Livro 1
Wanju Duli
2015
Sumário
Capítulo 1_______________________________________________5
Capítulo 2_____________________________________________102
Capítulo 3_____________________________________________162
Capítulo 4_____________________________________________251
Sociedade do Sacrifício
Capítulo 1
Quando eu tinha doze anos pensava que Sacrifícios eram pessoas
ricas que viviam no conforto, tendo grandes diversões em suas
aventuras. Em suma: eles eram tudo o que alguém poderia almejar ser.
Tinham riqueza, fama e, acima de tudo, poder. Suas vidas não eram
entediantes. Eles partiam em espetaculares jornadas para salvar o mundo.
Sacrifícios eram como lendas vivas saídas de livros de fantasia: eles se
destacavam na multidão. Eram escolhidos, porque eram especiais.
Carregavam nas costas o destino de toda a humanidade. Como não
admirá-los? Como não invejá-los? Como não desejar ser um deles?
Os rumores não ajudavam. Sempre que alguém pronunciava o nome
“Sacrifício” um olhar de reverência, temor e emoção era visto no rosto
de cada um de nós. Na nossa visão eles eram como estrelas de cinema:
dignos de adoração. E mais que isso: não eram atores interpretando um
personagem. Eles eram os próprios personagens que os atores apenas
finjiam ser. Isso os tornava ainda mais grandiosos aos nossos olhos.
Essa era a visão vigente. Evidentemente, nem todos pensavam dessa
forma.
– Esses Sacrifícios – meu pai pronunciou a palavra com desdém –
estão apenas desperdiçando dinheiro do governo.
– Não diga isso, querido – minha mãe censurou-o – você sabe que as
crianças gostam deles.
Quando ela usava o termo “as crianças” se referia a mim e a meus
irmãos, mesmo que meus irmãos já fossem adolescentes. Eu era a única
efetivamente criança, embora estivesse prestes a perder essa característica
no próximo ano.
– O que há de bom em um bando de desocupados comendo o
dinheiro dos impostos? – perguntou meu pai – enquanto os verdadeiros
trabalhadores como nós somos os legítimos Sacrifícios.
Meu pai trabalhava nas minas de carvão, em jornadas exaustivas e
longas. Ele corria grandes riscos todos os dias e ultimamente estava com
problemas pulmonares. Eu sabia que ele fazia tudo isso por nós. Quando
eu o ouvi criticar os Sacrifícios, em vez de protestar eu o abracei.
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– Você sabe que é meu maior herói, pai – eu disse a ele – muito mais
do que os Sacrifícios mais famosos.
– Vou fingir que acredito – respondeu meu pai, tomando um gole da
sua caneca de café e virando a página do jornal.
– Pelo menos os Sacrifícios nos dão esperanças – lembrou minha
mãe – de termos uma vida melhor um dia.
Meu pai deu um risinho de desagrado.
– Vida melhor para quem? – ele rosnou – eu não acredito em contos
de fadas. E mesmo que todas essas lorotas fossem verdade e algum
Sacrifício retornasse triunfante, na prática isso não faria a menor
diferença nas nossas vidas. Todos sabemos muito bem disso. Alguns
fingem que fará alguma diferença para ter motivação de continuar, dia
após dia.
– Não escute seu pai – minha mãe tapou meus ouvidos – ele é
exageradamente pessimista. E inacreditavelmente ranzinza para a pouca
idade que tem.
– Não vou demorar muito para me tornar um sexagenário, então já
estou treinando – ele retrucou, com os olhos no jornal.
– Você ganha em mau humor de qualquer octagenário! – protestou
minha mãe.
– O seu Nicolau tem 86 anos e é muito bonzinho – observei – há
inclusive Sacrifícios mais velhos que você. Sabia, pai? Não há muitos,
porque eles morrem cedo, mas há...
– Sacrifícios, Sacrifícios... – murmurou ele, virando as páginas do
jornal com cada vez mais vigor – não há outro assunto nessa casa?
Resolvi voltar para meu quarto para não colocar fogo na discussão.
Eu estava ansiosa para saber das últimas fofocas sobre os Sacrifícios na
internet.
O problema era que eu precisava compartilhar nosso único
computador com meus outros três irmãos e sempre dava briga.
– Eu sou a mais velha – Irene sempre usava o mesmo argumento –
portanto tenho direito a mais tempo no computador.
– Eu tiro as melhores notas no colégio – dizia Carla – então é natural
que eu mereça um prêmio.
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Sociedade do Sacrifício
– Dentre nós, sou o único rapaz e tenho necessidades que vocês não
entenderiam – argumentou Caio – então preciso de mais tempo no
computador.
– Deixa disso, Caio – retruquei – todo mundo sabe que você só usa o
computador pra jogar!
Antigamente as discussões eram bem piores. Desde nosso interesse
em comum nos Sacrifícios, passamos a checar juntos as notícias. Às
vezes animadamente e amigavelmente. Outras vezes com gritos e
empurrões, pois cada um era fã de um Sacrifício diferente e queria saber
mais sobre ele.
Os Sacrifícios não eram algo novo. Eles existiam há pelo menos
algumas décadas, mas somente alguns anos atrás a notoriedade deles
começou a aumentar devido a certos acontecimentos estranhos no
mundo e a explicações ainda mais inusitadas.
Minha irmã mais velha sempre foi uma admiradora dos Sacrifícios,
mesmo na época em que eles ainda não eram notícia de primeira página
num jornal. Caio costumava zombar dela por causa disso, até ele mesmo
virar um fã. Nesse momento, eu e Carla pensamos: se até Caio, o mais
cético de nós, também entrou na onda, deve haver algo mais nisso tudo.
Muitos desastres naturais estavam acontecendo pelo mundo nos
últimos anos, até mesmo em nosso país. Os cientistas sempre tinham
boas explicações. Eles geralmente estavam certos. Até que a situação
começou a sair do controle.
Alguns físicos tinham teorias elegantes para explicar eventos que, a
princípio, soavam quase sobrenaturais. Porém, quando vieram as
ameaças de impactos de imensos asteroides e cometas, que desviavam
subitamente de seus caminhos aparentemente sem nenhuma explicação,
alguns começaram a levantar a bandeira branca. Ou aquilo possuía uma
explicação científica muito avançada ou era obra de Deuses.
No fundo, qual era a diferença? Uma ciência que está a anos-luz de
nossa compreensão não possuiria um status quase divino?
– É diferente – explicou-me Irene um dia – Deuses podem violar as
leis da física.
– Por que eles fariam isso? – perguntei.
– Não posso explicar como pensa um Deus, porque tenho uma
mente humana. Mas posso sugerir alguns possíveis motivos. Um Deus
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poderia quebrar uma lei simplesmente porque tem poder para isso.
Talvez ele deseje demonstrar o seu poder, por vaidade. Ou está com
pressa e não quer obedecer a certas leis para ser mais eficiente.
– Por que ele não para o tempo em vez disso?
– Acho que fazer isso também violaria alguma lei. Provavelmente
cada Deus tem poderes diferentes. Os Deuses com os quais estamos
lidando dificilmente são oniscientes, onipotentes e onibenevolentes.
Quero dizer... se eles fossem bonzinhos, por que estariam tentando nos
destruir? E se tivessem poder completo, por que não simplesmente
aniquilar nosso mundo em vez de fazê-lo por partes?
– Como você disse, é difícil penetrar na mente de um Deus –
observei.
Irene sempre havia sido meio mística. Ela acreditava em Deuses e
outras dimensões. Acreditava que poderia acessar essas outras dimensões
alterando seu estado de consciência, como nos sonhos.
Por isso, quando os rumores sobre a destruição da Terra por Deuses
começaram a aparecer, enquanto a maioria encarava o assunto como
piada, ela aceitou tudo com naturalidade.
– Tenho certeza de que o serviço de inteligência do governo de
muitos países já está a par da situação há um bom tempo – sugeriu Irene
– devem estar se preparando para negociar.
– Negociar com Deuses? – perguntei, incrédula – seria mais fácil
negociar com alienígenas.
Ela deu um sorriso misterioso quando eu disse isso.
– Engraçado você mencionar esse ponto. Estou por dentro de alguns
boatos fantásticos. Quer saber do que se trata?
– Fica quieta, Irene – Caio criticou-a, pois na época ainda não
acreditava – por que está tão feliz com cometas, furacões e esse monte
de merda que anda acontecendo no mundo e destruindo vidas?
Desastres podem ser interessantes em histórias, mas são uma porcaria na
vida real.
– Não estou gostando – ela desviou os olhos – só estou tentando
fazer o melhor da atual situação. De que adianta ficar se lamentando?
Vou pelo menos me divertir. E não é como se fôssemos morrer amanhã.
– É claro que não faz a menor diferença para você que um monte de
desconhecidos estejam morrendo como insetos ao redor do mundo
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– Como algo pode ser uma merda de uma forma boa? – perguntou
Irene.
– De incontáveis modos – respondi, misteriosamente – que achou do
vídeo, Caio?
– Eu não desgostei – ele respondeu, de forma vaga – quem fez o
vídeo deve ser um cara como eu: que anda puto com toda essa bobagem,
essa briga entre religiosos e cientistas. É claro que ele não fez isso para
atacar os cientistas. Só pra mostrar que está de saco cheio com toda essa
polêmica. Ele quer que todos calem a boca.
O vídeo fez tanto sucesso na internet que em pouco tempo surgiram
versões com legendas em inglês e outros idiomas. Além disso, houve
montagens da montagem. Numa delas, o cientista voltava dos mortos e
começava a explicar todos os processos fisiológicos envolvidos no
momento da morte.
– Por que essa porra de vídeo está tão famoso assim?! – Carla estava
fora de si – que absurdo! Eu me sinto ofendida com isso.
– Eu me sinto ofendida que ele esteja fazendo tanto dinheiro com um
debate sério como esse – disse Irene.
– Deixa o cara fazer dinheiro, ele merece – Caio resolveu dizer –
acho que estou começando a gostar desse vídeo. É mais engraçado do
que parece.
Em pouco tempo, deixou de ser piada a suposta especulação de que o
mundo estava sendo destruído por forças obscuras, pois era literalmente
o que estava acontecendo. Porém, mesmo quando o assunto dos Deuses
foi seriamente colocado à tona, é claro que algumas piadas
permaneceram. Sempre havia alguém que não acreditava.
– OK, talvez esses Deuses sejam reais – admitiu Caio – mas que
diferença isso faz? Se eles estiverem mesmo por trás disso, teremos ainda
menos esperanças de nos salvar.
Se houvesse uma pequena chance de as destruições estarem sendo
causadas pelos Deuses, era necessário tentar recorrer a essa explicação
que, ironicamente, havia sido o mais próximo de uma resposta que havia
sido possível chegar até então.
Por isso, aos poucos a Sociedade do Sacrifício começou a ser levada a
sério. Era assim que ela se chamava.
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– Mas a vida é muito mais que isso – disse Bianca – são os pequenos
momentos que só valorizamos quando perdemos.
– Eu sei – concordei – qualquer pessoa quando está triste ou
deprimida pode achar que a vida não é boa o bastante. Passar por esses
momentos é natural. Já passei por isso quando eu era mais nova e meu
avô morreu. Ele trabalhava nas minas também e teve um acidente. Ele já
devia ter se aposentado, mas a situação financeira dele não estava bem,
então ele continuou...
– Que droga – disse Jorge – deve ter sido uma merda.
– Meu pai costuma brincar que deseja que o mundo acabe logo para
não precisar ir trabalhar nas minas outra vez – observei – e tem muita
gente repetindo coisas assim ultimamente: “que bom que o mundo vai
acabar, assim não preciso estudar e trabalhar, não preciso envelhecer,
adoecer ou passar por situações desagradáveis”.
– Isso é um pouco triste – disse Bianca – eu não gosto de estudar,
mas certamente prefiro estudar a morrer.
– E se morrer for uma coisa boa? – perguntou Jorge.
Nós duas lançamos a ele um olhar atravessado.
– Não perguntei a sério – ele justificou – eu sei que o processo da
morte costuma ser doloroso, mas e se houver mesmo outros mundos e
outras vidas?
– Mesmo se isso for verdade, por que as outras vidas seriam mais
importantes que a atual? – perguntei.
– Porque as pessoas nunca estão satisfeitas – respondeu Jorge –
mesmo que a vida delas esteja razoável, ou até mesmo excelente, elas
sempre querem acreditar que há algo melhor. Ambição é bom, mas
ambição demais pode fazer o tiro sair pela culatra e tornar a pessoa
infeliz.
– Será que minha irmã é ambiciosa, então? – perguntei, incerta – ela
não parece realmente infeliz, mas no fundo sei que ela está insatisfeita.
Talvez seja o destino dela, karma ou o que seja.
– Será que as pessoas se tornam Sacrifício porque estão tristes? –
perguntou Jorge – ou será que é por tédio?
– Cada um se torna Sacrifício por um motivo diferente, ué –
respondeu Bianca – assim como cada um faz cada coisa por variados
motivos.
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vamos nos tornar as Três Marias para ficarmos perto uma da outra, etc,
etc”.
– Não leve a mal, mas não quero ficar perto de você na outra vida –
disse Irene – e que diabos é essa frase sobre as Três Marias?
– Inventei agora – disse Carla – e já vi que vou esperar sentada por
alguma despedida dramática, então vou começar. Como eu já disse, tive
uma vida feliz. Apesar de eu só ter quatorze anos, já fiz a maior parte das
coisas importantes que eu planejava fazer, como aprender raiz quadrada
ou os verbos intransitivos. Pensando bem, minha vida foi uma bosta. Eu
não tinha notado ainda, mas não me importo. Aliás, por que as pessoas
não se mudam de cidade simplesmente em vez de comprar vaga nos
abrigos?
– Deve estar um trânsito infernal e os aeroportos devem estar
parados com a multidão querendo se mandar – sugeri – e cedo ou tarde
todos vão morrer.
– Parece que tem um país que não registrou praticamente nenhuma
morte pelas mãos dos Deuses – lembrou Caio – Burma, se não me
engano.
– Devem estar todos se mudando para lá como loucos – eu disse – e
eu diria que seria o lugar número um a ser evitado exatamente por isso.
Imagine a população inteira da Terra espremida num só lugar. Quando
os Deuses notarem isso, vão mandar um maremoto engolir o país para
matar todos juntos.
Eu e minha boca. No dia seguinte, Burma teve a primeira tragédia
natural dos últimos meses, que matou uma quantidade considerável de
pessoas.
Nesse instante, minha mãe disse:
– Eles não são Deuses. São o Diabo.
Para completar, havia estourado algumas guerras ao redor do mundo.
Não sabíamos se os Deuses tinham influência direta ou indireta: se
tinham provocado diretamente a guerra ou era um desespero humano
diante da quantidade de mortes e falta de condições para os que ainda
viviam. Nós íamos acabar nos matando mais um pouco para ajudá-los.
– Os Deuses devem estar rindo agora – pronunciou Caio.
Soubemos que faltou luz em vários locais da cidade. Felizmente,
ainda conseguíamos usar o computador para saber o que estava
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– Até porque nem mesmo nós podemos ter certeza disso – observou
Bianca.
– Qual é! – exclamou Jorge, indignado – você acha que algum
fenômeno físico plausível matou aquela galera lá em Burma
coincidentemente bem na época em que metade do mundo estava se
movimentando para lá? E terremotos mortais no Brasil? Fala sério. Isso
já deixou de ser piada há muito tempo.
– Fazia muito tempo que não havia mortes em massa em Burma,
então a probabilidade indica que já estava na hora de haver alguma –
tentou Bianca.
– Mesmo que caia coroa dez vezes seguidas numa moeda, na décima
primeira jogada a probabilidade de dar cara continua sendo 50% em vez
de aumentar.
– Mas desastres naturais não têm nada a ver com eventos
independentes! Se um vulcão está inativo há muito tempo não significa
que nunca vá entrar em atividade. Na verdade, pode ser exatamente o
contrário. Mas eu não entendo tanto sobre vulcões para dizer ao certo...
– Bia, que tal você se divertir comigo em vez de ficar procurando um
pretexto para dizer que estou errado, apenas para implicar? A Sociedade
do Sacrifício está tão famosa nesses últimos dias que já deve ter atingido
as estrelas. Literalmente meio mundo quer ser membro agora. É óbvio:
melhor partir numa grande aventura e salvar o mundo do que morrer
sem fazer nada, certo?
– Mas agora eles não querem dar vagas para ninguém – eu observei –
vi na internet ontem. A SSC mandou todo mundo se foder. Ou ao
menos foi esse o aviso oficial do líder.
– Sério? – Jorge riu a valer – quero ver isso! Vamos para o laboratório
de informática.
Por sorte, conseguimos ocupar um dos computadores pré-históricos,
que possuía a velocidade de uma lesma.
Nem mesmo eu havia lido o aviso formal. Apenas tinha ouvido falar.
Por isso, tive alguma diversão adicional.
Esse é um aviso oficial para todos os aspirantes idiotas que sonham em um dia se
tornar membros da nossa respeitável sociedade. Em poucas palavras, podem continuar
sonhando. Durmam para sempre em suas mortes bem merecidas. Porque quando
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realmente precisamos de ajuda, ninguém veio. Ninguém nos escutou. Nos chamaram
de desocupados, loucos, preguiçosos, vadios, canalhas, filhos da puta, cuzões que
mamam nas tetas do governo. Querem que eu continue? Eu tenho uma lista com pelo
menos mais trezentos adjetivos que costumo usar em meus documentos oficiais. Mas
creio ter sido claro.
Os Deuses existem? Não me diga! Conte-me algo que não sei. Surpreenda-me.
Quer saber mais que eu, caralho? Sempre me chamando de ignorante e lunático e
agora todos vêm para beijar o meu traseiro? Pois eu os informo orgulhosamente que
meu traseiro vai muito bem, obrigado, e não preciso de beijos. Na verdade estou
cagando nesse momento. Aqui, sentado na privada, começo a pensar sobre a vida e só
tenho a lamentar pela categoria de profundos imbecis com os quais tenho que lidar
diariamente. Vocês valem menos do que a bosta que estou derramando agora. Sim,
estou cagando água porque tive uma diarreia infernal por causa de um rato podre que
comi. Para quem pensa que nadamos na grana, NÃO, seu bosta. Nós nadamos na
bosta. Não temos um centavo, seus ordinários! Queriam vir para a SSC em busca de
fama e glória? Bem, nós temos essa merda, mas pelo preço de merda aguada. E isso
não é o pior.
Esse bando de filhinhos de papai me enviam esses e-mails cretiníssimos, que já
atingiram um grau tão elevado de putaria que mereceriam um prêmio! Dizem que me
admiram, que querem salvar o mundo, blá, blá blá, e estariam dispostos a enfiar um
cotonete macio em todos os orifícios do meu corpo por uma vaga. Até mesmo dizem:
“sim, eu comeria um rato, uma lesma, uma barata”, mas assim que colocam os pés
aqui e se cagam, esquecem tudo sobre os belos discursos que fizeram e voltam correndo
para a barra da saia da mamãe.
A verdade é que 99% de vocês preferiria morrer hoje do que passar uma semana
conosco, mesmo que isso desse a vocês mais um ano de vida. Nós estamos lutando
contra DEUSES no meio do NADA, PORRA! Não tem cama, não tem teto,
não tem comida quente. Um Deus vai decepar seu braço e não vai ter atendimento
médico. Não tem kit de limpeza e antibióticos. E agora você pergunta: se não tem
nada de bom nesse cacete que vocês fazem e não há esperanças de vencer, por que
caralho vocês fazem essa merda?
Eu não vou perder meu tempo precioso explicando isso para cabeças de vento. Já
perdi muito tempo escrevendo isso. Sorte de vocês que estou na privada, que na verdade
nem é uma privada e sim uma cadeira com um furo sobre um buraco profundo e
malcheiroso. E como eu tenho acesso à internet no meio desse nada absoluto? Ah, se
eu te contasse você ia pirar. E não quero ninguém pirando por essa trivialidade, pois,
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como já avisei, não tolero mais esse tipo de gente. Sim, estou falando de você, trouxão,
que, se está me lendo agora à beira do caos do fim do mundo, é porque nutre alguma
esperança para admissão. E é com muito prazer que estou aqui hoje para acabar com
todas as suas esperanças.
Declaro que NÃO HÁ VAGAS! Não porque não haja de fato, mas porque
eu simplesmente declaro que não quero mais dar vagas a ninguém porque vocês já me
emputeceram o suficiente. Aquele meu velho e-mail está ENCERRADO e hoje
estarei muito ocupado fazendo uma nova paródia do vídeo do doutor Henrique, então
não encham meu saco. Amanhã vamos lutar contra outro Deus fodido, e se já fico de
caganeira apenas por comer um rato, a cagamerdeira vai piorar amanhã quando eu
estiver cara a cara com o putão divino. Embora eu tenha que preparar meu rabo para
a ocasião, não preciso de seus cotonetes.
Eu normalmente não toco muito no assunto das fezes, porque sou uma pessoa que
mantém sua vida privada em sigilo, mas meus nervos estão gritando tão alto que eu
sinto vontade de cantar. A canção seria mais ou menos assim:
“Habitantes da Terra, enquanto produzo a minha merda sorrio. Às vezes não sei
se choro ou se rio, mas perante tamanha asneira, estou à beira da loucura. A toda a
ganância e arrogância respondo com petulância e transumância!”
Eu nem mesmo sabia o significado da palavra transumância e só usei-a para
rimar, mas acabo de descobrir que é a passagem do rebanho de carneiros. Agora
percebo que ela deu ao meu poema um sentido profundo. Significa que prefiro passear
com meus carneiros a dar atenção às súplicas de vocês, suínos!
Tenho certeza de que as pessoas lerão qualquer merda que eu escrever aqui,
tamanha a ansiedade que estavam por meu aviso oficial. Por isso, eu propositalmente
fui evasivo e rude em meus comentários. Estava tudo planejado. Afinal, eu sei ir
direto ao ponto quando realmente desejo.
Isso, obviamente, não muda o fato de que estou puto. Não me lembro se eu disse
tudo o que eu tinha para dizer. Talvez eu tenha esquecido do principal, mas não
importa. O principal provavelmente é isso: eu sou o supremo líder da SSC e vocês são
apenas pedaços de lixo. Não se esqueçam disso. As vagas estarão fechadas para
sempre e, veja só, o mundo vai acabar logo e isso não fará diferença.
Minhas solenes despedidas e uma boa morte.
Ah, espere, vocês serão certamente esmagados e queimados vivos. Foi mal, mas
vocês causaram isso a si mesmos. Se tivessem me escutado antes não teria acontecido.
Sendo assim, apenas desejo a vocês uma morte rápida e com poucos ossos quebrados e
pele queimada, embora não mereçam.
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Pensando bem, não desejo porcaria nenhuma! Eu não sou o Papai Noel. Não
estou aqui para dar presentes, e sim para trazer más notícias. No seu caso, uma
péssima notícia. Boa sorte na próxima encarnação.
Oh, espere outra vez! Não há outras vidas! Os Deuses me contaram. Essa foi a
sua última.
Que pena.
Cordialmente,
MAU
PS: Não matamos nenhum Deus ainda, mas temos um excelente simulador que
indica que eu já teria matado cinco deles se eles não fossem indestrutíveis.
PPS: “Se os Deuses são mesmo imortais, por que, pela milésima vez, vocês ainda
estão nessa jornada cretina?” Ora, você que é tão esperto, me diga! Não, NÃO me
diga! Não ouse me enviar e-mails. Mas veja só, você não tem mais meu novo e-mail
que acabei de fazer, com um login ultra secreto, e não poderá mais me localizar.
Cuzão! Tenta beijar minha bunda agora, espertinho, e em breve descobrirá que isso
nunca seria necessário se você fosse capaz de construir uma máquina do tempo e vir
nos ajudar dez anos atrás antes de eu perder meu olho direito. Você ficou feliz por ter
os dois olhos, mas não os terá por muito mais tempo.
PPPS: Quantos “PSs” terei que escrever até conseguir terminar com uma frase de
efeito? Eu normalmente tenho uma lista de frases de efeito junto com minha lista de
xingamentos, mas acho que acidentalmente usei-as para limpar o rabo.
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VIC: Mau, deixa de ser infantil. Essas crianças estão brincando com você. Eu
não dou a mínima para as merdas que você posta na internet, mas você é o líder dessa
porra e precisa estar acordado amanhã para dar as ordens do ataque. Então, como
vice-líder eu ordeno que você vá dormir.
MAU: Eu não preciso dormir. Estou acima disso.
VIC: Se eu te flagrar dormindo amanhã, arranco seu outro olho.
MAU: Droga. Por que você é tão vaca?
VIC: Porque eu gosto de ser ;)
MAU: Vou deixar passar apenas por causa da sua piscadela sensual.
VIC: Também vou deixar passar a sua insubordinação inicial. Afinal, todo
mundo sabe que você só é o líder formalmente, mas quem realmente manda aqui sou
eu.
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Bom dia, seus arrombados! Não, não, imagina, não precisa agradecer. Eu apenas
salvei o mundo, faço isso todo dia porque, diferente de vocês, perdedores, eu sou um
herói. DE NADA, seus animais.
Desde cedo na minha vida eu decidi que não queria ser um escroto fracassado
como vocês, que apenas escaparam da morte porque deram sorte. Eu não permito que
minha vida seja governada exclusivamente pela sorte. É isso que separa vocês,
desgraçados vadios, de mim, que sou um campeão: um abismo.
De que é feito esse abismo? Você já chegou longe em sua jornada, mas ousa olhar
para trás. Está com medo de avançar, porque o abismo é profundo, mas também teme
recuar depois de ter ido tão longe. A verdade é que vocês todos estão tremendo de medo
e tentam disfarçar isso para enganar a si mesmos. Vão em frente, suas bichas, e
critiquem meus vídeos o quanto desejarem! Eu posso não ser o melhor editor de vídeos
do mundo porque eu estava fazendo algo mais útil da minha vida na última década
em vez de postar merda na internet.
Contudo, devo ressaltar que não desprezo toda a merda. Ela pode se dividir em
diferentes categorias. Mas esse é um assunto complexo e refinado demais para a
compreensão de vocês.
Sugiro que usem esses próximos dias para repensarem suas vidas. Não
desperdicem tempo beijando minha bunda, cretinos! Isso não vai salvar a vida de
vocês. Em vez de babar diante dos Deuses e clamar por piedade, tentem fazer algo por
si mesmos. Chegou a hora de reverem suas prioridades. E lembrem-se que nada vem
de graça. Você vai ter que fazer algum sacrifício.
O que prefere? Prazer para o corpo? Prazer para a mente? Ou um deleite para o
espírito? É hora de decidir. Não se pode ter tudo.
Vocês, ratos imundos de internet, certamente já meteram seus focinhos
desagradáveis em todos os cantos mais obscuros e cabeludos da interwebz. Apesar de
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todas as armadilhas, devem ter conseguido alguns queijinhos. Resta saber se o buraco
chamado SSO é um queijo ou uma ratoeira antes de se meterem nele. Estão avisados!
Confesso que me dobrei no chão de tanto rir nessas últimas semanas, devido aos
desesperados que venderam suas casas e tudo o que possuíam em troca de alguns dias
de proteção e desconforto nos abrigos. E agora que o mundo não acabou, estão
chorando por causa de dinheiro. Não quero julgar ninguém, porque já chorei por
causa de dinheiro muitas vezes, especialmente quando passei fome e não tinha nem um
fio de cabelo para comer. Mas, por favor! O mundo não acabou e vocês estão
CHORANDO? É como cuspir na minha cara. É como se minha última década de
sacrifício e sofrimento na SSC não tivesse significado nada.
Se vocês se aterrorizaram com esses últimos meses de iminência de fim de mundo
na segurança de suas casas, pensem nos últimos anos que passei, me arriscando nas
linhas da frente, em que cada dia podia significar tortura e morte.
“Oh, o Mau é muito engraçado. Ele escreve de forma engraçada, é muito
convencido, certamente tem problemas psicológicos e de autoafirmação, além de não ter
mostrado grandes sinais de inteligência. Eu tenho pena dele” é o que vocês escrevem.
Mas por que razões vocês teriam pena de mim? Vocês é que estão em minhas mãos e
não o contrário.
E todos estamos nas mãos dos Deuses. Mas isso não precisa ser assim.
Para aqueles que se sentem desconfortáveis com o fato de apenas poderem assistir à
batalha dos Deuses sem fazer nada: considerem seriamente associar-se à SS.
Agora que o perigo já passou, muitos de vocês vão preferir aproveitar suas vidas
em vez de arriscar perdê-la nessa empreitada perigosa. Mas tenho esperanças de que o
susto recente tenha acordado alguns.
Agora é que vem a grande notícia: NÃO HÁ MAIS VAGAS,
PALHAÇOS!!!
Preciso repetir isso quantas vezes? Não estou mais aceitando nenhum novo
membro na SSC. Nós seguimos o Caminho da Mente. Para isso é necessário
inteligência. Um tipo muito especial. Um tipo de sabedoria que não pode ser medido
pelos seus testes pretensiosos de matemática.
Para aqueles que ainda nutrem alguma esperança miserável de um dia serem
membros da SSC, dou o seguinte conselho: enfiem no cu.
Grato
MAU
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– Sei disso, mas contato por e-mail não deve ser um problema –
respondeu Caio – de qualquer forma, parece que a líder da SSC chinesa,
Dan-Dan, está atualmente nos Estados Unidos.
– Como você sabe? – perguntei, desconfiada.
– O que você acha que as pessoas estão fazendo na internet
ultimamente, em todas as partes do mundo? Falando sobre a SS, é claro.
É apenas mais um boato que li num fórum...
Quando pesquisou mais um pouco, Caio descobriu que o contato
com a sede chinesa se daria através do preenchimento de um formulário
no próprio site.
– Eu não sei chinês – ele disse, desapontado – você tem alguma ideia
do que está escrito nesses espaços em branco?
Dei uma olhada, mas o site não permitia que copiássemos os
ideogramas para tentar uma tradução automática.
– Apenas contate a sede americana e acabe com isso – sugeri.
– Não que meu inglês seja perfeito – comentou Caio – mas o
problema principal é outro. Lembra que o Mau brigou com o líder da
sede americana?
– Porra – eu disse – eu me lembro dessa merda. E daí?
– Eles cortaram relações – explicou Caio – agora os americanos se
dividem em dois grupos: a SSC Alfa e Beta. A Alfa responde ao Mau
através da sede canadense e a Beta se tornou um grupo independente
liderado pelo antigo líder deles. Esse que teve a briga.
– Não foi culpa do Mau – Carla defendeu-o – dizem que o Eric
queria se tornar o líder mundial e os dois tiveram uma discussão feia. Até
que o Eric acusou o Mau de xenofobia e pulou fora.
– O que o Mau disse? – perguntei.
– Ele disse que os americanos sempre querem ser os líderes e mandar
em tudo.
– O Mau já disse coisas muito piores sobre outros países e ficou
impune – disse Caio – mas se o Eric já se ofendeu com isso, foi melhor
mesmo sair da SSC Internacional antes que o Mau começasse a xingá-lo
de verdade.
– Eu acho meio nada a ver essa atitude do Mau – confessei – se ele
quer xingar todo mundo só pra ser engraçado, ele devia colocar um nariz
de palhaço e ir para um circo. Em vez disso ele resolveu brincar de
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Sociedade do Sacrifício
salvador do mundo. Como um cara como ele sequer chegou a ser líder
da SSC brasileira? E ainda mais da mundial, caramba!
– Duvido que tenha sido por networking – brincou Carla – ele deve
ser bom em alguma coisa. Ele mencionou já estar na SSC por pelo
menos uma década. A idade mínima para ingressar é dezoito, então eu
imagino que ele deva ter ao menos 28 anos.
– Eu não tinha pensado nisso – eu disse – ele parece bem mais novo
pela forma infantil que age.
– Que tal pararmos de falar do Mau por um minuto? – sugeriu Caio –
me ajudem a pensar! Eu tento contatar primeiro os indonésios ou os
indianos?
– Os indianos – respondi, de imediato.
– Eu sabia que você ia dizer isso, Tônia – sorriu Caio – ainda está
fascinada com a lenda dos Três Tesouros?
– É a única coisa que consigo pensar – respondi.
Um ano atrás espalhou-se o boato de que três membros da SSC
indiana foram capazes de viajar para o mundo dos Deuses através de
uma meditação profunda. Chegando lá, eles tiveram que sair depressa
para não serem notados. Mas antes de sair, cada um deles agarrou um
objeto desse mundo e levou consigo.
Tejas achou no chão uma pena de ave. Dizem que a pena confere a
ele o poder de voar.
Sarthak agarrou uma das pedras em seu caminho. De posse dessa
pedra ele adquire uma imensa força física.
