias de pesquisa, para a salvaguarda
“as práticas, representações, expres- eficaz do patrimônio cultural imate-
sões, conhecimentos e técnicas – junto rial, e em particular do patrimônio
com os instrumentos, objetos, artefa- cultural imaterial que se encontre
tos e lugares culturais que lhes são em perigo;
associados – que as comunidades, os d) adotar as medidas de ordem
grupos e, em alguns casos, os indi- jurídica, técnica, administrativa e
víduos reconhecem como parte inte- financeira adequada;
grante de seu patrimônio cultural.” i) favorecer a criação ou o fortaleci-
A convenção também estabelece quais mento de instituições de formação
as formas de manifestação do patrimônio em gestão do patrimônio cultural
imaterial: imaterial, bem como a transmissão
“a) tradições e expressões orais, in- desse patrimônio nos foros e luga-
cluindo o idioma como veículo do res destinados à sua manifestação e
patrimônio cultural imaterial; expressão;
b) expressões artísticas; ii) garantir o acesso ao patrimônio
c) práticas sociais, rituais e atos fes- cultural imaterial, respeitando ao
tivos; mesmo tempo os costumes que re-
d) conhecimentos e práticas relacio- gem o acesso a determinados aspec-
nados à natureza e ao universo; tos do referido patrimônio;
e) técnicas artesanais tradicionais.” iii) criar instituições de documentação
Um elemento previsto na Convenção sobre o patrimônio cultural imaterial
é a necessidade do estabelecimento de e facilitar o acesso a elas.”

248 Revista de Informação Legislativa


Apesar de apresentar regras relevan- faculdade de designar a autoridade
tes para o gerenciamento do patrimônio competente para representar esse au-
cultural imaterial, existem aspectos não tor e com poderes para salvaguardar
abordados pela Convenção, mas que são e fazer valer os direitos do mesmo nos
importantes para a proteção de tal patri- países da União.”
mônio. Não se estabeleceu uma medida Observa-se que a Convenção estabelece
efetiva para que se impeça o uso e apro- um tipo de proteção para obras de autor
priação indevida do patrimônio cultural. desconhecido, mas que seja originário
Tais medidas são essenciais para que se de um determinado país. Nesse caso, o
efetive um sistema eficiente de proteção próprio país será o representante do autor
às manifestações culturais, conhecimentos para garantir a proteção dos direitos. Essa
tradicionais e folclore. previsão pode ser aplicada aos conheci-
mentos tradicionais e ao folclore, uma vez
2.2. O atual estágio das que, como será discorrido adiante, trata-se
discussões na OMPI de obra de autor desconhecido.
A OMPI participou, em 1982, da ela-
boração das Disposições Tipo UNESCO-
3. Considerações gerais sobre
OMPI contra a exploração ilícita e outras
ações lesivas às expressões de folclore. O o direito autoral
documento serviria de base para as legis- Os direitos autorais são protegidos tanto
lações nacionais. pela ordem constitucional quanto pela le-
Em 1996, com a adoção do WIPO Perfor- gislação ordinária. No Brasil, está elencado
mances and Phonograms Treaty – WPPT (do entre os direitos fundamentais do artigo 5o
qual o Brasil não é membro), passou-se a da Constituição Federal de 1988.
proteger, conforme o art. 2.(a), a pessoa que O inciso XXVII do referido artigo esta-
interpreta a expressão de folclore. belece que:
Recentemente, o Comitê Intergover- “XXVII – aos autores pertence o direi-
namental da OMPI desenvolveu novas to exclusivo de utilização, publicação
provisões para a proteção das expressões ou reprodução de suas obras, trans-
culturais tradicionais, mas que continuam missível aos herdeiros pelo tempo
sendo objeto de impasse devido, por um que a lei fixar.”
lado, ao valor econômico agregado ao Segundo Bittar (1992, p. 27), os direitos
folclore e aos conhecimentos tradicionais autorais fazem parte dos direitos privados
e, de outro, à necessidade de que tais co- que são protegidos em razão da evolução
nhecimentos não sejam tratados apenas tecnológica e intelectual dos povos.
como um objeto comercialmente explorá- Tais direitos outorgam um exclusivo ao
vel, dando-se o devido reconhecimento à seu titular, que poderá explorar a obra que,
sociedade que os criou e difundiu. se não fosse protegida, teria o uso livre.
Segundo Ascensão (2007, p. 3), o que se
2.3. Convenção de Berna busca é “compensar o autor pelo contributo
A previsão aplicável aos conhecimentos criativo trazido à sociedade.”
tradicionais e expressões de folclore está Ascensão (2007, p. 27) considera que os
presente no artigo 15, (4), que dispõe: direitos de autor tutelam as “criações do
“4) a) Quanto às obras não publicadas espírito”. A Lei de Direitos Autorais (Lei
cujo autor é de identidade desconhe- 9.610/98), seguindo a mesma tendência,
cida, mas, segundo tudo leva a pre- estabelece, no artigo 7o, que são protegidas
sumir, nacional de um país da União, pelo direito autoral “as criações do espírito,
é reservada à legislação desse país a expressas por qualquer meio ou fixadas em

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 249


qualquer suporte, tangível ou intangível, Os direitos patrimoniais, por sua vez,
conhecido ou que se invente no futuro”. enumerados no artigo 29 da Lei de Direi-
Como requisitos para a proteção auto- tos Autorais, possuem prazo de vigência
ral, a obra deverá ser criativa, característica limitado e, uma vez a obra tenha caído em
derivada da tutela às “criações do espírito”, domínio público, deixam de ser exigíveis.
e individual, ou seja, “sendo a obra uma Como mencionado acima, a legislação
criação personalizada, em toda a obra há- nacional considera os conhecimentos tradi-
de estar impressa a marca do seu autor” cionais e o folclore pertencentes ao domínio
(ASCENSÃO, 2007, p. 51). público, de onde se pode inferir que seu uso
Assim, a presença do “autor” é essencial é livre e independe de autorização.
para que o direito se caracterize. Segundo O conhecimento tradicional e o folclore
Abrão (2002, p. 71), “sujeito de direito em relação ao direito autoral
autoral é o ser humano que, no exercício Não obstante a legislação estabelecer
de uma atividade mental, criativa, dá ori- que o conhecimento tradicional e o folclore
gem a uma obra de espírito.” Importante pertençam ao domínio público, é interes-
citar que, ao diferenciar o autor da obra sante a comparação de duas características
anônima da obra de autor desconhecido, dos direitos autorais com tais direitos.
Abrão (2002, p. 71) explica que “... naquele a) Os direitos autorais são direitos
há indicativos de autoria, enquanto neste privados: tal característica é inegável
a obra é conhecida, mas seus autores não. e está ligada ao período de exclusivi-
E nem se darão a conhecer. É o caso das dade que é dado ao autor para que
obras de domínio comum, muitas vezes explore sua obra e tenha seu esforço
transmitidas pela tradição oral, como as reconhecido pela sociedade. No caso
obras de folclore.” dos conhecimentos tradicionais e fol-
Ainda, outra característica dos direitos clore, o caráter privado conflita com
autorais no sistema romano-germânico é a a principal característica de tais ma-
divisão entre direitos morais e patrimoniais nifestações, que é a multiplicidade de
de autor que, segundo Bittar (1992, p. 28), colaboradores para a criação da obra.
são considerados os elementos integrantes Ora, poderíamos mesmo dizer que
dos direitos autorais. Na Lei de Direitos se tratam de direitos que integram o
Autorais, a matéria é tratada nos capítulos domínio público em sentido restrito3,
II e III respectivamente. sendo, portanto, impossível a conces-
Por fim, relacionado aos direitos morais são da exclusividade de exploração a
e patrimoniais do autor, surge a questão quem quer que seja.
do prazo e do objeto de proteção conferida b) Individualidade: “sendo a obra
ao autor. uma criação personalizada, em toda
O artigo 27 da Lei de Direitos Autorais a obra há-de estar impressa a marca
estabelece que os direitos morais são ina- do seu autor” (ASCENSÃO, 2007, p.
lienáveis e irrenunciáveis. Alguns desses 251), os conhecimentos tradicionais
direitos, como o de paternidade da obra2, e expressões de folclore não apresen-
são intransmissíveis. tam tal característica em si mesmos,
uma vez que são obras coletivas.
2
O artigo 6 o bis (1) da Convenção de Berna Assim, segundo Ascensão (2007, p.
estabelece que “independentemente dos direitos
patrimoniais de autor, e mesmo após a cessão dos
54), não poderiam ser atingidos pelo
referidos direitos, o autor conserva o direito de reivin-
dicar a paternidade da obra e de se opor a qualquer 3
Segundo Di Pietro (2008, p. 634), o domínio
deformação, mutilação ou outra modificação da obra público em sentido restrito compreende aqueles bens
ou a qualquer outro atentado contra a mesma obra, destinados ao uso comum do povo, sendo que seu
prejudicial à sua honra ou à sua reputação.” titular seria o povo.

