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Sociedade do Sacrifício

Livro 1
Wanju Duli
2015
Sumário
Capítulo 1_______________________________________________5
Capítulo 2_____________________________________________102
Capítulo 3_____________________________________________162
Capítulo 4_____________________________________________251
Sociedade do Sacrifício

Capítulo 1
Quando eu tinha doze anos pensava que Sacrifícios eram pessoas
ricas que viviam no conforto, tendo grandes diversões em suas
aventuras. Em suma: eles eram tudo o que alguém poderia almejar ser.
Tinham riqueza, fama e, acima de tudo, poder. Suas vidas não eram
entediantes. Eles partiam em espetaculares jornadas para salvar o mundo.
Sacrifícios eram como lendas vivas saídas de livros de fantasia: eles se
destacavam na multidão. Eram escolhidos, porque eram especiais.
Carregavam nas costas o destino de toda a humanidade. Como não
admirá-los? Como não invejá-los? Como não desejar ser um deles?
Os rumores não ajudavam. Sempre que alguém pronunciava o nome
“Sacrifício” um olhar de reverência, temor e emoção era visto no rosto
de cada um de nós. Na nossa visão eles eram como estrelas de cinema:
dignos de adoração. E mais que isso: não eram atores interpretando um
personagem. Eles eram os próprios personagens que os atores apenas
finjiam ser. Isso os tornava ainda mais grandiosos aos nossos olhos.
Essa era a visão vigente. Evidentemente, nem todos pensavam dessa
forma.
– Esses Sacrifícios – meu pai pronunciou a palavra com desdém –
estão apenas desperdiçando dinheiro do governo.
– Não diga isso, querido – minha mãe censurou-o – você sabe que as
crianças gostam deles.
Quando ela usava o termo “as crianças” se referia a mim e a meus
irmãos, mesmo que meus irmãos já fossem adolescentes. Eu era a única
efetivamente criança, embora estivesse prestes a perder essa característica
no próximo ano.
– O que há de bom em um bando de desocupados comendo o
dinheiro dos impostos? – perguntou meu pai – enquanto os verdadeiros
trabalhadores como nós somos os legítimos Sacrifícios.
Meu pai trabalhava nas minas de carvão, em jornadas exaustivas e
longas. Ele corria grandes riscos todos os dias e ultimamente estava com
problemas pulmonares. Eu sabia que ele fazia tudo isso por nós. Quando
eu o ouvi criticar os Sacrifícios, em vez de protestar eu o abracei.

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– Você sabe que é meu maior herói, pai – eu disse a ele – muito mais
do que os Sacrifícios mais famosos.
– Vou fingir que acredito – respondeu meu pai, tomando um gole da
sua caneca de café e virando a página do jornal.
– Pelo menos os Sacrifícios nos dão esperanças – lembrou minha
mãe – de termos uma vida melhor um dia.
Meu pai deu um risinho de desagrado.
– Vida melhor para quem? – ele rosnou – eu não acredito em contos
de fadas. E mesmo que todas essas lorotas fossem verdade e algum
Sacrifício retornasse triunfante, na prática isso não faria a menor
diferença nas nossas vidas. Todos sabemos muito bem disso. Alguns
fingem que fará alguma diferença para ter motivação de continuar, dia
após dia.
– Não escute seu pai – minha mãe tapou meus ouvidos – ele é
exageradamente pessimista. E inacreditavelmente ranzinza para a pouca
idade que tem.
– Não vou demorar muito para me tornar um sexagenário, então já
estou treinando – ele retrucou, com os olhos no jornal.
– Você ganha em mau humor de qualquer octagenário! – protestou
minha mãe.
– O seu Nicolau tem 86 anos e é muito bonzinho – observei – há
inclusive Sacrifícios mais velhos que você. Sabia, pai? Não há muitos,
porque eles morrem cedo, mas há...
– Sacrifícios, Sacrifícios... – murmurou ele, virando as páginas do
jornal com cada vez mais vigor – não há outro assunto nessa casa?
Resolvi voltar para meu quarto para não colocar fogo na discussão.
Eu estava ansiosa para saber das últimas fofocas sobre os Sacrifícios na
internet.
O problema era que eu precisava compartilhar nosso único
computador com meus outros três irmãos e sempre dava briga.
– Eu sou a mais velha – Irene sempre usava o mesmo argumento –
portanto tenho direito a mais tempo no computador.
– Eu tiro as melhores notas no colégio – dizia Carla – então é natural
que eu mereça um prêmio.