Finalmente, Raghav colheu uma folha de árvore. Com ela possui
incrível resistência, sendo capaz de permanecer muito tempo sem comer
ou beber. Também o faz suportar calor ou frio extremo sem mover um
dedo.
Eu era particularmente fã de Raghav devido às histórias dos feitos
dele com a folha de árvore. Ele era meu Sacrifício favorito.
É claro que essas histórias eram apenas lendas. Eu não acreditava que
Tejas seria realmente capaz de voar.
– Vou enviar um e-mail para a líder, Sahana – decidiu Caio.
Não foi muito difícil. A espera seria pior. No entanto, após enviar sua
mensagem, ele ficou um pouco preocupado.
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Wanju Duli
– Fiquei com vontade de entrar para a SSC só porque sei que é difícil
fazer isso – confessou Caio – e no meu e-mail para Sahana expressei
desejo de admissão. Só agora, pensando com mais calma, percebi que
não sei se quero mesmo entrar.
– Não se preocupe – disse Carla – você ainda poderá pensar.
– Não sei se quero passar pelos testes e conhecer todo mundo – disse
Caio, um pouco temeroso – eu admiro a Vic pra caramba e não sei se eu
teria coragem de abrir a boca na frente dela. A Manu certamente vai me
assustar mais que ela. Quanto ao Mau, eu vivo falando mal dele pelas
costas, mas não teria coragem de dizer nada na frente dele.
– Relaxa – disse Carla – você vai ser um novato. Talvez nunca chegue
a conhecê-los pessoalmente. Você vai morrer antes.
– Obrigado pelo apoio – zombou Caio – pode ser que essa história
de partir numa aventura e arriscar a vida seja demais para mim.
Eu também nunca tinha pensado seriamente em ser membro da SS.
Além de eu não ter idade suficiente, parecia aquelas coisas que as outras
pessoas fazem. Nunca você.
“Quem sabe, talvez, daqui seis anos...” eu fantasiava. Mas eu sabia
que no fundo, quando o tempo chegasse, eu não estaria preparada e
desistiria da ideia. Teria uma vida normal como qualquer outro. Afinal, o
que havia de errado em ter uma vida normal?
Mau era todo cheio de si por ser o líder, ou mesmo apenas por fazer
parte daquilo tudo, enquanto nós, meros mortais, não tínhamos coragem
de deixar tudo para trás e cruzar o suposto abismo que nos separava.
Algumas vezes eu pensava que só tinha vontade de entrar naquele
grupo para provar a ele que tinha coragem. Mas esse seria um motivo
muito bobo para ser membro. Ou poderia ser mais um motivo para me
fortalecer. Eu somente precisava de mais motivos importantes. Mas será
que eu queria mesmo possuí-los?
É claro que eu e meus irmãos não éramos somente fãs dos
Sacrifícios. Cada um de nós queria, secretamente, se tornar Sacrifício.
Escondíamos isso um do outro por mero capricho. Nada daquilo
precisava ser dito. Estava no brilho do nosso olhar quando
pronunciávamos essa palavra.
Dava muito trabalho se tornar Sacrifício. Só pelo nome. Só pela
glória. Não haveria algo mais?
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Sociedade do Sacrifício
Caro Caio,
Atenciosamente,
Sahana
Caio suspirou.
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Wanju Duli
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Sociedade do Sacrifício
Muita gente de outros países queria ler o que ele escrevia. Os mais
fanáticos estavam até fazendo aulas de português apenas para poder ler
alguma coisa. O resto do pessoal aguardava as traduções, que aconteciam
quase simultaneamente, tamanho o entusiasmo do pessoal.
Logo foi inaugurado o MMD Internacional, chamado “Shit Mau
Says”, ou SMS. O nome grudou como chiclete, já que era a mesma sigla
de “Short Message Service”.
A melhor parte eram as perguntas e respostas do Tumblr. Mau avisou
que não conseguia responder todas as perguntas e que sequer estava
tendo tempo de ler tudo e pediu para o pessoal se acalmar.
Ele parecia curtir a sua fama, mas também se irritava com ela. Ele
nunca se decidia.
“Ei, Mau, qual é a sua idade?” foi uma das perguntas. Ele respondeu
colocando uma equação complicada de matemática, mas a resposta não
fazia o menor sentido.
Havia perguntas ainda mais ridículas, como “Se você estivesse numa
ilha deserta e pudesse levar apenas três objetos, o que você levaria?”. Em
vez de fazerem perguntas mais úteis sobre os Deuses ou sobre a SSC,
eles apenas tiravam com a cara dele. Ou provavelmente já sabiam que ele
se negaria a responder as questões importantes, então nem se davam ao
trabalho de perguntar.
“Eu levaria, em primeiro lugar, uma faca para cometer suicídio se eu
estivesse entediado. Também levaria uma foto minha e a olharia
enquanto passo a faca no pescoço, para me certificar de que não estaria
morrendo em nome de nenhum Deus, mas somente em nome de mim
mesmo. Finalmente, eu também levaria uma Sukita. Adoro aquela
merda” foi a resposta dele.
A próxima pergunta foi: “Qual a sua Sukita favorita?” e a resposta:
“Sukita Laranja Zero”.
“Você está tentando emagrecer, Mau?”
“Sim, para ficar bem gostoso para comer sua mãe”
“Por que você não para com essa viadagem e escreve um anúncio no
site da SSC sobre as vagas?”
“Você me pegou. Eu sou um viadão. E não vou parar com isso. Vou
fazer cada vez mais forte, querido”.
– Será que esse Mau não é fake? – perguntei.
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Peço desculpas pelo período sem notícias. Muita coisa aconteceu recentemente,
incluindo desentendimentos internos que levaram à informação errônea de que nossas
inscrições estavam fechadas por um período indeterminado.
Tenho o prazer de anunciar que a partir de hoje estamos aceitando novos pedidos
de requisição para testes. Pedimos que preencham cuidadosamente o formulário de
inscrição do site e nos enviem. Os melhores candidatos terão atendimento prioritário.
Por favor, não incluam informações falsas em seus formulários, sob o risco de
serem permanentemente excluídos como candidatos.
Atenciosamente,
Vic
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Sociedade do Sacrifício
Vocês não leram os meus dois avisos anteriores? Ler e interpretar um texto deve
ser uma tarefa fenomenal para vocês.
Que parte de “As vagas estarão fechadas para sempre” vocês não entenderam? E
que parte de “Líder Absoluto da SSC do Brasil” vocês não entenderam?
Desconsiderem a mensagem da vice. Não haverá inscrições. Nunca mais! Eu
somente usarei esse site como meu playground para escrever o que minha magnificência
julgar relevante.
Cusparada
MAU
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– A Vic nunca vai deixar isso de graça – garantiu Caio – ela é muito
melhor do que Mau jamais sonhou em ser.
Meia hora depois, houve nova postagem da Vic.
Queridos candidatos,
Atenciosamente,
Vic
Cara Vic,
Por que você me desafia na frente das pessoas? Está tentando me humilhar?
Eu não gosto das suas ações. Não que eu desgoste de você pessoalmente. Não me
entenda mal.
Eu proponho que conversemos mais sobre isso. Que tal irmos ao cinema juntos
hoje à noite? Está passando Cinquenta Tons de Cinza no cinema. Eu li os três livros
e sou um grande fã. Eu particularmente acho que sou muito melhor que Christian
Grey. Você se surpreenderia.
Sinceramente,
MAU
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Sociedade do Sacrifício
– O que foi isso? – perguntou Carla – ele não pode estar falando
sério.
– Deve ser uma mensagem privada postada por acidente no site
oficial – sugeriu Caio – o cara tem que ser muito burro.
– Mau não é burro – corrigiu Carla – ele é ousado.
Preferi não opinar, pois não havia mais nada a ser dito sobre o
assunto.
A resposta de Vic surgiu poucos minutos depois.
Mau,
Você é retardado?
E o que vem a ser esse Cinquenta Tons de Cinza? É outra de suas piadas ruins?
Não estou no humor para piadas. Além do mais, hoje à noite tenho um
compromisso. Vou passear com meu cachorro. Mas mesmo que eu não tivesse um
cachorro, você não seria um bom substituto para ele.
Passar bem,
Vic
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Beijinhos carinhosos
Vic
Dessa vez foi Mau quem ficou zangado porque o pessoal a tinha
emputecido. Ele xingou todo mundo, consultando sua lista de palavrões.
Acho que ele também inventou alguns.
Depois disso, deletou a sua conta.
– Ainda são três da manhã – observou Carla – eles já finalizaram o
espetáculo de hoje assim tão cedo? Pensei que teríamos outra belíssima
madrugada.
Pelo menos eu poderia dormir um pouco antes de ir à aula.
Quando eu acordei, me senti um zumbi. Ao me encontrar com
Bianca e Jorge no colégio, notei que eles se encontravam em situação
parecida.
– O Mau é muito foda! – exclamou Jorge, com genuína admiração –
viram só como ele é fodão? Ele se declarou publicamente para a mulher
que ama. Isso que é coragem!
Jorge era o único de nós que ainda admirava profundamente o Mau.
Até Carla, que era fã dele, sabia ser razoável quando ele se portava de
forma ridícula.
– Bem, foi legal da parte dele convidá-la para ir ao cinema – observei
– Vic que foi excessivamente rude.
– Por que eles ficam expondo os problemas pessoais deles na
internet? – perguntou Bianca – isso é um festival de vergonha alheia.
Por causa daqueles constantes espetáculos de comédias e tragédias
protagonizados por Mau, com a participação especial de outros
membros da sociedade, eu já estava até me esquecendo da situação dos
Deuses.
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– Bem, todo mundo sabe o que vocês fazem – baixei os olhos – não
é nenhum segredo.
– Estou preparada – o sorriso dela era radiante – e imensamente feliz!
Finalmente minha vida vai fazer sentido. Eu sempre esperei por esse dia.
Sacrificaria tudo o que já vivi e já senti. Tudo o que eu poderia viver e
sentir. Apenas por um segundo dessa sensação.
Eu a abracei. Quase chorei, mas me controlei. Ela era tão forte. Eu
queria mostrar que também era.
– Se você acredita nisso... – eu disse – pelo menos, não vai se
arrepender. Porque depois de feito, estará feito.
– É assim que deve ser.
Ela acariciou minha cabeça, como se eu fosse um cachorrinho.
– Agora vá dormir, minha querida – ela disse, com um olhar terno –
não quero acordar ninguém. Partirei bem cedo.
– Não vai se despedir? – perguntei, surpresa.
– Gosto de pensar que hoje de tarde foi nossa despedida – ela
respondeu – quando comemos o bolo juntos.
Minha mãe tinha preparado um bolo de morango para
comemorarmos o aniversário de Irene brevemente, antes de ela sair com
as amigas para a festa. Carla e Caio também estiveram presentes. O
único que não participou da festa foi meu pai, que ficaria até mais tarde
nas minas.
Mas eu sabia que Irene não queria se despedir do nosso pai. Ele não
gostava de Sacrifícios. Ele não ficaria feliz de saber que eles estavam
tomando a filha dele para si.
Meu pai era extraordinariamente compreensivo. Imaginei que ele
entenderia.
Segurei a mão de Irene uma última vez.
– Boa sorte – desejei.
Irene tirou a fita azul de seu cabelo e enrolou no meu pulso.
– Para você também.
E ela foi deitar-se, ainda cambaleando.
Eu não sabia se eu conseguiria dormir naquela noite. Demorei muito
tempo para pegar no sono.
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Quem iria cuidar do meu pai? Ele estava doente. E quando meu pai
morresse minha mãe ficaria completamente sozinha.
Eu não queria deixá-la sozinha.
Por isso, naquele dia resolvi ter uma conversa com meus dois irmãos.
– Irene foi egoísta – disse Caio, meio irritado – partiu sem dizer nada.
– Deveríamos ter discutido essa questão com ela antes de ela partir –
eu disse – mas agora eu entendi que nós três não poderemos ser
Sacrifício. Um de nós deverá ficar aqui para cuidar do pai e da mãe.
– Eu fico – disse Caio – fui o último de nós a se interessar pelos
Sacrifícios. E sempre fui o mais cético. É verdade que ultimamente eu
estava entusiasmado. Mas ficar não parece uma ideia ruim. Talvez eu
estivesse aguardando algo que me prendesse aqui antes de ir, como uma
namorada. Mas agora percebo que nem mesmo isso é necessário. Vou
ficar.
– Posso ficar também – disse Carla – eu realmente não me importo.
– Que tal decidirem quando chegar a hora? – sugeri – se vocês dois
decidirem partir, eu fico. Se um de vocês quiser ficar, eu vou. Deixarei a
decisão do meu futuro nas mãos de vocês.
Eles ficaram em silêncio diante do que eu disse.
Para mim era confortável: não precisar tomar essa difícil decisão e
apenas aguardar o rumo dos acontecimentos. Como eu era a mais nova,
eu tinha essa chance.
Contei para meus amigos do colégio o que tinha acontecido.
– Sua irmã fez algo grandioso – reconheceu Jorge – e digno de
respeito.
– Ou algo tolo – acrescentou Bianca – mas se ela acredita em seu
caminho, ficará tudo bem.
Duas semanas depois, foi meu aniversário de 13 anos. A SSC ainda
não tinha se pronunciado.
Quanto mais o tempo passava, mais nervosa eu ficava. Quando Caio
completou 17 anos, um mês depois, senti um arrepio. Dali exatamente
um ano, ele precisaria tomar a decisão mais importante de sua vida. Mais
importante do que escolher um curso na universidade. Isso você pode
trocar. Mas uma vez membro da SSC, era um caminho sem volta. Ou
assim diziam.
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Saudações,
Yago
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Os últimos meses têm sido agitados. Estamos com uma quantidade imensa de
novatos. Duvido que metade deles vá aguentar. Alguns já voltaram.
Meus treinamentos não são famosos por serem leves. E eu confesso que tenho
andado bastante puta com alguns idiotas. Estou seriamente pensando em alterar os
critérios de ingresso novamente devido à quantidade estúpida de imbecis que enviaram
para mim.
Calculo que a partir do próximo semestre exigiremos um teste de resistência física
mais pesada, porque muitos estão desmaiando e ficando doentes. Infelizmente dois
novatos morreram no período de treino, mas perto das centenas de newbies que temos
atualmente, isso não é praticamente nada.
Aviso aos sedentários que pretendem enviar formulários para que iniciem alguma
atividade física. Matriculem-se na academia, corram no parquinho. Não dou a
mínima para o que vocês vão fazer com seus corpos contanto que aprendam a movê-los
com destreza. Sexo selvagem também é uma boa pedida. Aproveitem enquanto têm
tempo para isso, pois aqui dificilmente terão tempo ou desejo para sexo, com seus
corpos suados e fedorentos.
Outra dica: pensem bem antes de virem para cá. Aprendam a desenvolver
motivação e disciplina, pois aqui não é escolinha do Paulo Freire. Nós mandamos,
vocês obedecem. Se não tiverem disciplina quando chegarem, nós os faremos ter à força.
E se a motivação faltar, ela irá queimar dolorosamente quando vocês chegarem aqui.
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Alguns não aguentam esse fogo. Então é melhor prepararem suas mentes para recebê-
lo.
Leiam bem as propostas da SSC antes de enviarem um formulário. Não
precisamos de revoltados ou revolucionários desejando mudar o nosso sistema ou a
forma que fazemos as coisas. Quando estiverem aqui há muitos anos, podemos ouvir
suas ideias, mas nos primeiros anos treinem para ficar de boca fechada.
Espero ter sido clara, pois odeio me repetir.
Garanto que você irá odiar esse lugar com todas as suas forças. Você vai me
odiar. É sempre assim que acontece. Você vai desejar estar em qualquer outro lugar
que não seja aqui. Não vai aguentar mais fitar o meu rosto. É fácil me admirar de
longe. Não é nem um pouco fácil manter esse amor em meio às chicotadas da ordem e
disciplina.
Mas isso também faz parte do teste. Se deseja se destacar no meio da multidão
daqueles que desprezam a mim e ao treinamento, aprenda a encontrar amor no meio
de todo esse ódio.
Não se esqueça do porque veio. Se esquecer, melhor para mim, que estou com
alunos em excesso e não posso dar atenção para todos. Preparem-se, pois a tendência é
o processo de seleção tornar-se mais rigoroso e as vagas diminuírem.
Só é possível lidar com Deuses indestrutíveis com uma vontade igualmente
indestrutível.
Gloriosamente,
Manu
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Sociedade do Sacrifício
derrotar Deuses. O tipo de coisa que ninguém sabia, mas que devia ser
ensinado na SSC.
A partir daquele dia, eu e Carla começamos a dar caminhadas numa
praça próxima da nossa casa algumas vezes por semana. Aquilo não
devia ser o suficiente para melhorar muito nosso preparo físico, mas era
melhor do que nada.
Nos meses seguintes recebemos mais algumas notícias pelo mesmo
site. Yago, que era responsável pela parte da computação, era quem
geralmente nos atualizava. Eram apenas mensagens breves, de conteúdo
predominantemente técnico. Algo como: “O site estará em manutenção
nessa madrugada” ou “Por favor, preencham os campos do canto
superior direito do formulário. Estamos recebendo muitos formulários
sem essa informação, que é fundamental. Prestem atenção. Isso pode
custar a sua vaga. Não temos tempo para retornar e-mails a cada erro
que aparece”.
Eu estava cada vez mais assustada com aqueles avisos. Eu não podia
cometer erros! E parecia que quanto mais passava o tempo, mais difícil
era ingressar na SSC. Eu não estava com sorte.
Felizmente, para quebrar o clima tenso, no segundo semestre daquele
ano Mau surgiu outra vez na internet, dessa vez com uma pavorosa
conta no Twitter.
Mau foi recebido pelos seus inumeráveis fãs como um herói. Afinal,
ele tinha adquirido alguns fãs no MMD no último ano que apenas leram
o seu arquivo de mensagens, mas que não tiveram a oportunidade de vê-
lo em ação ao vivo. Aquela seria a primeira vez.
Até mesmo ele ficou surpreso com a grande animação com que foi
recebido. Ele já devia ter se acostumado com um clima de hostilidade em
relação a tudo que escrevia e ele mesmo pedia por isso. Mas daquela vez
foi um pouco diferente.
Mesmo assim, Mau não perdeu a compostura e continuou a xingar,
como sempre.
Os Tweets dele eram quase sempre ridículos. Algo como:
“Aumentei a minha lista de xingamentos para 364 itens. Sinto-me
orgulhoso”
“Não, eu não irei compartilhar a minha lista, porque preciso de
xingamentos originais para emergências”
61
Wanju Duli
“Como vocês sabem que também tenho uma lista de frases de efeito?
Eu já mencionei isso antes?”
“Eu realmente detesto aquela tortinha de maçã do McDonalds. Tem
gosto de merda”
“Provavelmente minha merda também tem gosto de merda, mas eu
nunca provei”
“Há esse site novo na internet chamado orkut. Alguém já ouviu falar
dele?
“Ah, não sabia que ele já tinha acabado. Por que ninguém me
avisou?”
“Deuses são como doenças. Você sabe que eles eventualmente vão te
matar, mas não sabe onde e quando vai acontecer”
“E, assim como as doenças, os Deuses de vez em quando te
arrancam um pedaço para te relembrar de sua mortalidade”
“Mau, deixa de ser um bebê chorão e vem até aqui me ajudar numa
coisa”
Quem enviou essa última mensagem para ele pelo Twitter foi a Vic.
“É importante?” perguntou Mau.
“Mais importante do que suas besteiras” ela respondeu.
Quando Mau retornou, parou de falar dos Deuses. Imaginei que Vic
havia ralhado com ele em relação a isso.
“Malhação era muito melhor antigamente. Sinto saudades. Eu
também gosto do Programa do Gugu”.
Em poucos dias, Mau escreveu mais de mil Tweets. Depois, ele
simplesmente se cansou e apagou a conta. Não teve paciência para
aguardar surgir uma polêmica que o irritasse o suficiente para que ele
desaparecesse de forma dramática.
– Acha que o Caio já conheceu Mau pessoalmente? – perguntou
Carla.
– Seria o máximo, não é? – eu disse – pelo menos sabemos que ele
deve estar sendo treinado por Manu e deve amaldiçoá-la todos os dias.
Ele está aguentando firme! Acho que ele vai conseguir se iniciar, Carla.
Não falta muito tempo para completar um ano.
Pouco mais de um ano após a partida de Caio, recebemos uma carta.
A família se reuniu para abri-la, com ansiedade. Era a primeira vez que
Caio nos contatava desde que havia partido.
62
Sociedade do Sacrifício
Olá! Como vocês estão? Que saudades! Não acredito que um ano já se passou.
Escrevo para contar-lhes que recebi minha iniciação e estou muito feliz. Agora sou
Sacrifício. Vocês não vão acreditar onde estou. Eu contaria, se pudesse, mas a carta
passa pela inspeção da sociedade antes de ser enviada. Todas as cartas são lidas.
Já fiz alguns amigos aqui. O treino não foi nada fácil, mas a parte pior começa
agora. Mesmo assim, estou empolgado. Provavelmente os amigos que fiz foram minha
motivação para ir até o fim. Quando um de nós desanimava, lá estava o outro para
apoiar.
Não estou autorizado a contar sobre a maior parte das coisas que gostaria de
falar: sobre os Deuses e sobre o que teremos que fazer. Sobre as magias e tantas
outras coisas. Quanto mais tempo passamos aqui, recebemos mais segredos. Ainda
não sei de muita coisa, mas desejo um dia saber. Agora eu entendi que preciso estar
aqui e dar o melhor de mim, para um dia entender algo que está acima de mim
mesmo.
Antes eu pensava que a vida era somente isso que eu enxergava e sentia. Agora
que tive que passar por provações e testar os meus limites, eu aprendi que a vida é
muito maior do que os limites da minha mente.
Como eu queria contar as coisas que vi. Eu chorei. De repente, tudo fez sentido.
Não direi que descobri o sentido da vida, mas foi algo próximo disso. É algo que
não sei explicar com palavras. Ainda estou emocionado. Quando você se inicia, um
novo universo se abre diante de seus olhos.
Ainda tenho muito que aprender e entender. Meu ser ainda é muito pequeno para
abraçar todas essas coisas tão grandes.
Carla, Tônia. Vocês precisam vir para cá. As duas. Conversem com o pai e com
a mãe. Digam que querem muito vir. Na verdade, gostaria que vocês, pai e mãe,
viessem também.
Manu é uma mestra fascinante. Eu me impressiono que exista uma pesssoa assim
tão forte, em todos os sentidos. Ouvi-la discursar e vê-la batalhar é como contemplar
uma ave de rapina abocanhando sua presa. Ela é uma inspiração para mim.
E... vocês não vão acreditar. Se lembram do Mau? Ah, é claro que se lembram!
O cara é uma lenda. Mas eu não estava preparado para o que eu vi. Sim, ele nos
saudou pessoalmente no primeiro dia.
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Sabe aquela imagem de irritado e estúpido que ele passa na internet? Esqueçam
disso. Apaguem de suas mentes. O verdadeiro Mau é uma pessoa completamente
diferente.
Às vezes é difícil acreditar que ele é a mesma pessoa que escreve aquelas coisas
engraçadas e abomináveis. Eu somente acredito nisso porque em breves momentos ele
exala ligeiramente essa segunda personalidade.
O verdadeiro Mau é sério e assustador. Ele leva extremamente a sério o que faz.
Ele discursa de modo formidável. Fiquei apavorado quando o ouvi falar pela primeira
vez. Sinceramente, por um momento pensei que ele mesmo fosse um Deus.
Eu não digo isso num sentido figurado. Todo o ser dele é coberto de magia. Eu
nunca havia me aproximado de uma carga tão forte de magia antes. O sujeito é
espetacular. Ninguém mais poderia ser o líder da SSC, a não ser ele.
Na verdade, eu e meus amigos temos uma teoria. Mau é tão sério e rigoroso
consigo mesmo e com todos nós na vida real que ele usa a internet como válvula de
escape. Lá ele pode estourar e escrever qualquer bobagem somente para relaxar um
pouco; de si mesmo e do mundo.
Até agora nós só o vimos no primeiro dia. De longe. Mas em breve serei
entrevistado pessoalmente por ele. Fico com medo só de pensar. Eu só não tremo na
presença de Manu porque já me acostumei com ela. Ela nos treinou por um ano,
todos os dias. Mas só vi Mau uma vez, então ainda o vejo como um poderoso
desconhecido.
Pode ser que Mau seja um pouco aquele ser da internet. Não o conheço o bastante
para afirmar. Mas definitivamente há algo de misterioso sobre Mau. Tomem cuidado.
E, ao mesmo tempo, não sei porque dei o alerta de cuidado. Ele parece extremamente
confiável.
Yago é super gente boa. Muito amigável. Gosto de pensar que há um Sacrios
como ele, que age como uma pessoa normal. Ele parece ser o único. A paciência dele é
admirável. Não sei como ele consegue.
Acontecem muitas coisas engraçadas por aqui. Ou talvez a gente sinta a
necessidade de se agarrar a esses poucos momentos de descontração para suportar todo
o resto. Geralmente só fofocamos sobre os Sacrios entre nós, mas Yago algumas vezes
participa das piadas. Ele sabe de muitas histórias engraçadas que aconteceram no
passado. Não posso contar aqui, mas um dia relatarei tudo com detalhes. Algumas
dessas histórias são como ouro. Lembro de um dia que rolei no chão de tanto rir e não
conseguia respirar.
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Sociedade do Sacrifício
Bem, vocês sabem que eu sempre admirei a Vic. Ela foi, e ainda é, o Sacrifício
que acho mais fantástico. Para mim, conhecê-la pessoalmente foi superior a conhecer
Mau.
Como descrevê-la? Poderosa, elegante, inteligente, simpática, com um senso de
humor apurado. Falando assim, parece que estou apaixonado por ela, mas eu não me
atreveria. Conheço meu lugar. Mau me mataria.
Nesse próximo ano irei conhecer alguns Sacrios estrangeiros. Tivemos
pouquíssimo contato com eles até agora. A partir daqui, será diferente. Estou muito
animado.
Pena que não terei tempo de relatar todos os rumores fantásticos. E alguns deles
eu nem teria permissão para contar.
Venham logo para cá, queridas irmãs! Só tenho permissão de enviar uma carta
por ano. Vocês precisam chegar logo para não perder o show!
Sim, em parte tudo o que Mau disse sobre nossas dificuldades práticas é
verdadeiro: comida, conforto e atendimento médico são limitados. Mas, cara, vale a
pena! Por uma vida assim.
Com carinho,
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Irene havia nos escrito contando sobre seu último ano. Mas aquilo não
podia ser. A SSO não permitia que seus membros escrevessem para casa.
A família se reuniu na sala para abrirmos juntos a carta, como
havíamos feito no dia anterior. Mas eu já estava tremendo. Sabia o que
me esperava.
A carta era breve. Uma pequena nota num pedaço de papel com
bordas douradas:
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Eu recebi a notícia sobre Irene poucos dias depois de enviar minha primeira carta.
Pensando com calma, foi melhor que tenha sido dessa forma. Eu não queria que
minha primeira carta fosse triste. E, agora que um ano já se passou, felizmente
poderei evitar uma atmosfera de tristeza nessa carta também.
Estou aguardando ansiosamente a chegada de Carla. Na verdade, fui comunicado
recentemente que ela já chegou, mas eu me encontro num local ligeiramente diferente e
ainda não pude vê-la.
Muitas coisas aconteceram nesse último ano. Tantas delas que nem sei por onde
começar a contar.
A cada dia que passa, meu entusiasmo aumenta. As coisas só ficam mais difíceis.
Mas isso me faz forte.
Meu melhor amigo nesse lugar é o Fernando. Igor e Thomas também são bons
amigos. Muitas vezes nos reunimos para papear até altas horas da noite, mesmo que
isso nos deixe mortos de sono no dia seguinte.
Eu sinto como se estivesse num colégio interno muito pobre e fodido. Ou, mais
especificamente, numa guerra de trincheiras. É ruim desse jeito, mas também é
extraordinário de muitas outras maneiras.
Não sei explicar. Esse lugar é mortalmente entediante. E quando não é o tédio a
tomar conta, é o desespero e a exaustão. Então vem a grande questão: por que gosto
tanto daqui? O motivo de eu continuar não é porque não posso mais voltar. É porque
todos esses momentos difíceis compensam por alguns breves instantes de êxtase.
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Tônia, eu sugiro que você já vá treinando não somente seu corpo, mas a sua
mente. É preciso saber lidar com o medo sim. Mas, acima de tudo, é necessário saber
como encarar o tédio e as atividades repetitivas. É preciso se tornar forte para suportar
isso.
Em mais de 90% do tempo estamos mergulhados no tédio. Não há nada para
fazer. Às vezes o desespero é tão grande que já me vi riscando um jogo da velha no
chão e jogando comigo mesmo.
As pessoas não gostam de tédio. Elas o acham detestável. Mas eu estou
aprendendo tanto com ele! O tédio tem sido meu mestre.
O tédio é uma estratégia da mente para nos manter ativos, ou para mudarmos
nossas atividades frequentemente para nos desafiarmos. Mas na vida real isso não é
possível em todos os momentos. Precisamos realizar muitas repetições. Especialmente
nesse lugar.
Aprenda a amar as repetições. Tire algo bom delas. Tente se surpreender. Treine
encontrar uma pequena coisa nova a cada vez que faz a mesma coisa.
Estou aprendendo muitas habilidades inesperadas, como tratar feridas
superficiais, cozinhar e lavar uma montanha de pratos com rapidez. Por aqui você se
sente abençoado quando seu serviço é lavar pratos. Significa que vai ter comida. Além
do mais, há outros trabalhos bem mais pesados que este.
Não digo tudo isso para te desestimular, Tônia. É só pra te dar uma perspectiva
mais realista. E te dizer que, mesmo nos piores momentos, eu não me arrependo de ter
vindo.
Eu finalmente pude ver o Mau de perto e conversar com ele. Eu quase borrei
minhas calças quando eu estava ao redor de uma fogueira à noite com o pessoal e ele
apareceu e se sentou no meio de nós. Todo mundo calou a boca. Ele mandou que
continuássemos a conversar normalmente. Disse que só tinha ido lá filar um rango,
mas os novos Saos, como eu, ficaram paralisados.
Ele disse que estava de bom humor naquela noite e que não nos colocaria para
fora nem se xingássemos a mãe dele. Mas ninguém acreditou nisso. Mau tem uma
péssima fama de ter excomungado membros por praticamente nada. E se ele decide te
chutar de lá, você já está fora. Não tem direito a advogado ou tribunal. Às vezes nem
a Vic tem poder para desfazer isso.
Eu não tinha notado, mas a Vic é somente a vice da divisão nacional da SSC.
A vice da SSC Internacional é a líder da SSC da Indonésia: Farah. Eu a conheci.
Ela é extraordinária! Assim como a Vic, é uma das únicas que consegue colocar
rédeas curtas no Mau. Mas ela também é muito atrevida. Ela fica dando em cima do
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Mau descaradamente! Vic não gosta disso. Farah é uma das pessoas mais engraçadas
que já conheci. Mau não sabe direito como lidar com ela. Principalmente porque ele
não sabe nada de inglês e precisa de um tradutor para saber tudo o que Farah diz.
Às vezes ela brinca com isso, diz um monte de merda e manda o tradutor traduzir de
outra maneira. Mas ela está aprendendo português.
É uma honra trabalhar para o Mau. É uma honra servir a todos esses Sacrios
poderosos.
O mais angustiante é que não posso contar as coisas que eu realmente queria te
dizer: sobre os Deuses. Sobre nossa missão.
Por favor, Tônia, venha logo. Venha ser parte dos melhores do mundo.
Carinhosamente,
Caio
Fiquei feliz com aquela carta. Sempre que eu lia o que Caio escrevia,
eu ganhava mais confinça de que faria uma escolha linda.
No entanto, três meses depois aconteceu algo completamente
inesperado.
Carla voltou para casa.
Quando eu abri a porta e ela me abraçou, eu fiquei perplexa.
– Que está fazendo aqui? – perguntei, surpresa – você não devia
estar...?
O rosto dela era um misto de tristeza e alegria.
– Estou exatamente onde eu devia estar.
Meus pais não se continham em si de alegria ao vê-la de volta. Isso
fez com que Carla ficasse ainda mais feliz.
– Agora eu sei que fiz a escolha certa em voltar – concluiu ela.
– Por favor, Carla, me conte tudo! – exclamei, ansiosa.
Quando nos sentamos juntas na cama do nosso quarto para
conversar, ela tinha uma expressão sonhadora.
– Mesmo que eu tenha voltado, fiz um voto – ela me disse – que me
proíbe de contar muitas coisas que eu vi e vivi. Eles não mostram muitas
coisas para quem ainda está em treinamento, mas é suficiente para
impressionar.