250 Revista de Informação Legislativa


direito de autor. Evidente que a obra Segundo Abrão (2002, p. 124), a proteção
não necessariamente partiu de uma ao folclore interessa por três motivos:
sociedade como um todo, mas de “o primeiro, para reafirmar sua
um ou mais indivíduos que criaram inapropriabilidade decorrente da
e divulgaram seu conhecimento expressa disposição da lei: encontra-
tradicional ou expressão cultural, se desde sempre em domínio público e
os quais foram difundidos ao longo do domínio público não se restaura. O
de várias gerações, de tal forma que segundo, para indicar que tanto as
acabou sendo incorporada à cultura expressões e manifestações culturais
da sociedade, despersonificando a populares como os conhecimentos
autoria da obra. étnicos tradicionais possuem um nível
Assim, podemos verificar que a prote- diferenciado de regulamentação, sendo
ção autoral aos conhecimentos tradicionais espécie de propriedade imaterial. O
e às expressões de folclore não parece ade- terceiro, para declarar que as mani-
quada. Faltam elementos básicos e essen- festações em si são inapropriáveis, mas
ciais para que a proteção autoral, tal como que qualquer fixação delas em suportes
definida na doutrina, seja aplicável. conhecidos, ou obras protegidas e não
pertencentes à tradição popular, será de
titularidade de quem as fixou, gravou ou
4. Conclusão
transmitiu.” (grifo nosso)
A dificuldade para a proteção do co- Em resumo, a autora conclui que o co-
nhecimento tradicional e do folclore pode nhecimento tradicional está em domínio
ser resumida no binômio: como evitar público, deve ter um nível diferenciado de
a apropriação e uso indevido sem que a proteção e é inapropriável em si, mas não
sociedade seja impedida de utilizar sua a sua fixação em qualquer meio.
própria cultura. Quanto ao domínio público, deve-se
Ao dispor no artigo 45 que as obras de lembrar que a legislação atual não prevê o
autor desconhecido estão no domínio pú- domínio público remunerado, conforme o
blico, a Lei de Direitos Autorais claramente fazia a Lei 5988/73, ao estabelecer:
estabelece a inapropriabilidade dos conhe- “Art. 93. A utilização, por qualquer
cimentos étnicos e tradicionais. A ressalva forma ou processo que não seja livre,
presente no artigo tende a ser voltada, como das obras intelectuais pertencentes
já mencionado, a evitar a apropriação e a ao domínio público depende de au-
deformação da expressão cultural. Essa torização do Conselho Nacional de
conclusão pode ser inferida do artigo 215 Direito Autoral.
da Constituição Federal, ao estabelecer que Parágrafo único. Se a utilização visar
“o Estado protegerá as manifestações das a lucro, deverá ser recolhida ao Con-
culturas populares”. selho Nacional de Direito Autoral im-
Se não fosse assim, estaria garantida portância correspondente a cinqüenta
uma exclusividade a um grupo de pessoas por cento da que caberia ao autor da
em detrimento de toda a população do obra, salvo se se destinar a fins didá-
país ao qual as expressões culturais per- ticos, caso em que essa percentagem
tencem e se incorporaram ao cotidiano. se reduzirá a dez por cento.”
Considerando a exploração internacional, Inexistindo tal previsão, conclui-se que
a exclusividade a um grupo também parece a utilização do conhecimento tradicional e
abusiva, uma vez que impediria a circula- do folclore com o objetivo de fixação para
ção e divulgação de conhecimento entre as a criação de uma obra não está sujeita a
sociedades. qualquer tipo de pagamento.

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 251


No entanto, isso não significa que o Referências
Brasil tenha aberto mão da previsão do
artigo 15o, 4, da Convenção de Berna. A ABRÃO, Eliane Yachouh. Direitos de autor e direitos
conexos. São Paulo: Editora do Brasil, 2002.
salvaguarda ao conhecimento tradicional
e ao folclore existe e é prevista na Cons- ______. (Org.). Propriedade imaterial: direitos autorais,
tituição Federal. Ou seja, a proteção ao propriedade industrial e bens de personalidade. São
Paulo: Editora Senac, 2006.
conhecimento tradicional e ao folclore será
conferida pelo Estado. ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito autoral. Rio de
Quanto à proteção imaterial especial Janeiro: Editora Renovar, 2007.
necessária, em virtude da complexidade BITTAR, Carlos Alberto. Contornos atuais de direito do
em identificar as expressões, a opção do autor. São Paulo: Editora RT, 1992.
inventário prevista na Convenção para DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administra-
a Salvaguarda do Patrimônio Cultural é tivo. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2008.
adequada. Além de evitar a apropriação e o GONÇALVES, Nuno. O folclore e a gestão coletiva
mau uso, permite que se crie uma obrigação de direitos. In: Revista da ABPI. n. 60, p. 53-55, Rio de
internacional para o respeito à cultura de Janeiro, set./out. 2002.
outros países, sem que isso impossibilite ou LEITE, Eduardo Lycurgo. Direito de autor. Editora
dificulte a circulação da informação e do co- Brasília Jurídica, 2004.
nhecimento. Evidentemente que o mau uso ORGANIZAÇÃO Mundial da Propriedade intelectual
e a apropriação deveriam ser sancionados, (OMPI). Intellectual property and traditional knowledge.
sendo qualquer benefício daí resultante Booklet, 2007.
revertido ao gestor do banco de dados das SOUZA, Carlos Fernando Mathias. Direito autoral.
expressões culturais. Daí a necessidade de Editora Brasília Jurídica, 1998.
lei que regule especificamente a matéria
WIPO. Traditional Cultural Expressions (Folklore). Dispo-
Por fim, respeitados outros direitos nível em: <http://www.wipo.int/tk/en/folklore/>.
relacionados à fixação da expressão cul- Acesso em: 8 jun. 2009.
tural, como o de imagem, o uso de tais
UNESCO. Brief history of thecConvention for the safe-
expressões deve ser livre e independente guarding of the intangible cultural heritage. Disponível
de remuneração. em: <http://www.unesco.org/culture/ich/index.
php?pg=00007>. Acesso em: 8 jun. 2009.

252 Revista de Informação Legislativa


Federalização dos crimes graves contra os
direitos humanos
Estudo sobre a ponderação de princípios no controle
abstrato de constitucionalidade

Ana Fabiola de Azevedo Ferreira

Sumário
1. Introdução. 2. Jurisdição e competência.
3. ADIN 3.486 e ADIN 3.493: a discussão sobre
a constitucionalidade do incidente de desloca-
mento de competência. 4. Confronto entre o
incidente de deslocamento de competência e as
normas constitucionais (cláusulas pétreas) sobre
pacto federativo, contraditório, ampla defesa,
juiz natural e segurança jurídica. 4.1. Pacto
federativo. 4.2. Contraditório e ampla defesa.
4.3. Juiz natural. a) Juiz constitucionalmente
competente. b) Taxatividade das competências.
c) Tribunal ou juízo de exceção. d) Juízo ex post
facto. 4.4. Segurança jurídica. 5. Ponderação de
princípios. 6. Conclusão.

1. Introdução
Em fevereiro de 2005, em Anapu, Pará,
foi assassinada a tiros a missionária católica
americana Dorothy Stang, em meio à vio-
lência fundiária, aos delitos ambientais e à
grilagem de terras da região. O crime teve
ampla repercussão na mídia e desencadeou
a reação de várias entidades envolvidas
na proteção dos direitos humanos. Esses
fatos ensejaram a propositura do primeiro
incidente de deslocamento de competência,
formulado pelo então Procurador-Geral da
Ana Fabiola de Azevedo Ferreira é Mestran- República, Cláudio Fonteles, perante o STJ,
da em Direito Constitucional – UFPE. Mestran-
com o objetivo de trazer para o âmbito da
da em Ciências Jurídico Políticas – Faculdade
de Direito de Lisboa. Graduada em Direito Polícia e da Justiça Federal o processamento
pela Universidade Federal de Pernambuco. e julgamento dos mandantes, intermediá-
Advogada. rios e executores da missionária.

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 253


O incidente de deslocamento de competência país no âmbito internacional. Há vários ca-
foi introduzido na Constituição Federal sos contra o Brasil pendentes de apreciação
pela Emenda Constitucional no 45/04, com na Comissão Interamericana de Direitos
a seguinte redação: Humanos e, dentre eles, alguns apontam
“Art. 109 – Aos juízes federais com- à responsabilidade direta da União em
pete processar e julgar: face da violação dos direitos humanos (Cf.
V-A – as causas relativas a direitos PIOVESAN; VIEIRA, 2005, p. 8-9).
humanos a que se refere o § 5o deste Embora a União se comprometa exter-
artigo; namente com a repressão às violações aos
§ 5o – Nas hipóteses de grave violação direitos humanos, no âmbito interno, a
de direitos humanos, o Procurador- responsabilidade pela apuração e punição
Geral da República, com a finalidade desses crimes é dos Estados-membros por
de assegurar o cumprimento de meio das polícias civis e dos Ministérios
obrigações decorrentes de tratados Públicos Estaduais. A criação do incidente
internacionais de direitos humanos de deslocamento de competência tem justa-
dos quais o Brasil seja parte, poderá mente a finalidade de corresponsabilizar
suscitar, perante o Superior Tribu- a União no enfrentamento da impunidade
nal de Justiça, em qualquer fase do e da morosidade na promoção da justiça,
inquérito ou processo, incidente de em consonância com as obrigações inter-
deslocamento de competência para nacionais assumidas com a assinatura de
a Justiça Federal.” tratados e convenções.
Durante muito tempo, preocupados O trabalho se propõe a discutir a cons-
com o crescente desrespeito e a flagrante titucionalidade do incidente de deslocamento
impunidade dos ofensores, entidades de de competência, tendo, como primeiro obje-
direitos humanos brasileiras e organismos tivo, constatar se a nova regra processual
internacionais reivindicaram a “fede- restringe um ou mais, e quais, direitos
ralização” dos crimes contra os direitos fundamentais e saber, em segundo lugar,
humanos. Afirmava-se a insuficiência dos se as eventuais restrições são constitucio-
mecanismos existentes até então, tais como nalmente justificadas. Para tanto, discuti-
a ação interventiva (CF, art. 34, VII, b) e a remos sobre a possibilidade de utilização
chamada “federalização da polícia” (Lei no da ponderação como forma de solução de
10.446/02), por meio da qual se atribuiu à conflitos entre princípios no julgamento
Polícia Federal a possibilidade de inves- abstrato de constitucionalidade.
tigar infrações penais concorrentemente Cabe ressaltar que a possibilidade
à Polícia Civil (Cf. PIOVESAN; VIEIRA, de deslocamento da competência para a
2005, p. 8-9). Justiça Federal não está restrita às causas
O Brasil é signatário de uma série de criminais, porquanto não há tal limitação
tratados e convenções internacionais nos na norma constitucional. No entanto, neste
quais se compromete a apurar e punir esse trabalho, o instituto será analisado apenas
tipo de delito, responsabilizando-se perante do prisma do processo penal.
cortes e organismos internacionais como a
Comissão Interamericana de Direitos Hu-
2. Jurisdição e competência
manos, a Corte Interamericana de Direitos
Humanos, a Organização dos Estados A jurisdição, função estatal por meio da
Americanos e, por via indireta, o Tribunal qual o Estado substitui os particulares para
Penal Internacional (Cf. ARAS, 2005). A resolver imparcialmente os conflitos, é una
morosidade na apuração dos crimes e a e não comporta, a rigor, divisões (Cf. CIN-
impunidade geram a responsabilização do TRA; GRINOVER; DINAMARCO; 2000, p.