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– Dentre nós, sou o único rapaz e tenho necessidades que vocês não
entenderiam – argumentou Caio – então preciso de mais tempo no
computador.
– Deixa disso, Caio – retruquei – todo mundo sabe que você só usa o
computador pra jogar!
Antigamente as discussões eram bem piores. Desde nosso interesse
em comum nos Sacrifícios, passamos a checar juntos as notícias. Às
vezes animadamente e amigavelmente. Outras vezes com gritos e
empurrões, pois cada um era fã de um Sacrifício diferente e queria saber
mais sobre ele.
Os Sacrifícios não eram algo novo. Eles existiam há pelo menos
algumas décadas, mas somente alguns anos atrás a notoriedade deles
começou a aumentar devido a certos acontecimentos estranhos no
mundo e a explicações ainda mais inusitadas.
Minha irmã mais velha sempre foi uma admiradora dos Sacrifícios,
mesmo na época em que eles ainda não eram notícia de primeira página
num jornal. Caio costumava zombar dela por causa disso, até ele mesmo
virar um fã. Nesse momento, eu e Carla pensamos: se até Caio, o mais
cético de nós, também entrou na onda, deve haver algo mais nisso tudo.
Muitos desastres naturais estavam acontecendo pelo mundo nos
últimos anos, até mesmo em nosso país. Os cientistas sempre tinham
boas explicações. Eles geralmente estavam certos. Até que a situação
começou a sair do controle.
Alguns físicos tinham teorias elegantes para explicar eventos que, a
princípio, soavam quase sobrenaturais. Porém, quando vieram as
ameaças de impactos de imensos asteroides e cometas, que desviavam
subitamente de seus caminhos aparentemente sem nenhuma explicação,
alguns começaram a levantar a bandeira branca. Ou aquilo possuía uma
explicação científica muito avançada ou era obra de Deuses.
No fundo, qual era a diferença? Uma ciência que está a anos-luz de
nossa compreensão não possuiria um status quase divino?
– É diferente – explicou-me Irene um dia – Deuses podem violar as
leis da física.
– Por que eles fariam isso? – perguntei.
– Não posso explicar como pensa um Deus, porque tenho uma
mente humana. Mas posso sugerir alguns possíveis motivos. Um Deus

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poderia quebrar uma lei simplesmente porque tem poder para isso.
Talvez ele deseje demonstrar o seu poder, por vaidade. Ou está com
pressa e não quer obedecer a certas leis para ser mais eficiente.
– Por que ele não para o tempo em vez disso?
– Acho que fazer isso também violaria alguma lei. Provavelmente
cada Deus tem poderes diferentes. Os Deuses com os quais estamos
lidando dificilmente são oniscientes, onipotentes e onibenevolentes.
Quero dizer... se eles fossem bonzinhos, por que estariam tentando nos
destruir? E se tivessem poder completo, por que não simplesmente
aniquilar nosso mundo em vez de fazê-lo por partes?
– Como você disse, é difícil penetrar na mente de um Deus –
observei.
Irene sempre havia sido meio mística. Ela acreditava em Deuses e
outras dimensões. Acreditava que poderia acessar essas outras dimensões
alterando seu estado de consciência, como nos sonhos.
Por isso, quando os rumores sobre a destruição da Terra por Deuses
começaram a aparecer, enquanto a maioria encarava o assunto como
piada, ela aceitou tudo com naturalidade.
– Tenho certeza de que o serviço de inteligência do governo de
muitos países já está a par da situação há um bom tempo – sugeriu Irene
– devem estar se preparando para negociar.
– Negociar com Deuses? – perguntei, incrédula – seria mais fácil
negociar com alienígenas.
Ela deu um sorriso misterioso quando eu disse isso.
– Engraçado você mencionar esse ponto. Estou por dentro de alguns
boatos fantásticos. Quer saber do que se trata?
– Fica quieta, Irene – Caio criticou-a, pois na época ainda não
acreditava – por que está tão feliz com cometas, furacões e esse monte
de merda que anda acontecendo no mundo e destruindo vidas?
Desastres podem ser interessantes em histórias, mas são uma porcaria na
vida real.
– Não estou gostando – ela desviou os olhos – só estou tentando
fazer o melhor da atual situação. De que adianta ficar se lamentando?
Vou pelo menos me divertir. E não é como se fôssemos morrer amanhã.
– É claro que não faz a menor diferença para você que um monte de
desconhecidos estejam morrendo como insetos ao redor do mundo