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admissão, mas eles não exigem que você acerte sequer metade das
questões. É só para eles medirem seus conhecimentos e terem uma ideia
das áreas nas quais você é forte.
– Mesmo assim, eu queria poder causar uma impressão melhor.
– Na prática, você vai usar pouco desse conhecimento teórico no dia
a dia. As provas escritas contam pouco. A entrevista conta mais.
Provavelmente era pior ainda saber que a entrevista tinha todo esse
peso. Desse jeito eu ficaria ainda mais nervosa.
No dia seguinte, fiz quatro provas: aritmética, geometria, música e
astronomia.
Eles só podiam estar de brincadeira.
Surpreendentemente, a prova de aritmética não foi difícil. A de
geometria também explorava conceitos mais gerais e teóricos, mas se eu
lembrasse de algumas fórmulas isso teria me ajudado.
Eu desisti de tentar adivinhar alguma coisa na prova de música e
chutei tudo. Fiz a mesma coisa na prova de astronomia.
Aqueles primeiros dois dias de prova deviam ter sido especialmente
preparados para desestabilizar psicologicamente os candidatos. Só podia.
– Nós estamos na Idade Média? – queixou-se Bianca – por que eles
estão cobrando o Trivium e o Quadrivium nas provas? O que isso tem a
ver com lutar contra os Deuses? Nós vamos lutar contra Deuses do
medievo?
Ela e Jorge também estavam realizando as provas comigo. Eles
estavam tão indignados quanto eu.
O terceiro dia foi dedicado às provas de línguas: inglês, mandarim,
hindi e bahasa indonesia. Eu quase ri. Me ferrei até na prova de inglês e
chutei todas as questões nas outras três provas.
– Mau não pode exigir que eu saiba inglês ou matemática, sendo que
nem ele sabe – opinei.
– É verdade – concordou Jorge – mas ele é o líder. Se ele decidir que
nós devemos ter conhecimentos de agronomia, o problema é nosso. Não
importa se ele conhece a área ou não.
No quarto dia fizemos prova de filosofia, sociologia, conhecimentos
da área médica e informática. Eu enrolei nas duas primeiras provas e
chutei tudo nas outras duas.
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“O sentido da vida é uma questão sobre a ‘vida’ e sobre o ‘sentido’. Para iniciar,
analisemos a etimologia dessas duas palavras”
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– Eu sou Yago.
Meu queixo caiu. Devo ter feito uma cara engraçada, porque ele riu
da minha reação.
Pelas barbas do profeta! O que diabos Yago estava fazendo tomando
um cafezinho naquela cidade?
“Ele está fazendo as entrevistas de admissão, sua idiota!” eu pensei.
Mas ele não devia ser responsável por algo tão trivial assim. Eu não era
ninguém e ele era um Sacrios! O primeiro que eu conhecia pessoalmente.
Será que eles estavam com falta de pessoal? Yago era importante
demais. Ele não devia estar comandando pesadas máquinas de guerra
pelo computador ou algo assim? Bem, se Mau tinha tempo para falar
merda no Twitter, Yago poderia muito bem dar uma banda pela cidade.
Eu não esperava ser entrevistada por um Sacrios! Se eu soubesse que
aquilo ia acontecer, teria me preparado muito melhor. Teria estudado
para as provas. Teria me portado como uma princesa quando entrei. Eu
pensei que estivesse falando com um aleatório. OK, eu esperava que
meu entrevistador fosse um Saos, mas achei que seria um membro
comum. As entrevistas estavam ocorrendo simultaneamente naquela
semana por todos os estados do Brasil. Por que Yago tinha ido logo para
lá?
Caio e Carla tinham sido entrevistados por membros comuns. Por
isso eu não tinha me preparado psicologicamente para aquele encontro.
“Calma, Caio disse que Yago é gente boa” eu me recordei. Imaginei
que ele não fosse querer me ferrar, mas facilitar a minha vida.
Só que as vagas estavam ficando cada vez mais limitadas e os testes
mais seletivos. Então eu não podia contar com isso.
Eu queria dizer: “É uma honra conhecê-lo, senhor! Perdão pela
minha rudeza quando entrei” ou qualquer coisa assim, mas eu fiquei tão
nervosa com a revelação que perdi a voz.
– Diga-me, Antônia – ele resolveu começar efetivamente a entrevista
– por que quer entrar para a SSC?
Eu ainda me sentia meio perdida. Precisaria dar uma boa resposta
para isso, mas nada bom vinha à minha mente. Quem sabe o melhor
fosse ser sincera.
– Gosto de pensar que estarei fazendo diferença – respondi – e
também desejo respostas para grandes enigmas da vida.
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– Cada Deus quer uma coisa diferente. Eles também fazem guerras
entre si.
– Então existem alguns Deuses bonzinhos? – perguntei, surpresa.
– Em geral, todos os Deuses são destrutivos. Uns mais que outros.
Com raras exceções.
– Hmmm...
– Nós somos como mosquitos para eles. Em geral, todos os
humanos são destrutivos em relação aos mosquitos. Com raras exceções.
– Então não estamos sendo hipócritas se realizamos os mesmos atos
que criticamos nos Deuses?
– Estamos lutando por nossa sobrevivência – respondeu Yago –
numa guerra, ética e nobreza nem sempre são relevantes. O homem, por
natureza, precisa matar para permanecer vivo. O único caminho para
quem acha errado matar para viver é cometer suicídio, como os
membros da SSO.
Eu sabia que aquele não era o momento de fazer essas perguntas. Eu
estava no meio da entrevista. Mas eu me sentia tão insegura sobre minha
possibilidade de aprovação que eu desejei sair de lá pelo menos com
algumas respostas para minhas perguntas.
Houve um instante de silêncio.
– Tem mais alguma pergunta ou algo a me dizer? – perguntou Yago.
Sim, eu tinha incontáveis perguntas. Mas havia mais candidatos
esperando na sala para suas entrevistas. Candidatos provavelmente mais
aptos que eu.
Eu fiz que não. Yago levantou-se.
– Você tem 17 anos, não é? Quando é o dia do seu aniversário?
– Daqui dois meses.
– Então, aguarde nossa correspondência nesse dia.
Ele estendeu a mão. Eu a apertei.
E isso foi tudo.
Quando eu saí da sala com ar condicionado gelado senti como se eu
estivesse entrando num forno. E enquanto eu caminhava até a parada de
ônibus, aborrecida com meu suor, eu me dei conta do quão tola eu havia
me portado na entrevista.
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Tenho péssimas notícias para vocês e maravilhosas notícias para mim. Acabo de
bloquear as vagas outra vez. As inscrições estarão suspensas por tempo
indeterminado. Vocês desperdiçaram tempo fazendo nossos testes. HÁHÁHÁ
BEM FEITO!!! Quem manda ser um cuzão?
Agora eu tenho mais o que fazer além de entrevistar gente escrota que não
reconhece meus esforços. Estou agora mesmo indo para o show do Restart. Espero
conseguir um autógrafo do Pe Lanza.
Chupem, palhaços!
Mau
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Mau,
Deixa disso, moleque. Que filha da putice é essa? Você me manda fazer umas
cinquenta entrevistas e depois vem dar uma de bonzão? É foda, hein!
Vou interpretar a sua infantilidade como mais uma de suas tentativas de chamar
a atenção. Quando você voltar ao normal (se esse for mesmo seu estado normal) sei
que você reabrirá as vagas, pois sabe que se não fizer isso a Vic vai liberá-las de
qualquer forma.
Yago
Adiós
Mau
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PS: Dedico esse dedo (foto acima) a todos os haters. Chupem haters!!!
Mau,
Para de postar fotos suas no site oficial. Ninguém se importa. Vá criar uma
conta no MySpace ou em qualquer outro site no qual você queira brincar. Aqui não é
lugar para isso.
Quanto à questão do cancelamento das vagas, vou encarar apenas como mais uma
de suas piadas de mau gosto. As inscrições prosseguirão normalmente.
Desconsiderem quaisquer mensagens que o Mau escrever a partir daqui. Elas não
possuirão validade nenhuma.
Cordialmente
Vic
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Vic,
Postei as fotos de propósito somente para atrair sua atenção. Eu sabia que você
não resistiria em dar os seus comentários sobre elas.
Por que está me ignorando ultimamente? Você não responde meus e-mails!
É fácil prosseguir com o processo de admissão, sendo que você não está ajudando
em nada. Não foi você que teve que entrevistar um bando de adolescentes imbecis.
Eles tiram minha paciência.
Você basicamente só me critica e não contribui em absolutamente nada. Belíssimo
exemplo, vice-líder!
Mau
Mau, Mau....
Eu realmente não sabia que você se sentia dessa forma. Eu sempre me esqueço do
quanto você é sensível.
Me desculpa? Desculpinha? :3
Miau, miau!
Vic
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E a resposta de Mau:
Piscadela
Mau
E a resposta dela:
Que diabos? São sete da manhã e você vai dormir? Seu ritmo circadiano será
prejudicado.
Bem, o que se pode fazer? Foda-se.
E eu também não me importo se as vagas forem canceladas. Não é problema meu.
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Caros candidatos
Manu
O erro foi deles e nós que teríamos que pagar por isso. Típico.
Mas eu estava tão ansiosa que peguei todas as economias do meu
cofrinho e fiz o tal depósito. Queria receber logo meu envelope e acabar
com o suspense.
Na madrugada antes do dia do meu aniversário, enquanto eu
esperava a chegada da manhã para checar o correio, abri a carta da Irene.
Aquela que eu só poderia abrir quando tivesse 18 anos.
Oi Tônia!
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Parabéns pelos seus 18 anos! Agora você tem exatamente a idade que eu tinha
quando parti.
Eu me pergunto se você já recebeu sua carta de admissão ou está esperando por
ela.
Nesse momento eu provavelmente já realizei o Sacrifício Sagrado. Foi uma
decisão que tomei há muito tempo e não havia meios de evitar.
É maravilhoso descobrir aquilo a que queremos dedicar a vida. Ou a morte. No
fundo, é um pouco de cada.
Não tenha medo, Tônia! Eu sei que a vida pode parecer muito assustadora. Mas
ela é maravilhosa.
Você deve estar pensando: se eu acho a vida maravilhosa, por que eu decidi ir
embora? Tenho certeza de que você possui suas próprias respostas para isso agora,
pois sua situação é parecida.
Quanto a mim, eu queria uma vida que valeria a pena ser vivida, mesmo que
fosse muito breve. Eu notei que a maior parte da vida é uma série de repetições: comer,
dormir, amar, odiar... só mudava a forma. O conteúdo era o mesmo.
Então eu percebi que já tinha entendido o que era a vida e não precisava mais das
repetições para me ajudar a enxergar isso. E eu fiz o que precisava ser feito.
Você sabe que nunca gostei muito da SSC. Sempre preferi a SSO. Mas eu não
desaprovo o desejo de vocês pelo Sacrifício da Mente. Na verdade, se a SSO não
existisse, eu provavelmente acabaria entrando na SSC.
“Mas como? São sociedades opostas! Uma idolatra os Deuses e a outra os
repudia”, você deve estar pensando. Bem, não é assim que vejo as coisas. Para mim,
só muda a forma e o conteúdo é o mesmo. As duas sociedades possuem objetivos
semelhantes, que é o contato dos Deuses e humanos, que gera o sentido. Uma
reconexão de algo que foi perdido há muito tempo.
Nesse momento, estou feliz por mim e por todos vocês. Vamos todos construir
nossos futuros extraordinários! E, somente assim, cumprir nossos destinos.
Eternas saudades,
Irene
PS: Lembra da pulseira azul que eu te dei? Ela é encantada. Usei magia na
minha fita de cabelo para fazê-la. E para desvendar o feitiço você precisará aprender
magia divina. Eu sei que você sempre foi muito curiosa, Tônia. Então, se não tiver
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mais nenhuma motivação para entrar na SS, eu te dou essa: desvendar o segredo da
fita.
Olhei para minha pulseira. Eu jamais iria suspeitar que havia magia
nela. Mas, pensando bem, fazer aquilo era a cara da Irene.
É claro que eu não conseguiria dormir. Eu olhava para o relógio e
para as frestas da janela, observando o céu clarear.
Era lindo. Meu coração estava batendo forte.
Quando a correspondência chegou, eu corri para a entrada. Estava
preparada para presenciar o mesmo espetáculo, mas agora eu seria a
protagonista: eu gritaria, correria pela casa, contaria a notícia para Carla.
Talvez eu até chorasse de emoção.
Abri o envelope, com ansiedade, rompendo o selo vermelho da SSC:
Cara Antônia,
É com pesar que informamos que a senhorita não foi considerada apta para
ingressar na Sociedade do Sacrifício do Caos, a SSC.
Existe a possibilidade de fazer o teste uma segunda vez daqui exatamente um
ano. São permitidas somente duas tentativas de ingresso. Caso falhe nessa segunda
tentativa, você será permanentemente bloqueada da sociedade.
Desejamos-lhe boa sorte em sua segunda tentativa, caso ela venha a ocorrer.
Atenciosamente,
Yago
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Caro Yago,
Acabo de receber a carta com meu resultado. Gostaria de saber por que motivo fui
reprovada, para que eu possa melhorar meu desempenho nessa área no próximo ano.
Como minha entrevista foi realizada por você, concluo que saiba me informar o
motivo.
Respeitosamente,
Antônia
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Cara Antônia,
Atenciosamente,
Yago
Por que Yago era tão simpático comigo? Minha entrevista foi uma
porcaria e meus resultados foram totalmente medianos. Ele testemunhou
isso em primeira mão. Mesmo assim, ele teria me aprovado se pudesse.
Eu não o culpava por ter dado preferência aos candidatos com
melhor desempenho. Era o natural a se fazer.
O problema era a limitação no número de vagas. Eu desconfiava que
Mau estava diretamente por trás desse problema.
Mas contatá-lo era quase impossível. Ele tinha apagado seu endereço
de e-mail antigo, para não ser incomodado. E eu também não tinha o
contato da Vic.
Naquele mesmo dia Mau inventou de criar uma conta no
Formspring. E eu imediatamente pensei: “Que sorte! Vou perguntá-lo
sobre a questão do número de vagas e discutir minha situação”. Mas eu
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Prezada Antônia,
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Atenciosamente,
Sahana
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Enviei a ela uma cópia dos meus resultados por e-mail, para que ela
os analisasse. Ela entendia um pouco de português e me confirmou que
meus resultados eram aceitáveis e com eles eu poderia conseguir uma
vaga em outro país.
Só que eu não tinha muito tempo sobrando para escolher onde eu
queria ir. Naquele ponto, eu estava disposta a aceitar qualquer lugar. Não
ia demorar muito para que os treinamentos do novo ano começassem.
Eu precisava me apressar.
A Indonésia era o segundo país mais procurado para treino, após o
Brasil, talvez porque a vice-líder da SSC Internacional era de lá. Então eu
resolvi nem tentar esse lugar, já que as vagas também deviam ser
limitadas. Com meu baixo desempenho, eu não tinha muita chance de
conseguir os lugares famosos.
Sahana pesquisou para mim e me informou que alguns países
europeus e asiáticos ainda não tinham completado o número máximo de
vagas. No entanto, para receber admissão eu devia ter algum
conhecimento da língua desse país. Isso limitaria muito minhas opções.
Ela disse que por eu ser uma candidata brasileira isso já contava
muito, devido à fama do Brasil na SSC.
Esse pensamento me animou. Será que eu seria disputada? Sim, eu
seria, se ao menos meu desempenho tivesse sido um pouquinho
melhor...
Até que algo totalmente inesperado aconteceu. Sahana me enviou o
seguinte e-mail:
Analisei o resultado das suas provas de idiomas e notei que você tirou 40% em
inglês e 30% em hindi. Eu diria que com esse resultado a SSC indiana possa te
aceitar.
Meu coração deu um salto. 40% em inglês ainda era uma merda, mas
Sahana estava disposta a ignorar isso por causa dos meus 30% em hindi.
De onde aquela porcentagem tão alta tinha vindo? Eu tinha chutado
todas as questões! Só que nessa prova eu não chutei na mesma letra, sei
lá porquê. E tive uma sorte inacreditável.
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Acredito que meu hindi não seja tão bom assim para eu ser submetida a uma
entrevista. Se ela ocorresse em inglês, eu teria mais chances. E também não tenho
dinheiro para a passagem.
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Gastei uma graninha para conseguir preparar tudo. Meus pais tiveram
que me ajudar. Fiz até uma vacina contra febre amarela.
Tive que arrumar as malas às pressas. Eu iria viajar na madrugada de
terça para quarta, às cinco da manhã. Esse foi o horário que Sahana me
conseguiu e eu certamente não iria reclamar.
Era minha primeira viagem internacional e a primeira vez que eu
viajaria de avião sozinha. Aquilo não me soava bem. Eu tinha medo de
me perder.
Sahana me garantiu que o vice me pegaria no aeroporto. Eu pensei
em dizer que não queria incomodar, mas não consegui.
Contando com a conexão na África do Sul, aquele voo duraria mais
de 30 horas. Seria cansativo, mas valeria a pena.
Meus dois colegas já tinham partido para a área de treino brasileira,
que eu não sabia onde ficava. Carla e meus pais me acompanharam até o
aeroporto e trocamos uma calorosa despedida.
Quando o avião decolou, eu finalmente parei para refletir: “O que eu
estou fazendo aqui?”
Fechei os olhos. Lembrei da Antônia de 12 anos, que admirava os
Sacrifícios e pensava em se tornar um deles um dia. Mas era só uma
fantasia. Achei que com o tempo eu ia esquecer.
Meu coração batia forte, repleto de emoção. Eu estava realizando
meu sonho de infância. Aquilo era especial. E mesmo que eu retornasse,
tudo teria valido a pena. Eu teria uma dívida salgada para pagar e teria
que conseguir um emprego qualquer como garçonete assim que voltasse
para o Brasil.
Mas estava tudo bem. Eu não precisava pensar nisso ainda.
Só uma parte daquilo tudo ainda me deixava meio puta: Mau. Eu
poderia ter tido o conforto e a alegria de treinar na SSC do meu próprio
país, considerada a melhor do mundo. Com pessoas falando minha
língua. Junto com meu irmão e meus amigos.
Mas Mau tinha tirado aquilo de mim. Então meu sonho não
aconteceria exatamente do jeito que eu queria; como eu tinha imaginado.
Para completar, eu ainda estava devendo dinheiro para Sahana. Minha
família passava por sérias dificuldades financeiras. Aquela brincadeira
estava saindo muito cara.
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Sociedade do Sacrifício
Talvez a culpa tenha sido minha, que não fui capaz de esperar mais
dois anos para fazer o teste de novo.
Mas agora era tarde para lamentar. No impulso, acabei aceitando a
proposta de Sahana. Eu não tive muito tempo para pensar. Se eu tivesse
pensado, teria escolhido ir para a SCC de um país mais próximo, para
que a passagem não saísse tão cara. Mas é claro que eu contatei a SSC
indiana, já que eu admirava os famosos Sacrifícios de lá.
Eu não conseguia ficar tranquila. Tentei me distrair e ler um livro.
Não fui capaz de passar da terceira página.
Eu estava tão estressada! Em vez de curtir a viagem, eu só conseguia
pensar nos problemas.
“Calma, Tônia. Não estrague tudo. Eu prometo que essa viagem será
inesquecível”.
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Capítulo 2
Quando cheguei no aeroporto da África do Sul fiquei aliviada. Eu
finalmente poderia esticar as pernas. Eu teria que enrolar algumas horas
até meu próximo voo. Então comecei a observar os estabelecimentos
para procurar um lugar para comer.
Optei por um café que também era uma lanhouse, porque eu estava
ansiosa para usar a internet e dar notícias para minha família. Eu não
tinha levado celular. Meu velho aparelho tinha quebrado há muito
tempo.
Enviei um e-mail rápido, avisando onde eu estava. Naquele momento
notei que eu havia recebido um e-mail de Yago.
Cara Antônia,
Gostaria de agradecer por você ter aceitado a proposta de Sahana de começar seu
treino na Índia. Explicarei melhor como essa oportunidade surgiu.
Nesse ano, Mau finalmente cedeu e resolveu aceitar estrangeiros pela primeira vez.
No entanto, diferente dos candidatos brasileiros, que já se acostumaram às flutuações
de humor de Mau e às brincadeiras que ele faz de cancelar vagas subitamente para em
seguida reabri-las, os candidatos dos outros países não receberam bem a notícia do
cancelamento.
Isso gerou uma repercussão internacional extremamente negativa. Eu já enviei
publicamente um pedido de desculpas a todos que se sentiram lesados. E para
prosseguir na política de boa vizinhança, resolvemos enviar mais brasileiros para
treinar lá fora. As pessoas daqui são muito cobiçadas no exterior, devido à nossa
reputação de melhores do mundo.
Há países que já receberam alguns de nossos Saos. Mas você será a primeira
brasileira a ser treinada na SSC da Índia. Esse acontecimento será muito positivo
para fortalecer a relação entre a SSC desses dois países. Você certamente sabe que os
Sacrifícios indianos também são famosos e poderosos. Então te garanto que você estará
em boas mãos.
Sahana se mostrou tão interessada em receber uma brasileira que se propôs até
mesmo a pagar sua passagem. Você entende o peso que temos? Provavelmente muitos
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Saudações cordiais,
Yago
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Ele se ofereceu para me ajudar a levar as malas. Ele era tão educado!
Eu estava cada vez mais fascinada.
Ele sugeriu que tomássemos um café num lugar mais sossegado do
aeroporto. Nos sentamos juntos na mesa, fizemos nossos pedidos e
Raghav iniciou o assunto.
– Você sabe por que está aqui?
– Sahana e Yago me esclareceram a situação – respondi – sou como
uma estudante num intercâmbio, certo?
– Perfeito. E eu supostamente deveria fazer sua entrevista. Seu inglês
é bom. Você sabe hindi? Pelo menos o básico?
E agora? Se eu dissesse que não, iam me mandar de volta para o
Brasil? Mas se eu mentisse, seria facilmente desmascarada.
Resolvi ser sincera, para me poupar de um posterior embaraço.
– Não sei nada de hindi – confessei.
– Tudo bem – ele respondeu – saber apenas inglês será suficiente.
Mas aos olhos da nossa sociedade, você possui um score de 30% na
prova.
– Isso significa que eu deveria começar a estudar um pouco de hindi
para disfarçar? – perguntei.
– Não seria uma má ideia – ele concordou – mas não precisa
prejudicar seu treinamento por causa dessa questão. Se você não se opor,
podemos ir numa livraria e comprar para você um livro com lições
básicas de hindi. O que acha?
– Parece ótimo. Então se eu ler esse livro será o bastante para eu
justificar meus acertos na prova, dizendo que conheço as letras do
alfabeto e algumas frases simples.
– Você entende rápido – Raghav parecia satisfeito – de qualquer
forma, quanto mais tempo você permanecer conosco, mais hindi
aprenderá. Não creio que essa pequena situação será um problema. Será
facilmente resolvido. Podemos passar para o próximo assunto?
– É claro – eu disse, curiosa e empolgada.
Eu estava tomando café e conversando com o Sacrifício que eu mais
admirava, lá do outro lado do mundo. Aquilo não era extraordinário?
Poucas semanas atrás, eu jamais sonharia que algo assim aconteceria na
minha vida.
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mas acho que ele sabia qual deles ele queria me dar desde o começo. Ele
se ofereceu para pagar.
Eu me sentia mal por ser assim tão mimada pelo vice. Se os outros
membros da SSC vissem isso, poderiam achar que ele estava me
favorecendo e isso poderia gerar hostilidade.
“Ela nem é tão boa assim, então por que todo esse favoritismo?” eu
os imaginei dizendo.
Raghav tinha vindo de carro e me deu uma carona. Eu não sabia para
onde estávamos indo, mas provavelmente era para o “estabelecimento
local da SSC”, como ele havia dito.
Eu estava meio surpresa com as mordomias. Raghav tinha
mencionado que na sociedade eles não recebiam salário. Então de onde
ele tinha tirado o dinheiro para o livro e para o café? E aquele carro era
realmente dele?
Raghav percebeu a confusão no meu olhar. Nem precisei dizer nada.
– O carro não é meu – ele disse – é propriedade da SSC, de uso
público entre os membros, geralmente para emergências ou situações
especiais. Como vê, é um modelo usado e antigo.
Imaginei que a sociedade também havia cedido a ele dinheiro
contado para ele me receber de forma cortês, mas sem extravagâncias.
Pensando bem, as roupas usadas por Raghav, embora bem limpas e
relativamente novas, pareciam ser de tecido bem simples. Ele não parecia
usar nada de marca, apesar de ele ser tão famoso.
“Então é isso que significa ser Sacrifício: viver de forma simples, mas
profunda” concluí. Então de onde Mau tirava todo aquele dinheiro para
esbanjar? Não que ele realmente tivesse gastado horrores, mas ele não
tinha ido ao show do Restart? Duvidei que a SSC brasileira fosse a favor
de ceder dinheiro a ele para isso. Ele podia ser o líder, mas
provavelmente não era quem controlava a parte financeira.
Eu estava me mordendo de curiosidade. Tinhas tantas coisas para
perguntar! Algumas muito mais importantes que essa dúvida, é claro.
Mas resolvi ir fazendo minhas perguntas para o vice conforme as
questões surgiam na minha cabeça.
– Mau postou na internet que foi num show de uma banda
recentemente – expliquei – de onde acha que ele pode ter tirado dinheiro
para isso? Será que ele tem família ou amigos generosos?
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Será que eu tinha coragem de perguntar isso a ele? Achei melhor não.
Ele provavelmente me daria a mesma resposta que usou na minha
pergunta sobre os Deuses.
Em vez disso, resolvi fazer outra pergunta.
– Nós aprendemos magia assim que chegamos?
– No primeiro ano o foco é no treinamento físico – explicou Raghav
– você conhece a Yoga?
– Já ouvi falar. É como academia?
– É uma escola do hinduísmo – ele explicou – as asanas, que são as
posturas corporais, servem apenas para treinar o corpo para algo maior.
Ou seja, o objetivo final da Yoga não é se tornar um elástico humano. É
adquirir um corpo forte e resistente, capaz de sustentar estados mentais
profundos.
– Você se refere a meditações?
– Quase. As meditações, ou dhyana, também são estados
intermediários. Através delas podemos obter samadhi. E para batalhar
contra os Deuses, nós encontramos as siddhis no samadhi.
Eu não sabia o que significava aquele monte de termos. Raghav me
explicou que samadhi era um estado de bem-aventurança. Eu fiquei na
mesma, porque não sabia o que esse termo queria dizer. Ele mencionou
que havia um longo caminho até dominar completamente o samadhi,
mas que o domínio completo não era necessário para batalharmos contra
os Deuses.
No meio dos caminhos mentais poderíamos encontrar as siddhis, que
eram os poderes psíquicos. Eles eram extremamente efetivos em batalha.
– Aqueles que obtiveram algumas siddhis passam a ser conhecidos
como siddhas. Esses indivíduos são altamente respeitados na SSC.
– Então eles são Sacrios – concluí.
– Alguns Saos aprendem a dominar siddhis antes de se tornarem
Sacrios. Mas samadhi é somente um dos meios de se obter siddhis. Ele é
apenas a via mais usada na SSC da Índia. É a minha favorita. Você será
treinada nela, pois é assim que fazemos as coisas por aqui.
Parecia divertido.
– Quais são outras formas de se obter esses poderes paranormais? –
perguntei.
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desejasse e ainda assim não perdia o posto de líder. Todos queriam ser
treinados pessoalmente por ele. É claro!
E ele nem precisou se esforçar para ser tão forte. Nasceu com os
poderes. Assim era fácil!
– Quando um siddha de nascença é descoberto, ele não precisa passar
pelos oito anos de treinamento dos Saos. Ele é imediatamente
promovido a Sacrios e já começa a participar das guerras desde seu
primeiro ano na sociedade.
De repente, senti vontade de matar Mau. Ele tinha sorte demais! Por
isso era tão convencido. Por isso havia muitos que o odiavam e o
invejavam, mas também muitos que o admiravam profundamente.
– Mau entrou para a SSC com dezoito anos? – perguntei.
– Não posso revelar isso – respondeu Raghav.
“Foi antes. Ele entrou com cinco!” pensei, loucamente. Mas meu
pensamento louco não era assim tão impossível. Por isso Mau havia se
tornado um adulto petulante daquele jeito. Havia sido paparicado pelos
Sacrios desde criança.
Será que ele ainda era um adolescente? Pela forma que agia, devia ser.
Mas não deixariam alguém com pouca idade ser líder.
De repente, eu não sabia de mais nada. As mais absurdas teorias
começaram a surgir na minha cabeça.
Mau era meio burro ou avoado, como se vivesse fora do mundo.
Imaginei que ele não tivesse frequentado o colégio, pois foi direto para a
SSC. Por isso ele era terrível em matemática daquele jeito. Por isso não
sabia nada de nada do que as pessoas em geral deveriam saber.
Por todas essas razões, ao mesmo tempo que o respeitavam, as
pessoas tiravam com a cara dele. Ele era tratado na internet como se
fosse um animal exótico de circo. Era testado constantemente e riam do
que ele escrevia.
Pensando bem, aquilo devia ser terrível.
Todo o ser dele é coberto de magia. Eu nunca havia me aproximado de uma carga
tão forte de magia antes. O sujeito é espetacular. Ninguém mais poderia ser o líder da
SSC, a não ser ele.
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– Antônia?
– Oi? – perguntei, distraída.
– Nós chegamos.
Eu desci do carro. Ainda estávamos na cidade. Raghav explicou que
aquele era um pequeno e singelo estabelecimento da SSC usado pelos
Sacrios quando possuíam negócios a tratar em Mumbai. Eu poderia
dormir ali, para descansar devido à fadiga da minha viagem. No dia
seguinte, ele me levaria para um dos acampamentos. Ele me disse que
seria uma viagem longa e cansativa, então eu precisava dormir.
Dividi um quarto com uma Sacrios chamada Meera, que ficou muito
contente em me ver.
– Antônia, certo? – ela me cumprimentou – você já está famosa por
aqui.
“Ah, não” pensei, desolada. Eu não queria ficar famosa. Queria ter
uma existência discreta. Não era justo que me bajulassem só por uma
condição de nascimento: por eu ter nascido brasileira.
Pensando bem, Mau também era bajulado por uma condição de
nascimento! E a minha nacionalidade só era relevante por causa da
nacionalidade dele. Não dava para acreditar.
Mas eu não queria conversar com Meera para perguntar sobre Mau.
Eu iria aproveitar a oportuniade para perguntar sobre Raghav. Afinal, eu
estava ansiosa para saber mais sobre ele. Certas coisas eu não tinha
coragem de perguntar diretamente a ele.
Conversamos um monte naquela noite, como se fôssemos duas
melhores amigas fofocando coisas do colégio. Foi divertido. Deitamos
nas camas e começamos a papear infinitamente. Ela queria saber tudo
sobre os Sacrifícios do Brasil. E eu queria saber tudo sobre os Sacrifícios
da Índia.
– A lenda dos Três Tesouros – mencionei – ela é real?
– Sim! – confirmou Meera, fascinada com minha pergunta – eu estou
feliz que você a conheça.
Meera era muito atraente com sua longa trança negra. Ela também
usava um sari amarelo que parecia muito confortável.
– Então Tejas pode voar e Sarthak é forte como um elefante? –
perguntei, prestes a cair para trás.
– São siddhis.
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vendado em uma parte do caminho. Ela disse que nem tinha certeza em
qual estado ela estava. Aquilo era insano! Ela achava que era
possivelmente o norte do país, mas nem disso ela estava certa.
De qualquer forma, havia vários acampamentos nos diferentes países.
Eles trocavam de lugar com frequência e às vezes se separavam em
grupos. Isso dificultava ainda mais rastreá-los.
Eu contava a passagem do tempo através do número de vezes que eu
comia e dormia. Acho que fiz isso mais duas vezes a partir daquele
ponto. Raghav não ia dormir mais? Ele conseguia aguentar longos
períodos sem dormir. Imaginei que aquilo também fosse uma siddhi.
Ele também devia estar com pressa para chegarmos logo ao nosso
destino agora, pois no início da viagem fizemos muitas paradas inúteis.
Finalmente, ele estacionou o carro. Eu não sabia o que estava
acontecendo, pois ainda estava vendada. Seria uma parada para ir ao
banheiro? Para descanso? Suprimentos?
Eu não acreditei que havíamos chegado de verdade. Quando ele
falou, pensei que fosse piada. Eu já estava começando a me acostumar
com a ideia de que tinham me colocado numa viagem eterna. Eu já tinha
bolado várias teorias na minha cabeça. Aquilo poderia ser um teste. Eles
queriam ver quanto tempo de viagem eu aguentaria. Quem sabe me
mantivessem viajando num carro ao longo de todos os seis meses. Eu
me perguntava quem pagaria por toda aquela gasolina.