254 Revista de Informação Legislativa


229). O exercício da jurisdição, entretanto, distribuído um processo que não é de sua
é dividido entre os órgãos jurisdicionais competência. Tampouco se confunde com
com a finalidade de melhor administrar a o antigo instrumento da avocatória, já que
Justiça. A parcela do exercício da jurisdição o Procurador-Geral da República não pode
de cada órgão é chamada competência. chamar a si o inquérito ou processo em an-
A competência é dividida entre as damento, tendo apenas a faculdade de pro-
diversas jurisdições (inferior ou superior; por o incidente perante o STJ, a quem cabe a
comum ou especializada; estadual ou fede- decisão de modificar ou não a competência.
ral; contenciosa ou voluntária; ordinária ou A Justiça Federal também não pode avocar
extraordinária) pela própria Constituição o processo (Cf. GOMES, 2005).
Federal e pelas leis infraconstitucionais Embora possua alguns traços semelhan-
a partir de três critérios: a natureza da tes ao desaforamento do júri, o incidente
relação de direito (ratione materiae), a qua- de deslocamento de competência dele se dife-
lidade da pessoa do réu (ratione personae) rencia porque o que há é uma alteração da
e o território (ratione loci) (Cf. MIRABETE, competência em razão da matéria, e não
2001, p. 167). uma simples mudança de foro como ocorre
A Constituição Federal não se preocu- no desaforamento. Ademais, o desafora-
pou com a distribuição da competência mento só pode ser formulado por quem
ratione loci, limitando-se a tratar das com- é sujeito da relação jurídica material (Cf.
petências em razão da matéria e em razão PIOVESAN; VIEIRA, 2005, p. 8-9).
de prerrogativa de função. Por essa razão é Há que se destacar também a similitude
que se diz que ambas (competência ratione entre o novel instituto e a ação interventiva
materiae e competência ratione personae) (CF, art. 34, VII, b). O incidente de desloca-
são competências absolutas e, portanto, mento de competência seria uma forma al-
improrrogáveis e imodificáveis. ternativa, mais sutil e menos traumática de
A divisão de competências entre os assegurar a proteção dos direitos da pessoa
juízes de primeira instância das justiças humana do que a ação interventiva. Sem se
estadual e federal é feita com base no cri- tratar de uma intervenção propriamente,
tério ratione materiae, tendo o constituinte configura apenas uma atuação complemen-
originário buscado atribuir à Justiça Federal tar da Justiça Federal a ser admitida a partir
as questões que poderiam afetar direta ou do preenchimento de certos requisitos (Cf.
indiretamente os interesses federais ou ARAS, 2005).
nacionais1. O constituinte derivado preferiu a modi-
A norma introduzida no art. 109, V-A e § ficação ulterior da competência à atribuição
5o, da CF, além de reafirmar a competência imediata desses feitos à Justiça Federal. Por
da Justiça Estadual para processar e julgar esse motivo é que o instrumento tem des-
os feitos relativos aos direitos humanos, pertado fervorosos debates acerca de sua
criou a possibilidade de modificação da constitucionalidade, como se verá.
competência absoluta em razão da maté-
ria, modalidade até então inexistente no 3. ADIN 3.486 e ADIN 3.493: a
ordenamento jurídico pátrio (Cf. ARTEIRO, discussão sobre a constitucionalidade do
2005).
incidente de deslocamento de competência
Como ressaltado por Luiz Flávio Go-
mes, o incidente de deslocamento de compe- Antes mesmo da aprovação da Emenda
tência não é uma forma de declinatio fori, Constitucional no 45/04, a constitucionali-
que é iniciativa do próprio juiz a quem foi dade da norma que prevê a federalização
das causas relativas aos direitos humanos
1
Nesse sentido, OLIVEIRA (2005, p. 30). já era objeto de debate na seara jurídica

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 255


e no próprio Congresso Nacional. Várias da proporcionalidade, cláusulas pétreas
propostas de alteração da redação original da Constituição e, portanto, intangíveis.
foram formuladas, inclusive com objetivo Além disso, a nova regra não teria auto-
de se evitar a ulterior inaplicabilidade da aplicabilidade, consistindo em uma norma
regra sob o argumento da inconstituciona- de eficácia limitada.
lidade (Cf. BONSAGLIA, 2005). O juiz natural estaria sendo duplamente
Com efeito, como se previu, o debate so- violado. Destinado a garantir a imparciali-
bre a constitucionalidade do incidente de des- dade do juiz, a segurança do cidadão contra
locamento de competência foi reacendido tão o arbítrio estatal e a isonomia entre os juris-
logo a EC no 45 foi promulgada, sendo que, dicionados, alega-se que essa garantia, que
imediatamente após o primeiro incidente se apresenta nos incisos XXXVII e LIII do
ser instaurado no STJ, foram interpostas art. 5o da Constituição, tem três desdobra-
duas ADINs contra o inciso V-A e o § 5o do mentos: só são órgãos do judiciário aqueles
art. 109 da CF. As ações foram intentadas instituídos pela Constituição; ninguém
pela Associação dos Magistrados Brasilei- pode ser julgado por órgão constituído após
ros (AMB) e pela Associação Nacional dos o fato; entre os órgãos pré-constituídos, vi-
Magistrados Estaduais (ANAMAGES). gora uma ordem taxativa de competências
As ADINs são o reflexo da ampla insa- (Cf. FERNANDES, 1999, p. 115).
tisfação que a norma provocou nas classes O incidente de deslocamento de competência
de magistrados e membros dos Ministérios feriria, então, a proibição dos tribunais ex
Públicos estaduais. De uma forma geral, post facto, na medida em que a modificação
afirma-se que a proposta é uma afronta às da competência só ocorre após o crime,
instituições estaduais, que estariam sendo bem como a taxatividade de competências
consideradas incapazes ou não isentas constitucionalmente atribuídas, uma vez
para proceder à repressão dos crimes con- que a instauração de tal incidente ficaria a
tra os direitos humanos, gerando-se uma depender da conveniência e oportunidade
discriminação odiosa entre entes federais do Procurador-Geral da República, que não
e estaduais. A norma possibilitaria a inter- está obrigado a provocá-lo e tem, inclusive,
ferência nos Ministérios Públicos estaduais, expressa permissão para o fazer a qualquer
criando-se uma chefia do Procurador-Geral tempo. Isso porque a norma constitucio-
da República sobre os Procuradores-Gerais nal, argumenta-se, carece de objetividade,
de Justiça, e conduziria a uma demasiada posto que não define quais sejam os crimes
centralização das decisões nos entes fede- contra os direitos humanos que deveriam
rais. Além disso, o instituto seria plenamen- ser julgados pela Justiça Federal, sendo
te desnecessário diante dos instrumentos já que o termo “grave” é impreciso e elástico,
disponíveis, o desaforamento do júri, a ação cabendo, dessa forma, ao Procurador-Geral
interventiva federal e a “federalização” das da República eleger quais os crimes que me-
investigações policiais2. receriam deslocamento de competência.
Do ponto de vista jurídico, as duas Ao basear-se num critério vago e sem
ADINs têm fundamentações semelhantes. objetividade, qual seja, a gravidade do cri-
Argumenta-se que o incidente de desloca- me, impossibilitando-se, assim, a determi-
mento de competência fere a garantia do nação do juízo competente no momento da
juiz natural e outras garantias do devido prática da infração penal, o poder reforma-
processo legal, o princípio da segurança dor estaria violando também o princípio da
jurídica, o pacto federativo e o princípio segurança jurídica, em razão do qual “todos
os aspectos relacionados à existência e à va-
2
A esse respeito, ver nota do CONAMP dispo-
nível em: <http://conjur.estadao.com.br/static/ loração do crime, bem como à persecução e
text/33375,1>. à condenação penal devem ser previamente

256 Revista de Informação Legislativa


fixados em lei”3 e que tem como corolário cessária e inadequada para os fins a que
o respeito à legalidade estrita. se propõe. Inadequada porque dificulta a
Entretanto, afirma-se que nesse aspecto produção de provas, fere o juiz natural e o
a inconstitucionalidade poderia ser sanada pacto federativo e cria uma discriminação
se a norma fosse entendida como norma odiosa entre os entes da federação. Desne-
de eficácia limitada, publicando-se uma lei cessária porque a Lei no 10.446/02 já havia
regulamentadora que fixasse critérios obje- introduzido a chamada “federalização das
tivos, inclusive os parâmetros de gravidade investigações”, existindo também a pos-
de um crime. Em observância à legalidade sibilidade de utilização dos instrumentos
estrita, deveriam ser precisados todos do desaforamento do júri e da intervenção
os elementos que atribuem competência federal.
ao juiz, porque, de outro modo, deixa-se
margem à manipulação da distribuição 4. Confronto entre o incidente de
dos feitos. deslocamento de competência e as normas
Por outro lado, a norma introduzida na
constitucionais (cláusulas pétreas) sobre
Constituição atingiria o devido processo
pacto federativo, contraditório, ampla
legal por não estabelecer a garantia do con-
traditório com o réu e com os Procuradores-
defesa, juiz natural e segurança jurídica
Gerais de Justiça dos Estados-membros. Ig- Passamos, então, à análise da compati-
noraria também a garantia da ampla defesa bilidade do incidente de deslocamento de
ao criar a dificuldade de produção de prova competência com algumas das cláusulas
para o réu, em razão do elemento distância, pétreas da Constituição Federal, que esta-
pois poucos são os municípios que contam riam, supostamente, sendo violadas. Antes,
com uma vara da Justiça Federal. contudo, deve-se ressaltar que as cláusulas
Retirando um crime de competência pétreas, embora não possam ser abolidas
originária da Justiça Estadual para o âmbito sequer pelo poder reformador – e da mesma
da Justiça Federal, estar-se-ia procedendo forma que qualquer outro princípio consti-
a uma intervenção da União no Estado- tucional –, podem sofrer restrições, desde
membro, alargando o rol taxativo do art. que tais restrições sejam constitucionais,
34 da Constituição Federal, que estabelece isto é, desde que tais restrições possam ser
as hipóteses em que é possível relativizar justificadas por outras cláusulas pétreas
a autonomia dos Estados-membros, asse- que, em determinadas circunstâncias, de-
gurada no art. 18 da CF. Na verdade, não vam prevalecer.
há hierarquia entre a Justiça Federal e a Não fosse assim, não poderíamos, por
Justiça Estadual, diferenciando-se estas exemplo, admitir que a liberdade de mani-
apenas pelos âmbitos em que atuam (Cf. festação (art. 5o, IV, CF) sofresse restrições
CORRÊA, 2005). Alterar a competência em nome da inviolabilidade da honra e da
significaria, em outras palavras, afirmar imagem das pessoas (art. 5o, X, CF), ambos
que a Justiça Federal é superior à Justiça direitos protegidos na forma do art. 60, §
Estadual, além de mais capaz e eficiente, 4o, IV, da Constituição.
porquanto outra razão não haveria para Quanto às cláusulas pétreas, vale ressal-
proceder-se à modificação. tar, a Constituição Federal veda as emendas
Por fim, o deslocamento da competência tendentes a aboli-las. Nada impede que a
consistiria em medida desproporcional, configuração dada pelo constituinte a tais
desconsiderando-se o princípio de proi- normas sofra alterações, respeitado o pro-
bição do excesso de poder, por ser desne- cedimento de reforma e considerando-se,
em todo o caso, a necessidade de preservar
3
ADIN 3486. a essência de tais normas.