Mas não era nada disso. Raghav retirou a minha venda. Era um
acampamento de verdade, com tendas e tudo o mais! Completamente
improvisado, mas perdidamente simpático.
– Cuidado onde pisa – ele me avisou – está um pouco escorregadio.
Desci do carro cuidadosamente. Cobri a cabeça com uma touca e a
boca com a gola alta.
Eu tinha quase certeza de que teríamos uma calorosa recebida, com
muita gente nos cumprimentando. Mas não consegui ver ninguém lá.
Até que chegou um rapaz que devia ser poucos anos mais velho que
eu e dirigiu-se ao Raghav, me ignorando:
– A torneira congelou de novo, estamos sem água. Ananya acha que
há outras partes da tubulação congeladas.
A moça que devia se chamar Ananya estava vindo logo atrás, com um
secador de cabelo na mão.
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empreitada porque eles estavam tentando, tipo, salvar o mundo. Não que
o mundo estivesse sob alguma grave ameaça no momento. Mas aquilo
poderia mudar num futuro próximo. Era melhor estar sempre alerta.
– Farah, a líder da SSC da Indonésia, também está fora no momento
– informou Sella – ela está em São Paulo. Com Mau, aparentemente, já
que ela é a vice da SSC Internacional. É impossível arrancar o Mau do
Brasil, então as pessoas precisam ir até lá se quiserem vê-lo.
– Eu ouvi dizer que ele detesta viajar de avião – informei.
– Então é esse o motivo – Sella sorriu – muita gente fica dizendo que
ele é xenófobo, principalmente quando ele bloqueou o acesso dos
estrangeiros à SSC do Brasil. Achei que ele não queria sair do país pela
mesma razão. Sempre que há alguma questão para resolver lá fora é a Vic
que precisa viajar no lugar dele.
Imaginei que Vic deveria ficar puta com isso.
– Acho que ele bloqueava os estrangeiros porque as vagas da nossa
SSC são bem limitadas, por causa da enorme procura – expliquei – nem
mesmo eu consegui uma vaga.
– Ah, então é por isso que você veio para cá! – disse Mei-Xiu,
triunfante.
– É... mais ou menos – admiti.
– Por que escolheu a Índia e não a Indonésia? – perguntou Sella –
sem querer me gabar, a Indonésia é o segundo destino mais buscado
pelos Sacrifícios depois do Brasil. Há inclusive três brasileiros nesse
momento treinando conosco.
“Sei lá!” pensei, incomodada. Eu não queria mais responder àquele
questionário. Eu não achava que era tão estranho o fato de eu estar lá.
Eu estava porque a líder da SSC da Índia tinha pagado minha passagem?
Eu não podia contar isso.
– Talvez um dia eu treine um semestre na Indonésia – resolvi
responder assim e depois desconversei.
“Até parece” pensei. Eu já estava nervosa pensando em como eu iria
pagar aquela passagem para Sahana. Eu não queria mais pensar em
viagens para o exterior pelos próximos dez ou vinte anos.
– Então, me contem como são os treinamentos por aqui – eu disse –
vocês só meditam?
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Yago! Foi então que me lembrei que não respondi o e-mail dele. Eu o
li quando estava na lanhouse na África do Sul. Eu fui lá para enviar um
e-mail para minha família. Eu não tinha avisado a eles que tinha chegado
na Índia! Eles deviam estar mortos de preocupação. Já fazia muitos dias
que eu não os contatava.
Mas eu não podia enviar e-mail com aquele celular, ou eventualmente
alguém poderia rastrear a origem e descobrir que eu estava usando a
internet escondida.
O mais correto era falar com algum Sacrios do acampamento e pedir
para que ele contatasse minha família, dando notícias. Eu faria aquilo
mais tarde.
O aviso de Yago era o seguinte:
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Atenciosamente,
Yago
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Às pessoas irritantes que não param de lotar a caixa de entrada do meu e-mail
com merda
A SSC do Brasil pede desculpas por Mau ter cancelado as vagas, embora isso
não tenha feito diferença nenhuma para nós. Na verdade, até nos ajudou a nos
livrarmos de candidatos fracos que desistem no primeiro problema que aparece.
Pensando bem, não pedimos desculpas nenhuma e sim agradecemos ao Mau pela
ajuda que nos deu. Obrigado, Mau. Você é um grande líder.
Felizmente só conseguimos receber 20 estudantes nesse semestre, porque com
certeza não caberiam 50 pessoas nesse cu. Algum Sacrios idiota que só vive coçando o
saco em São Paulo e nunca visita nossos acampamentos inventou que caberiam 30
estudantes a mais. Eu me pergunto porque Mau ainda não enfiou a cabeça desse
cretino num vaso sanitário.
Para o próximo semestre avisamos que somente receberemos mais 10 idiotas.
Preferíamos cancelar o processo de admissão por um ano até que alguns Sacrios
morram e liberem mais vagas, mas precisamos fingir que estamos interessados em
receber mais gente, então estabelecemos que somente chamaremos 10, embora Mau
tenha sugerido 5 pessoas. Mas como todos sabem que Mau irá cancelar essas 10
vagas na última hora, na prática não faz diferença nenhuma serem 5 ou 10.
Pedimos a compreensão de todos, pois no momento não há nem espaço para se
cagar com privacidade naquele acampamento com cheiro de bosta e mijo. Os 30
candidatos que não foram chamados nesse semestre serão completamente ignorados.
Eu sequer lembro quem são. E os outros candidatos que não estejam entre os 30 não
terão nem mesmo seus desempenhos avaliados, porque não temos o menor interesse de
perder tempo com isso. Temos coisa melhor para fazer.
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Devido ao grande número de infelizes que estão ansiosos para desfrutar de nosso
dia a dia fantástico cagando atrás de pedras e comendo lagartos no espeto no meio do
nada, agora vocês deverão usar dois miolos em vez de um para resolver nossas provas.
Os candidatos só poderão realizar os testes no Brasil porque esse critério
diminuirá consideravelmente o número de aplicantes e nos dará menos trabalho. Dessa
forma, só farão o teste aqueles que estão realmente determinados a se tornar membros.
Mau ainda acha que é muita mamata oferecer o teste em todos os estados e está
pensando em aplicá-lo somente em Pernambuco para que ele possa desfrutar da praia
de Porto de Galinhas enquanto realiza as entrevistas.
As provas escritas e a entrevista serão em português porque Mau não sabe porra
nenhuma de inglês e se irrita enormemente toda vez que quer analisar o desempenho
de algum candidato e precisa chamar um tradutor. Aproveitamos a oportunidade para
informar que estamos em busca de novos tradutores, porque Mau se irritou com os que
tínhamos e despediu todos.
Exigimos comprovação de nível avançado em português porque Mau não tem a
menor paciência em tentar se comunicar com os desconhecedores de nosso idioma nos
acampamentos. Ele está farto de palhaços fazendo piadinhas com as traduções e por
isso a partir de agora só será permitida comunicação em língua portuguesa nos
acampamentos e se alguém for flagrado falando qualquer outro idioma será chicoteado
na primeira ocorrência e expulso na segunda.
Ressalto também que daremos preferência a aceitar médicos com especializações
em: cirurgia (porque sempre há algum animal que se machuca durante os treinos e fica
à beira da morte. Também precisamos de cirurgiões para costurar os Sacrios que
perdem pedaços do corpo nas lutas contra os Deuses), anestesiologia (porque gostamos
de sentir menos dor enquanto costuram nossa pele. O nosso estoicismo nos permite esse
pequeno capricho), infectologia (porque muitos de nós já morreram de sepse ou tiveram
membros amputados só porque não sabiam tratar uma porcariazinha) e emergência
(porque precisamos de médicos que estejam acostumados a pensar rápido e agir rápido
em qualquer situação para os primeiros socorros).
Também estamos aceitando pelo menos um engenheiro de computação porque eu
(Yago) sou um incompetente que se acha um gênio em software, mas quando o negócio
é hardware me sinto uma mula. Manu quebrou meu computador acidentalmente e o
governo não quer me dar outro tão bom quanto o meu. Estou chorando agora porque
meu computador era como minha esposa. Na verdade eu preferia fazer sexo com a
Manu, mas tenho baixa autoestima e não tenho coragem de convidá-la para sair. Eu
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queria ser como o Mau, que é muito confiante e inteligente, por isso a Vic sempre
quer sair com ele.
Desejaríamos boa sorte a todos, mas isso não é necessário, porque as vagas serão
canceladas cedo ou tarde, então sua sorte ou azar não influenciará em nada.
Sintam-se gratos pela minha atenção, vermes, porque sou uma pessoa ocupada!
Y@go
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Mau,
Tem certeza de que está bem? Precisa de alguma coisa? De um calmante, talvez?
Você não se cansa de ficar irritado o tempo todo? Ah, espere, você só está fingindo
que está irritado. Deve estar rindo na frente do computador, tomando sua Sukita
enquanto aperta F5, aguardando ansiosamente minha resposta.
Em primeiro lugar, o que você fez foi muito rude e infantil. Agora eu precisarei
escrever dezenas de e-mails pedindo desculpas para os líderes dos outros países.
Sinceramente, as suas atitudes completamente descuidadas me fazem perder mais
tempo do que se eu estivesse avaliando as aplicações de candidatos sérios. Eles podem
nos ajudar muito no futuro, Mau. Não os despreze. Você pode ser muito poderoso,
mas sozinho não vai vencer os Deuses. Você precisa das pessoas. Não somente dos
brasileiros. Precisamos de apoio do mundo inteiro se queremos vencer.
Então, pare de brincar com o vento. Agora ele não te machuca, mas você nunca
sabe quando ele se transformará em furacão.
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Alianças não são somente úteis num sentido prático. Não se esqueça porque
estamos lutando. Pela nossa sobrevivência. E queremos viver para quê? Para
compartilhar momentos e não para se isolar numa ilha. O que torna a vida
significativa são os outros. Talvez um dia você se dê conta disso. Eu ainda estou
aguardando pacientemente por esse dia, mas nem todos têm paciência. Pode ser que
suas atitudes te façam perder pessoas importantes e você nunca mais consiga recuperá-
las.
Há algumas coisas que fazemos na vida que não têm volta. Pense sobre isso.
Existem coisas mais importantes do que ser o famoso palhaço da internet.
E agora que já fiz o meu discurso politicamente correto, vamos ao que realmente
interessa.
Eu, incompetente? Mau, por favor. Você não sabe diferenciar uma impressora de
um scanner. Uma vez vi você colocando folhas brancas num scanner tentando
imprimir fotos da Paris Hilton. E isso aconteceu logo depois de você xingar um
membro por estar gastando tinta colorida da impressora desnecessariamente.
Sobre o que você disse a respeito da Manu e da Vic, sem comentários. Cresça,
Mau. Daqui a pouco elas vão ler o que você escreveu e vão ficar putas, com razão.
Por que é que você não... arrrrgggg!!! Esquece.
Porra
Yago
Zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz
Já terminou o sermão, pai?
Elas vão ficar putas comigo? Não me diga! Você se esqueceu de mencionar que a
Manu quebrou seu computador de propósito porque ficou puta com você. Duvido que
eu consiga deixá-la mais puta do que você a deixou.
Quer que eu exponha na internet o que você fez? Vou contar para todo mundo.
E a resposta de Yago:
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Mau e Yago,
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Eu nem sei qual de vocês dois eu xingo primeiro. Em primeiro lugar, nem sei
porque estou escrevendo aqui. Essa conversa de vocês não era para ter acontecido. E,
se tivesse acontecido, eu não precisava ter lido. Se vocês escreveram aqui, estou supondo
que o fizeram porque queriam que eu desse uma resposta por escrito e não
pessoalmente.
Eu deveria começar com Mau porque é geralmente aí que se inicia a fonte dos
problemas. Mas como foi Yago que enviou a primeira mensagem do dia, vamos partir
desse ponto.
Yago estava apenas enviando a mensagem idiota de praxe, anunciando a abertura
de vagas de uma forma educada, mesmo sabendo a oposição minha e de Mau em
relação a isso.
Mau teria feito bem se tivesse escrito uma mensagem informando dos problemas de
superlotação que estamos enfrentando e que por esse motivo a abertura de vagas não
estava completamente confirmada. Como veem, teria sido possível informar isso em
apenas uma linha.
Mas Mau sempre escolhe o caminho mais árduo, longo, dramático e ofensivo.
Seus comentários a respeito de mim e de Yago foram completamente
despropositados e infelizes. Espero que você tenha a decência de se desculpar
pessoalmente comigo posteriormente. Mas como se trata de você, eu não nutro
expectativas de que um pedido de desculpas vá realmente acontecer.
Você sempre usa a carta de “Eu sou o líder” quando sabe que não tem razão e
não tem mais nenhuma boa resposta. Não estamos falando de hierarquia aqui e sim
de seres humanos que merecem ser tratados com respeito e dignidade.
Eu tenho orgulho de dizer que realizo minha função na SSC com honra e
eficiência. Dou o melhor de mim a cada um dos dias. Espero que você, Mau, possa se
dedicar tanto à sua função de líder como eu me dedico à minha de comandar os
exércitos dos Sacrifícios. Eu sei que você já faz muito e muita gente não entende isso,
mas eu tenho certeza de que você ainda consegue melhorar se realmente quiser.
Agora, quanto a você, Yago. A sua descrição da nossa conversa não foi
completamente fiel. Eu diria que foi extremamente tendenciosa.
Eu sei que você enfrenta muita pressão diariamente, principalmente tendo Mau
como chefe (eu sei, não é fácil) e tendo que lidar com uma quantidade imensa de
tarefas sozinho. Por isso, eu apoio sua decisão de chamar um engenheiro para te
ajudar. Você geralmente diz que não precisamos de mais pessoal de TI e gosta de
cuidar de tudo sozinho. Eu sugiro que você repense essa posição, porque parte do seu
estresse atual pode estar vindo disso.
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Que circo, hã? Nossa SSC já virou uma piada há muito tempo por causa de
Mau.
Mau, por que você precisa mencionar tanto meu nome? E sempre nos piores
contextos possíveis.
Sobre a questão das vagas, eu tenho uma proposta. Manu, que tal dividir o
acampamento em dois, como fazem na SSC de outros países? Você treina uma
metade e arranja outra pessoa para treinar o resto do pessoal. Mas quem seria um
candidato excelente o suficiente para estar à altura de tamanha tarefa?
Digamos, Mau. Parece que Mau anda muito desocupado ultimamente, fazendo
contas no Formspring e em sites semelhantes. Vamos dar a ele um exército para
treinar! Assim matamos dois coelhos com uma só cajadada: resolvemos o problema
das vagas e tiramos Mau da frente do computador para que ele fique um bom tempo
sem postar besteiras.
Queríamos diminuir as vagas porque não há estrutura suficiente em nosso
acampamento atual e também porque Manu não está dando conta de treinar tanta
gente ao mesmo tempo. Organizar outro acampamento leva certo tempo, mas assim
haverá mais espaço e melhores condições de treino a longo prazo. Acho que acabo de
descobrir uma boa solução para o problema do seu estresse, Manu.
Estou ansiosa para saber o que acham da minha ideia.
Eu já tinha pensado nessa possibilidade. Porém, assim como Yago, gosto de fazer
tudo sozinha. A ideia de deixar metade dos novatos e Saos com outra pessoa me
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deixa com medo que o exército perca sua unificação. Temo que seja difícil harmonizar
as duas partes depois e na hora da guerra haja alguma confusão.
Mas, pensando bem, podemos dividir o exército em duas categorias. Por exemplo:
a metade mais avançada e a metade que está iniciando. Se as categorias forem
diferentes é possível que eles sejam treinados de formas diferentes. Assim todos eles
passariam pela tutela de nós dois.
Acho melhor deixar Mau responsável pela metade mais avançada, principalmente
porque eu duvido que ele teria paciência com os iniciantes. Às vezes nem mesmo eu
tenho. E como Mau possui uma legião de fãs, essa pode ser uma boa motivação para
os novatos se esforçarem e concluírem seus próximos anos de treinamento: serem
treinados por Mau um dia.
Mau só costuma aparecer no acampamento para dar o discurso de boas vindas,
para dar uma olhada geral e para reclamar do que está errado sem apresentar solução
nenhuma. Como líder, acho que ele precisa ser mais ativo nos acampamentos.
Eu sei que Mau já está ocupado coordenando os Sacrios, mas como Sacrios já são
veteranos e receberam o treinamento de oito anos, não acho que isso ocupe tanto o
tempo dele. Qualquer coisa, se Mau ficar ocupado demais, quem sabe você também
possa dar uma ajuda. Que tal, Vic?
Sim, posso ajudar. Conversarei com o Mau posteriormente sobre quais tarefas ele
prefere fazer, até chegarmos num acordo.
Eu diria que você sempre possuiu uma legião de fãs maior do que o Mau, Manu.
Ele só se tornou mais famoso depois que fez aquela conta no Youtube. Fatídico dia.
O que será que aqueles dois estão conversando que ainda não leram nossas
mensagens? Chegamos numa solução em pouquíssimo tempo. Aposto que eles
desviaram o assunto e iniciaram outra polêmica qualquer.
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E a resposta de Vic:
Por favor, Mau, não esqueça de que está postando no site oficial da SSC.
Algumas vezes parece que você se esquece.
Bem... digamos que você não tem escolha. Eu também não estou a fim de treinar
aquelas bichas. E, antes você do que eu, certo? Como um líder cavalheiro, você irá
poupar a sua vice. Você já me faz viajar até os quintos dos infernos para cumprir as
funções administrativas, então dessa vez você vai fazer esse favorzinho pra mim,
hmmmm? :)
Mau respondeu:
Vic escreveu:
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Sociedade do Sacrifício
fim de se exibir com uma garota, peça para qualquer Saos ir com você. Aposto que
várias delas desmaiariam de alegria por essa oportunidade.
Não sou uma de suas fãs, Mau. Talvez seja difícil para você acreditar, mas eu
quero fazer um trabalho sério na SSC. E ter um envolvimento amoroso com o líder
não é a ideia que faço de um trabalho sério.
Mau ainda aguardou uns quinze minutos para escrever alguma coisa.
Devia estar pensando no que dizer. Ou demorou pelo tamanho de seu
texto.
Por fim, ele postou o seguinte:
Vic, estou desapontado. Falando assim, parece que você não me conhece.
É claro que estou te convidando para ir ao cinema ironicamente. Eu nem mesmo
gosto de ir ao cinema. Você sabe que metade do que coloco na internet são um monte
de mentiras, para tirar com a cara de todo mundo que deseja saber mais a meu
respeito, como se eu fosse uma estrela de cinema.
Eu levo muito a sério a SSC. Provavelmente mais do que qualquer um de vocês.
E não poderia ser diferente, por causa do meu passado. Eu não pedi para ter esse
passado. Foi algo fora do meu controle. Mas você pode ter certeza de que qualquer
boato que diga que estou inclinado a ir para o outro lado é mentiroso. Minha vida
sempre teve somente um lado: o que clama minha mente, independente da história do
meu corpo. E por isso sigo o Caminho da Mente e jamais me desviarei dele.
Eu desprezo todos esses ditos “meus admiradores” que acompanham as merdas
que escrevo na internet. Cada vez que os vejo atrás de mim, mais eu os odeio. Porque
eu somente confirmo o que eu sempre soube: essas pessoas merecem morrer pelas mãos
dos Deuses.
Então por que eu ainda luto? Que seja pelo menos por mim e pelos meus
companheiros Sacrios. Os Saos podem ser fracos agora, mas um dia se tornarão fortes.
E também merecerão a salvação, exatamente porque terão forças para salvar a si
mesmos.
Eu não faço o que faço para “ajudar os outros”. Eu não “ajudo”. Não faço
caridade. Tudo o que faço é mandar que esses escrotos parem de chorar por pena de si
mesmos e que, em vez de lamentar a vinda de um meteoro e de um furacão para os
trucidar, que eles lutem para adquirir as mãos de gigantes e freem o meteoro no céu
antes que ele os esmague.
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Mau escreveu:
Vic, você está muito desagradável hoje. Parece uma velha rabugenta.
Onde está o seu senso de humor? O tom soturno da minha última mensagem
também foi feito ironicamente.
Estamos usando tantas máscaras, uma por cima da outra, que eu não sei mais
onde foi parar meu rosto. Provavelmente no chão, após ter sido PISOTEADO por
uma certa galinha.
OK, agora Mau tinha ido longe demais. E agora? O que ia acontecer?
Vic escreveu sua resposta na velocidade de um relâmpago:
Vai te foder.
Seu escroto mal educado. Vai tomar no cu!
Se eu sou uma galinha, você é um corno, cretino, chupa rola.
Seu puto. Vai lá, pode me expulsar se quiser, seu merdinha. Um líder que
chama a vice de galinha não merece respeito.
Não deviam ter deixado uma criança ser líder. Você é mimado e arrogante, seu
bosta!
Eu sou muito mais velha que você. Só por isso você deveria me respeitar. Tenho
mais experiência de vida. Você ainda está cagando nas fraldas.
Não me importo de sair da SSC. Se é para ter um líder boçal como você, prefiro
ser esmagada por um meteoro.
Pensando bem, se você não me expulsar, eu mesma sairei. Isso mesmo! Acabo de
me retirar da SSC. Nem vou esperar ser expulsa.
Até nunca mais, seu estúpido. Viva seus 500 anos de vida enquanto eu morro, já
que isso não faz a menor diferença para você.
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Continue fingindo ser imortal. E mesmo se você fosse, ser imortal sozinho não
faria a menor diferença.
Porco!
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depois ele esqueceria de avisar minha família. Isso me deixou com uma
sensação ruim.
Desde que li a última mensagem de Vic no site e saí da barraca para
cuidar dos meus afazeres, estava dando tudo errado: o banho, a comida,
o telefonema. Nem mesmo uma coisa tinha saído como eu queria!
Para completar, me colocaram para fazer atividades domésticas. Me
deram uma pá e me mandaram tirar a neve ao redor dos carros do
acampamento. Aquela era uma atividade braçal intensa, que me deixou
morta de cansaço. Depois disso, fui escalada para tentar resolver o
problema dos canos congelados, junto com outros dois novatos. E
mesmo depois de muito tempo procurando, não encontramos nada.
Achei tudo aquilo uma merda. Eu estava com muito, muito frio.
Exausta. Com ainda mais fome. Preocupada com minha família. E
profundamente deprimida após a conversa do site.
Quando finalmente voltei para a barraca, pelo menos fui
recepcionada com alegria pelas minhas novas amigas. Elas me deram um
pedaço de uma comida que tinham escondido para emergências. Mesmo
sendo pouco, eu me senti profundamente agradecida.
Aqueles pequenos gestos faziam toda a diferença naquele lugar. No
começo eu estava julgando aquelas meninas por elas esconderem um
celular com internet. Mas agora eu entendia que elas deviam ficar
entediadas após estar há tanto tempo no acampamento. A internet era
um dos únicos meios de entretenimento que tinham.
E embora fosse proibido esconder comida nas barracas, aquilo me
ajudou muito. Então, quis acreditar que tudo daria certo no final.
“Caio... você estava certo. A vida aqui é difícil. Mesmo com todos os
seus avisos, hoje eu descobri que as dificuldades são ainda maiores do
que eu imaginava” pensei.
E olha que eu ainda estava no primeiro dia. E meu treinamento
formal sequer tinha começado.
Uma coisa era ler sobre passar fome, realizar atividades corporais
pesadas ou ficar doente. Outra bem diferente era passar por todas
aquelas coisas.
E eu ainda não sabia o que era passar fome de verdade. Já estava
morta de cansada apenas por remover neve com uma pá. E se eu pegasse
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É com imenso pesar que anuncio que nossa vice-líder, Vic, solicitou a
excomunhão da Sociedade do Sacrifício do Caos.
Com base em nossas leis, ela deve ser executada em até 48 horas. Vic está a par
de seu destino e opta por ele por livre vontade.
A cerimônia de execução será realizada em exatamente 24 horas no campo de
treino da SSC brasileira. Todos os Saos e Sacrios devem estar obrigatoriamente
presentes para assisti-la. Aqueles que ainda não receberam a iniciação de Saos estão
proibidos de assistir a cerimônia.
Nós não permitimos que Saos ou Sacrios estrangeiros viajem para o Brasil
exclusivamente para assistir à execução. Recebi esses pedidos ofensivos por e-mail
vindo de pessoas que nem conhecem Vic pessoalmente. A execução dela não será um
espetáculo de que nos orgulhamos e sim um procedimento necessário que está
plenamente de acordo com as regras da sociedade e com nossas crenças.
Por favor, parem de enviar e-mails infelizes implorando para que eu “tenha
piedade e não mate a Vic”. Também estou ignorando completamente mensagens do
tipo: “Vocês eram quase namorados. Você não tem coração?” Como mencionei antes,
jamais aconteceu absolutamente nada entre nós e mesmo que tivesse acontecido eu não
deixaria de cumprir o meu dever.
Eu mesmo irei matá-la com minhas próprias mãos da forma ritualística
apropriada. Isso já está decidido e não poderá mais ser mudado, então parem com
essas petições ridículas de internet, como “Vamos recolher um milhão de assinaturas
em 24 horas para salvar Vic”. Se vocês pensam que isso muda alguma coisa,
definitivamente não me conhecem e não conhecem a SSC.
Espero que a morte da Vic sirva como exemplo para que os candidatos a membro
pensem mil vezes antes de enviar seus formulários de inscrição. Alguns se inscrevem
apenas para “experimentar”. Essas pessoas não compreendem o peso que a nossa
iniciação possui.
Certamente experimentaremos uma enorme baixa no número de novas inscrições
após o acontecimento de amanhã. As pessoas se chocam com a morte, mas a morte é
apenas uma parte natural da vida. É uma grande honra morrer por aquilo que se
acredita. Muito mais honroso do que morrer de repente pelos acasos que nos arrastam
na vida.
Continuo a ter respeito pela Vic, mesmo que ela tenha perdido o respeito por
mim. Especialmente após ela optar pela execução formal. Vic está completamente
preparada para isso. Sempre esteve. Ela é muito forte. Talvez mais forte que eu.
156
Sociedade do Sacrifício
O novo vice-líder ainda não foi decidido, então parem de insistir nessa pergunta.
Ainda haverá um período formal de luto antes de tratarmos dessa questão.
Antes estávamos preocupados com a falta de vagas para o semestre que vem.
Porém, agora que decidimos iniciar um segundo acampamento e aumentar as vagas,
teremos menos candidatos. É uma grande ironia.
Eu mesmo irei treinar os Saos mais avançados nesse segundo acampamento por
sugestão da Vic, já que ela não estará mais conosco para fazê-lo em meu lugar. Irei
honrar esse último pedido dela.
Finalmente, alguns me perguntaram se estou com raiva. Sim, estou furioso.
Escrever todos esses parágrafos gentis exigiu um imenso autocontrole da minha parte e
só o fiz porque minha razão concluiu que ela merece, devido aos excelentes serviços que
ela prestou em mais de uma década ao nosso lado.
Não fiquei nada satisfeito com o que ela escreveu para mim ontem. Mas eu não
irei matá-la por ter me sentido ofendido como líder. Isso seria abominável. Ela
somente morrerá porque ela decidiu que prefere morrer a continuar me servindo na
SSC.
Também deixarei claro: eu poderia recorrer a outras leis e conseguir fazer Vic
sair dessa com vida. Afinal, eu sou o senhor da SSC. Estou acima das leis. Eu optei
por seguir o método tradicional simplesmente porque eu quis. Porque não sou a favor
de favoritismos. Eu não mudaria a lei para salvar a pele de um desconhecido, então
não vou mudar para salvar alguém que conheço. Eu vivo por princípios.
Isso não significa que irei matá-la porque quis. É porque ela quis seguir esse
caminho. Entendem a diferença? Eu e ela seguimos princípios semelhantes, então
nossas vontades se conectarão nessa cerimônia.
Vic sempre foi vista como o monstro que recusava minhas tentativas de
aproximação. Agora eu serei visto como o monstro que a matei porque não aceitei a
recusa dela. É assim que irão comentar a meu respeito na internet. Porque vocês, na
internet, não sabem de nada. Vocês não são Sacrios. Sequer viram os Deuses. Não
aguentariam oito anos de treinamento. Enlouqueceriam com a visão de um Deus.
Continuem a viver suas vidas confortáveis e ignorantes enquanto realizamos as
coisas grandes. Num dia vocês me idolatram. No outro me temem e me desprezam.
No futuro, voltarão a me amar e a me odiar por muitos outros motivos que vocês
sequer compreenderão.
Repito: vocês não sabem de nada. Então não ousem julgar essa situação. Em
nenhuma circunstância.
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Wanju Duli
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Sociedade do Sacrifício
– Vic morreu.
Senti meu peito doer.
– Ainda não passaram as 24 horas – falei, debilmente.
– Eles adiantaram algumas horas na execução – informou Sella,
engasgando-se nas próprias palavras – porque Mau não aguentou
esperar.
Ela mostrou o celular para nós. Eu e as outras meninas lemos o que
estava escrito. Dessa vez era uma postagem de Yago.
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Wanju Duli
Mau mandou que todos os Saos fossem passar um dia em casa com a família e
repensassem suas escolhas. Essa será a única chance que eles terão de retornar para
casa sem uma perna ou um braço faltando. No momento em que se tornarem Sacrios,
não terão permissão para mudar de ideia.
Eu estou me sentindo extremamente mal hoje. Muito mais do que já me senti nas
guerras contra os Deuses ou quando perdíamos companheiros na batalha. Pois em tais
momentos estávamos lutando juntos. E agora, estamos todos lutando sozinhos: contra
as emoções aflorando em nossas próprias mentes. Emoções malignas.
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Sociedade do Sacrifício
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Wanju Duli
Capítulo 3
Com muito esforço, secamos as lágrimas e seguimos para a primeira
meditação da manhã. Depois da meditação e do café da manhã, senti-me
muito melhor.
Mas aquela sensação forte no peito sempre persistia.
Depois do café, peguei uma vassoura e um pano molhado e ajudei a
limpar o chão da nossa cozinha improvisada.
Eu me surpreendi quando um Sacrios se aproximou de mim e me
entregou um celular.
– Antônia, certo? – ele perguntou – acho que é seu irmão.
Segurei o celular com a mão trêmula, enquanto com a outra mão eu
ainda segurava a vassoura. O Sacrios se afastou por um momento.
– Tônia?
– Caio! Oh, meu Deus! Você está bem?
– Então você já sabe? – ele perguntou, com uma voz chorosa.
Merda! Eu já estava começando a me recuperar de toda aquela dor e
agora eu teria que revivê-la outra vez. Estava retornando tudo: o medo, o
terror...
Por um momento ele apenas chorou no telefone. No começo fiquei
em silêncio, segurando minhas lágrimas para não apavorá-lo ainda mais.
– A Vic...
– Sim, eu sei! – eu disse, sem conseguir mais conter as lágrimas.
– Eu vi, Tônia. Eu estava lá!
– Eu li no site... você está em casa?
– Sim. Tônia, Mau estava lá em cima com um manto cerimonial
completamente negro, como se fosse um demônio. Eu fiquei apavorado.
Ele estava tão sério! Parecia estar gostando...
– Pare – eu disse.
Ele estava se torturando.
– Era como um teatro, mas todos sabíamos que era real. Mais real do
que qualquer coisa que já vi. Diferente da internet, eles não estavam
atuando. Os dois estavam de cara limpa, olhando um para o outro. O
olhar que os dois trocaram me destruiu. Era um olhar ao mesmo tempo
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Sociedade do Sacrifício
tão terno e tão severo. Como se estivessem competindo para ver quem
era o mais forte. Até mesmo naquele momento.
Por alguma razão, eu conseguia formar a imagem claramente em
minha imaginação.
– Antes de realizar o ato final, ele pronunciou muitos versos
decorados da Lei – explicou Caio – ele parecia um Deus quando fez isso.
Quase me dobrei no chão, coberto de terror.
– Você já viu um Deus?
– Não... mas imagino que eles sejam como Mau. Não digo
fisicamente, mas mentalmente e espiritualmente como ele. Mau impõe
respeito. Eu fiquei com um pouco de medo dele desde a primeira vez
que o vi pessoalmente, mas dessa vez foi muito diferente. Todos na
plateia, sem exceção, estavam apavorados. Até mesmo os Sacrios. Foi
insano. Eu nunca tinha visto algo parecido.
– Você se encontrou com Jorge e Bianca? Meus colegas que entraram
na SSC, lembra?
– Apenas rapidamente – respondeu Caio – eu não os vi hoje, até
porque eles não tinham permissão de assistir à cerimônia.
Quando ele disse “hoje” eu pensei “mas ainda é tão cedo”. Foi só
então que lembrei que eu estava oito horas e meia na frente deles.
– Ainda bem que eles não assistiram. Teria sido chocante demais para
eles.
– Não só para eles. Foi chocante para absolutamente todos os
presentes. Se eu fosse tentar adivinhar, eu diria que a menos chocada ali
era Vic. Ela aceitou sua condição com naturalidade e portou-se de forma
magnífica o tempo inteiro. Foi inacreditável. Eu não conseguiria.
– Me diga logo como ela morreu, ou morrerei de ansiedade. Eu já
recriei a cena da morte dela centenas de vezes na minha cabeça. Quero
saber o que realmente aconteceu.
– Você sabe como são os rituais. Eles fazem coisas desnecessárias.
Tem certeza que quer saber?
– Conta logo!!
– Está bem – ele disse – depois de pronunciar as palavras ritualísticas,
ele passou a faca no pescoço dela. Uma morte limpa, ou assim deveria
ser. Mas essa é apenas a primeira parte do ritual. Na segunda parte, ele
cortou a barriga dela, mas infelizmente ela ainda estava viva. Mau não
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Sociedade do Sacrifício
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Wanju Duli
entender o que é essa coisa tão grandiosa que fez com que o Mau
aceitasse com naturalidade realizar esse ato aparentemente abominável.
Então Caio ia continuar.
– Se você vai prosseguir, eu também vou – decidi.
– Você ainda tem um ano para pensar. Mas fico contente que tenha
dito isso. Obrigado. O que está achando da SSC indiana?
– Muito austera – respondi – mas é um tipo de austeridade diferente
do que você experimentou. Eu acho que devo estar no Himalaia.
– Tem certeza?
– Que parte do “acho” você não entendeu?
– Bem, espero que esteja se divertindo. Pensa em voltar para o Brasil
ou ficar por aí mesmo?
– Vou voltar, é claro. Apesar de que já fiz amigas aqui.
– Isso é ótimo.
– Vou tentar pedir transferência para o Brasil no próximo semestre,
mas isso depende do número de vagas que tiver.
– Depois do que aconteceu hoje, não acho que o Mau vá continuar
brincando de cancelar vagas.
Ficamos em silêncio por alguns segundos. Até que eu perguntei:
– Você acha que somos loucos?
– Hã?
– Uma pessoa que decide continuar na sociedade depois do que
aconteceu hoje não deve girar muito bem da cabeça. Você acha que
algum dia eu vou despertar da minha loucura daqui oito anos, quando eu
já for Sacrios, e me arrepender? Querer voltar atrás quando não tiver
mais volta. Tenho medo disso.
– Estranho. Eu não tenho esse medo.
– Por que não? – perguntei, tentando entender como alguém poderia
não ter aquele medo.
– Nós geralmente nos arrependemos mais das coisas que não fizemos
do que das coisas que fizemos. Se eu chegar a ponto de me tornar
Sacrios e quiser retornar... eu iria retornar para quê? Sequer haverá algo
para voltar.
– Para o pai e a mãe – eu disse – para Carla. Para o conforto da vida
que tínhamos.
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Sociedade do Sacrifício
Yago, se você sabia que ia me irritar com sua postagem por que a escreveu?
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Wanju Duli
Você diz que está com medo de mim e isso me incomoda. Muito.
Eu não fiz o que fiz para que as pessoas ficassem com medo. E não me arrependo
nem um pouco. Vejo que realizei a coisa certa. De certa forma, estou orgulhoso.
Não quero que as pessoas me sigam por temor. Eu gosto da liberdade que tenho
com você e outros membros. Não se preocupe. Não vou excomungar e executar
ninguém por um xingamento. Eu só expulso os novatos, já que eles não vão perder
nada com isso. Se eles vêm para bagunçar, que baguncem em suas casas.
Para você ter uma ideia, embora eu tenha ficado furioso com todos os xingamentos
de Vic, eu não pretendia expulsá-la por causa disso. Ela que tocou no assunto e
expulsou a si mesma. A Vic sempre foi muito mais orgulhosa que eu. Não há como
comparar.
É claro que eu sempre fui completamente apaixonado pela Vic. Loucamente
apaixonado. Ela era tudo para mim. Mas amor não é uma coisa simples. É uma
dança. Para que essa dança seja harmoniosa, é preciso que o casal dê alguns passos
para frente e outros para trás, no momento certo.
Eu não poderia simplesmente dizer que a amava e começar a persegui-la
insistentemente. Se eu o fizesse, ela daria meu amor por garantido e me desprezaria.
Além do mais, eu, sendo mais novo e inexperiente, precisava ter cuidado redobrado.
Achei que Vic entenderia que esse era somente mais um de nossos jogos. Eu
jamais imaginava que seria o último.
Ela deu um passo para trás, me desprezando abertamente, então achei que para
acompanhá-la na dança minha única escolha era recuar junto com ela. Achei que
ainda teríamos tempo de alcançar um ao outro. Não sabia que meu tempo estava tão
curto, ou teria jogado todas as cartas na mesa há muito tempo.
Eu sei que Vic não olhava para mim da mesma forma que eu a olhava, mas
houve alguns breves momentos que senti que estávamos dançando juntos. E esses
momentos foram inesquecíveis. Eles já valeram por tudo.
Eu só precisava de mais tempo. Mas não sou o senhor do tempo.
Pensando bem, foi muita arrogância da minha parte pensar que tempo era tudo o
que eu precisava. Talvez ela só estivesse se divertindo na brincadeira, mas apenas
como alguém que brinca com uma criança. Podia ser que eu nunca a alcançasse.
Acho que ambos sempre soubemos que era um amor impossível. Então por que
manter esse sofrimento? Vic declarou o fim de jogo. Eu não queria ser uma criança e
bater o pé, dizendo que eu queria continuar jogando até o maldito fim, mesmo
sabendo que não havia esperanças. Eu quis mostrar a Vic que, após todos esses anos,
eu tinha amadurecido.
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Sociedade do Sacrifício
Quando eu entrei para a SSC ainda era uma criança. Vic tinha acabado de se
tornar vice nessa época. Eu me apaixonei por Vic à primeira vista. Porém, minha
pouca idade me impedia de fazer qualquer movimento, ou eu seria motivo de piada.
Digamos que ela foi meu primeiro amor.
Quando o líder morreu na luta contra os Deuses e eu assumi a posição de líder,
pensei que eu e Vic ficaríamos mais próximos, mas nos tornamos ainda mais
distantes. Isso porque no fundo ela se sentia ofendida por uma criança ser superior a
ela. Vic me fitava com um olhar de desprezo.
Eu aguentei esse olhar. Conforme eu ficava mais velho, notei que as coisas
começaram a mudar. Ela me respeitava mais. Mas para ela, eu sempre seria “o líder
mais novo que ela”. Eu não podia mudar isso.
E também havia a minha condição. Acho que ela invejava quem eu era. Não
tenho certeza. Ou se sentia desconfortável com isso. Éramos diferentes de muitas
maneiras.
Sei que fui egoísta. A morte dela acabaria com minha angústia e eu jamais
resolveria minha dúvida. Era isso que eu queria. Mas o que eu realmente queria era
aguardar mais um pouco. Ela simplesmente não quis.
E por que eu só escrevi tudo isso agora que ela já morreu? Porque a dança
terminou. Então não importa mais.
Porém, eu não sou tão romântico quanto faço parecer. Se alguém pensou isso, irei
acabar com as expectativas agora mesmo.
Não tenho nenhuma intenção de passar a vida inteira em celibato chorando por
ela. Nunca iniciamos um relacionamento, então por que eu faria isso?
Pode parecer um pensamento meio frio, já que ela acabou de morrer. Ou, melhor
dizendo, já que eu acabei de matá-la. Mas eu nunca fui fã de histórias trágicas. Sou
uma pessoa prática. Por acaso, passei por essa situação, mas não tenho nenhuma
intenção de passar por algo assim de novo.
Agora aprendi o que devo fazer: ser claro, direto, sem jogos ou danças. Se eu não
for acompanhado, a direção apenas muda.
Lição aprendida. De qualquer forma, Sacrifícios não são conhecidos por terem
uma vida longa, então o pragmatismo se torna uma boa escolha.
Em compensação, algo me diz que terei uma vida longa...
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Wanju Duli
Mau,
Você sempre acha que está certo, que sabe de tudo. Vive dizendo que quem não é
Sacrios não sabe de nada e não te entende. Surpreendentemente, até mesmo quem não
é Sacrios é capaz de viver um romance normal sem todos os seus conflitos e dramas.
Não me leve a mal. Eu realmente achei graciosa a sua reflexão sobre amor e
dança, e tudo o mais. Só que dessa vez, adivinhe só: você está completamente errado.
Mortalmente errado.
Por acaso eu tenho uma prova. Vou colar aqui o trecho de uma conversa que tive
com Vic esses dias. Acho que ela não vai se importar mais se eu te mostrar:
Vic: Yago, o que Mau quer dizer quando ele me convida para ir ao cinema?
Yago: Não é obvio? Exatamente isso: que ele quer ir ao cinema com você. Não
há como ser mais direto que isso.
Vic: Ele está brincando ou o quê?
Yago: Pode ser que esteja. Mas provavelmente ele acharia legal se a brincadeira se
tornasse realidade. Eu, por exemplo, curtiria ir ao cinema contigo.
Vic: Me desculpa, não estou a fim.
Yago: Mas com Mau você iria?
Vic: Talvez. Às vezes eu gostaria que ele fosse mais ousado. Ir ao cinema é meio
bobo. Se ele está realmente interessado em mim, por que não me convida logo para ir a
um motel?
Yago: Quê? Se o convite fosse esse você aceitaria?
Vic: É claro que não. Eu só estava brincando.
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Sociedade do Sacrifício
Como você OUSA zombar de mim com essa conversa obviamente forjada?
Você é foda, hein, Yago! Não respeita a porra do meu luto. Cuzão!
E Yago respondeu:
Cara, não vem com essa história de luto, porque você a matou porque quis. Nada
do que me disser vai me convencer do contrário.
Tive essa conversa com ela por e-mail e acabei de te encaminhar a mensagem.
Agora você vai acreditar que foi real.
Você fica com essa de “não me arrependo”, “realizei a coisa certa” e “estou
orgulhoso” porque não tem coragem de admitir que cometeu um erro.
Ela gostava de você, meu. E você estragou tudo. Você sempre estraga!
E posso saber por que você deu em cima dela? Se é assim, também vou dar em
cima da sua garota.
Manu, quer ir ao cinema comigo? Ou ao motel? Ou a qualquer outro lugar que
vocês, garotas, gostam de ir?
Yago disse:
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Wanju Duli
Eu resolvi dar uma olhada no site porque eu estava preocupada com Mau, mas
pelo jeito ele já se recuperou rapidamente da perda.
Mau, eu gostava muito da Vic e respeitava o que você sentia por ela. Mas essa
sua brincadeira de agora foi totalmente infeliz.
Com todo o respeito, líder, vá tomar no cu. E, não, eu não quero ser
excomungada, expulsa ou morta.
Obrigada.
O único lado bom do que acabou de acontecer é que hoje em vez de escreverem na
internet: “Mau matou Vic friamente, ele é um monstro”, escreverão: “Mau dá em
cima de Manu poucas horas após a morte da Vic, ele é um monstro”.
Sim, eu sou um lixo humano! Fui trazido ainda criança para a SSC, luto com
os Deuses desde pequeno, só penso em ficar mais forte e nunca tive uma infância
normal. Então quando ajo como criança ou adolescente vocês acham estranho?
Muito obrigado pela imensa compreensão de vocês, imbecis.
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Sociedade do Sacrifício
Eu concordava com Yago que ele havia cometido um erro. Mas era
algo impossível de desfazer, então ele devia seguir em frente e não ficar
tentando justificar algo que não podia ser justificado.
Depois dessa mensagem de Mau, ninguém escreveu mais nada pelo
resto do dia. Embora ele tivesse feito uma merda naquela manhã (ou na
manhã anterior, na minha perspectiva), os outros tiveram tato para
entender que ele tivera um dia difícil e o deixaram em paz.
Naquela tarde, tricotei um cachecol para mim. Ficou bonitinho. Era
uma das coisas mais fáceis de tricotar, por isso escolhi fazê-lo.
Fiz tantas atividades domésticas naquele dia que fiquei morta de
cansada. E, em meio a isso tudo, pensei numa coisa particularmente
estranha: “Eu chorei mais com a morte da Vic do que com a morte da
minha irmã”. Sendo que eu nem mesmo conheci a Vic pessoalmente. Ela
só era alguém que eu conhecia por postagens na internet. Eu sequer
havia visto uma foto dela.
Mas então eu percebi a diferença. Irene escolheu a morte
voluntariamente. O Sacrifício Sagrado tinha um sentido maior para ela.
Minha irmã garantiu que estava feliz.
Pode ser que Vic tenha escolhido morrer voluntariamente, mas não
achei que ela estivesse tão feliz assim com isso. Ela simplesmente estava
preparada.
Outro fator é que eu tive um ano para me preparar para a morte da
Irene, mas apenas um dia para me preparar pela Vic.
Eu já tinha terminado de ler o livro de hindi que Raghav me
emprestou. E tinha começado a ler o livro de Meera sobre siddhis.
Essa segunda leitura me prendeu bastante. Descobri que havia muitos
tipos diferentes de poderes sobrenaturais. Será que eu poderia escolher
qual deles eu queria desenvolver? Perguntei para as meninas da minha
barraca se elas sabiam algo sobre isso.
– É uma boa pergunta – comentou Sella – agora você me pegou.
– Posso dar minha opinião? – perguntou Mei-Xiu – eu acho que
normalmente nós encontramos as siddhis ao acaso, perdidas na mente,
nos altos estados de meditação. Não é como se você escolhesse. Apenas
topa com uma delas e aprende o caminho para ir até lá, até dominá-la.
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Wanju Duli
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Sociedade do Sacrifício
– Você está sendo rude, Mei – disse Roshni – qualquer viajante pode
pegar diarreia viajando para outro país, por não estar acostumado com a
culinária local. E não se esqueça de que estamos no acampamento. Por
aqui a barriga sempre faz sons estranhos, seja de fome, de comida
estragada, ou o que seja.
No outro dia de manhã, após a primeira meditação e nosso modesto
café da manhã, fiz uma coisa divertida: mandaram que eu, Iaboni e uma
das garotas indianas do acampamento fôssemos juntas colher umas
ervas.
Num primeiro momento pensei: “Merda, vão me fazer caminhar um
monte no frio”. Mas peguei botas apropriadas emprestado e também
usei o cachecol que tricotei. No começo foi bem chato mesmo, pois
demoramos para chegar lá.
Porém, quando chegamos num canto mais afastado, a neve começou
a diminuir e apareceu uma paisagem bonita. Colhemos várias coisas. A
garota indiana, que devia ser Saos, entendia daquilo e ia nos indicando o
que deveríamos pegar.
Era bem cedinho e o Sol ainda estava baixo no céu. Era por
momentos como esse que eu pensava: “Ainda bem que eu vim. A vida
não é mesmo mágica?”. Era tão simples. Eu não precisava desejar algo
espetacular para a minha existência. Os momentos em que eu me sentia
mais alegre eram em ocasiões completamente inesperadas, como sentir
um raio de Sol num dia frio ou ficar sabendo que teríamos batata doce
para o almoço.
Algumas vezes a gente arranjava comida nos arredores. Outras vezes
nos traziam suprimentos da cidade. Variava bastante. Em geral, a gente
se virava.
Também separei um momento daquele dia somente para lavar roupa.
Embora não fizesse muito tempo desde que eu tinha chegado, algumas
das minhas roupas estavam nojentas por causa dos primeiros dias de
calor intenso que suei muito. E, convenhamos, mesmo no frio minhas
roupas ficavam nojentas, porque algumas vezes esquentava um pouco,
eu estava cheia de roupa fazendo tarefas domésticas e começava a suar
por baixo daquilo tudo. Provavelmente essa situação era ainda mais
incômoda. E dava muito mais trabalho lavar roupas de inverno.
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Wanju Duli
Estou recebendo muita merda por e-mail e isso está me deixando puto. Por isso
acabei de apagar esse e-mail. Farei outro, que só darei para membros da SSC.
E eu tenho uma mensagem especial para o Eric e os membros de sua sociedade
falsa, que não possui validade nenhuma: vão chupar um pau.
Não sei porque todos estão fazendo tanto fiasco. Não é como se fosse a primeira
vez que realizei uma execução. Essa foi a quarta. Mas como os dois primeiros
fugiram e tive que sair ao encalço deles para matá-los e a terceira era uma ninguém
que recém havia se tornado Sacrios, houve pouquíssima repercussão. No máximo eu
recebia comentários me parabenizando. Coisas do tipo: “Aqueles dois eram uma
vergonha para o grupo. Foi uma caçada magnífica”.
Mas agora a SSC está pop e a Vic era pop. Há muita gente que só nos conhece
superficialmente e acham que têm direito a dar alguma opinião. Um conselho: enfiem
a opinião no rabo.
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Sociedade do Sacrifício
Na verdade eu não vim aqui para escrever nada disso e sim para informar que,
como esperado, muitos iniciantes e Saos abandonaram a SSC hoje. Eu mandei que
todos passassem um dia em casa ontem e muitos deles ficaram.
Isso não me deixa triste. Ao contrário, me deixa contente. Agora sei que tenho ao
meu lado somente quem merece ficar.
Isso é tudo. Por enquanto.
Mau
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Sei que ainda é um pouco cedo, mas já decidi quem terá a honra de ser vice-líder.
Como Manu já treina os iniciantes e Saos no acampamento e eu liderarei metade
deles em breve, assim que o novo acampamento ficar pronto, penso que ela é a pessoa
ideal para o cargo.
Manu também já fazia parte da SSC antes mesmo de eu entrar, então ela é
minha veterana e alguém muito confiável. Sempre nutri o maior respeito e admiração
por ela. Não consigo pensar em alguém melhor para ser minha mão direita.
A cerimônia de posse da vice acontecerá amanhã de manhã e todos os membros
estão convidados, incluindo os iniciantes.
Aproveito a ocasião para convidar a nova vice a viajarmos amanhã para Porto de
Galinhas para passarmos o dia juntos na praia debatendo as questões
administrativas pelas quais ela ficará responsável a partir de agora.
Alguns de vocês devem estar se perguntando: “agora que ela se tornou vice, será
que rolará algo entre os dois?” Porém, eu sinto desapontá-los, pois garanto que nosso
relacionamento será estritamente profissional.
Respeitosamente,
Mau
Muito obrigada por me dar a honra de ser sua vice-líder!!! Sempre sonhei com esse
dia! Será incrível discutirmos juntos as questões administrativas na praia! Ameeeei a
ideia!
...
Mau... sério?
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Sociedade do Sacrifício
Sinceramente,
Manu
– Manu foi muito mais rude nessa recusa do que Mau foi no pedido –
comentei – ela não precisava ter feito isso. Poderia ter tirado com a cara
dele de forma mais leve.
– Eu achei genial – riu-se Sella.
– Eu concordo com Antônia – disse Roshni – isso que ela fez não foi
legal. Ela exagerou. Mau estava apenas querendo agradar Manu da
maneira desajeitada dele. Mas ela não deixou passar.
– Daqui a pouco Mau vai escrever uma mensagem raivosa dizendo
que não queria Manu como vice desde o começo e que ele estava sendo
irônico – disse Sella – vocês vão ver.
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Eu estava seriamente te convidando para ser a vice-líder. Você não precisava ser
tão estúpida.
Fiz o pedido em tom amigável, com uma leve brincadeira. E você me responde de
forma pesada e arrogante, com intenção de me humilhar.
Suas duas piadas com conotação sexual foram extremamente inapropriadas e
abomináveis. Nesse momento você deixou a sua falta de respeito bastante clara.
Minha piada sobre a praia não tinha nenhuma intenção de desrespeitá-la. A sua
reação foi totalmente infeliz.
A propósito, de onde você tira essa sua certeza de que Yago não pode suscitar em
mim certas sensações? Vocês, Sacrios mulheres, costumam me tratar de forma tão
degradante que não vejo porque eu não poderia tentar voltar o meu olhar para outras
direções.
Não pense que irá escapar ilesa depois dessa confrontação direta, Manu. Você
não será excomungada, porque eu tenho o mínimo autocontrole das minhas reações,
diferente de você. Mas você será destituída de sua função de instrutora dos Saos.
Eu irei rebaixá-la para outra função qualquer menos importante. Farei questão
de descobrir uma função bem chata que te desagrade para te colocar nela.
Minha decisão não será revogada sob nenhuma circunstância, mesmo que você se
ajoelhe e me peça desculpas mil vezes. Oh, eu esqueci, as mulheres da SSC nunca
possuem a humildade de pedir desculpas e nunca admitem quando estão erradas.
Atenciosamente,
Mau
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Mau, sobre o que você disse ao meu respeito, espero sinceramente que esteja
brincando.
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Caríssimos aleatórios brasileiros e estrangeiros que leem a merda desse site porque
amam as putarias que eu escrevo,
É com orgulho que eu anuncio a chegada de duas novas senhoritas para a SSC
mais popular do mundo. É claro que vocês as conhecem, porque elas são grandes
estrelas mundialmente famosas entre os Sacrifícios: Dan-Dan, antiga líder da SSC
da China, e Farah, que vocês certamente já conheciam pela sua posição de vice-líder
na SSC Internacional.
Farah já tinha vindo algumas vezes para o Brasil e inclusive já estava aqui na
ocasião da minha decisão. Ela assistiu à execução de Vic, embora eu tivesse proibido
a presença de Sacrifícios de outros países no dia da cerimônia. Eu somente a autorizei
porque ela insistiu muito e encheu tanto meu saco que tive que ceder. Ela parecia
muito entusiasmada no dia da execução e foi a única que bateu palmas.
Dan-Dan chegou ontem no Brasil. Ela ainda está se acostumando com as coisas,
mas como ela é uma pessoa extremamente competente, creio que pegará o jeito rápido.
Em geral, as coisas aqui não são muito difíceis de entender. Vejam o exemplo do
funcionamento desse site.
As duas donzelas podem se sentir à vontade de escrever o que desejarem. Como já
notaram, nós, Sacrios brasileiros, usamos o site oficial da SSC do Brasil para
praticamente tudo: confissões amorosas, selfies, discussões pesadas e leves, exposição
das nossas vidas pessoais, etc. Aqui é tudo muito exposto e alegre. Então não se
acanhem, moças, e digam tudo o que vier à mente de vocês.
Ah, sim, ocasionalmente nós também usamos esse site para dar avisos relevantes,
como nostalgia da lembrança da função original que esse site possuía quando começou.
Yago costuma dizer que o objetivo desse site ainda é dar avisos, mas há controvérsias.
Podem se apresentar, meninas, todos terão o maior prazer em conhecê-las!
Amavelmente,
189
Wanju Duli
Mau
Querido Mau,
Oi amores!
190
Sociedade do Sacrifício
Acho que isso já é suficiente como apresentação. É claro que há muitas outras
coisas para saber sobre mim, mas também gosto de guardar alguns segredinhos, hihi.
Espero que tenha gostado da minha apresentação, Mau! Me esforcei bastante!
Carinhosamente,
191
Wanju Duli
Farah
Apelido: D-D
Idade: 33 anos
Signo: Câncer
Tipo Sanguíneo: O +
192
Sociedade do Sacrifício
Altura: 1,58
Peso: 49kg
Cor favorita: branca
Animal favorito: panda-vermelho
Comida favorita: cha siu bao
Banda favorita: Top Combine <3
Livro favorito: The Joy Luck Club, de Amy Tan (não sei como traduziram em
português)
Filme favorito: MUITOS, de comédia e especialmente romance, como esses: 不能
說的秘密, 非誠勿擾, 我的最愛, 七年很癢.
Esporte favorito: ping pang qiu
Idiomas que sei: mandarim, cantonês, inglês e agora português! (algumas vezes eu
cometo gafes terríveis em português)
Hobbies: cozinhar, costurar, cantar, ler.
Cidade que nasci: Shanghai
Cidade que moro: estou temporariamente em São Paulo, mas em breve me moverei
para o acampamento e não tenho autorização para dizer em que cidade fica.
Beijos,
Dan-Dan
Dan-Dan e Farah,
Estou comovido pelo esforço que vocês colocaram em escrever suas respectivas
apresentações.
193
Wanju Duli
Fiquei tão comovido que irei até preencher essa lista também, para socializar. Só
não irei preencher os campos de livro, filme e banda porque esses eu já informei na
minha antiga conta do Facebook. Meus verdadeiros fãs irão se lembrar.
Já tem tantas informações pessoais minhas na internet que, foda-se, essa lista é
quase inofensiva em comparação.
Pronto. Demorei para escrever isso. Tive que pensar muito. Espero que valorizem
meu esforço.
194
Sociedade do Sacrifício
O_O
Meu Deus, Mau!! Eu vou te matar, eu juro!!!!!
Eu SEMPRE te fiz algumas perguntas dessa lista e você sempre se negou a
responder. E agora você simplesmente resolve dizer, como se não fosse nada!
Se eu soubesse que você ia responder a minha lista, eu teria colocado outros itens
que eu queria saber sobre você. Ahhhhhhh não acredito que perdi essa oportunidade!
:/
Quando você está na internet, você se transforma em uma pessoa completamente
diferente!! O quão longe você pretende ir para se exibir?
Você fica escrevendo essas merdas nessas listas só pra posar de cool. “Surf, boliche
e futebol”? Faça-me o favor, Mau. Você nunca surfou na vida. u_u
Você pode enganar esses imbecis da internet, mas a mim você não engana!
Eu fiquei rolando os olhos na sua lista de cores e animais favoritos. Você
provavelmente não usou nem dois segundos pra pensar nessas perguntas e depois vem
com essa história de “demorei para escrever isso”? Até parece! Você peidou suas
respostas.
E como é que alguém nunca se pesou? Que resposta mais ridícula! Você nunca
fez um exame médico? Ou você fez seu último exame quando tinha 12 anos?
Sobre seu tipo sanguíneo... fala sério, Mau, você está louco pra contar, né? Eu
posso ver os seus dedos coçando para escrever isso.
195
Wanju Duli
Como esperado, você não contou seu nome. Eu não sei seu nome real. Você nunca
me contou. Já tentei descobrir muitas vezes. Como é que você faz para esconder tão
bem?
E agora, o principal: sobre a sua idade.
PORRA, FINALMENTE!!!! Você finalmente contou! Não acredito!! Eu
esperei TANTO por esse dia!! Estou quase chorando!
Eu sempre achei que você tinha 22 ou 23 anos. Sei lá porque achei isso. Quando
eu te vi pessoalmente pela primeira vez eu percebi que você era meio adolescentezinho.
Então eu fiz os cálculos e cheguei mais ou menos nesses números.
Mas você é ainda mais novo do que eu pensei. Que fofo. :)
Você nunca mencionou nenhuma vez sua idade na internet. Sei disso porque eu
pesquisei bastante. Então esse é um momento histórico, gente! TODO MUNDO vai
estar falando sobre isso hoje!!
Muito obrigada, querido, por todos esses momentos de revelações. Você me deixou
sem fôlego! ;)
196
Sociedade do Sacrifício
queria. Por isso, não era estranho o fato de tanta gente ter medo de Mau.
Farah que era meio louca por não ter.
Mau respondeu:
Eu estou até com preguiça de passar os olhos pela sua mensagem e refutar cada
coisa que você disse.
Para início de conversa, não vi nada de errado nas minhas respostas. Foram
respostas normais.
Não há nenhum motivo especial pelo qual eu não conto algumas coisas que você
me pergunta. Às vezes só não estou a fim.
E como você sabe se eu já surfei ou não? Você fica me vigiando 24 horas por dia?
Com certeza não.
Sobre o peso, eu estava sendo irônico. Embora faça muito tempo desde a última
vez que subi numa balança, eu sei mais ou menos quanto peso. Eu só não estava a
fim de dizer, novamente por nenhum motivo especial. Nem sei porque essa pergunta
existe nesses tipos de questionários se o peso de uma pessoa normalmente varia não só
de um dia para o outro mas em diferentes horários de um mesmo dia. Então seria
preciso mudar a resposta do questionário a cada hora?
Eu não sabia que você se incomodava tanto com o fato de não saber meu nome
real. Não é mistério nenhum. Meu nome está na minha carteira de identidade. Você
nunca viu porque não quis.
Agora, a minha idade. Grande coisa.
Satisfeita?
Farah respondeu:
Satisfeitíssima! Obrigada! :]
Até que você é bom nisso, Mau. Quero dizer, dar boas respostas que soam legais,
sem se comprometer.
Se bem que às vezes você escreve tanta besteira que eu sinto até vergonha de te
conhecer. Mas acho que todo mundo pode ter dias ruins.
Independente de você estar num dos seus melhores dias ou nos piores, eu gosto de
você todos os dias. <3
197
Wanju Duli
Eu realmente não aguento mais ler isso. Por favor, parem. Estou quase diabética
com tanto açúcar.
E aquelas listas de vocês. É possível ser mais ridículo?
Mau, você acha que isso aqui é um site de encontros? Yago já disse para vocês
pararem de usar o site oficial da SSC como bate-papo. Fica muito desorganizado. Se
precisarmos enviar uma mensagem séria e urgente e vocês estiverem no meio de uma
dessas conversas irrelevantes, a mensagem irá lá para baixo e ninguém vai ler.
Dê um jeito nisso. Diga para suas convidadas se portarem de acordo.
Sinceramente,
Manu
Por que será que a Manu não escreveu “General do Exército da SSC do Brasil”
no final de sua mensagem, como de costume? Oh, espere. Eu sei porquê. Foi porque
eu a destituí desse posto! Eu a coloquei em outro que é irrelevante demais para sequer
ser digno de menção.
Essas duas senhoritas não são minhas convidadas. Elas são novos membros da
SSCB, com títulos muito mais importantes que os seus. Por acaso, uma delas é
exatamente quem irá te substituir.
Quem você pensa que é para dizer o que devo ou não devo fazer?
E se não está gostando do que escrevemos, simplesmente não leia. Ninguém está te
obrigando a fazer isso.
Como agora seu posto não tem importância nenhuma, eventualmente poderei
bloquear o seu login, retirando o seu poder de escrever postagens aqui no site. Afinal,
como você não coordena mais os Saos e não terá nenhuma notícia importante a
reportar, sua presença aqui não é mais relevante.
Se Yago tem algo a dizer, que ele mesmo me escreva. Não preciso receber
informações de segunda mão.
Atenciosamente,
198
Sociedade do Sacrifício
Mau
Farah escreveu:
HÁ, HÁ, HÁ!!! BEM FEITO, sua bruxa!!! Quis posar de poderosa e tomou
nos dedos!!
A única ridícula aqui é você, meu bem. Você que não está se portando de acordo.
É melhor que conheça seu lugar.
Então seja uma boa garota, obedeça seu líder e suma daqui.
Vadia.
Hi, hi, hi ;p
Atenciosamente,
Farah,
199
Wanju Duli
Cada vez mais eu entendia porque Vic tinha optado pela execução:
para ter a chance de morrer com dignidade em vez de passar a vida
inteira sofrendo humilhações de Mau. E cada vez mais eu começava a
achar que havia sido a escolha mais acertada.
No final, a morte não era a pior coisa que poderia acontecer com
uma pessoa. Mau não tinha aprendido nada com a situação de Vic e
continuava a cometer os mesmos erros.
Dessa vez foi Yago que escreveu:
Parabéns, Mau. Você encontrou uma vice-líder que consegue escrever mais
besteiras em uma única postagem do que você faria em dez. Eu jamais imaginaria
que isso fosse possível. Incrível!
Quanto a Dan-Dan, seja muitíssimo bem-vinda. Espero que você tenha uma
excelente estada na SSC do Brasil. Qualquer coisa que precisar, estarei à disposição.
Mau, pare de incomodar Manu. Você já a puniu o suficiente. Agora deixe-a em
paz.
Eu sei que você é o líder e eu não posso mandá-lo fazer nada, mas aceite meus
conselhos como a sugestão de um amigo.
Pense bem no que está fazendo. Sugiro também reconsiderar a decisão de manter
Farah como vice-líder. Em poucos minutos aqui ela já fez a maior bagunça. Então
imagine o que ela poderá fazer mais adiante.
Sinceramente,
Yago
200
Sociedade do Sacrifício
Yago, não seja desagradável. Não esqueça que sou a vice-líder e me encontro
acima de você. Portanto, me respeite.
A SSCB sempre foi essa zona? Os subordinados não possuem respeito por seus
superiores? Como foi que Mau permitiu que isso acontecesse?
Mau, eu realmente acho que você precisa começar a executar algumas pessoas.
Manu e Yago, por exemplo, não ajudam em nada. Só atrapalham. É dever do líder
se livrar de um peso morto.
E é dever da vice avisar ao seu superior quando os subordinados estão se portando
como uns escrotos miseráveis <3
Beijinhos, Mau!
Farah
Tem razão, Yago. Preciso me livrar de Farah antes que seja tarde.