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 257


4.1. Pacto federativo Foi justamente imbuído desse espírito
O incidente de deslocamento de competência que o constituinte previu a possibilidade de
não está em dissonância com o pacto fede- intervenção federal da União nos Estados
rativo estabelecido em sede constitucional. e Municípios (CF, art. 34), medida muito
José Frederico Marques já lembrava que mais drástica que o simples deslocamento
não prevalece mais o federalismo dual, de competência e que tem como um de seus
destacando que, fosse para seguir estrita- fundamentos justamente a proteção dos
mente o princípio federativo, dever-se-ia direitos humanos (art. 34, VII, b).
atribuir aos juízes estaduais competência A EC no 45 não fez mais do que tornar
para aplicar apenas leis estaduais, deixando expresso o interesse da União na apuração
para os juízes federais a aplicação de leis e repressão de delitos contra os direitos
federais (Cf. MARQUES, 2000, p. 79). A humanos, pois, como já dito, a impunidade
graduação de distribuição de competência nos casos envolvendo direitos humanos
entre União e Estados-membros varia de pode levar à responsabilização direta da
federação para federação de acordo com União, que é signatária de uma série de
condições históricas. Sabe-se que o processo tratados internacionais que tutelam tais
histórico de formação da federação brasi- direitos. O rol de atribuições da Justiça Fe-
leira contou com algumas peculiaridades, deral, definido no art. 109 da CF, já continha
jamais tendo os Estados-membros gozado a previsão de atuação nos casos de “infra-
de autonomia absoluta. Mas o fato é que ções penais praticadas em detrimento de
não se pode falar em autonomia absoluta bens, serviços ou interesse da União”. Não
dos entes subnacionais nem mesmo nos se pode negar que há evidente interesse
Estados em que o processo histórico de nacional na apuração dos crimes dessa na-
formação nacional propiciou inicialmente tureza, em razão do comprometimento do
uma autonomia rígida, com base em âmbi- país no âmbito internacional. Se já se podia
tos de poder mutuamente excludentes (Cf. dizer isso antes da EC no 45, com mais razão
SCREIBER; COSTA, 2005). ainda pode-se dizê-lo atualmente, porque
O instrumento do incidente de deslo- a referida emenda atribuiu status constitu-
camento de competência está inserido na cional ao conteúdo normativo de tratados e
sistemática do federalismo cooperativo, convenções sobre direitos humanos (art. 5o,
nascido a partir da crise do Estado Liberal § 3o, da CF), o que, por si só, já demonstra
clássico. Em razão da crescente demanda cristalinamente o interesse da União no
de intervenção estatal na economia e de cumprimento dessas normas internacionais
efetivação da justiça social, escopo do (Cf. ARTEIRO, 2005).
Welfare State, a União foi assumindo cada É normal, e até mais lógico, que os crimes
vez mais competências, algumas novas, estabelecidos em textos internacionais sejam
outras transferidas dos Estados-membros de competência do sistema federal de justiça.
(Cf. SCREIBER; COSTA, 2005). A coopera- Entretanto, ao invés de retirar a competência
ção de competências jurisdicionais faz-se estadual para a investigação, processamento
necessária sempre que os órgãos dos entes e julgamento desses delitos, a norma da
subnacionais não se revelem suficientes “federalização” dos crimes contra os direi-
para cumprir as prescrições constitucionais, tos humanos reafirmou a competência dos
quer por negligência ou inércia, quer por órgãos judiciais estaduais, limitando-se a
falta de vontade política ou de condições disponibilizar um instrumento subsidiário e
reais para tal. Quando o poder local não extraordinário a ser aplicado apenas quando
consegue desempenhar determinadas esteja ameaçado o cumprimento das obri-
tarefas, deve caber à União, em caráter gações decorrentes de tratados de direitos
subsidiário, o papel de assumi-las. humanos dos quais o Brasil seja signatário.

258 Revista de Informação Legislativa


4.2. Contraditório e a ampla defesa Quanto à garantia da ampla defesa e ao
argumento de que o deslocamento da com-
A competência para julgamento do in-
petência gerará dificuldade de produção
cidente de deslocamento de competência é do
de prova para o réu, em razão do elemento
STJ. Possivelmente, a opção do legislador se
deu em razão de ser esta corte a competente distância, sendo poucos os municípios que
para dirimir os conflitos de competência contam com uma vara da Justiça Federal,
entre Justiça Estadual e Justiça Federal (art. temos que ressaltar, em primeiro lugar,
105, I, d, da CF). A Resolução no 06/05 da que tal dificuldade poderá não ocorrer no
presidência do Superior Tribunal de Justiça caso concreto.
determinou que a apreciação do incidente Vale dizer, que o deslocamento pode se
de deslocamento de competência seja feita pela dar a qualquer tempo, inclusive em grau de
3a Seção da corte. Essa mesma resolução recurso, de forma que, quando da ocasião
determinou que fosse ouvida a autoridade do deslocamento, poderá já estar concluída
judiciária estadual suscitada no incidente. a instrução probatória. Pode ocorrer, ainda,
Discordamos, portanto, da afirmação o caso de a comarca onde se desenrolava
de que o inciso V-A e o § 5o do art. 109 da o processo ser também sede de seção ju-
CF ferem o devido processo legal por não diciária federal. Ainda que não se trate de
haver a previsão de contraditório. A norma nenhum desses casos, eventual restrição à
não prescreve o procedimento do incidente ampla defesa, longe de constituir violação
de deslocamento de competência, limitando-se da garantia, poderá estar justificada no
a definir a legitimidade ativa do Procu- caso concreto, como adiante se explicitará.
rador-Geral de Justiça e a competência Contentamo-nos, por ora, em sublinhar que
para julgamento do incidente do Superior não se pode afirmar, no plano abstrato, a
Tribunal de Justiça. Isso não significa que ocorrência de afetação à garantia da ampla
a garantia do contraditório não será obser- defesa pelo deslocamento da competência
vada. Pelo contrário, no julgamento do IDC para a Justiça Federal.
no 01, o relator, Min. Arnaldo Esteves Lima,
requisitou informações ao Presidente do 4.3. Juiz natural
Tribunal de Justiça do Pará, intimou os réus O juiz natural remonta à Carta Magna
para manifestação sobre o deslocamento inglesa. Originalmente, representava a
da competência e recebeu as informações garantia de julgamento por órgãos e pes-
espontaneamente oferecidas pelo Procura- soas do local onde o delito foi cometido.
dor-Geral de Justiça do Pará e pelo irmão da Posteriormente, incorporou-se a proibição
vítima, integrante do processo na qualidade de juízos extraordinários, exigindo-se o
de assistente do Ministério Público. Embora pré-estabelecimento das regras de com-
não haja previsão expressa no inciso V-A e petência (Cf. FERNANDES, 1999, p. 115).
no § 5o do art. 109 da CF, não há dúvida de Histórica e geograficamente, a amplitude
que o contraditório deva ser garantido no do juiz natural é variável. Na França, por
julgamento do incidente. exemplo, inicialmente implicava não so-
A Constituição Federal também não mente a vedação de juízos extraordinários
estabeleceu normas específicas de contra- e da derrogação da competência, como
ditório para o processo penal, em geral, também a proibição de juízos especiais,
nem para o processo civil, contentando- sendo depois restringido à proibição de
se em determinar que o legislador, ao juízos extraordinários (Idem).
regulamentá-los, observasse a garantia do O juiz natural previne que o réu seja
contraditório. Não haveria de ser diferente prejudicado pela manipulação dos órgãos
com o incidente de deslocamento de com- julgadores, garantindo a imparcialidade
petência. do juízo e impedindo, dessa forma, a
Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 259
perpetração de injustiças. Por isso, repre- art. 5o, da CF foi devidamente respeitada.
senta importante instrumento do cidadão Se a própria Constituição distribui a compe-
contra o arbítrio estatal, além de assegurar tência em razão da matéria, pode ela mesma
a aplicação do princípio da isonomia, ao prever o deslocamento da competência em
impedir o tratamento discriminatório entre determinados casos. O poder reformador
os jurisdicionados. poderia, inclusive, ter atribuído de plano
No Brasil, o juiz natural representa uma a competência para julgamento de crimes
dúplice garantia, estando estabelecido contra os direitos humanos à Justiça Federal,
por duas regras. O art. 5o, XXXVII, da CF, mas preferiu prever apenas a possibilidade
ao prescrever que “não haverá juízo ou de deslocamento quando necessário.
tribunal de exceção”, veda a constituição b) Taxatividade das competências
de juízos extraordinários e o art. 5o, LIII, Por necessidade de um rol taxativo de
institui a garantia do juiz competente ao competências quer-se, a nosso ver, susten-
definir que “ninguém será processado tar exatamente a impossibilidade de que
nem sentenciado senão pela autoridade surjam novas hipóteses de processamento
competente”, respeitando a necessidade e julgamento não previstas no rol constitu-
da investidura dos órgãos jurisdicionais e cional de competências do juiz. Tal taxativi-
proibindo a derrogação da competência. dade seria decorrência necessária da regra
Fala-se ainda em vedação de juízo ex post inscrita no art. 5o, LIII, da CF: se se exige o
facto e taxatividade das competências (Cf. julgamento por juiz constitucionalmente
FERNANDES, 1999, p. 115). Vejamos a competente, tal competência deve estar
abrangência conferida pelas normas cons- expressamente atribuída.
titucionais no caso brasileiro. É justamente o que ocorre no caso do
a) Juiz constitucionalmente competente processamento e julgamento das violações
José Frederico Marques nos ensina que de direitos humanos pela Justiça Federal,
juiz natural ou autoridade competente é hipótese expressamente prevista no art.
apenas aquela cujo poder de julgar derive 109, V-A, da Constituição.
de fontes constitucionais (Cf. MARQUES, c) Tribunal ou Juízo de exceção
2000, p. 67). Isso porque, além de prever Tribunal ou juízo de exceção, vedado
as autoridades judiciárias, a Constituição pelo inciso XXXVII, art. 5o, da Constituição,
ainda distribui a competência ratione ma- é aquele instituído para o julgamento de de-
teriae e ratione personae entre elas. Assim, a terminado fato ou pessoa específica, consis-
garantia estabelecida no art. 5o, LIII, refere- tindo numa exceção transitória, arbitrária
se apenas ao juiz constitucionalmente com- e casuística. Admitir a constituição de um
petente (Cf. GRINOVER; FERNANDES; órgão judiciário com o propósito exclusivo
GOMES FILHO, 2004, p. 57). A contrario de julgar determinada infração penal é, com
senso, depreende-se que a competência ra- efeito, um atentado à imparcialidade do
tione loci, por ter sido delegada à legislação juízo e à isonomia entre jurisdicionados. O
infraconstitucional, não se impõe como juiz deslocamento de competência para a Justiça
natural (Cf. OLIVEIRA, 2005, p. 17). Federal, entretanto, embora tenha caráter
Tratando-se de modificação da juris- excepcional, só poderá ocorrer se forem
dição competente em razão da matéria, e preenchidos determinados requisitos, e
não de mera alteração de foro, o incidente não de forma arbitrária como ocorre com
de deslocamento de competência não poderia os tribunais ad hoc.
ser introduzido por meio de lei infraconsti- O fator determinante para a procedência
tucional. Tendo sido estabelecido mediante do incidente de deslocamento de competência
emenda constitucional, entretanto, pode-se tem menos a ver com a pessoa do réu e com
afirmar que a garantia contida no inciso LIII, as circunstâncias do delito do que com a