Não sei onde eu estava com a cabeça quando a chamei. Eu me vi nela agora e não
gostei da sensação. Seria um pesadelo se eu me tornasse assim. E se ela estiver ao meu
lado, é o que vai acabar acontecendo.
Manu, me desculpe por ter sido tão insensível. Você receberá de volta o seu cargo
como General do Exército da SSCB.
Dan-Dan ocupará o lugar de vice-líder. Farah voltará para a Indonésia hoje à
noite no primeiro voo disponível.
Nããããããããããããããooooooooooo!!!!!! :(
201
Wanju Duli
Que merda, Mau! Você sempre coloca como vice a menina que você gosta. Isso
significa que você gosta mais de Dan-Dan do que de mim? Você nem a conhece tão
bem assim!
Dan-Dan, você é meu próximo alvo. Cuidado com o que vai fazer. Se encostar
um dedo no meu Mau, eu juro que farei algo realmente horrível com você.
Mas eu ainda sou a vice-líder da SSC Internacional, não é?
Eu concordo em voltar com uma condição, Mau: que você me acompanhe até o
aeroporto. Quero que você me pegue de táxi em casa e espere o avião comigo no
aeroporto internacional até eu embarcar.
Se não cumprir essas condições, eu vou continuar aqui enchendo seu saco até te
convencer a me aceitar como vice outra vez.
Você não está em posição de estabelecer nenhuma condição. E como ousa ameaçar
Dan-Dan?
Enfim, eu já cansei dessa conversa. Vamos acabar logo com isso.
Você geralmente me vence pelo cansaço e acabo atendendo todas as suas vontades à
contragosto, só para não continuar ouvindo você grasnar no meu ouvido. Apesar de
você ter 11 anos a mais que eu, você age como se tivesse 11 anos a menos. Eu fico
exausto em ter que te tratar como uma criança mimada. Sempre foi assim.
Infelizmente, você ainda é a líder da SSC Internacional, mas por enquanto. A
continuidade de sua posição dependerá de como você se portar nos próximos dias.
Eu te acompanharei até o aeroporto se você prometer calar a boca. Eu só vou
fazer isso porque eu sei que se eu recusar você vai me infernizar pelas próximas horas.
E isso foi tudo. Nenhuma nova postagem apareceu no site nas horas
seguintes.
Os dois tinham mencionado que iriam até o aeroporto internacional
de São Paulo naquela mesma noite. Então algumas pessoas na internet
estavam propondo procurá-los, mas no final desistiram. Disseram que o
aeroporto de Guarulhos era enorme e a chance de localizá-los era
extremamente baixa, principalmente porque ninguém sabia como eles
eram fisicamente.
202
Sociedade do Sacrifício
No entanto, quando já era bem tarde da noite, uma pessoa clamou tê-
los visto ao acaso no aeroporto. Tirou umas poucas fotos ruins para
provar e relatou o ocorrido numa postagem de seu blog:
203
Wanju Duli
porque de vez em quando minha irmã menciona esses negócios. E ao notar que a
garota chamava o carinha de Mau, bastou somar dois mais dois.
Na verdade eu ainda não tinha tanta certeza assim se aquele era mesmo o Mau.
Eu poderia estar começando a delirar, de tanto minha irmã encher minha cabeça com
essas merdas, e ver coisas onde elas não existiam. O cérebro prega essas peças: tenta
localizar padrões nas coisas ao nosso redor com base naquilo que já vimos ou
estudamos. Por isso pessoas que estudam coisas como astrologia ou numerologia, por
exemplo, começam a encontrar um monte de coincidências onde talvez elas não
existam. Infelizmente até os cientistas podem ser acometidos por esse mal, bolando
teorias e realizando testes que parecem fazer sentido com base em outras teorias que
aprenderam, quando na verdade o cérebro apenas conectou os padrões de forma
equivocada. Por isso muitas teorias científicas são derrubadas de tempos em tempos
por outras melhores. E por isso a ciência é melhor do que essas religiões e esoterismos:
eles admitem que podem estar errados e tentam consertar, não clamam possuir
verdades absolutas.
Mas, vejam só, eu me empolguei de novo no meu discurso e esqueci do que eu
estava falando. Eu faço isso com frequência. (Se quiserem saber mais da minha
opinião sobre esse assunto, leiam minha postagem chamada: “O Triunfo da Razão
na Idade do Consumo”).
Quando achei que eu estava apenas delirando e que minha mente havia feito uma
associação ridícula, pensei racionalmente e decidi que era altamente improvável a
probabilidade de eu ter encontrado o tal do Mau no aeroporto. Por isso, retomei a
leitura das minhas notícias.
Porém, aquela garota falava muito alto e com uma voz estridente e isso estava me
desconcentrando. Eu tentava ler minhas notícias, mas metade da minha atenção
estava direcionada na voz dela e lembro claramente de tê-la ouvido mencionar sobre as
últimas postagens que eles trocaram no site oficial da SSC do Brasil. Eu sabia que
site era aquele, porque minha irmã não fazia outra coisa além de ler aquela bosta.
Eu não podia acreditar que eu ia fazer aquilo, mas eu precisava checar. Eu
queria tirar aquela dúvida da minha cabeça de uma vez por todas.
Minimizei a página das notícias e abri o site da SSC no celular. Passei os olhos
pelas últimas postagens. E qual não foi a minha surpresa ao descobrir que eles
mencionaram claramente que iriam até o aeroporto internacional naquela mesma
noite?
Até mesmo para um cético como eu, aquelas evidências não poderiam ser mais
claras: aquele rapaz ao meu lado definitivamente era Mau e a moça que conversava
204
Sociedade do Sacrifício
com ele era uma tal de Farah que também postou no site. Eu nunca tinha ouvido
falar nela e não fazia a menor ideia de quem ela fosse, mas devia ser um dos
Sacrifícios estrangeiros.
A garota mencionou algo sobre estar brincando quando ela sugeriu que eles
deveriam executar não sei quem. Depois ela mudou completamente de assunto, disse
que estava com fome e que queria comer no McDonalds antes de embarcar. Mau
aceitou a sugestão e os dois saíram de lá.
Poucos minutos depois, recebi uma ligação da minha mãe, que me avisou que eu
tinha esquecido minha escova de dentes. Eu disse a ela que não havia nenhum
problema, pois eu pretendia passar no supermercado quando chegasse em Buenos
Aires.
Antes de desligar o telefone, tive uma ideia. Pedi para que minha mãe passasse o
telefone para minha irmã.
“Isa, adivinha só quem está aqui no aeroporto. É aquele tal de Mau de quem
você vive falando, sabe? O Mau dos Sacrifícios”, eu disse a ela, curioso para escutar a
reação.
Ela não acreditou imediatamente. Ela nem tinha lido as últimas postagens do
site, porque estava ocupada estudando para uma prova. Então eu a mandei ler e ela
teve um chilique. Não parou de gritar no telefone e disse que me mataria se eu não
tirasse uma foto deles.
Subitamente, eu me arrependi de ter contado a ela, porque eu não tinha nenhuma
intenção de perseguir os dois pelo aeroporto. Eu ainda tinha um tempo sobrando antes
do embarque, mas eu não queria perder esse tempo fazendo isso.
Lembrei que os dois disseram que iam comer no McDonalds. Então eu resolvi
dar uma olhada lá. Se eu não os achasse lá desistiria de procurá-los e depois diria
para a minha irmã que infelizmente os havia perdido de vista.
Porém, eu os localizei assim que cheguei no McDonalds e sentei numa mesa
próxima. Tirei algumas fotos pelo celular discretamente. São essas que eu coloquei na
postagem. Não ficaram muito boas, mas eu não dou a mínima para isso, pois já fiz
muito fazendo o que minha irmã pediu. Ela não disse que as fotos precisavam ser
boas.
Os dois estavam rindo de alguma coisa que eu não entendi o que era, pois de onde
eu estava sentado agora eu não conseguia ouvi-los tão bem quanto antes.
Naquele momento Mau avisou à garota que ia ao banheiro rapidamente e logo
estaria de volta. Aproveitei esse instante para tirar uma foto mais visível dela, que
também postei aqui. Mas eu não tive paciência para esperar o carinha voltar e resolvi
205
Wanju Duli
sair de lá, até porque a garota parecia ter olhado na minha direção por um momento e
podia começar a desconfiar que eu estava tirando fotos dela. Ela é uma garota bonita,
como vocês podem ver, e eu não queria que ela ficasse achando que eu fosse um
pervertido aleatório. Nunca tive essa fama e não pretendo começar a ter só por causa
da retardada da minha irmã.
Quando entrei na sala de embarque fiquei sabendo que meu voo ia atrasar. Por
isso, escrevi essa postagem enquanto não tinha mais nada para fazer.
Espero que gostem da minha postagem de hoje, pois não é todo dia que se
encontra um Sacrifício na rua. Como se isso fosse grande coisa, rs.
Eu não fazia a menor ideia de que a minha postagem inocente fosse gerar essa
imensa repercussão. Sério, pessoas, de onde vocês saíram? Como encontraram meu
blog? Caramba!
206
Sociedade do Sacrifício
Esse é meu blog pessoal que apenas poucos amigos leem. Eu não escrevi aquilo
ontem imaginando que centenas de defensores dos Sacrifícios leriam, ou eu teria sido
mais comedido com minhas palavras. A maior parte dos meus amigos não liga para
Sacrifícios ou é neutro em relação a eles, então eu fiz muitas brincadeiras, não para
ofender ninguém.
Eu dou esses esclarecimentos em respeito àqueles que comentaram educadamente
sobre o que escrevi. Quem fez comentários rudes ou apenas me xingou sem mostrar
nenhum argumento, irei ignorar. Inclusive já apaguei alguns comentários que saíram
do limite do tolerável.
Infelizmente não tenho tempo de ler e responder cada comentário porque estou
extremamente ocupado. Eu vim para Buenos Aires para trabalhar e não para passar
as férias. Entendam que eu estou sem tempo para me defender e dar bons argumentos
para explicar meu ponto de vista. Por isso estou pensando em fechar o meu blog pelos
próximos dias e reabri-lo somente quando eu voltar de viagem.
Repito, estou sem tempo agora de explicar o que realmente penso sobre Sacrifícios.
O que vou escrever aqui será um comentário breve, somente para vocês terem uma
noção do que se passa na minha mente.
Eu respeito religiões, tenho alguns amigos religiosos e respeito as crenças deles.
Não sei praticamente nada sobre astrologia, então é melhor eu me abster de dar uma
opinião mais profunda. E sobre os Sacrifícios, eu sei que é verdade que eles treinam
em áreas remotas e não sei direito o que eles fazem, então não posso julgar. Eu não
sei se esses Deuses existem ou se eles podem causar desastres naturais. Os Sacrifícios
dizem ter evidências, mas as mantém em segredo, então como posso saber?
Em suma, eu dei uma série de opiniões ontem sobre assuntos que não conheço a
fundo. Não pensei muito antes de escrever, porque pouquíssimas pessoas leem meu
blog. Só fiquei com vontade de relatar o que aconteceu porque achei que seria divertido.
Minha irmã me disse hoje que o Mau tem o costume de ler coisas que escrevem
sobre ele na internet e ela falou que é possível que ele comente na minha postagem. Isso
jamais se passou pela minha cabeça.
Bem, Mau, se você ou outros Sacrifícios lerem o que escrevi, peço desculpas.
Também me desculpo pelas fotos, embora você deva se lembrar que isso não tenha sido
culpa minha, já que eu apenas atendi o pedido da idiota da minha irmã. Quem devia
estar se desculpando é ela.
Isso é tudo. Espero que ninguém encha essa postagem de comentários imbecis,
senão eu vou ter que fechar o blog por um tempo até a poeira baixar. E não farei isso
porque estou sem argumentos, mas porque eu estou realmente sem tempo! É uma
207
Wanju Duli
agonia sem tamanho ver pessoas dizendo coisas com as quais você não concorda e não
poder se defender. Então por enquanto eu prefiro impedir que se escreva qualquer
coisa.
208
Sociedade do Sacrifício
209
Wanju Duli
Já que tantos insistiram para que eu lesse, eu li a postagem do blog daquele sujeito
que foi para Buenos Aires.
Sobre as coisas que ele disse, sejam elas a favor ou contra os Sacrifícios, eu não
dou a mínima. Já cansei de ler textos parecidos e eles já não possuem nenhum efeito
sobre mim.
Nós temos boas razões para não divulgar o que sabemos sobre os Deuses e isso é
tudo. Se quer saber mais a respeito, torne-se membro da Sociedade do Sacrifício, passe
oito anos treinando e se torne um Sacrios. Essa é a única forma de uma pessoa
conquistar o direito de ter acesso a essa informação. Todo Sacrios conhece o motivo de
ela ser sigilosa.
Sobre pessoas que seguem a mim e a outros Sacrios para tentar tirar fotos: sério,
parem com essa estupidez. Se uma foto minha cair na internet, uma que mostre
claramente o meu rosto, isso seria péssimo não somente para meu trabalho como líder,
mas prejudicaria toda a sociedade. Nós nos movemos em sigilo não porque achamos
bonito, mas porque é necessário.
Se eu não puder andar livremente por aí, movendo-me dos acampamentos para as
cidades, sendo reconhecido por onde eu passe, eventualmente a localização dos nossos
esconderijos será revelada e isso vai dar muita merda.
Se tivermos que mover todos os nossos acampamentos e escritórios de lugar, isso irá
nos tomar grana e tempo, duas coisas que não temos.
Então parem de ser ridículos e colaborem. Eu escrevo coisas na internet e às vezes
falo demais, mas eu tenho uma noção do que posso ou não dizer. Às vezes passo um
pouco do limite, porque sou humano e cometo erros. Mas eu não preciso de ajuda para
que esses erros se tornem piores.
Para mim não faz diferença nenhuma se os peitos da Farah apareceram ou não
na internet. Estou mais preocupado com o rosto. Isso não irá prejudicar a SSCB
diretamente, já que ela não está mais conosco, mas vai prejudicar a SSC na Indonésia
e a SSC Internacional. Talvez ela seja até mesmo tirada de sua posição de vice da
divisão internacional por causa desse lixo.
Quem é fã dos Sacrifícios nos admira por quê? É por escrevermos bobagem na
internet ou é porque temos uma missão fundamental que os mantém vivos? Está na
210
Sociedade do Sacrifício
hora de repensar o que é mais importante para vocês: ver nossa cara ou nos apoiar no
que fazemos.
A única maneira de obter permissão de nos ver pessoalmente é se tornando
membro. Tem muito boçal que se torna membro só pra ver os Sacrios e depois pula
fora. Nós estamos começando a adotar medidas mais rigorosas para que isso não
aconteça, como aumentar a dificuldade dos exames de seleção.
Para finalizar, darei informações sobre outros assuntos de importância.
Mei-Xiu aceitou a posição de vice-líder que a ofereci. Ela já é efetivamente a vice
a partir de hoje.
Manu também aceitou seu cargo de volta, ainda que com alguma relutância. Na
verdade, tive que insistir para que ela o aceitasse. Tivemos uma longa conversa. Não
foi uma conversa fácil.
Eu e Manu trabalhamos juntos há muito tempo e eu conheço, mais do que muita
gente, a competência e poder que ela possui. Eu fui um tolo em retirar dela uma
posição que ela conquistou por direito.
Pelo menos a vinda breve de Farah me ajudou a enxergar esse erro que cometi.
Sendo assim, agradeço a Farah, embora ela tivesse intenção clara de atrapalhar muito
mais do que ajudar e a sua ajuda tenha sido apenas circunstancial.
Estou furiosa!!!!
Eu tô muito puta com esse cretino que colocou fotos minhas na internet.
Mau, você não vai fazer essa merda comigo. Não vai tirar minha posição na
SSCI! Eu já tô triste por terem divulgado uma foto minha tão... pervertida, e você
não precisa tornar meu dia pior me expulsando! :(
Sério, eu tô chorando! Eu me sinto humilhada. Provavelmente você não entende
isso, porque ninguém tirou uma foto do seu pau e divulgou na internet! Então não me
venha com essa de “para mim não faz diferença nenhuma se os peitos da Farah
apareceram ou não na internet”, seu bosta insensível!
211
Wanju Duli
Por que você escreveu em inglês se sabe que não posso ler? Tive que colar a sua
mensagem no Google Tradutor. Se eu tiver entendido errado algo que você disse, a
culpa não será minha, mas exclusivamente sua.
Em respeito à sua tristeza, não irei tirá-la de sua posição de vice-líder da SSCI.
Então não se preocupe mais com essa questão. Como a SSCI possui poucas unidades
físicas, o fato de seu rosto ter aparecido na internet não vai gerar muitos danos.
Sobre o que você falou do Brasil, é melhor que retire o que disse imediatamente.
Não ouse criticar meu país, caralho! Não saia dizendo coisas como “no Brasil se faz
isso ou aquilo” quando você não sabe. Isso varia de pessoa para pessoa: algumas não
se importam de mostrar o corpo na internet e outras pessoas se incomodam. Então não
meta no meio as supostas diferenças culturais entre os nossos países nessa questão.
Se isso serve de consolo, eu gostaria de recordá-la que não apareceu nenhuma parte
do seu corpo que não deveria naquela foto, se entende o que quero dizer. Na minha
opinião, a sua integridade está intacta. Na verdade, estou vendo mais elogios sobre
sua foto do que comentários maldosos, então eu sugiro que você tome uma xícara de
chá para se acalmar e esqueça esse assunto, pois você sabe que sensações de internet
são passageiras e com o tempo ninguém mais estará comentando.
212
Sociedade do Sacrifício
Sei que muitas pessoas estão elogiando a foto, mas muita gente elogia sem o menor
respeito. Estão usando termos que chorei quando li. Estão me chamando de coisas.
Eu não aguento mais ler.
Isso está pegando muito mal para a SSC da Indonésia. Estão dizendo que a líder
(já que agora que você me expulsou voltei a ser a líder) tem peitos de puta. Veja bem,
não tenho nada contra prostitutas. Mas isso é degradante. É óbvio que não dizem isso
de um jeito bom.
Sobre a sua xícara de chá, Mau, enfia no cu!
Você não faz a menor ideia de como eu tô me sentindo. Sim, eu tô fazendo o
maior drama, mas é porque eu tô triste de verdade. Não tô fazendo cena. Hoje vou ter
que tomar remédios pra dormir, pois sem os remédios não vou conseguir.
Farah, estamos chegando num ponto em que não está legal conversarmos sobre isso
em público.
A partir daqui, vamos conversar privadamente pelo WhatsApp. Já oferecemos
muito entretenimento para os cretinos da internet.
Você é como uma irmã para mim. Você fala muita besteira, faz merdas ainda
piores. Apesar disso, eu não gosto de te ver triste. Estou odiando toda essa situação e
quero te ajudar.
Pode ser assim?
Farah escreveu:
Mau escreveu:
213
Wanju Duli
Farah disse:
Nossa, está até citando Aristóteles? Que profundo! É melhor tomar cuidado,
Mau, ou alguém pode descobrir que você é inteligente :p
Mau, por que você nunca me diz essas palavras queridas pessoalmente?
Tá bom, vamos continuar conversando pelo Whats. Por lá a gente pode dizer
muito mais coisas que jamais diríamos por aqui ;)
Grato,
214
Sociedade do Sacrifício
Tejas
E Tejas respondeu:
Filho da puta? Eu? Por que nunca me contou antes que éramos irmãos, Mau?
Por favor, ignore-me. Sou somente um Sacrios curioso e pouco importante que
estava passando aqui por acaso e não resisti em escrever.
Esqueci-me de adicionar minhas credenciais no fim. Então agora o farei.
Com amor,
Tejas
Mau respondeu:
Atenciosamente,
Mau
215
Wanju Duli
216
Sociedade do Sacrifício
É com pesar que anuncio que o Sacrios Paulo será excomungado da Sociedade do
Sacrifício do Caos do Brasil e executado na próxima manhã, às 6 em ponto no
Acampamento A.
O crime cometido foi a divulgação de informações confidenciais sobre o mundo dos
Deuses para não membros. Contudo, o ato que realmente culminou na sentença foi
levar um não membro ao outro mundo. Isso é expressamente proibido, conforme consta
na Lei.
Todos os Saos e Sacrios devem comparecer obrigatoriamente ao local de execução e
assistir sem desviar os olhos. Os não iniciados estão proibidos de assistir, sob pena de
expulsão irrevogável e vitalícia.
Atenciosamente,
Mau
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Wanju Duli
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Sociedade do Sacrifício
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Wanju Duli
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Sociedade do Sacrifício
Arrrrrrrrrrghhhh!! Que raiva! Isso só aconteceu porque eu não estava perto pra te
proteger!
Todas essas vacas que ficam dando gritinhos por você são como cobras, só
aguardando o momento certo para dar o bote e te devorar.
Você que é muito inocente e não sabe dessas coisas. Você é muito novinho. Ainda
não sabe das artimanhas que as mulheres usam. Você cai em todas elas! Menos nas
minhas!! ><
Ah, eu vou chorar...!
Eu queria que seu primeiro beijo fosse comigo. Eu ainda tinha esperanças. Mas
agora, com essa notícia, meu mundo desabou.
Por favor, me diga que ainda não transou com ela! Eu juro que eu vou morrer se
você disser que trepou com aquela perua. Então NÃO, não me diga!! :((
Meu coração está em pedaços.
Dan-Dan, eu te odeio!!!
Mau respondeu:
...
Já acabou?
Eu não preciso dar nenhuma satisfação para você, mas vou dar em consideração
aos nossos anos de amizade (se é que dá pra chamar isso de amizade) apesar de sua
má educação.
Sim, eu e Dan-Dan estamos namorando. Já faz mais ou menos um mês. Você
está meio atrasada. Eu simplesmente não senti a necessidade de anunciar isso na
internet. Quando eu estava no início da adolescência eu tinha a necessidade de
anunciar para o mundo tudo o que eu fazia e escrever dramaticamente sobre isso na
internet. OK, eu ainda faço isso às vezes, mas estou fazendo um pouco menos agora.
Eu sabia que você ia fazer o maior drama. Eis outro motivo para eu não
anunciar. Eu não queria que você a matasse no meu primeiro dia de namoro.
Sobre a questão do primeiro beijo, você também está meio atrasada. Meu primeiro
beijo foi quando eu tinha 15 anos, com a Vic.
Foi em meio a uma luta contra os Deuses particularmente violenta. Você não
estava nessa. Aconteceram umas merdas, a gente se ferrou e pensamos que íamos todos
morrer. Eu tinha me escondido com a Vic e um dos Deuses chegou para nos matar.
Então a gente se beijou. Foi muito rápido. Sem razão, sem pensar. A gente se
beijou e depois atacamos o filho da puta.
221
Wanju Duli
A gente só não morreu porque virou o dia. Eu não vou dar detalhes porque não
posso falar das viradas de dias por aqui. E isso não vem ao caso.
Só pra deixar claro, esse beijo não significou nada. Pelo menos não para Vic. Ela
me disse para eu esquecer e pediu para nunca falarmos sobre aquilo, nem mesmo entre
nós. Nada mudou entre eu e ela depois do beijo.
Parece uma história romântica, mas foi uma história fria. A Vic foi sempre meio
fria e bastante severa sobre a necessidade da distância entre nós dois.
Então, sim, eu menti quando disse outras vezes que nunca tínhamos encostado
um dedo um no outro. Mas foi só isso.
Portanto, meu segundo beijo foi com Dan-Dan. Mas agora eu já parei de contar.
Sobre se eu já transei ou não com ela, isso não é da sua conta.
Se você tentar fazer qualquer coisa contra ela e a ação for consumada, você será
executada.
Farah escreveu:
Mau disse:
222
Sociedade do Sacrifício
Por que não namora seu vice, o Afif, que é louco por você? Não é para isso que
serve um vice?
Eu te coloquei de vice antes mesmo de Dan-Dan. Azar seu que você desperdiçou
sua chance falando merda.
Mau, isso que você escreveu sobre o vice foi rude. De muitas formas.
Você quer dizer que estava atirando para todos os lados. Primeiro tentou Vic,
depois Manu, depois Farah e acabou me escolhendo porque eu era a única que
sobrava. É isso?
E outra: Farah não faz outra coisa que não seja me xingar desde que começou
essa conversa e você não me defendeu. Não vai me ajudar muito você a matar depois
que eu já estiver morta. Eu gostaria que você me defendesse enquanto estou viva, se
não for pedir muito.
Farah escreveu:
!!!
Não me diga que me colocou como vice porque estava mesmo me visando, Mau?
Você estava a fim de mim??? :o
Então eu ainda posso ter esperanças? Se eu chutar essa chinesa de volta pra
China você namora comigo?
Dan-Dan, vê se cala a boca. Você pode se defender sozinha. Não precisa de um
homem pra isso.
E eu nem gosto do Afif, ele é feio e tem cheiro de cebola. Sei lá, ele é meio fodido
:/
Mau disse:
Ai, meu Deus. Já estou vendo que isso vai acabar mal. E a culpa vai ser sua,
Farah, que iniciou essa conversa imbecil!
Bem, agora que já estamos rolando nessa bosta, vamos até o fim.
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Wanju Duli
Sim, Dan-Dan, eu estava atirando para todos os lados. Tem alguma coisa de
errado em procurar uma namorada? Isso é crime? É algo sujo? Eu preciso fazer um
celibato de quanto tempo entre cada garota que me diz um não?
Além disso, a sua conta está errada. Antes de convidar Farah eu chamei Sahana
para ser minha vice, mas ela recusou. Portanto, você foi minha quinta opção.
Desculpe.
Eu tento te defender como posso, Dan-Dan. Farah tem a boca tão suja que se eu
tivesse que te defender de cada xingamento dela eu teria que escrever uma Bíblia.
Infelizmente, meu cargo de líder me impede de ter tempo para isso, senão eu escreveria
com o maior prazer, já que é de meu maior interesse defendê-la.
Sobre a sua pergunta, Farah, sim, eu te chamei como vice porque inicialmente eu
tinha intenção de te observar antes de tomar qualquer decisão. Mas não precisei
observar muito. Acho que eu estava louco quando te chamei, ou tenho memória curta.
Afif escreveu:
Dan-Dan disse:
Mau, tudo que você consegue dizer é “isso vai acabar mal” e continuar escrevendo
bobagem. Se acabar mal a culpa não vai ser de Farah e sim sua. Ela não está te
obrigando a escrever tudo isso que acabei de ler.
Farah, vê se para de criticar o meu país! Você não sabe nada sobre a China. Nós
somos “apenas” a maior economia do mundo. Nós somos “apenas” um dos países
mais importantes do mundo, por várias razões. Se eu fosse escrever todos os fatos
incríveis sobre o meu país eu escreveria uma Bíblia maior do que a que Mau
escreveria para me defender se ele dispusesse de seu precioso tempo para isso.
Eu não tenho nem vontade de apontar todas as coisas idiotas que você escreveu,
Mau. Você não se dá conta do ridículo?
Farah escreveu:
224
Sociedade do Sacrifício
PS: Dan-Dan, o seu país ser a maior economia do mundo não tem nenhuma
relação com o fato de você ser feia! :o
Mau escreveu:
Puta merda.
Tenho a opção de sair correndo e deixar vocês duas discutindo?
Dan-Dan disse:
Ah, sim, não quero mais ser sua vice. Estou indo embora para Shanghai hoje
mesmo. Vá pedir a líder de outro país como vice/namorada. Ainda tem muitos
outros países para escolher. Divirta-se!
225
Wanju Duli
Mau escreveu:
Farah disse:
Mau disse:
Farah escreveu:
226
Sociedade do Sacrifício
Mau escreveu:
Pensando bem, eu irei para alguma outra praia e não vou te informar o nome.
Yago escreveu:
Muito obrigado, Mau, por emputecer a líder da SSC da China. Agora quem vai
ter que enviar os e-mails se desculpando para mantermos as relações internacionais
intactas serei eu.
E... você quer que eu seja o vice?
Não, obrigado, Mau. Não quero transar com você.
Mau escreveu:
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Wanju Duli
Houve poucas notícias nos dois sites no mês seguinte. Será que Mau
estava ficando mais reservado sobre o que ele escrevia na internet? Ele
tinha mencionado isso: que estava tentando contar menos coisas.
Eu já estava tão acostumada a ler o que ele escrevia nos últimos seis
anos que deixar de ler seria uma quebra completa na minha rotina. Eu
ficaria completamente perdida. Poderia até ter uma crise existencial.
Mas acho que eu sobreviveria. Provavelmente não seria tão ruim
quanto parecia. Isto é, se um dia ele deixasse mesmo de escrever.
Quando completei quatro meses no acampamento, celebrei mais essa
vitória. Eu ainda não tinha desistido! Eu me sentia orgulhosa.
Nesse mês, finalmente Sarthak apareceu por lá. Eu o via tão
raramente que era difícil acreditar que ele era de fato o nosso
coordenador.
Ele parecia zangado. Chegou com o carro numa velocidade enorme,
derrapando os pneus, e parou subitamente. Quando saiu do carro, jogou
todos os seus pertences num canto e fechou a porta com um chute.
Eu e duas das minhas companheiras de barraca estávamos passando
pelo local quando vimos isso. Nós nos entreolhamos.
– Shhh não diga nada – recomendou Roshni – quando Sarthak está
irritado, é muito perigoso. Ele tem essa fama de fazer umas coisas loucas
quando fica fora do sério.
Putz. Aquilo era meio... sei lá. Será que eu deveria mesmo ficar feliz
porque o coordenador estava presente?
– Vamos lá, Vivaan – Sarthak disse ao Sacrios que o substituía no
momento – passe-me as informações de uma vez. Você é muito lento.
– Claro, claro, senhor – Vivaan estava meio atrapalhado, com um
monte de papéis nas mãos – deixe-me só achar as listas. Você quer que
eu reporte sobre nosso progresso em...
– Pensando bem, prefiro que não reporte nada – concluiu Sarthak –
passe-me apenas as informações mais urgentes. Contudo, faça uma
seleção das partes realmente relevantes dentre suas coisas urgentes, se é
que me entende.
A voz de Sarthak era grave e assustadora. Ele também tinha uma
barba que impunha respeito e era alto. Eu preferia não chegar muito
perto dele.
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Sem escolha, fomos até a barraca dos novatos. Quando entramos lá,
vimos três rapazes.
Um deles chamou minha atenção de imediato: ele era negro, com os
cabelos nos ombros em trancinhas. Ele era muito gato! Tenho certeza de
que minhas duas amigas pensaram a mesma coisa, pois foi para ele que o
olhar delas também se direcionou.
– Hã.... oi! Eu sou Mei-Xiu, de Taiwan. Essas são Roshni, do Nepal,
e Antônia, do Brasil. E vocês, quem são?
– Meu nome é Benjamin, da Nigéria – informou o rapaz negro.
Nigéria! Era lá que Sahana estava. Era melhor eu prestar atenção
nessas coisas.
A Nigéria estava importante ultimamente na Sociedade do Sacrifício.
Então será que aquele rapaz tinha sido mandado para a Índia por
Sahana?
– Sou Rizal, das Filipinas.
Ele tinha os olhos puxados e a pele meio morena. O sorriso dele era
simpático.
Para ser sincera, os três pareciam simpáticos. Achei que não teríamos
dificuldade com eles.
– Caio, do Brasil.
Nossa, que susto! Quando ele disse: “Caio”, eu pensei: “O quê, meu
irmão?”, mas não era ele, é claro. Eu quase ri.
– Meu irmão também se chama Caio – eu disse a ele, em português –
ele é Saos na SSCB.
– Putz, que coincidência – ele sorriu.
Porra, eu queria voltar logo pro Brasil. Se eu tivesse meu irmão e
meus colegas como companhia, provavelmente o treinamento não seria
tão difícil. E seria bem mais divertido.
– Você é o segundo brasileiro a vir para cá – eu disse a ele – eu fui a
primeira.
– Eu não sabia.
Se eu ficasse conversando com o rapaz brasileiro eu ia perder de dar
em cima do nigeriano gato. Bem, nós acabamos conversando todos
juntos.
– Então... por que vieram pra cá? – perguntou Mei-Xiu.
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tinha minhas quatro amigas, mas Caio não parecia muito próximo de
Rizal e Benjamin, embora eles dormissem na mesma barraca.
– Estou bem – ele disse – um pouquinho entediado, mas isso eu já
esperava.
– Fica melhor depois – respondi, incerta – está gostando das
meditações?
– Eu nunca tinha meditado antes. É difícil.
– Eu sei. Mas também melhora com o tempo.
Eu não sabia o que dizer para animá-lo.
– Por que decidiu se tornar Sacrifício? – perguntei.
– Não sei bem se eu decidi. Eu somente entrei para a SSC porque
parecia a coisa certa a fazer. Eu já ouvia sobre isso há muito tempo.