260 Revista de Informação Legislativa


atuação insatisfatória dos órgãos estatais em que pese valorosa opinião em sentido
de repressão do ilícito. Fica, em princípio, contrário (Cf. GRINOVER; FERNANDES;
afastada a possibilidade de utilização do GOMES FILHO, 2004, p. 62-64).
instrumento para submeter o réu a julga- A Constituição não prevê claramente,
mento parcial, porque a norma tem como como no caso da vedação de tribunal ou juiz
finalidade assegurar o cumprimento das de exceção e da necessidade de julgamento
obrigações decorrentes de tratados inter- por juiz competente, a vedação de julga-
nacionais, devendo ser utilizada apenas mento por juízo constituído ou designado
quando esse escopo estiver ameaçado. Não após o fato, embora proíba expressamente
apenas a redação constitucional, como tam- o julgamento por juízo transitório, arbitrá-
bém os debates que cercaram a aprovação rio e casuístico, por meio do art. 5o, inciso
da emenda constitucional deixam claro que XXXVII, como vimos. No entanto, aquela
a finalidade da norma é garantir a apuração vedação parece-nos ser decorrência de uma
e a punição dos delitos contra a dignidade interpretação plausível do inciso LIII, art.
da pessoa humana, e não submeter os réus 5o, da CF: se a norma exige o julgamento
a juízos suspeitos. Até mesmo porque os por juiz constitucionalmente competente,
julgadores não serão livremente escolhidos, competência que deve estar expressa em
respeitando-se a pré-existência de juízes rol taxativo, é porque a norma exige tam-
federais e procuradores da república, ale- bém o pré-estabelecimento das regras de
atoriamente designados. competência na Constituição, isto é, exige
Certamente, o Procurador-Geral da Re- um juiz constituído à época do fato e, mais,
pública e o STJ poderão perpetrar alguma exige que à época do fato a atribuição para
arbitrariedade, procedendo ao deslocamen- julgá-lo já esteja arrolada entre as demais
to quando este não é devido. Nesse caso, hipóteses de sua competência. Mas, mesmo
contudo, estar-se-á diante da má utilização que seja essa a interpretação adotada, não
do instrumento, o que é bastante diferente nos parece que tal interpretação torne in-
da inconstitucionalidade da norma em constitucional o art. 109, § 5o, da CF.
abstrato, por violação da regra contida no Como já dito, o incidente de deslocamento
art. 5o, inciso XXXVII, da CF/88. de competência atende à pré-existência de
d) Juízo ex post facto órgãos jurisdicionais, juízes e procuradores
Costuma-se dar uma definição ainda na esfera da Justiça Federal, de modo que
mais ampla ao juízo de exceção afirmando- não se pode falar de criação de juízo ex post
se que todo órgão jurisdicional criado ou facto, isto é, não se pode falar em constitui-
designado após a prática do ilícito penal ção de juízo após o fato, como se deu por
a que se lhe atribui competência para
decorrente da criação de nova vara englobando o local
julgamento viola o juiz natural. Esse en- do crime, não viola o princípio do juiz natural, dado que
tendimento, ressalte-se, não prevalece na na Constituição brasileira esse primado não tem o mes-
doutrina e jurisprudência nacionais, tanto mo alcance daquele previsto em constituições de países
que se admitiu que infrações de menor po- estrangeiros, que exige seja o julgamento realizado por
juízo competente estabelecido em lei anterior aos fatos,
tencial ofensivo ocorridas antes da criação tanto que o inciso LIII do art. 5o da Carta Magna somente
dos Juizados Especiais Criminais fossem assegurou o processo e julgamento frente a autoridade
julgadas perante os novos órgãos (Cf. MI- competente, sem exigir deva o juízo ser preconstituído
RABETE, 2001, p. 48). Da mesma forma, ao delito a ser julgado. Não viola o princípio do juiz
natural a redistribuição de processos criminais a uma
tem-se admitido que novas varas judiciá- nova vara criada, mesmo após ter sido instaurada a ação
rias julguem fatos anteriores a sua criação4, penal, desde que a modificação de competência tenha
se operado em obediência aos cânones constitucionais
4
Tribunal Regional Federal da 3a Região. Conflito e legais, expressos, no caso presente, no artigo 110 da
de Competência 03008286-2-SP, Diário da Justiça. Constituição Federal, art. 46o da Lei no 8.416/92 e provi-
05.03.1996: “A modificação da competência criminal, mentos do Conselho da Justiça Federal da 3a Região.”

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ocasião da criação dos Juizados Especiais como o caso do desaforamento, no
Criminais. Por outro lado, é inegável que procedimento do júri (CPP, art. 424),
a designação da Justiça Federal para o jul- mas são especialíssimos e determi-
gamento se dá após a prática da infração nados pelo interesse público e da
penal. Contudo, essa possibilidade atende justiça, sem prejuízo para o julga-
à necessidade de pré-estabelecimento das mento justo”
regras de competência, uma vez que é a Assim como ocorre com o desaforamen-
própria Constituição Federal que prevê a to do júri, o deslocamento de competência
possibilidade de deslocamento. Isso signi- tem caráter excepcional. A relativa incer-
fica dizer que, embora o deslocamento da teza jurídica introduzida pela norma pode
competência se dê após o fato, não se dá ser justificada pelo interesse público de
qualquer alteração nas regras de competên- combate à impunidade e repressão desses
cia estabelecidas constitucionalmente. delitos e mesmo, em alguns casos, pela ga-
O que a vedação de juízo ex post facto, rantia da imparcialidade do juízo. A rigor,
se admitida, proíbe é o deslocamento da não se estaria violando qualquer princípio
competência para julgamento de fatos constitucional, mas ponderando a aplicação
anteriores à vigência da EC no 45/04, bem desses princípios, a partir da aplicação da
como o deslocamento para Vara da Justiça máxima da proporcionalidade, como vere-
Federal criada após o fato. mos mais adiante.
Em suma, estando o órgão da Justiça Importa, antes, discutirmos se a afetação
Federal pré-constituído ao fato em julga- da segurança jurídica se dá com a mera
mento e estando pré-estabelecida a regra existência da norma que prevê a possibili-
que atribui competência à Justiça Federal dade de deslocamento da competência no
para julgamento de graves violações aos ordenamento jurídico ou se, de outro modo,
direitos humanos, nas hipóteses de deslo- só ocorrerá nos casos em que efetivamente
camento, não há que se falar em violação à se der o deslocamento.
vedação de juízo ex post facto. Temos necessariamente que discordar
da afirmação de que a norma introduzida
4.4. Segurança jurídica pela EC no 45/04 impossibilita a determi-
Embora abstratamente seja conhecida nação do juízo competente no momento
a possibilidade de julgamento pela Justiça da prática da infração penal. O juízo com-
Federal, no momento do crime, o réu não petente é o estadual e a norma não alterou
terá possibilidade de saber com absoluta isso, tampouco introduziu a facultatividade
certeza qual juiz proferirá a sentença ou de juízos. Não se trata de definição aleatória
qual tribunal julgará eventual recurso. do juiz competente. O que a norma prevê
Aqui se destaca a semelhança entre o novo é a possibilidade de deslocamento ulterior
instituto e o desaforamento do júri, em que do processo para outra Justiça, em razão de
a determinação do julgador também se dá circunstâncias supervenientes. Além do mais,
em momento ulterior à prática do ilícito. o deslocamento não se dará arbitrariamente
Sobre o assunto, afirma Greco Filho (apud e, sim, mediante o preenchimento de certos
Fernandes, 1999, p. 118): critérios que teremos oportunidade de su-
“quando ocorre determinado fato, as blinhar, não se podendo em hipótese algu-
regras de competência já apontam o ma falar em “conveniência e oportunidade”
juízo adequado, utilizando-se, até, o do Procurador-Geral da República.
sistema aleatório de sorteio (distribui- Por isso, inclinamo-nos a pensar que a
ção) para que não haja interferência mera introdução da norma no ordenamento
na escolha. É certo que há situações não causa insegurança jurídica, uma vez
de deslocamento da competência que não consagra o arbítrio de instância