– Eu também – contei – desde criança eu comecei a ler na internet os
boatos incríveis e fiquei fascinada. Quando eu tinha doze anos decidi que
era isso o que eu queria fazer da vida. Mas agora que estou aqui, me
pergunto todos os dias: “por que diabos escolhi uma coisa tão difícil e
sofrida?”. Mas no fim do dia eu me lembro. E tudo de repente vale a
pena.
– Eu não me arrependi – ele deixou claro – acho maravilhoso. Na
verdade, não me vejo fazendo outra coisa.
– Isso é incrível – eu disse.
Eu também queria adquirir aquela confiança. Eu queria aprender com
ele.
– Isso não significa que seja fácil – ele acrescentou – mas... não
precisa ser fácil. Quando é difícil, eu encaro como uma oportunidade
para eu dar o melhor de mim. Seja fácil ou difícil, todas as etapas podem
ser encaradas como extraordinárias.
– Desculpe... de onde você é? – resolvi perguntar, pois eu não estava
reconhecendo o sotaque.
– Fortaleza.
– Legal. Qual é o seu Sacrifício preferido?
Ele parou para pensar na minha pergunta.
– Nunca pensei nisso – ele concluiu – qual é o seu?
– Raghav – respondi, de imediato – desde criança eu o admiro. Eu
quase caí para trás quando ele foi me pegar no aeroporto quando
cheguei, para me trazer aqui.
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Eu adoro o mar.
Estou tendo umas férias bem merecidas na praia, com muito surf, água de coco e
garotas bonitas.
Aqui vai algumas fotos.
Yago, espero que esteja cuidando de tudo. Se você ferrar com tudo, vou te obrigar a
vir para a praia comigo da próxima vez, como punição.
Esse segurando a prancha não é você! É só a foto de um cara aleatório que você
achou na internet!! u_u
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Olá, Antônia!
Fico contente em receber notícias suas. É ótimo saber que você já conversou com
Sahana.
Vejo que já tomou sua decisão de retornar ao Brasil. Verei o que posso fazer.
Ainda não posso te garantir com certeza se teremos vaga para você para esse próximo
semestre. Nós ainda estamos avaliando as últimas aplicações dos novos candidatos e
houve outros pedidos de transferência, por isso será difícil.
Felizmente, agora temos uma lista de espera. Estamos com um novo
acampamento para os Saos mais avançados e isso liberou mais vagas. Sendo assim,
acho que você pode ficar otimista.
Eu irei te enviar um novo e-mail daqui duas semanas te informando se sua
transferência será possível. Sei que será meio em cima da hora, mas estamos com
muitos afazeres. Mau resolveu tirar férias num dos piores períodos, em que estamos
particularmente ocupados avaliando os novos candidatos.
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Sinceramente,
Yago
Eu não imaginava que ainda teria que ficar no suspense por mais duas
semanas.
E depois daquele e-mail, eu faria questão de conversar mais com o
nigeriano. Fiquei muito curiosa. Eu andava conversando bem mais com
o brasileiro e quase esqueci dos outros dois.
Pelo jeito, Caio tinha se saído melhor no teste do que eu se já tinha
garantido sua permissão de retornar ao Brasil.
Mas depois eu conversaria mais com ele. Era hora de procurar
Benjamin.
Eu o localizei perto dos carros com uma pá, removendo a neve que
se acumulara. Geralmente o escalavam para realizar tarefas braçais mais
pesadas, já que ele parecia ser forte. Coitado.
– Oi Benjamin – eu o cumprimentei – tudo certo?
– Sim, estou ótimo – ele sorriu – e você?
– Estou bem.
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E agora? O que eu deveria dizer? Será que não era melhor eu ir direto
ao ponto?
– Eu acabei de receber um e-mail de Yago – expliquei – é o diretor de
computação da SSCB.
– Sim, sei quem é Yago. Todos sabem quem ele é.
Eu sorri. É claro. Todo mundo lia o site da SSCB.
– Eu perguntei a ele sobre minhas possibilidades de transferência
para o Brasil para daqui três semanas.
– Você conseguiu?
– Só vou saber daqui duas semanas! – exclamei, agoniada – a espera é
angustiante.
– Bem, espero que você consiga. Eu também gostaria de fazer um
intercâmbio por lá um dia.
– Legal. Sabe, Yago mencionou você no e-mail.
– Ele mencionou? – perguntou Benjamin, curioso.
– Ele disse que você é um “rapaz muito especial” – eu repeti
exatamente as palavras de Yago, deixando claro que tinham sido ditas
por ele – tem ideia a que ele esteja se referindo?
– Deve ser ao fato de que sou um siddha de nascimento – ele
respondeu, naturalmente.
Eu tive um choque tão grande que dei um passo para trás. Benjamin
riu da minha expressão de surpresa.
Depois disso, eu comecei a rir com ele.
– Há, há! Bela piada. Eu quase caí nela.
– É sério – disse Benjamin.
Eu ainda estava meio desconfiada.
– Mas não era para ser um segredo? – perguntei – por que você me
contaria?
– Nao é bem um segredo – ele explicou – outros já sabem. Por
enquanto, poucas pessoas. Mas já que Yago mencionou isso a você, ele
não deve se importar que você saiba, então eu também não me importo.
Aquilo tudo ainda era fantástico demais. Ainda não tinha caído a
ficha.
Eu estava falando com um siddha de nascimento! Um dos raros.
– Isso significa que agora Mau não é mais o único siddha de
nascimento do mundo – observei – você já o conheceu?
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Levantei-me para pegar uma caneca numa das tendas. Enchi minha
caneca com a água da garrafa térmica, por cima do saquinho de chá.
Achei quente o bastante.
– Ouvi dizer que você só veio para ficar dois meses aqui – eu disse –
isso significa que você já fez seus quatro primeiros meses de treinamento
no Brasil?
Ele fez que sim.
– Então você conhece os Sacrios brasileiros? – perguntei.
Ele confirmou novamente.
– Quais?
– Todos.
– Todos?! – perguntei, surpresa.
– Quis dizer os mais famosos – explicou Caio – que escrevem no site
oficial.
– Ah, sim. Você não deve ter recebido permissão para assistir à
execução da Vic já que é iniciante, mas você deve tê-la conhecido.
– Eu a vi de longe uma vez.
– Que sorte – eu falei – nunca cheguei a conhecê-la. Você foi
treinado pela Manu?
– Sim, embora ela tenha sido afastada por um curto período.
– Você acha que o treinamento lá é mais difícil do que aqui?
– Bem mais. Incomparavelmente mais. É o preço que temos que
pagar por não usar meditações, eu acho. Na meditação demora muito
para começar a acontecer alguma coisa, mas dizem que quando acontece
não para mais.
De repente, eu me sentia muito sortuda por ter passado aquele
período na Índia. Aquele meu treinamento de seis meses poderia me
trazer muitas vantagens no futuro.
– Eu gostaria de voltar para o Brasil no segundo semestre –
mencionei – mas não sei se vou conseguir transferência. Estou trocando
e-mails com Yago sobre esse assunto.
– O que ele disse?
– Ele ainda não sabe se terá vaga para mim, então ele vai me enviar
um novo e-mail daqui duas semanas.
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Sociedade do Sacrifício
Eu até me sentia meio mal por ele se mostrar tão agradecido por eu
tê-lo ensinado uma coisa tão simples.
– Ah... não foi nada – resolvi dizer – eu não esperava que você fosse
gostar tanto. Fico feliz de ter ajudado.
Depois disso, ficamos em silêncio por um momento. Caio voltou a
tricotar.
– Você sabe guardar um segredo? – perguntei, antes que pudesse me
conter.
Caio me fitou, curioso. Meu coração estava disparado.
Caio tinha lindos olhos castanhos escuros. Eu ainda não tinha
reparado.
– É claro – ele disse.
Por que eu estava tão nervosa? Meu coração estava explodindo no
peito.
– Descobri que Benjamin é um siddha de nascimento.
Resolvi falar tudo de uma vez, antes que eu não conseguisse mais.
Os olhos de Caio se estreitaram. Ele parou de sorrir.
– O quê?
– Eu sei – eu ri – é incrível, não é? Mas é verdade!
– Quem te contou?
– O próprio Benjamin – respondi – mas só porque Yago me deu uma
pista por e-mail.
– Yago – Caio repetiu – ele realmente tem a boca grande.
– Você já sabia disso? – perguntei, surpresa.
– Sim – disse Caio – Benjamin me contou esses dias. Eu fiquei
boquiaberto ao descobrir que havia mais uma pessoa nessa condição. Foi
completamente inesperado.
Eu me senti aliviada. Se Caio já sabia, não foi tão ruim que eu tivesse
mencionado o assunto.
– Mas Benjamin disse que a condição dele e a de Mau são diferentes,
pois as siddhis de Mau são mais fortes – eu disse – por que será?
– O que você acha de Mau? – ele me perguntou, em vez de responder
minha pergunta.
Havia muitas formas diferentes de responder aquilo.
– Leio o que ele escreve na internet desde que eu era criança –
respondi – então ele é como um herói para mim. Ou talvez um anti-
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Wanju Duli
herói. Ele diz que quer salvar o mundo, mas ele não é o melhor exemplo
de salvador. Ele costuma tratar muito mal as pessoas ao seu redor,
incluindo seus amigos. Ele acha que sabe mais que os outros, que é
melhor que os outros. Ele quer deixar claro que se encontra acima de
todos, mesmo que isso signifique matar alguém que ele ama. Ele diz que
faz o que faz em nome de um bem maior. Ao mesmo tempo, ele diz que
está acima das leis, mas não as muda porque não quer. Eu acho que ele
deseja manter os segredos da SSC e do mundo dos Deuses escondidos
não para proteger o mundo, mas porque ele sabe que aqueles que
conhecem os seus segredos entendem que Mau só estava dando um
monte de desculpas. Somente metade do que ele faz é para ajudar as
pessoas. E ele provavelmente só ajuda as pessoas para ter a desculpa de
ser arrogante na outra metade do tempo.
Quando parei de falar, eu me dei conta de que tinha falado demais.
A verdade é que eu não sabia o que eu realmente achava do Mau. Por
que eu continuava a segui-lo? Por que eu queria ser um Sacrios como
ele?
Talvez porque, apesar de todos esses defeitos, eu ainda o admirasse
de uma forma inexplicável.
Caio apenas me olhava sem dizer nada. Eu não sabia o que ele estava
pensando.
– Eu acho que no fundo eu admiro o Mau exatamente por causa de
todos os defeitos que ele tem – concluí – ele é uma inspiração para mim,
porque ele me mostra que se até mesmo uma pessoa repleta de defeitos e
contradições como ele é capaz de ser um salvador do mundo, eu, que
também estou longe de ser perfeita, também posso ser. Acho que é isso
que todos amam nele: Mau não é santo e não posa de santo. Ele mostra
todos os seus podres na internet, sem vergonha nenhuma. Ele é corajoso
por isso. Ele não quer tentar ser Deus. Ele se orgulha de ser um
humano.
Pronto. Eu tinha terminado meu discurso.
Quando fitei Caio, notei que ele estava me observando com um leve
sorriso. Finalmente, ele disse:
– Obrigado.
– De nada – eu disse – também foi divertido para mim responder sua
pergunta.
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Sociedade do Sacrifício
Capítulo 4
Ele mantinha um olhar vago e sério e aguardava eu me acalmar com
paciência. Mas quando eu comecei a fazer muito barulho no meu choro
e algumas pessoas que caminhavam no acampamento pararam para nos
observar de longe, ele se preocupou:
– Por favor, não chore tão forte. Estão nos olhando. Não quero
chamar a atenção.
Por algum motivo, ele não queria que os Saos do acampamento
soubessem sua identidade. Por isso, coloquei a mão na boca e tentei me
conter. Respirei fundo duas vezes. Mada cada vez que eu olhava para ele,
eu recomeçava a chorar.
– Desculpe – eu respondi, em meio às lágrimas – eu não pretendia
chorar.
Foi tão espontâneo. Eu nunca pensei antes como eu me sentiria
quando eu o visse ao vivo pela primeira vez.
Eu jamais imaginei que fosse ser assim. Eu me imaginei em meio à
multidão do acampamento no Brasil assistindo-o clamar um discurso de
boas-vidas lá longe, no alto. E se um dia eu trocasse algumas palavras
com ele, certamente seria uma entrevista breve e formal.
Não era para eu ter passado por uma situação assim. Eu não estava
psicologicamente preparada.
Eu também fiquei com medo de ter dito alguma bobagem. É claro
que se eu soubesse antes que era ele, eu teria contido minha língua.
Quando consegui parar de chorar, eu ri levemente, embaraçada com
o drama que eu tinha feito.
– Eu não sei o que dizer – confessei – você já deve estar acostumado
com pessoas chorando quando o veem pela primeira vez.
– Mas você não está me vendo pela primeira vez – ele disse – você já
me conhece há mais de um mês e conversa comigo todo dia.
– Isso tornou o choque ainda maior! – exclamei – você me enganou
direitinho.
– Eu não tinha intenção de te fazer chorar – ele explicou, parecendo
meio preocupado – eu só ocultei minha identidade para fazer uma
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Wanju Duli
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Sociedade do Sacrifício
Ele não era exatamente bonito, ou pelo menos não possuía um tipo
tradicional de beleza que se destacasse à primeira vista. Mas ele tinha um
charme próprio, que eu não sabia dizer ao certo de onde vinha.
No fundo, eu precisava confessar: só por saber quem ele era, isso já o
tornava extraordinário. Agora eu prestava atenção nos pequenos
encantos do rosto dele exatamente porque eu relacionava aquele rosto a
ele.
Acho que eu me demorei demais olhando para ele, porque ele já
estava começando a corar de novo e desviou o olhar. Mau era muito
tímido na vida real. Isso era inacreditável. Eu já o tinha imaginado sério,
irritado e extrovertido, mas nunca tímido. E para disfarçar a timidez, ele
costumava sorrir bastante. Imaginei que Farah se derretia toda quando
Mau corava, principalmente porque acontecia com frequência.
Era como se ele tivesse criado um personagem completamente
diferente na internet. O Maurício da vida real era simpático, discreto e
sorridente. O Mau da internet era extravagante, furioso, lendário.
Imaginei que se ele realmente quisesse, conseguiria encarnar o Mau
da internet por alguns instantes. Mas seriam somente atuações. Eu já o
conhecia há mais de um mês e podia afirmar isso.
Ou será que todos eles eram o Mau? Talvez nem ele soubesse a
verdade.
– Confesso que eu estava pensando em revelar minha identidade
somente quando voltássemos para o Brasil – ele comentou – mas optei
por não torturá-la mais. Por você ter dito todas aquelas palavras bonitas
a meu respeito, resolvi te dar esse prêmio.
OK, ele conseguia ser convencido na vida real. Isso significava que
ele poderia se transformar no Mau da internet a qualquer momento. Essa
perspectiva era um pouco assustadora, mas também emocionante.
– Obrigada!! – agradeci, sinceramente.
Novamente, minha animação foi tão genuína que ele riu. Acabei
rindo junto.
Mas eu ainda estava nervosa pra caralho. Eu resolvi me levantar para
pegar mais chá, mas quando me levantei notei que minhas pernas
estavam tremendo. Cacete!
– Quer mais chá? – perguntei – vou pegar mais água quente lá dentro.
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Porém, quando fui pegar a garrafa térmica fiz uma coisa muito
estúpida. Dei um chutão na mesa de madeira que as apoiava e tanto a
garrafa térmica quanto as duas canecas deram um salto e aterrissaram na
neve lá longe.
Eu não me lembrava de ter feito uma coisa tão imbecil na minha
vida. Foi tão engraçado que comecei a rir incontrolavelmente.
Mau me acompanhou. Ele estava gargalhando tão alto que se dobrou
e segurou a barriga. Ambos ficamos com lágrimas nos olhos.
Provavelmente rimos tão loucamente e tão alto que muita gente no
acampamento nos escutou.
Agora sim o clima tenso tinha desaparecido completamente e eu
ficaria tranquila.
– Do que vocês estão rindo? – Sella e Roshni estavam passando por
ali e nos ouviram.
Eu relatei a elas com detalhes sobre o meu belíssimo chute no
suporte de madeira e o momento em que tudo foi pelos ares, enquanto
Mau ainda estava secando as lágrimas dos olhos.
– Deve ter sido engraçado – disse Sella – queria ter visto. As risadas
de vocês podiam ser ouvidas do outro lado do acampamento. Sabia que
alguns Sacrios estão meditando agora lá perto da entrada? Eles devem ter
ouvido vocês.
– Porra, que merda! – falei, com alegria.
– Antônia, pare de falar um pouco, por favor – pediu Mau,
escondendo o rosto, que agora não estava vermelho de vergonha e sim
de tanto rir – porque cada coisa que você está dizendo nos últimos
minutos está me fazendo rir.
Bem, se o rei das piadas mais famosas e toscas da internet estava
rindo do que eu dizia, eu devia ser realmente engraçada!
– Podemos nos sentar aqui com vocês um pouco? – perguntou Sella
– eu e Roshni acabamos de lavar pratos e panelas por duas horas
ininterruptas e estamos quebradas.
Elas se sentaram numa parte do pano. Resolvi levantar para resgatar a
garrafa térmica e as duas canecas.
– Quer que eu vá buscar a água quente enquanto você vai pegar mais
duas canecas? – perguntou Roshni – porque eu também aceito um
pouco de chá.
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a fim de arriscar ficar bêbada e ferrar com minhas últimas semanas por
lá. Eu ainda queria causar uma boa impressão. Afinal, Sahana tinha
pagado minha passagem e se encontrava no acampamento naquele
instante. Eu não queria criar uma situação embaraçosa para mim.
As outras meninas também recusaram a oferta de Mei-Xiu, mas Mau
aceitou.
– Oh? O menino quietinho gosta de álcool? – Mei-Xiu deu um
sorrisinho.
– Eu apenas bebo socialmente – esclareceu Mau.
– Sei – brincou Mei-Xiu.
Ele já ia jogar seu chá na neve quando Mei-Xiu ofereceu a própria
caneca.
– Se for só provar, bebe da minha – ela ofereceu – se gostar e quiser
que eu te sirva, pode usar sua caneca.
Ele resolveu aceitar a oferta e provou um gole da bebida da caneca de
Mei-Xiu.
Mau fez uma careta e devolveu a ela a caneca.
– Muito forte – ele disse.
– Por isso que é bom – ela disse, bebendo aquilo como água.
Quando ela terminou a primeira caneca serviu outra. E mais outra.
– Mei, eu acho que você devia guardar isso – sugeriu Sella – não acho
que seja exatamente permitido se embebedar no acampamento...
– Se Sarthak pode, por que eu não posso? – ela insistiu.
– Porque ele é Sacrios – respondeu Sella – Sacrios podem usar a
internet, beber e tirar férias na praia. Sério, Mau está sendo
insistentemente imbecil sobre suas férias na praia. Ele não para de postar
fotos de homens com pranchas no Facebook e diz que todos são ele,
mas as silhuetas são de pessoas diferentes. Ou Mau está tirando com a
cara de todos com uma piada escrota como essa ou ele é realmente um
otário. Aposto que Farah está certa. Ele nunca deve ter surfado na vida e
fica pagando de poser na internet.
Mau ficou curioso sobre o que Sella disse ao ouvir seu nome duas
vezes. Ele pediu que eu traduzisse, mas eu recusei.
– Por que não quer traduzir? – perguntou Sella – eu falei algo tão
engraçado!
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Sociedade do Sacrifício
Como as meninas tinham rido do que ela disse, é claro que Mau
ficaria ainda mais curioso.
“Seja o que Deus quiser” pensei, contrariada, e traduzi o mais
fielmente que consegui o que Sella tinha dito.
O sorriso de Mau se alargou quando minha tradução terminou. O
que será que aquilo significava?
– Mau postou essas coisas recentemente, certo? – perguntou Mau –
então como vocês sabem se vocês não têm acesso à internet?
Puta merda! Eu nem me dei conta que ele notaria isso. Em vez de
prestar atenção nas críticas que Sella fez, ele se focou nesse detalhe.
Tive que traduzir a pergunta de Mau.
A “resposta” de Mei-Xiu fez meu estômago subir até a garganta: ela
tirou o celular do bolso da calça e jogou-o na direção de Mau.
– Tem internet – ela informou.
– Mei! – exclamou Sella, chocada – o que você fez?
– Está tudo bem – ela bebeu mais uma caneca – confio no Caio. Ele
é bonzinho. Não vai nos dedurar.
Sella arrancou a caneca da mão de Mei-Xiu.
– Pare de beber! – ela exclamou – você só fez essa coisa estúpida
porque está bêbada!
Mei-Xiu começou a rir loucamente quando Sella disse isso.
“Ela está bêbada mesmo” pensei, temerosa. Aquilo não era bom.
– E mesmo que Caio não conte nada, você não podia ter trazido o
celular aqui fora e mostrado em público – disse Sella – alguém pode ver.
– Você é muito preocupada – queixou-se Mei-Xiu.
Mau começou a analisar o celular, mas não conseguiu mexer direito.
– Em que língua está isso? – ele perguntou, confuso – como se acessa
a internet?
– Eu te mostro – disse Mei-Xiu.
Ela levantou-se e sentou-se ao lado de Mau. Arrancou o celular da
mão dele sem cerimônia, colocou no site da SSCB e entregou a ele outra
vez.
– Aí está – sorriu Mei-Xiu.
Mau analisou.
– Vocês pegaram a senha de Sarthak? – perguntou Mau.
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Wanju Duli
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Sociedade do Sacrifício
– Se você gostou dela, acho que você pode beijá-la aqui – respondi –
mas suponho que esse seja o limite da pegação em público.
Ele teria mesmo coragem de fazer aquilo? Ele não era tímido? Ou
será que ele iria encarnar o Mau da internet?
Eu não traduzi para as meninas o que Mau perguntou e a minha
resposta, por mais curiosas que elas estivessem.
Para a minha surpresa, enquanto Mei-Xiu estava brincando de agarrá-
lo, Mau tentou beijá-la de verdade! E ele não deu nenhum aviso.
Simplesmente aproximou o rosto e partiu para o ataque.
No entanto, por mais bêbada que estivesse, Mei-Xiu conseguiu recuar
no último segundo e deu um tapa na cara de Mau.
Não foi um tapa de brincadeira. Ela realmente fez aquilo com
vontade e levantou-se, com indignação. Será que, apesar de ter bebido
tanto, a maior parte da falta de controle dela era fingimento?
– Eu estava brincando, idiota! – gritou Mei-Xiu – não era para tentar
me beijar!
Eu estava chocada. Ninguém riu.
– Porra – soltou Sella.
– Mei, não precisava ter feito isso... – disse Roshni, baixinho.
– Você está defendendo ele? – Mei-Xiu perguntou, irritada.
– Você se jogou em cima dele – acrescentou Roshni – ele não tinha
como ter certeza de que era só uma brincadeira.
– Ficou óbvio que era uma brincadeira – insistiu Mei-Xiu.
Mau tentou esconder, mas era óbvio que ele estava chorando. Ou
melhor, ele não estava chorando como um bebê, como eu fiz antes ao
saber quem ele era. Ele apenas deixou escapar algumas lágrimas.
Mei-Xiu notou e a expressão dela subitamente mudou. Acho que ela
sentiu pena dele. Foi até lá.
– Caio, me desculpa – disse Mei-Xiu – não fiz de propósito. Minha
mão se mexeu sozinha. É como um reflexo que tenho para me defender
de tarados na rua. Eu não pretendia te machucar. Acho que bati muito
forte.
Mas ele não respondeu. Não mostrava sinais de que ia desculpá-la. E
ele parecia levemente irritado com a situação.
Aquilo era demais para mim. No dia em que eu soube da identidade
de Mau, eu o vi rir até se dobrar no chão e agora eu o via chorar.
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Sarthak já estava indo embora quando deu uma última olhada para
nosso grupo.
Subitamente, ele deu um salto para trás e arregalou os olhos. Ele fez
uma expressão de pavor tão genuína que eu jurava que ele tinha visto um
fantasma. Até nós nos assustamos com o susto dele.
– Mau!!! – ele exclamou, fora de si – o que diabos você está fazendo
aqui?!
Ah, então era isso. Traduzi para Mau.
– Você ainda não tinha ido falar com o Sarthak? – perguntei a ele, em
português.
– Não – ele respondeu – por que eu faria isso?
E, voltando-se para Sarthak, Mau disse:
– Não posso visitar a SSC da Índia quando desejo?
Eu ia fazendo as traduções.
– Você nunca fez isso antes – disse Sarthak – então por que agora?
– No momento estou sem vice, senão eu o mandaria para viajar no
meu lugar – respondeu Mau – e dessa vez eu fazia questão de vir
pessoalmente por outras razões.
– E por que você veio escondido em vez de visitar formalmente o
acampamento e se apresentar a todos, como seria esperado?
– Porque eu estava a fim.
Aparentemente, esse seria o fim da conversa.
– Contanto que Sahana tenha perrmitido essa sua brincadeira, eu não
me importo – disse Sarthak – faça o que desejar.
– É exatamente o que estou fazendo, seu merda – disse Mau, sem
rodeios.
Fiquei com receio de traduzir essa última parte, mas Mau fez questão
que eu o fizesse.
Sarthak estreitou os olhos numa expressão de desagrado. Mau sorriu.
Eu desconfiei que Sarthak estivesse controlando seus dedos para não
estrangulá-lo.
– Você age como se sua posição de líder fosse irrevogável –
pronunciou Sarthak – mas no dia em que for arrancado de seu posto, e
esse dia não está longe, você não terá nenhum Sacrios disposto a
defendê-lo.
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– Talvez – reconheceu Mau – mas enquanto esse dia não chega irei
abusar de minha posição de poder. E agora eu ordeno que saia da minha
frente, antes que eu relate sua insubordinação para Sahana.
– Seu bostinha...
E Sarthak deu as costas e foi embora antes que eu tivesse a
oportunidade de traduzir. Porém, mesmo sem saber o que ele dissera,
Mau desconfiou que não se tratasse de nenhum elogio e deu o dedo,
mesmo ciente de que Sarthak não o veria.
Nesse ponto, Sella, Mei-Xiu e Roshni já tinham compreendido qual
era a verdadeira identidade de Caio.
Antes mesmo que elas se pronunciassem, eu esclareci a situação em
inglês. Não traduzi para Mau o que eu disse. Eu somente disse a ele que
ia dar uma explicação geral dos motivos de ele ter mentido o nome e
todo o resto.
No final da minha explicação, elas ainda estavam sem fala. Por fim,
Mau usou sua siddhi para revelar o olho cego e elas não tiveram mais
dúvidas.
Se bem que... depois daquela conversa de Mau com Sarthak, não vi
motivo nenhum para restar dúvidas.
Antes que uma delas falasse qualquer coisa, Mei-Xiu levantou-se, saiu
de lá e voltou para nossa barraca. Acho que ela não tinha coragem de
encarar Mau depois do que ela fez.
Para a minha surpresa, Sella levantou-se a seguir, pegou na mão de
Roshni e levou-a consigo. Elas também voltaram para a barraca sem
pronunciar uma palavra.
Elas estavam aterrorizadas. Estavam com medo de Mau.
E agora? Eu deveria voltar com elas? Parecia a decisão mais acertada.
Havia muitas coisas que eu gostaria de perguntar para Mau. A
oportunidade de poder conversar com ele a sós, quanto tempo eu
desejasse, era um sonho se tornando realidade.
No entanto, eu desconfiava que ele não me diria as coisas que eu
realmente queria saber.
– Vá com elas – recomendou-me Mau – amanhã conversamos mais.
Mau provavelmente também não se encontrava em seu melhor
estado de humor para conversar.
Por isso, eu também voltei para a barraca.
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presença aqui significa: “eu aceito dedicar minha vida e morte por vocês”
e eles respondem com “OK, agora cale a boca, faça tudo o que a gente
mandar e morra em silêncio”.
– Sim, é assim mesmo, Mei – concordou Iaboni – sua descrição foi
bastante precisa. Parece que você acaba de perceber que não estamos
numa colônia de férias. É por isso que são muito poucos aqueles que
aguentam se tornar Sacrios. É preciso ser forte.
– É preciso ser um escravo!
– É preciso ter paciência, perseverança e humildade – disse Iaboni – é
exatamente isso que estamos lutando para desenvolver aqui. Quando
alguém te xingar, tente não levar para o lado pessoal. Os Sacrios passam
por muita pressão o tempo todo. A vida deles está sempre por um fio.
Perto disso, nossa vida que é confortável. Eles querem nos ajudar, mas
também possuem seus próprios problemas para lidar.
– Iaboni, cala a boca por um segundo – disse Mei-Xiu – se defender
os Sacrios outra vez, vou te bater. Não me importo que você esteja certa.
Não é isso que preciso ouvir no momento. Tente ter um pouco de tato
para entender minha situação!
Iaboni resolveu ficar quieta.
– Mau escreveu no site oficial da SSCB – informou Sella, olhando o
celular.
Mei-Xiu saltou da cama no mesmo instante e foi até lá.
– Ele falou de mim? – perguntou Mei-Xiu, com ansiedade – ele me
xingou em público?
– Não é nada disso – falou Sella – leia. Já saiu a tradução.
Eu também me inclinei para ler.
Eu sei que não é da conta de vocês, então eu devia ter direcionado essa postagem
aos membros da SSC. Bem, foda-se. Na prática todo mundo vai ler, então tanto faz.
É com orgulho que venho aqui informar que Manu será oficialmente a nova vice-
líder da SSC a partir de hoje. É com o maior respeito que venho para dar-lhes essa
informação, já que a minha relação e a dela será apenas profissional. E eu juro que
agora estou falando sério. Por favor, não interpretem como piada. Não ousem fazer
brincadeiras sobre isso na internet.
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Atenciosamente,
Mau
Mau,
Vamos tentar começar com o pé direito dessa vez. E se você deseja colaborar com
isso, não diga coisas como “não interpretem como piada” e “não façam brincadeiras
com isso”, pois isso é exatamente o que você não deveria dizer para evitar. A sua
“relação profissional” com suas vices já virou piada há muito tempo.
Não é preciso anunciar publicamente cada vez que há uma mudança interna em
nossas posições, já que você as altera com frequência. Assim parece que não somos
sérios. Apenas envie a informação por e-mail para os Sacrios e será suficiente.
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Cordialmente,
Manu
Manu, eu já sabia que você não iria agradecer educadamente por sua posição,
então acho que já devo ficar satisfeito por você tê-la aceitado.
Nem mesmo as iniciantes me dão uma chance esses dias. Os tempos estão difíceis.
Mau, quando você se finge de pobre rejeitado pelas mulheres eu sinto vontade de te
bater.
Há centenas ou milhares de mulheres loucamente apaixonadas por você. Eu
inclusa na lista. Se houvesse um fã-clube seu, eu seria presidente.
A culpa é sua que você tem esse fetiche estranho de correr atrás das poucas
mulheres que não estão a fim de você.
Largue esse homem que não a compreende. Eis aqui um homem que a fará feliz.
Eu entendo sua dor. Quero tomar sua dor como minha e fazer com ela uma
limonada, que parecerá azeda aos seus olhos, mas será doce em meu coração.
Beijos,
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Tejas
Farah escreveu:
Oi Antônia,
Mau me avisou que já revelou a identidade para você e te deu autorização para a
transferência. Portanto, sua vaga está garantida para o próximo semestre.
Desculpe por não te contar que ele estava aí. Escondi a informação por pedido
dele. Mau está sempre inventando coisas. Ontem mesmo ele anunciou no site que
Manu seria a nova vice sem sequer consultá-la. Sorte que ela aceitou dessa vez.
Em três semanas nos veremos de novo. Então aproveite seus últimos dias aí, pois
embora você esteja ansiosa para voltar ao Brasil, quando retornar você irá lembrar da
Índia com saudades.
Sinceramente,
Yago
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– Você apareceu aqui com aqueles dois, então também deve ter uma
identidade secreta – concluiu Roshni – ele está escondendo alguma coisa!
– Não estou! – defendeu-se ele – juro que não estou! Sou apenas um
iniciante comum.
– Duvido! – insistiu Roshni – revele logo sua identidade.
Embora Rizal ainda estivesse apavorado, resolvemos procurar Mau
de uma vez, para termos a nossa conversa. Nós seis saímos da barraca e
o procuramos nos arredores. Mau estava deitado na neve com uma
roupa ridícula.
Ele estava usando uma camiseta de mangas longas da Valesca
Popuzuda, na cor rosa. Tinha colocado no pescoço um dos cachecóis
que havia costurado, também de mesma cor. Ele usava headphones,
obviamente cor-de-rosa. Usava também uma calça verde-limão e botas
laranjas. Para completar, colocou óculos escuros com uma lente de cada
cor: uma roxa e uma azul.
“Óculos escuros na neve. Isso mesmo, Mau. Você está fazendo a
coisa certa!” pensei.