262 Revista de Informação Legislativa


qualquer que seja. Por outro lado, reco- dade; do princípio da dignidade da pessoa
nhecemos que o efetivo deslocamento da humana (CF, art. 1o, III), donde decorre o
competência tem o condão de frustrar as dever de repressão aos crimes que violem
expectativas de julgamento pela Justiça gravemente os direitos humanos, razão,
Estadual, consistindo num inconveniente inclusive, pela qual a própria Constituição
ao réu a simples alteração da instância Federal comanda a assinatura de tratados
processante e julgadora. Nesse sentido é com o escopo de protegê-los (CF, art. 4o,
que entendemos haver uma afetação do II); do princípio da razoável duração do
direito à certeza e previsibilidade quanto processo (CF, art. 5o, LXXVIII); assim como
às circunstâncias relacionadas ao processo, do princípio do respeito às normas interna-
decorrente do princípio constitucional da cionais (CF, art. 5o, §§ 3o e 4o).
segurança (CF, art. 5o, caput), nas hipóteses Há, portanto, razões constitucionais em
em que haja efetivo deslocamento. Resta favor do deslocamento de competência e
saber se tal afetação é ou não legítima. razões igualmente constitucionais contra o
deslocamento de competência. Saber quais
delas devem prevalecer equivale à questão
5. Ponderação de princípios
de saber qual é a solução para o conflito
Vimos, então, que o efetivo deslocamen- entre tais princípios.
to da competência frustra as expectativas Se entendermos que o princípio da
de processamento e/ou julgamento perante segurança jurídica e o da ampla defesa
as instâncias estaduais, causando, assim, a devem ceder em face das outras normas
afetação do direito à certeza e previsibili- constitucionais, também consagradas como
dade quanto às circunstâncias relacionadas cláusulas pétreas, em virtude das quais se
ao processo, decorrente do princípio cons- procede ao deslocamento de competência,
titucional da segurança. Da mesma forma, concluiremos que a restrição à segurança
vimos que o deslocamento da competência jurídica e a possível restrição à ampla de-
para a Justiça Federal pode, eventualmente, fesa estão justificadas, inexistindo incons-
restringir, de alguma forma, a garantia da titucionalidade. Se, por outro lado, enten-
ampla defesa. dermos que devem prevalecer a segurança
A questão é: tais restrições podem ser jurídica e ampla defesa em detrimento dos
justificadas? Há razões, também constitu- demais princípios em jogo, isso significa
cionais, que devam ser consideradas mais que o deslocamento da competência cons-
importantes do que a segurança jurídica, titui verdadeira violação daqueles dois
e, eventualmente, do que a ampla defesa, princípios, pelo que não resta outra solução
especificamente nas hipóteses previstas senão considerá-lo inconstitucional.
pelo § 5o, art. 109, da CF, e que desta forma A solução de um conflito entre princí-
justifiquem sua restrição? pios pode ser encontrada a partir da pon-
Certamente, há princípios igualmente deração, do chamado teste da proporciona-
constitucionais e também revestidos da lidade. Haverá que se analisar se a medida
proteção de cláusulas pétreas, da mesma que restringe determinado princípio – no
forma que a segurança jurídica e a ampla caso, o deslocamento de competência, que
defesa, que justificam ou ao menos pre- restringiria o princípio da segurança ju-
tendem justificar o deslocamento de com- rídica e da ampla defesa – é necessária e
petência. É o caso do princípio da justiça, adequada à salvaguarda dos princípios
previsto no preâmbulo da Constituição em nome dos quais é imposta. Além disso,
Federal, em nome do qual há inegável haverá que se analisar se a restrição que tal
interesse público na repressão aos crimes medida causa é proporcional aos valores
em geral e consequente vedação da impuni- que se pretende sejam protegidos, segundo

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a máxima da ponderação, que se exprime acarretará necessariamente uma restrição
da seguinte forma: “quanto maior o grau a tal princípio. Então, coloca-se a questão
de não satisfação ou afetação de um princí- de saber se poderíamos desde logo julgar
pio, tanto maior tem que ser a importância a (in)constitucionalidade da restrição à
de satisfação do outro” (ALEXY, 1993, p. segurança jurídica, resolvendo o conflito
161). de princípios em abstrato.
Antes de procedermos ao balanceamen- Essa pergunta está associada a uma
to desses princípios, colocamos ainda a se- outra: é possível ao legislador – ou, como
guinte questão: a ponderação de princípios no caso, ao poder reformador limitado por
deve ser feita tendo em conta a norma em cláusulas pétreas – ponderar os princípios
abstrato ou a aplicação da norma no caso abstratamente, estabelecendo uma solução
concreto? para tal conflito por meio de uma lei – ou
Como sabemos, a ponderação é uma de uma emenda? Nos dois casos, trata-se de
forma de solução de conflitos no caso con- saber se é possível ponderar abstratamente,
creto e isso em razão da própria natureza isto é, sem ter em conta a aplicação dos
dos princípios, normas que comandam a princípios a um caso concreto. No primeiro
otimização de determinado valor, isto é, caso, a ponderação seria realizada pelo ór-
normas que determinam que dado valor gão responsável pelo controle concentrado
seja realizado ao máximo, tendo em conta de constitucionalidade, o STF na esfera da
as circunstâncias fáticas e jurídicas envol- Constituição Federal, e, no segundo caso,
vidas na sua realização (Cf. ALEXY, 1993, pelo próprio Congresso Nacional, que ela-
p. 86). bora as leis e emendas.
Não se trata, em princípio, da avaliação A bem da verdade, quando o legislador,
da (in)constitucionalidade de uma norma por meio de uma lei, privilegia um ou mais
considerada abstratamente, e, sim, da princípios em detrimento de outros, tendo
avaliação de uma medida restritiva a um em vista determinadas hipóteses legais,
direito fundamental num caso concreto. nada mais faz do que uma ponderação en-
Por vezes, sequer há uma lei envolvida na tre tais princípios (Cf. PRIETO SANCHÍS,
ponderação. Mas poderíamos cogitar de 2005, p. 146). Como regra geral, poderíamos
uma restrição imposta por uma lei. Nesse afirmar, inclusive, que tal ponderação rea-
caso, não caberia averiguar a (in)constitu- lizada abstratamente dispensa a realização
cionalidade de dita lei em abstrato? de uma ponderação por parte dos juízes.
Como vimos, no caso em apreço, há uma Tomemos o exemplo mais simples possível:
diferença entre a restrição à ampla defesa o artigo 121 do Código Penal, ao estabe-
e a restrição à segurança jurídica, pois, en- lecer a pena de reclusão aos homicidas,
quanto a primeira poderá ou não ocorrer, a privilegiou a vida e a segurança pública,
depender das circunstâncias fáticas, haven- em detrimento da liberdade. Do juiz que
do o deslocamento, a segunda certamente se deparar com um caso de homicídio não
ocorrerá. Quanto à ampla defesa, como dis- se espera que proceda à ponderação entre
semos, portanto, não poderemos afirmar a tais valores, a fim de saber se a restrição
inconstitucionalidade da norma que prevê da liberdade do homicida é legítima. Tal
o deslocamento de competência em abstra- ponderação já foi feita pelo legislador. E
to, uma vez que poderá nem mesmo haver corretamente, tendo em vista que não se
a restrição à ampla defesa; e, mesmo que tal questiona a constitucionalidade do art. 121
restrição ocorra, ela poderá estar justificada do Código Penal.
pelas circunstâncias do caso concreto. Por Imaginemos, agora, a hipótese em que
outro lado, quanto à segurança jurídica, sa- o legislador, ponderando dois princípios,
bemos que o deslocamento de competência estabeleceu determinada norma penal que

264 Revista de Informação Legislativa


comina ao crime de dano reclusão de 6 a 20 tância x, deve prevalecer o princípio y, em
anos. Ao Supremo Tribunal Federal seria detrimento do princípio z. Isso, como se
admissível julgar tal norma inconstitucional viu, diminui consideravelmente o espaço
por ter previsto punição desproporcional. para a ponderação judicial, embora não a
Nesse caso, o legislador teria ponderado elimine totalmente.
em abstrato a propriedade e a liberdade, Essa solução parece, inclusive, a me-
assim como o Supremo Tribunal Federal, lhor tendo em conta a perspectiva do
embora chegando a uma solução diversa princípio democrático, pois, havendo a
quanto à proporcionalidade da medida de possibilidade de aplicação constitucional
restrição da liberdade daquele que afeta a da norma veiculada pela lei, não se poderia,
propriedade alheia. Tanto num caso como de plano, retirar-lhe eficácia. Uma norma
no outro, ressalte-se mais uma vez, trata-se mais genérica, sem previsão específica das
da ponderação realizada abstratamente5. circunstâncias de sua aplicação, terá mais
Vemos, então, que a lei, mesmo que seja possibilidades de aplicação do que uma
o produto de uma ponderação realizada norma menos genérica, e, com isso, mais
pelo legislador, pode ela mesma ser ob- probabilidade de uma, ou mais de uma,
jeto de um juízo de ponderação por parte entre tais possibilidades ser justificada, ou
do judiciário. Tal ponderação poderá ser melhor dizendo, constitucional. Por outro
realizada em abstrato, pelo STF (como no lado, quanto mais densa for a norma e mais
exemplo sobre a desproporcionalidade da específicos os seus pressupostos de aplica-
pena cominada hipoteticamente ao crime ção, maior a previsibilidade das hipóteses
de dano), ou em concreto, pelo juiz do caso. concretas de sua aplicação, de forma que
Resta, então, sabermos em que caso deve mais facilmente se poderá antever a impro-
tal ponderação ser feita em abstrato e em babilidade de uma aplicação constitucional
que caso, em concreto. da norma, justificando-se que seja de plano
Concordamos nesse ponto com Prieto retirada do ordenamento jurídico.
Sanchís (2005, p. 149), para quem o fator de- Nesse ponto, então, podemos voltar
terminante é o grau de concreção da norma ao nosso problema. O Supremo Tribunal
veiculada pela lei. Nesse sentido, quanto Federal pode, no julgamento das mencio-
maior a generalidade da norma questio- nadas ADINs, considerar o § 5o do art. 109
nada, mais difícil o controle abstrato, pelo da CF, introduzido pela EC no 45/04, in-
Supremo Tribunal Federal, e mais provável constitucional por constituir-se em medida
a necessidade de ponderação em concreto excessiva e injustificadamente restritiva ao
pelo juiz singular. Por outro lado, quanto direito fundamental à segurança jurídica
maior a densidade da norma questionada, dos acusados?
maior é a possibilidade de controle abstrato Se entendermos que o poder reformador
e menor é a necessidade de ponderação procedeu a uma ponderação definitiva,
pelo juiz no caso concreto. Nesse caso, essa estabelecendo especificamente os pressu-
menor necessidade de ponderação do juiz postos de incidência do deslocamento de
do caso concreto dá-se justamente porque competência, de forma a possuir norma
o legislador já ponderou adiantadamente, um grau relativamente alto de densidade
prevendo que, em determinada circuns- –, e que, por consequência, ao STJ, instância
competente para decidir sobre o IDC, não
5
Sem embargo, não se pode excluir totalmente a restaria espaço para realização da ponde-
possibilidade de ponderação por parte de um juiz no ração entre os princípios envolvidos no
caso concreto mesmo nos casos em que o legislador – e
eventualmente também o STF, ao julgar constitucional
conflito –, seremos levados a concluir pela
determinada lei – já realizou uma ponderação. Ver a possibilidade de juízo de ponderação por
respeito Prieto Sanchís (2005, p. 148). parte do STF.

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Por outro lado, se entendermos que o modo, teria o poder reformador atribuído
§ 5o do art. 109 da CF se apresenta como diretamente à Justiça Federal a competência
uma norma genérica, uma vez que não para julgar tais causas. Se não procedeu
foram previstas de forma especificada as dessa forma foi porque preferiu reafirmar
circunstâncias fáticas que determinam a competência do Estado federado, trans-
sua aplicação, seremos levados a concluir ferindo para o âmbito da União apenas os
pela necessidade de ponderação do juiz casos em que fosse necessária a cooperação,
do caso concreto e pela impossibilidade mesmo porque a Justiça Federal não teria
de ponderação por parte do STF, em razão condições de absorver todos os processos
da não especificação das circunstâncias em envolvendo direitos humanos.
que será aplicada a norma e, consequen- Justamente por ser excepcional, restriti-
temente, deslocada a competência para a vo de direitos, e por ter caráter subsidiário,
Justiça Federal. em função do pacto federativo, só poderá
Analisemos, então, o novo texto consti- ocorrer se for necessário para assegurar o
tucional. O § 5o do art. 109 prescreve: cumprimento de uma obrigação interna-
“Nas hipóteses de grave violação de cional, isto é, se não houver outra medida
direitos humanos, o Procurador-Geral menos gravosa que permita alcançar a
da República, com a finalidade de as- mesma finalidade. Da mesma forma, o
segurar o cumprimento de obrigações deslocamento haverá de ser uma medida
decorrentes de tratados internacionais adequada para assegurar o cumprimen-
de direitos humanos dos quais o Brasil to da obrigação internacional ameaçada
seja parte, poderá suscitar, perante de descumprimento. Por exemplo, se a
o Superior Tribunal de Justiça, em obrigação que estiver em jogo for a de
qualquer fase do inquérito ou pro- punir determinada espécie de crime, será
cesso, incidente de deslocamento de necessário averiguar, no caso concreto, se
competência para a Justiça Federal” o deslocamento da competência é medida
(grifos nossos). necessária e adequada para evitar a impu-
Do texto, depreendemos que o incidente nidade.
de deslocamento de competência só se dará com No entanto, não podemos afirmar,
a finalidade de assegurar o cumprimento sem referência a um caso concreto, que o
de obrigações decorrentes de tratados inter- deslocamento de competência fere os re-
nacionais. Daí resulta um primeiro requisi- quisitos da necessidade e da adequação e
to: a violação sobre a qual versa o processo isso, simplesmente porque o § 5o do art. 109
deve estar arrolada entre as quais a União não especificou as hipóteses de incidência
tem o dever de reprimir em decorrência da do deslocamento. Não disse, por exemplo,
assinatura de algum tratado internacional. que deverá haver o deslocamento quando
Esse é um requisito objetivo e expresso. Mas houver fortes suspeitas de corrupção dos
dele decorre um outro requisito: o desloca- agentes policiais locais – caso em que o
mento de competência, sendo, como é, uma deslocamento de competência seria des-
medida excepcional, só poderá dar-se se o necessário, tendo em vista a possibilidade
cumprimento de obrigação decorrente de de “federalização da polícia”, podendo
tratado estiver ameaçado, se houver moti- ser também inadequado se o inquérito
vos que levem a crer que haverá a violação for conduzido por autoridade policial, e
de alguma cláusula de tratado do qual o não judicial, e os agentes policiais federais
Brasil é signatário. também estiverem sob suspeitas.
Cabe insistirmos na ideia de que a mo- Ao prever que o Procurador-Geral da
dificação da competência é notoriamente República poderá suscitar o incidente, a
um instrumento subsidiário, pois, de outro norma certamente não previu um poder

266 Revista de Informação Legislativa


discricionário do chefe do Ministério Públi- competência, até mesmo porque um rol
co. Trata-se, numa melhor interpretação, do em sede constitucional poderia restringir
fato de que não basta haver uma violação por demais a norma, afastando-a de sua
a direito humano sobre a qual verse algum finalidade. Sem contar que há sempre a
tratado subscrito pelo Brasil, exigindo-se possibilidade de o Brasil assinar novos
outros requisitos, que deverão ser averi- tratados para repressão desses delitos.
guados no caso concreto. Mas é interessante observar que, ao
Assim, além de violação a algum di- exigir uma violação grave como requisito,
reito humano previsto como tal em nor- o poder reformador atentou exatamente
ma internacional, para a modificação da para a exigência de proporcionalidade da
competência, deve estar inequivocamente medida restritiva, isto é, para a necessidade
demonstrado que os órgãos de repressão do de o grau de não satisfação ou afetação de
Estado-membro foram omissos ou atuaram um princípio ser proporcional à importân-
com negligência, descaso, desinteresse, cia de satisfação do outro. Assim, para se
inércia, ausência de vontade política ou não permitir o deslocamento de competência,
tiveram condições pessoais ou materiais de restringindo-se a segurança jurídica e, qui-
apurar e punir os envolvidos na violação. çá, a garantia da ampla defesa, é necessário
Também tem de estar comprovada a possi- que haja uma justificativa forte para isso, o
bilidade concreta de a situação ser resolvida que exige primeiramente uma violação, não
no âmbito da União, sem o que não há utili- a qualquer bem jurídico, mas uma violação
dade em se proceder ao deslocamento. a algum dos direitos humanos e que tal
O § 5o do art. 109 também prevê um ou- violação seja proporcionalmente grave à
tro requisito para o deslocamento da com- medida restritiva.
petência, qual seja, o processo deve versar Sem embargo, os críticos da alteração
sobre uma violação grave a direito humano. constitucional argumentam justamente que
A finalidade da norma constitucional é cla- a gravidade da violação é um critério muito
ra – assegurar o cumprimento de tratados elástico e impreciso. Com efeito, uma vez
internacionais de direitos humanos dos que não foram pré-fixadas as violações que
quais o Brasil seja signatário – e permite fazem jus ao qualificativo de “graves”, não
que, sem muito esforço, identifiquemos se sabe, de antemão, quais as hipóteses que
os feitos relativos a direitos humanos, permitirão o deslocamento da competência.
em princípio, sujeitos ao incidente. Serão Isso não significa que o deslocamento pode-
justamente as causas que versarem sobre rá se dar em qualquer caso. Mas, por outro
as condutas tipificadas pelo direito pátrio lado, não podemos dizer, sem referência a
e que encontrem ressonância em tratados um caso concreto, se o deslocamento está
firmados pelo Brasil ou não justificado.
“seja quanto ao bem jurídico objeto Se a norma que institui a possibilidade
de tutela (integridade física, psíquica, de deslocamento de competência não prevê
dignidade humana etc.), seja quanto à as circunstâncias específicas em que se dará
natureza da violação (tortura, priva- o deslocamento, isto é, não especifica em
ção da liberdade, seqüestro para trá- quais circunstâncias fáticas pode se falar
fico de pessoas etc.), seja, por último, num risco de descumprimento de obriga-
quanto ao reconhecimento, no plano ção assumida em tratado, nem especifica
internacional, da lesão aos direitos quais violações são consideradas graves
humanos, tal como ali estabelecido” o suficiente para deslocar a competência,
(OLIVEIRA, 2005, p. 202). como poderíamos, então, afirmar que tal
Portanto seria desnecessário elencar os norma fere os requisitos da necessidade,
tipos penais sujeitos ao deslocamento de adequação e proporcionalidade?

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 267


Muito pelo contrário, o que a norma da missionária Dorothy Stang, não resta-
faz é justamente comandar a ponderação va configurada a necessidade da medida
nos casos concretos. O que o art. 109, § 5o, restritiva6.
determina é que o Procurador-Geral da Ao contrário do que se pretende na
República, que deve suscitar o incidente, ADIN no 3.493, interposta pela ANAMA-
e o STJ, que deve julgá-lo, observem se o GES, o teste da proporcionalidade não
deslocamento da competência é uma me- deve, no caso, ser feito abstratamente, mas
dida necessária, adequada e proporcional no caso concreto. Assim é que, analisando
em cada caso. a situação de fato, deve-se perquirir se o
O simples fato de prever uma medida deslocamento da competência para a Justi-
restritiva, mas sem especificar as hipóteses ça Federal é atitude necessária – ou seja, in-
em que tal medida deverá ser tomada, não substituível por outro meio menos gravoso
impinge à norma o vício de inconstitucio- –, adequada – apta e útil – para garantir o
nalidade. Seria, de plano, inconstitucional cumprimento das obrigações internacionais
se verificássemos, de antemão, que toda a respeito de direitos humanos e, ainda, se
e qualquer vez que fosse aplicada seria estabelece uma relação ponderada entre o
uma medida injustificada, seja porque interesse que se busca preservar e as even-
desnecessária, seja porque inadequada, seja tuais restrições que poderá causar.
porque desproporcional. No entanto, uma Enfim, embora não tenha especificado
vez que a norma é genérica, que não indica as hipóteses de deslocamento de competên-
as circunstâncias concretas em que deverá cia, a norma estabelecida no art. 109, V-A e
haver deslocamento, e diante do fato de § 5o, da CF estabeleceu os requisitos e pa-
que haverá casos em que tal deslocamento râmetros para tal deslocamento. Podemos
estará justificado e outros em que não es- afirmar, portanto, que, apesar de constituir
tará, só no caso concreto é que poderemos uma regra a excepcionar a competência da
averiguar se a medida é excessivamente Justiça Estadual, não está sujeita ao arbítrio
restritiva ou não. estatal ou de quem quer que seja.
A norma é valorosa, contudo, por ter Se é certo que a modificação da compe-
indicado ao PGR e ao STJ os parâmetros tência em momento posterior à prática do
que devem utilizar para verificarem se delito gera certa insegurança jurídica, não
a medida é justificada ou não no caso se pode dizer que tal ocorrerá de forma
concreto: a necessidade e adequação da discricionária ou arbitrária e em prejuízo
medida para assegurar o cumprimento de de um julgamento justo, mas, sim, em aten-
obrigação assumida em tratado internacio- dimento ao interesse público e à aplicação
nal e a proporcionalidade da medida, a ser da Justiça.
aferida a partir da gravidade da violação
em questão. 6
Afirmou o Ministro Relator em seu voto: “Em
suma, as autoridades estaduais encontram-se em-
Nessa linha de raciocínio baseou-se o penhadas na apuração de tais fatos, visando punir
Min. Arnaldo Esteves Lima, no julgamen- os eventuais responsáveis, refletindo a intenção e o
to do IDC no 01, ao afirmar que “aparente dever do Estado do Pará em dar resposta eficiente
incompatibilidade do IDC, criado pela à violação do maior e mais importante dos direitos
humanos, o que afasta a necessidade do deslocamento
Emenda Constitucional no 45/2004, com da competência originária para a Justiça Federal de
qualquer outro princípio constitucional ou forma subsidiária, sob pena, inclusive, no caso, de
com a sistemática processual em vigor deve tumultuar o andamento do processo criminal e pro-
ser resolvida aplicando-se os princípios da crastinar a solução da lide, utilizando-se o instrumento
criado pela norma constitucional (art. 109, § 5o) em
proporcionalidade e da razoabilidade” e ao desfavor da sua própria finalidade, que é combater a
afastar o deslocamento da competência, ao impunidade dos crimes praticados com grave violação
argumento de que, no caso do homicídio aos direitos humanos.”