Ah, sim. Esqueci de mencionar a touquinha de inverno com um
pompom em cima.
Quando eu o chamei com cuidado, Mau me interrompeu:
– Não me atrapalhem – ele disse – estou meditando. Saiam daqui.
OK, nós saímos. Rizal aproveitou para escapar de fininho também.
Porém, uma hora depois a internet estava em polvorosa, porque
vazou uma foto dele naqueles trajes, com a seguinte legenda: “Mau na
praia”.
Felizmente não era possível enxergar o rosto dele, já que ele estava de
touca, óculos escuros e com o cachecol cobrindo a boca.
Um pouco depois, Benjamin foi até a nossa barraca nos avisar que
um monte de Sacrios tinham reconhecido Mau quando ele caminhou por
lá com aquelas roupas, por causa da foto da internet.
– Mau me disse que vocês têm um celular – observou Benjamin –
então daqui a pouco ele vai vir tirar satisfações para saber qual de vocês
tirou a foto. Só pra avisar.
Aquele acampamento só tinha fofoqueiros!
Quando Mau chegou, Sella já foi logo se entregando.
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Caríssimos bostas
Sim, aquela foto é minha. Não vou contar a ninguém onde comprei a camiseta,
suas bichas. Não insistam.
Mau
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quando eu estava lá, parecia que não ia terminar nunca. Eu adorei estar
lá, mas claro que tive momentos difíceis.
– Fico contente que você tenha conseguido permanecer até o fim do
semestre – disse Raghav – Sahana também ficou feliz.
Eu estava com muita vontade de perguntar sobre a ferida no rosto
dele, mas eu sabia que aquilo tinha a ver com os Deuses. Então resolvi
ficar calada.
Enquanto isso, Mau escutava nossa conversa sem fazer nenhum
comentário, já que eu não estava traduzindo para o português.
Raghav pegou o avião conosco para Délhi. E no aeroporto de Délhi
nos despedimos.
Foi uma pena que eu tenha ficado tão pouco tempo com Raghav
dessa vez. Queria poder conversar mais.
Pelo menos pude informar com alegria que li todo o livro que ele me
emprestou e que até tinha estudado um pouquinho de hindi. Consegui
falar uma frase simples com uma pronúncia horrível e o fiz sorrir.
Quando eu e Mau já estávamos sozinhos no aeroporto e acabamos de
despachar as malas, ele me perguntou se eu queria comer alguma coisa.
Nós jantamos num restaurante de comida indiana do aeroporto. Eu
queria experimentar uma última vez a comida local antes de irmos
embora.
Depois de passar mais de cinco meses comendo a comida do
acampamento, sempre simples, em pouca quantidade e com o mesmo
gosto, a comida daquele restaurante me pareceu o manjar dos Deuses.
– Seu visto está quase expirando, não é? – comentou Mau, enquanto
comíamos – então você não poderia completar os seis meses no
acampamento de qualquer forma.
Eu tinha esquecido que a viagem até o acampamento levou vários
dias. Então ainda bem que voltei com Mau.
Eu dormi em boa parte do trajeto da viagem de Délhi até
Johannesburgo, já que viajamos à noite. Quando chegamos em
Johannesburgo ainda tivemos que aguardar algumas horas até pegarmos
o próximo avião. Eu estava entediada e cansada. E eu já estava ficando
com fome outra vez. Acho que perdi a última refeição no avião enquanto
estava dormindo.
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Eu quase não tinha conversado com Mau desde que saímos da Índia.
Pensei em propor que fizéssemos um lanche no aeroporto enquanto
aguardávamos o nosso avião, mas eu comecei a ficar enjoada e com dor
de cabeça.
Era só o que faltava. Em todo meu tempo na Índia só tive no
máximo algumas diarreias e resfriados leves. E agora que eu estava quase
chegando em casa ia ficar doente.
Sorte que eu tinha uns remédios na minha bolsa. Mau comprou uma
garrafa d’água para mim e eu me sentei por um momento.
– Você está bem? – ele me perguntou.
– Mais ou menos – respondi – estou meio enjoada.
– Com licença – ele disse – posso?
Ele colocou a mão na minha testa e fechou os olhos. O que ele estava
fazendo?
Subitamente, senti como se um ar fresco e renovado tocasse meu
rosto. Uma sensação maravilhosa percorreu todo meu corpo. Cada parte
dele.
Fechei os olhos também. Eu queria que aquela sensação incrível não
terminasse nunca mais. Porém, ela só durou breves segundos. Quando
eu abri os olhos de novo, tudo já tinha terminado.
Ué? Não havia nem sinal do mal estar que eu tinha sentido antes.
Nada de dor de cabeça ou enjoo. Eu fitei Mau surpresa.
– Isso foi uma siddhi? – perguntei.
Ele confirmou com a cabeça.
– Você pode curar as pessoas?
Eu estava impressionada.
– Somente coisas leves – explicou Mau – não é uma siddhi que eu
desenvolvi muito. E ela nem sempre funciona.
– Sua siddhi é incrível! – eu sorri – muito obrigada! Graças a você,
poderei curtir o restinho da nossa viagem.
Mau sorriu também e baixou os olhos.
Ficamos um tempo sem dizer nada. Até que eu perguntei:
– Você é feliz sendo Sacrifício? Eu sei que você não exatamente
escolheu isso. Acabou se tornando um por causa dos seus poderes.
– Sim, adoro ser Sacrifício – Mau respondeu imediatamente – apesar
de todas as dores, de todas as coisas horríveis. E no fundo eu escolhi ser
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A gente subiu por uma trilha. Lá em cima estava ficando mais bonito:
com mais árvores e pedras.
Até que chegamos num lugar que me deixou deslumbrada: havia uma
belíssima cascata, com suas águas despencando gloriosamente nas pedras
lá embaixo, onde havia um laguinho.
– Uau! – exclamei, maravilhada – acho que com um lugar assim, terei
forças para aguentar tudo.
– Eu penso o mesmo – disse Caio – venho aqui com frequência
quando preciso organizar meus pensamentos ou simplesmente relaxar de
tudo. Mas eu recomendo que não tome banho naquele lago lá embaixo,
porque volta e meia alguns caras ou moças vêm até aqui, todo mundo
pelado, e é uma putaria.
– Obrigada por me avisar – eu sorri – pelo jeito o pessoal se diverte
bastante.
Caio colocou a mão em concha e sussurrou no meu ouvido:
– Eu trepei com uma garota aqui uma vez.
Eu ri.
– Só os dois, certo? – perguntei, para me certificar.
– Sim, só a gente. Ainda sou muito conservador. Não curto participar
dessas surubas.
– O que Manu acha dessas bagunças de vocês? – perguntei.
– Ela ignora completamente – disse Caio – quero dizer, ela sabe que
acontecem, mas não liga. Ela só exige que a gente seja espartano no
treinamento. No resto do pouco tempo livre que temos, ela permite que
a gente viva.
– Nossa, como ela é gentil – caçoei.
– O pessoal em geral não gosta muito dela, porque Manu é muito
certinha. Mas suponho que alguém precise ser rigoroso por aqui, senão a
coisa não andaria. É principalmente por causa dela que somos a SSC
mais poderosa do mundo. E, é claro, também por causa de Mau.
Eu estava me mordendo de vontade para falar sobre Mau.
– Eu estava pensando, você é mesmo azarada, hein, Tônia – ele
comentou – quando estava prestes a conhecer Mau, não conseguiu sua
vaga e teve que ir lá para a Índia. Agora quando finalmente conseguiu se
transferir, Mau vai estar lá no outro acampamento. Por isso ele não virá
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– Que sorte – disse Sabrina – você ainda vai ter duas semanas de
férias. Vai fazer o que nesse período?
– Bem, eu vou ajudar nas tarefas domésticas, é claro, e durante o
treinamento... amanhã vou querer assistir.
Eu queria testemunhar o que Manu sabia fazer.
Ela era bem como Carla a descreveu: parecia uma amazona. Acordei
cedo com as meninas para assistir ao treinamento e lá estava ela:
imponente e respeitável.
Manu usava uma longa trança negra. Tinha a pele morena: parte dela
naturalmente e outra parte bronzeada pelo Sol. Ela era alta e de
constituição forte, como uma lutadora. Movia-se com agilidade e graça.
Ela tinha voz grave e sensual. Para completar, ela falava gritando, mas
sua voz já era naturalmente assustadora sem isso.
Os iniciantes ficavam apavorados com ela, com medo de cometer
algum erro e serem xingados. Ela via e ouvia qualquer coisa que
acontecia. “Devem ser siddhis” pensei, imediatamente. Eu lembrava de
ter lido no livro que Meera me emprestou sobre siddhis com esses
poderes.
O treino diário durava longas horas. Uma parte de manhã cedo e
outra durante a tarde. Eu fiquei cansada só de assistir. Ela dava aulas de
artes marciais misturadas com ensino de magia. Eu não entendi muito
bem que diabos era aquilo. Bem, muitas artes marciais orientais tinham
relação com religiões.
Era preciso ter bom preparo físico para acompanhar. Depois de fazer
tantos serviços na Índia, eu achava que estaria em boa forma. Porém, eu
me enganei.
Nas minhas duas semanas de férias eu só ia para os treinamentos para
assistir. Também aproveitei aquele período para ler uns livros sobre a
magia da SSC do Brasil. Eram dois livros escritos pela Manu.
Na minha primeira semana de treinamento efetivo, eu fiquei
quebrada. Eu tinha me despedido de Caio, que partiria num ônibus junto
com outros Saos para o novo acampamento. Eu me perguntava se o
treinamento de Mau seria mais difícil ou mais fácil que aquele.
Só sei que depois do meu primeiro mês sendo massacrada pelas
garras de Manu, eu já estava morrendo de saudades da Índia e sonhando
em voltar para casa.
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Meus dedos cortados de cortar vegetais na Índia não eram nada perto
do estado do meu corpo com os treinamentos dela. Eu estava com os
joelhos ralados e cheia de outros ferimentos pelo corpo. Até que eu torci
o braço, recebi atendimento médico e fui dispensada dos treinos por um
curto período.
Eu já estava pensando “que sorte!”, mas me encheram de outras
atividades menos importantes e monótonas que eu poderia realizar sem
comprometer minha recuperação. Dessa forma, eu estava torcendo para
que meu braço ficasse bom logo e eu pudesse voltar a treinar
normalmente.
Manu era muito organizada. Tudo naquele acampamento funcionava.
A novidade daquele ano era a presença de estudantes estrangeiros, já
que aquele tinha sido o primeiro ano em que Mau liberou isso.
Para mim, isso não seria exatamente uma novidade. Mas imaginei que
fosse divertido da mesma forma. Era legal saber os motivos de o pessoal
ter vindo.
E a maior parte dos motivos tinha nome: Manu ou Mau. A maioria
tinha vindo por causa de um dos dois. Ou geralmente os dois.
Pensando bem, os iniciantes estrangeiros presentes no acampamento
deviam ser muito inteligentes, pois o teste de admissão estava mais difícil
e a concorrência mais alta.
Além do grande número de estudantes latino-americanos, como
colombianos e argentinos, também havia um ou outro de países
variados. Esses que não eram nativos de países de língua portuguesa ou
espanhola deviam ser verdadeiros gênios para fazer todo o teste e
entrevista em português e receber aprovação.
Quando meu braço se curou e eu retomei os treinos, percebi que eu
estava muito atrasada em relação aos outros. Comecei a desanimar e
minha autoestima foi lá para baixo. Eu estava perdendo completamente
a motivação para treinar. Acordar a cada dia era um sacrifício.
Talvez eu não tivesse jeito para fazer aquilo. Eu não tinha talento
para meditação e nem para exercícios físicos. No máximo, eu era boa em
limpar coisas, mas, como Yago disse uma vez, eles não aprovavam
pessoas para trabalharem como empregados para eles, já que cada um
devia cuidar de suas próprias necessidadeds e ainda ajudar o grupo.
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Ela estava certa, é claro. Ela devia receber um bando de idiotas, todo
semestre, que só entraram lá porque liam as bobagens que Mau escrevia
na internet e acharam legal. Ela já devia estar cansada de lidar com
pessoas assim. Como eu.
– Eu li com atenção... – respondi, com cuidado – mas muitas coisas
não estão claras. No fundo sabemos muito pouco sobre os Deuses e
pelo que lutamos. Nós entramos aqui com uma venda cobrindo nossos
olhos... não apenas literalmente. Essa venda só é completamente
removida quando nos tornamos Sacrios. Não é um pouco injusto sermos
expostos à verdade somente quando já realizamos nosso voto perpétuo?
E se ao descobrir a verdade não concordarmos, seremos executados.
– As nossas regras são essas – disse Manu, em mesmo tom – aqueles
que consideram injusto não devem se inscrever.
Mais uma vez, ela tinha razão. Não era mais a hora de eu reclamar
daquilo.
– Há uma razão para a maior parte das regras. Muitas delas não
envolvem somente a lógica e sim forças espirituais. Por exemplo, quando
um Saos entrega um braço ou uma perna para nós caso se retire do
grupo, ele estará pagando o preço dos seus estudos gratuitos durante o
primeiro ano. É um pagamento energético. Por que você acha que os
membros da SSO realizam o Sacrifício Sagrado?
Naquele momento eu calei a boca e senti um arrepio.
Não eram apenas regras arbitrárias ou punitivas. Elas não existiam
nem mesmo para pressionar o candidato e testar sua determinação.
Quando Mau executou Vic, usou o corpo e o espírito dela para
alguma coisa naquele ritual macabro. Era algo que eu não compreendia.
Tinha alguma coisa a ver com aplacar a fúria dos Deuses? Ou com gerar
uma energia forte para atacá-los, como uma maldição?
Será que Mau tinha usado o corpo de Vic como se ela fosse um
boneco de voodoo para atacar um Deus? Será que as execuções
possuíam esse propósito? Eu lembrava de ter lido uma frase num livro
escrito pela Manu que sugeria aquilo...
Minha cabeça começou a girar. Estávamos lidando com forças
poderosas que eu ainda não entendia completamente. E eu descobri que
queria entender. Eu desejava descobrir os segredos.
“Todos os homens têm, por natureza, o desejo de conhecer”
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Por que os Deuses queriam destruir nosso mundo? Seria para roubar
toda aquela energia das mortes para um propósito maior? Nós seríamos
cordeiros de sacrifício? E qual era esse projeto grandioso que eles
queriam realizar?
Eu desejava perguntar tudo isso. Mas eu não podia. Manu jamais me
responderia.
E, afinal, onde estavam os Deuses? Será que eles estavam mais perto
do que eu imaginava?
– Me desculpe, Antônia, mas eu não posso te ajudar – disse Manu –
eu simplesmente não tenho tempo e energia para levantar o ânimo de
cada iniciante e Saos desse lugar, o tempo todo. São muitos aqui que
estão desmotivados, cansados e com dúvidas. A sugestão que eu
geralmente dou é para que ignorem todas essas questões e sigam em
frente com o treinamento. Com o tempo as respostas virão.
Eu não achava que ignorar era a melhor solução, mas pelo jeito não
havia uma solução ideal para esse problema. Era preciso ser prático:
fechar os olhos e engolir o remédio ruim.
Manu já fazia muito nos treinando dia e noite e resolvendo os
problemas técnicos e conflitos que surgiam no acampamento. Era muito
estresse.
Perto das dificuldades que ela enfrentava diariamente, as minhas eram
quase insignificantes. Eu devia me mirar no exemplo dela e apenas
prosseguir.
Como eu continuava quieta, Manu continuou falando.
– Serei sincera com você: as coisas não ficam melhores conforme o
treinamento avança. Ficam piores. Os Saos possuem mais
responsabilidades, em todos os sentidos. Eu não estou aqui para passar a
mão na sua cabeça e dizer que tudo vai ficar bem, que eu vou te ajudar e
que você pode contar comigo. Ninguém vai te ajudar, Antônia. Os seus
amigos aqui passam por dificuldades semelhantes e cada um de vocês
deve ser capaz de construir uma fortitude mental para vencê-las. Um
amigo pode aconselhar, mas ele não é capaz de entrar na sua mente e
mudar seus pensamentos. Essa é uma jornada solitária.
Aquilo era duro de escutar.
– Por isso, não crie ilusões na sua cabeça de que no futuro as coisas
serão fáceis. Espere pelo pior – ela prosseguiu – nós precisamos de
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membros fortes que saibam esperar pelo pior, pois nas lutas contra os
Deuses sempre quando achamos que já vimos uma situação abominável,
ela sempre pode se tornar inconcebível. A mente humana não é capaz de
imaginar os terrores das armas dos Deuses. É preciso construir um
corpo e uma mente que sejam uma fortaleza. Eles serão os escudos para
proteger o seu espírito.
– Eu sei que fica mais difícil quando nos tornamos Sacrios – eu disse
– em compensação, Sacrios podem passar períodos nas cidades, podem
usar a internet e não precisam enfrentar a rotina intensa de treinos dos
acampamentos...
– Ah, então você quer se tornar Sacrios para escapar dos treinos e
usar a internet? – zombou Manu – isso é insignificante. Você já pode
fazer isso e muito mais com a vida que você tinha antes. Então por que
não voltar para ela?
– Porque ser Sacrios é especial. É maravilhoso saber que estamos
vivendo por algo maior... mesmo que eu não saiba direito o que é esse
algo.
– As pessoas lá fora só admiram os Sacrifícios por causa de uma ideia
da psicologia social chamada justificação de esforço – explicou Manu –
elas sabem que exige um esforço fenomenal se tornar Sacrios. Por isso o
status dos Sacrifícios é tão alto. Você provavelmente só quer se tornar
Sacrios para provar para alguém ou para si mesma que consegue fazer
algo difícil. Isso não é o bastante.
Eu calei a boca. Será que eu era assim tão superficial?
– Nós não nos chamamos Sacrifício por acaso – esclareceu ela – você
poderia ter apenas uma vida normal, distrair a sua mente com qualquer
coisa enquanto vive e no final perder o corpo. Sem nem mesmo saber
que existe um espírito dentro de você. Nós, Sacrifícios, despertamos o
potencial desse espírito através do estímulo do corpo e da mente. E, uma
vez que o espírito quebra a casca do ovo e escapa para o mundo, os
Deuses te enxergam pela primeira vez. Nesse momento, não há mais
retorno.
Eu estava ficando com medo. Eu não queria ouvir mais.
Imaginei meu espírito quebrando a casca do ovo dentro de mim e um
Deus poderosíssimo em algum lugar voltando um olhar faminto na
minha direção, com uma vontade irresistível de me aniquilar.
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Treinar Saos é chato pra caralho. Manu, agora entendo sua dor. Como você faz
para treinar esse bando de mulas? Admiro sua paciência.
Estou tentando vários métodos e nenhum parece dar certo. Primeiro eu tentei
organizar uma sala de aula. Sabe, eu era o professor e tinha um quadro-negro. Os
alunos se sentavam no chão logo adiante e tinham uns cadernos fodidos. Eu dei a eles
umas folhas com umas merdas erradas que imprimi, que eu usava para rascunho, e
mandei que eles usassem o verso.
Porém, no primeiro dia de aula os cornos não conseguiam prestar atenção em mim
porque estavam entretidos com as folhas. Eu imprimi nelas umas letras de música do
Justin Bieber. Não foi um acidente, é claro, já que eu admiro o artista. Um dos
estudantes também achou uma folha com uma foto de um dos membros do One
Direction sem roupa. Eu expliquei que ele não estava realmente sem roupa, que
Liam Payne tinha feito uma brincadeira com os fãs. Mas aqueles cuzões querem ouvir
minhas explicações? É claro que não.
Enfim, o primeiro dia foi uma bosta e não serviu nem como introdução. No
segundo dia um dos alunos implicou porque eu estava me referindo a eles como “suas
bichas”. Eu disse a eles que iria chamá-los como eu quisesse e quem não estivesse
satisfeito com isso poderia decepar o braço, deixar na minha mesa e sair da SSC. Só
quando eu disse isso que os miseráveis se calaram.
No terceiro dia tentei ensinar algumas magias simples, como chamar relâmpagos
ou soltar bolas de fogo pelas mãos, mas eles não eram sequer capazes de começar.
Manu, o que você andou ensinando a eles? Eu preciso de um relatório sobre o que eles
aprenderam até aqui, ou ensinarei coisas muito básicas ou avançadas demais.
Depois desse dia, eles ficavam olhando para mim com cara de apavorados e não
abriam a boca na sala de aula. Eu me pergunto se os palhaços ficaram com medo
dessa coisinha de nada que fiz. Se já estão com medo de mim, imagine só como vão se
cagar na frente dos Deuses.
Eles não entendem que as magias mais fortes não são aquelas com apelo visual.
Essas só servem para chamar a atenção de pessoas facilmente impressionáveis. As
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Enlouquecidamente,
Mau
Mau, não mate seus alunos. Já estou indo aí. Me espere. Não faça nada perigoso!
Algumas vezes você não se dá conta do quão forte você é. Parece que se esquece.
Suas “magias simples” não são simples de aprender para alguém que nunca teve
contato com magia antes.
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Cordialmente,
Manu
Suas aulas parecem tão legais, Mau! Queria estar aí para assistir e mandar
bilhetinhos secretos de amor para meu professor, junto com uma maçã deliciosa e
vermelha. ;)
Tejas respondeu:
Farah disse:
Tejas escreveu:
Eu te amo.
Farah respondeu:
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Tejas disse:
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seus alunos atinjam o nível que ele deseja. Mau exige excelência de todos.
Sendo assim, terei que exigir o mesmo de vocês.
Cacete. O que ela queria dizer com isso?
– A partir de agora, aumentaremos nosso ritmo de treino, senão
quando vocês forem para o Acampamento B não serão capazes de
acompanhar o ritmo de Mau. Eu irei repassar uma técnica diferente para
estudantes de cada semestre, então ouçam com atenção.
Para os iniciantes do segundo semestre como eu, Manu ensinou uma
técnica de controle de energia parecida com uma meditação de pé ou
uma posição de Yoga. Seria uma técnica de tai chi ou algo que ela
inventou?
De qualquer forma, eu apenas segui as instruções. Eu estava
morrendo de calor e ficar ali de pé sem me mover, debaixo do Sol forte,
era custoso.
Acho que o Sol estava tão forte que comecei a alucinar. Eu estava
acostumada a meditar num clima frio no acampamento branco, então a
energia daquele lugar era completamente diferente. Usei a mesma
intensidade mental que eu usava no clima frio, aumentando o ritmo de
minha respiração. Era uma técnica de pranayama. Mas uma técnica para
ser usada no inverno.
Eu forcei demais. Senti uma pressão intensa na testa. Era um tipo de
dor, mas também era bom. Aquela sensação começou a percorrer meu
corpo inteiro.
De repente, eu senti que era o Sol. Senti que eu estava invocando
toda aquela luz e calor para dentro de mim.
Subitamente, senti como se meu corpo estivesse queimando. Mas não
era doloroso. Não era assustador. Era apenas maravilhoso.
Nunca senti algo assim antes. Era como se eu e o Sol fôssemos um.
De repente, eu não sentia mais calor. Não sentia mais meu corpo. Até
minha mente foi embora. Eu não era mais capaz de pensar.
Eu não sentia mais nada. Não sabia onde estava ou quanto tempo se
passou.
Apenas desejei permanecer naquele êxtase magnífico até o fim dos
meus dias.
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– Espera – disse Mau – isso é sério? Você casou com minha mãe?
– Mau, chega de bater papo, caralho! – Yago gritou – Manu está
sangrando, porra! Os Saos precisam de atendimento médico! Chuta esse
filho da puta daqui.
Sol se teletransportou para a frente de Yago. Deu outro largo sorriso.
– Minha presença aqui o incomoda? – perguntou Sol – posso saber
por quê?
Yago empalideceu. Mas se conteve.
– Você já conseguiu o que queria – disse Yago – agora nos deixe em
paz.
– Não é você quem dita as regras, seu pedaço de lixo. E essa suposta
paz de vocês é uma ilusão. Vocês somente terão paz completa quando
entregarem a nós seus espíritos.
Sol chutou um monte de terra no rosto de Yago, que tossiu. Sol
limpou as botas, deu meia volta e voltou-se para Mau outra vez.
– Como eu estava dizendo, sim, eu casei com sua mãe. Peço minhas
sinceras desculpas por não tê-lo convidado para a festa de casamento.
Sua mãe é uma rainha na cama. Não sei o que ela tinha na cabeça
quando decidiu se deitar com aquele humano sujo.
– Meu pai morreu na guerra com honra – disse Mau – e agora você se
cala e se retira.
– Já pensou na proposta que fizemos? – perguntou Sol – sobre você
se casar com Terra? Se você se casar com ela, nós pouparemos o seu
planeta.
Mau riu.
– Duvido – Mau disse.
– Sua mãe quer que você se case com ela, para que seus descendentes
tenham sangue de Deuses – explicou Sol – se você se casar com uma
humana, seus filhos serão fracos.
– Como se eu desse a mínima para essa merda – disse Mau.
– Se seus filhos forem Deuses, vocês poderão nos vencer na guerra
um dia – explicou Sol.
– E por que vocês nos dariam essa chance? – perguntou Mau.
– Sua mãe ainda te ama, embora você não acredite – disse Sol – ela
quer o melhor para você, independente das consequências. E o amor não
se explica. Por exemplo, eu me casei com ela mesmo sabendo que com
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– Eu vou te dar um bolo do mundo dos Deuses para você trazer para
cá, depois da festa – disse Sol – se os seus Sacrios comerem apenas um
pedaço, eles poderão despertar siddhis. Eu me lembro que vocês gostam
bastante das nossas siddhis.
– Nós adoramos – garantiu Mau.
– No nosso mundo nós as chamamos de “dons” – disse Sol.
– Eu sei como vocês as chamam – disse Mau – eu sei até o idioma de
vocês. Na verdade, o idioma dos Deuses é o único que conheço além do
português. Minha mãe me ensinou.
– E seus filhos também o aprenderão – garantiu Sol – bem, agora que
estamos em bons termos, voltarei para meu mundo. Aguarde meu
contato em breve.
– Mal posso esperar – disse Mau.
Sol deu um giro, fez uma reverência e desapareceu.
Finalmente, nós conseguimos respirar. Eu me levantei
imediatamente, para poder ajudar um dos Saos caídos no chão.
– Droga, muita gente se machucou – disse Yago, preocupado –
incluindo nossos médicos. Mau, por que você...?
– Se eu o mantivesse falando, ele sairia daqui sem matar mais
ninguém – explicou Mau – eu conheço Sol. Eu o conheço mais do que
eu desejaria. Quando ele fica zangado, mata todo mundo. Ele iria limpar
esse lugar se eu o atacasse. Pensei em o atacar umas três vezes, mas me
contive. Se eu o fizesse, nenhum de nós sairia daqui vivo. Talvez nem
mesmo eu.
Enquanto Yago contatava os médicos e ajudava os feridos,
conversava com Mau.
– Ele já tinha falado dessa proposta de casamento antes? – perguntou
Yago.
– Muitas vezes – disse Mau – sempre achei ridícula. Esse casamento
não garante nada. Não consigo confiar na palavra desse infeliz.
– Mas ele cumpriu com sua palavra hoje – disse Yago – curou Manu
e foi embora.
– Mau – eu o chamei.
Mau e Yago se viraram.
– Você é um Deus? – perguntei, confusa.
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Mau, fiquei sabendo que você tentou me contatar. Sinto muito por não responder
o chamado que me enviaram. Eu não estou mais na Índia no momento. Creio ter sido
esse o motivo de ter havido a falha na comunicação. Por favor, se precisarem de mim,
lembrem-se que permanecerei em Burma por um período.
Sinto muito pela perda sofrida pela SSCB.
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Sinceramente,
Sahana
Finalmente está mostrando suas garras, Mau. Aposto que você tinha um acordo
com esse Deus do Sol e acabou de barganhar com ele.
Certamente,
Sarthak
Deixa de ser burro, animal. Eu precisaria ser muito estúpido para mandar
explodir meu próprio acampamento.
Sarthak respondeu:
Como você não se cansa de demonstrar toda vez que escreve na internet, estupidez
é o que não lhe falta.
Mau disse:
Fiquei com preguiça de colar no Google Tradutor o que você escreveu, então irei
apenas ignorá-lo. Tenha mais respeito pelos mortos, cacete.
Oi filho!
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Tentei te enviar um e-mail para te avisar sobre a data do casamento, mas ele
retornou. Presumo que você tenha alterado seu endereço de e-mail desde a última vez
que nos falamos. Por que não me avisou, queridão?
O casamento está marcado para daqui uma semana, no próximo sábado. Ele
ocorrerá em Mundes, o Mundo dos Deuses. Espero que não se importe que o
realizemos na Igreja da nossa religião. É uma Igreja muito respeitada em nosso
mundo, em que cultuamos a nós mesmos.
Peço que não vista seus trajes horríveis de costume, mas vá bem vestido. De
qualquer forma, iremos te vestir aqui mesmo com um monte de plumas coloridas,
conforme o costume. O noivo deve fazer a corte da noiva no caminho do altar, girando
ao redor dela enquanto agita seu rabo emplumado.
Sugiro que não se atrase, ou iremos explodir o seu planeta. Isso não é uma
ameaça, é claro. É que Terra está muito animada com o casamento e prefere que você
chegue cedo para que a maquiagem dela não estrague.
Sobre seus convidados, peço que não traga muitos idiotas. Somente os idiotas
bonitos, porque tudo aqui é muito chique e requintado. Sua noiva estará linda, sua
mãe estará linda e eu estarei um arraso. Sendo assim, se esforce para causar uma boa
impressão.
Sol
PS: Traga refrigerantes, pois adoro aquela Sukita que bebemos juntos uma vez
Sarthak escreveu:
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Farah escreveu:
Oi, Mau
Com amor,
Terra
Farah escreveu:
Que perua!!! ;x
O Mau é meu, ouviu, putinha?
Galinha safada, égua depravada!
Cachoooooorraaaaa!!!!
Mau escreveu:
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Yago!!!
Você já não tinha expulsado esses Deuses filhos da puta?
Você não era um “hacker exepcional”? Então bloqueie os dois desse site
imediatamente!
É melhor que os tire agora antes que eles façam merda.
Sol respondeu:
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Caro Yago (a-há! Agora lembrei seu nome!), eu tenho um recado para aquela
menina que acidentalmente me evocou. Como sabe, eu tenho poderes especiais e sei que
você está perto dela e tem um computador. Então apenas mostre a ela o que escrevi.
Cara menina,
Não sei o seu nome e não tenho vontade de usar meus poderes para descobrir.
Eu gostaria de te convidar para o casamento. No fundo, foi por sua causa que
tive a oportunidade de forçar Mau a aceitar se casar com Terra, então eu queria te
recompensar.
Mas a sua recompensa será mais do que um convite para nossa festa. Eu tenho
uma proposta.
Não irei falar dela por aqui, porque sei que Yago vai ler. Sendo assim, chegue um
pouco mais cedo na festa para conversarmos.
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Gentilmente,
Sol
Yago me alertou.
– Não caia nessa conversa – disse Yago – os Deuses podem te
oferecer qualquer coisa: riqueza, poder, fama, até vida eterna.
– Então... por que eu não aceitaria? – perguntei a ele.
– Você mesma precisa encontrar essa resposta – Yago deu um sorriso
gentil – eu sugiro que em vez de treinar você use essa semana para
pensar naquilo que você acha que realmente importa na sua vida.
Eu caminhei por um tempo sozinha no acampamento, fitando o
horizonte. O Sol vermelho começava a se pôr.
O que eu mais valorizava na minha vida?
Família? Amigos? SSC? Lealdade? Paz? Amor? Justiça? Felicidade?
Liberdade? Verdade...?
Eu havia sido tentada por muitas coisas durante aqueles longos meses
de treinamento. Mas eu não voltei atrás. Até que finalmente consegui me
tornar Saos.
Eu jamais permitiria que um Deus arruinasse meu esforço.
Poderia parecer um esforço pequeno e insignificante aos olhos dos
outros. Mas para mim era importante. E só por isso eu insistiria em lutar
por aquilo que eu acreditava.
Os Deuses eram mais fortes. Eram mais sábios. Eles estavam certos.
Mas eu não era uma Deusa. Eu era humana. Aprendi a viver de um
jeito. Não era uma maneira perfeita de viver. Mas era especial o bastante,
porque pessoas especiais me ensinaram.
Meus pais. Meus irmãos. Meus amigos. Meus mestres.
Mau era semi-Deus e optou viver como humano. Devia haver algo de
muito importante na nossa vida. Algo que superava a supremacia divina.
Pensei em Irene. Foi então que me lembrei de uma coisa essencial.
– É claro...! Como não me dei conta?
Eu já sabia o que precisava fazer.
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FIM DO LIVRO 1
(CONTINUA NO LIVRO 2)
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