268 Revista de Informação Legislativa


6. Conclusão Espera-se que o esforço doutrinário e
legislativo produza bons resultados, tra-
A título conclusivo, apresentamos as
duzindo-se num importante passo rumo ao
seguintes considerações:
combate à violência e à impunidade. Para
a) O incidente de deslocamento de
isso é importante que o instrumento não
competência está respaldado por várias
seja banalizado, sob pena de desprestígio
cláusulas pétreas constitucionais, tais como
dos órgãos de justiça estaduais e de com-
as de proteção da dignidade da pessoa
prometimento do trabalho da Justiça Fede-
humana (art. 1o, III e art. 4o, II), respeito às ral pelo grande afluxo de processos, o que
normas internacionais (art. 5o, §§ 3o e 4o) e poderia acarretar ainda mais impunidade e
celeridade da prestação jurisdicional (art. morosidade na promoção da justiça.
5o, LXXVIII).
b) O § 5o do art. 109, CF, não viola o
juiz natural, o contraditório, nem o pacto
federativo. Referências
c) O teste da proporcionalidade é meca-
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales.
nismo de solução de conflitos entre princí- Madrid: Centro de estudios constitucionales, 1993.
pios no caso concreto, mas pode ser usado
ARAS, Vladimir. Federalização dos crimes contra os
para averiguação da constitucionalidade direitos humanos. Jus Navigandi, a. 9, no 687, 23 mai.
em abstrato, desde que a norma não seja 2005. Disponível na internet: <http://www1.jus.
demasiado genérica. com.br/doutrina/texto.asp?id=6762>. Acesso em:
d) O § 5o do art. 109, CF, não viola abs- 26 jun. 2005.
tratamente a ampla defesa e a segurança ARTEIRO, Rodrigo. O Incidente de Conversão de Com-
jurídica, porque não foram especificadas as petência e o Federalismo Cooperativo na Defesa do Direitos
hipóteses de aplicação da norma. A ampla Humanos. Disponível na internet: <www.ibccrim.org.
br>. Acesso em: 24 jun. 2005.
defesa poderá nem mesmo ser afetada – e,
havendo afetação, a verificação de sua BONSAGLIA, Mario Luiz. A questão da proteção fede-
legitimidade será feita tendo em conta o ral dos direitos humanos. ANPR On line. Disponível na
internet: <http://www.anpr.org.br/bibliote/artigos/
caso concreto. Quanto à segurança jurídica, bonsaglia.html>. Acesso em: 26 jun. 2005.
mesmo admitindo-se que sempre restará
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GINOVER, Ada
restringida com o deslocamento, não é
Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Ge-
possível decidir sobre a legitimidade de tal ral do Processo. São Paulo: Malheiros Editores, 2000.
restrição sem considerar as circunstâncias
CORRÊA, Lanna Schmitz. Federalização dos crimes
fáticas, pois não há previsão específica das graves contra os direitos humanos. Jus Navigandi,
hipóteses de deslocamento de competên- Teresina, a. 9, n. 702, 7 jun. 2005. Disponível na in-
cia. ternet: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.
e) Sendo assim, o deslocamento de asp?id=6853>. Acesso em: 26 jun. 2005.
competência pode ou não estar justificado FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Cons-
no caso concreto. O § 5o do art. 109, CF, titucional. São Paulo: RT, 1999.
fornece os parâmetros para a verificação GOMES, Luiz Flávio. “Federalização dos crimes
da constitucionalidade da medida restritiva graves”: que é isso? Última Instância Revista Jurí-
no caso concreto. Tais parâmetros são: a ne- dica. Disponível na internet: <http://ultimains-
tancia.ig.com.br/busca/ler_noticia.php?idNoticia
cessidade e a adequação do deslocamento
=12427&kw=direitos+humanos>. Acesso em: 26 jun.
para assegurar o cumprimento de obri- 2005.
gação assumida em tratado internacional
GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio
e a proporcionalidade da medida, a ser Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As
aferida a partir da gravidade da violação Nulidades no Processo Penal. São Paulo: Revista dos
em questão. Tribunais, 2004.

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 269


KARAM, Maria Lúcia. Competência no proceso penal. temer? Boletim IBCCRIM, São Paulo, a. 13 - nº 150, p.
São Paulo: RT, 2005. 8-9, maio/2005.
MARCON, Adelino. O princípio do juiz natural no PRIETO SANCHÍS, Luis. El juicio de ponderación.
processo penal. Curitiba: Juruá, 2004. In: CARBONELL, Miguel. Neoconstitucionalismo(s).
Madrid: Trotta, 2005. p. 123-158.
MARQUES, José Frederico. Da competência em matéria
penal. São Paulo: Millennium, 2000. SCHREIBER, Simone; COSTA, Flávio Dino Castro e.
Federalização da competência para julgamento de crimes
MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. São Paulo:
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OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. simone.htm>. Acesso em: 26 jun. 2005.
Belo Horizonte: Del Rey, 2005.
PIOVESAN, Flávia; VIEIRA, Renato Stanziola. Fede-
ralização de crimes contra os direitos humanos: o que

270 Revista de Informação Legislativa


Orientações Editoriais

A Revista de Informação Legislativa divulga trabalhos elaborados pela Subsecretaria


de Edições Técnicas e artigos de colaboração. Os trabalhos devem reportar-se a assuntos
da área do direito e áreas afins – de interesse dos temas em debate no Congresso Na-
cional – e de cunho histórico que se relacionem com o Poder Legislativo. Somente serão
publicadas colaborações inéditas, que serão selecionadas por conselho.
As colaborações deverão ser encaminhadas ao Editor por e-mail (livros@senado.gov.
br) com indicação do endereço do autor para eventual envio de exemplar impresso. Da
mensagem eletrônica deverá constar autorização para publicação sem ônus na Revista
e posterior visualização na Internet, bem como declaração de ineditismo do artigo.
Referida mensagem deverá ainda ser seguida de assinatura digital. Não havendo esse
recurso, pedimos o encaminhamento em separado por fax ou pelos Correios da carta de
autorização/declaração de ineditismo devidamente assinada.
O texto do artigo a ser publicado deve ser formatado preferencialmente para papel A4,
em corpo 12 e espaçamento entre linhas de 1,5 e gravado no formato Word for Windows.
Dos artigos deverão constar resumo curricular e local de trabalho do colaborador. Após
o título e nome do autor, deve ser apresentado um sumário da matéria. Os desenhos,
gráficos, ilustrações e tabelas – se estritamente indispensáveis à clareza do texto – deverão
ser encaminhados em arquivos separados (um para cada desenho, gráfico ou tabela),
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Ressaltamos que o artigo enviado para publicação ficará disponível para avaliação
durante seis meses. Findo esse prazo e ainda havendo interesse das Edições Técnicas
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conteúdo. Não havendo mais interesse do Editor, o artigo será desconsiderado sem
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Com o objetivo de melhorar a legibilidade dos artigos e dinamizar o processo de
pesquisa dos seus leitores, recomenda-se a adoção de alguns procedimentos básicos no
que diz respeito às citações e referências bibliográficas:
a) Não devem ser incluídas as referências bibliográficas completas em rodapé, exceto
em casos de citação de citação, em que somente o autor citado figura em nota de
rodapé e o autor que o citou, em lista de referências;
b) a referência completa deverá constar em lista, no final do artigo, organizada em
ordem alfabética e alinhada à esquerda;
c) as notas de rodapé explicativas ou informativas são chamadas no texto por números altos
ou alceados, podendo inclusive ser feita citação bibliográfica relativa ao seu conteúdo;
d) a fonte da qual foi extraída a citação deverá constar no próprio corpo do texto
conforme os exemplos que se seguem:

Exemplos de citação direta:


Segundo Falcão (1984, p. 59), “não basta a existência de demanda estudantil para
que as faculdades continuem a produzir bacharéis”.
“Não basta a existência de demanda estudantil para que as faculdades continuem
a produzir bacharéis” (FALCÃO, 1984, p. 59).
Observação: A citação direta incluída em texto e/ou em nota de rodapé aparece
entre aspas.

Exemplos de citação indireta:


Para que a produção de bacharéis continue, vários fatores devem ser observados
além da demanda estudantil (Cf. FALCÃO, 1984, p. 59).
Para que a produção de bacharéis continue, vários fatores devem ser observados
além da demanda estudantil (FALCÃO, 1984, p. 59).
Observação: A falta de aspas e/ou o termo Cf. (confira, compare) evidenciam
que não se trata de uma transcrição e sim da utilização da fonte citada a fim de
respaldar a idéia do autor do artigo.

Monografias (livros, folhetos, teses, enciclopédias, etc.) deverão conter: sobrenome


do autor, prenome(s), título da obra, subtítulo (se houver), local de publicação, editor(a),
data de publicação.

Exemplo de monografia no todo:


MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil. 2. ed. São Paulo:
Saraiva, 1974.

Exemplo de parte de monografia:


ROMANO, G. Imagens da juventude na era moderna. In: LEVI, G.; SCHMIT, J.
(Org.). História dos jovens: a época contemporânea. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996. p. 7-16.

Para artigos de periódicos, as informações essenciais são: sobrenome do autor,


prenome(s), título do artigo, subtítulo (se houver), título da revista, local de publicação,
indicação de volume, ano, número, página inicial e final, período e data de publicação.

Exemplo de artigos de periódicos:


TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. Lopes da Costa e o processo civil brasileiro. Re-
vista de Informação Legislativa, Brasília, ano 37, n. 148, p. 97-111, out./dez. 2000.

Para artigos de jornais: sobrenome do autor, prenome(s), título do artigo, subtítulo


(se houver), título do jornal, local de publicação, data de publicação, seção ou caderno
do jornal e paginação.

Exemplo de artigos de jornais:


MOURA, Ana Lúcia; FEITOZA, Valéria. Escola pública: a tristeza de quem fica.
Correio Braziliense, Brasília, 6 mar. 2001. Tema do Dia, p. 6-7.

Para referências em meio eletrônico: sobrenome do autor ou entidade, prenome(s),


título, subtítulo (se houver), também são essenciais as informações sobre o endereço
eletrônico, apresentado entre os sinais <>, precedido da expressão “Disponível em:” e
data de acesso ao documento precedido da expressão “Acesso em:”.

Exemplo de referências em meio eletrônico:


CORREIO Braziliense. Disponível em: <http://www.correioweb.com.br>.
Acesso em: 5 jul. 2003.

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