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nesse exato momento – zombou Caio – mas também não é como se


estivéssemos completamente ilesos.
– Para de posar de salvador do mundo, cara – interrompeu Carla –
isso é muito chato.
– Agora ele vai dizer “Se fosse só na África, ninguém daria a mínima”
– eu revirei os olhos.
– Eu ia mesmo dizer isso – observou Caio – mas não vou dizer mais,
porque agora perdi o momento. Você estragou tudo. Gosto de ser
imprevisível.
– Você é previsível em tudo que diz – eu falei.
– Que tal todos vocês calarem a boca? – sugeriu Irene – eu estava
prestes a fazer uma grande revelação aqui.
– Ninguém está interessado na sua grande revelação – disse Caio.
– Eu estou – falei – então fala logo, Irene, antes que eu não esteja
mais.
– Sou membro de um fórum da Deepnet que revela todos os
segredos por trás dos rumores da destruição do mundo.
– Então é isso – Caio levantou-se – vou até ali. Divirtam-se.
E ele saiu do quarto.
Quando ela me mostrou o fórum, a princípio não fiquei interessada.
Parecia um monte de teorias da conspiração e nada mais.
– Você não entende – insistiu Irene – isso é a coisa real. Tão real que
você toca a pele e logo quer atingir os ossos e o sangue.
– Onde quer chegar? – perguntei.
Essa história de fim do mundo não estava nem mesmo confirmada.
Um monte de tragédias aconteceram simultaneamente em vários países
nos últimos anos. E daí? Por que colocar Deuses na história ou inventar
que um grupo de pessoas estava secretamente se reunindo para lutar
contra esses Deuses?
Quando Irene me disse isso, pensei que ela estivesse louca.
– Achei tudo bem absurdo – comentou Carla, confirmando meus
pensamentos – mas seria legal se fosse verdade. Quer dizer, não o fim do
mundo. Mas os Deuses e o grupo.
Eu dei de ombros.
– Não sei se um mundo com Deuses seria melhor que um mundo
sem eles – eu disse – quando há um país interferindo nos negócios de

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outro, eles preferem mandar o intruso embora. Se houver Deuses


querendo dominar a Terra, é natural que as pessoas desejem chutá-los
para fora.
– E se esses Deuses tiverem criado nosso mundo? Já pensou nisso? –
perguntou Irene.
– É claro que não pensei nisso! – exclamei – não sou você que fica
refletindo sobre essas coisas sem sentido.
– Os pais criaram os filhos – comentou Carla – isso não significa que
eles devam ter pleno poder sobre eles e direito de matá-los quando lhes
convém.
– Exato – apoiei – então não importa o quão poderosos sejam esses
Deuses, se existirem mesmo. Eles não têm nenhum direito de sair
matando gente por aí. E se continuarem, é natural lutarmos para nos
defendermos. Sou a favor de uma guerra, nesse caso.
– Uma guerra? – Irene riu – contra Deuses! Que ideia mais estúpida.
Por acaso é exatamente essa uma das polêmicas que está ocorrendo no
fórum. Muitos estão putos com os Deuses e desejam matá-los. Como se
tivessem alguma chance! Humanos podem lutar contra vulcões, furacões
e maremotos? Mesmo com toda nossa tecnologia, sempre há forças da
natureza que se encontram acima de nosso conhecimento e de nossa
força.
– Nós não podemos vencer a morte – concordou Carla – mas temos
a escolha de morrer de pé ou de joelhos.
– Na prática isso não faz a menor diferença – insistiu Irene – é
apenas um orgulho tolo. Nós precisamos aprender a virtude da
humildade, como nos ensinam tantas religiões. Eu defendo que devemos
contatar os Deuses e pedir perdão.
– Pedir perdão pelo quê? – perguntou Carla, indignada – nós não
fizemos nada de errado!
– Somos apenas humanos e podemos errar sem perceber. Esses
Deuses podem não ser oniscientes, mas devem ser mais sábios que nós e
irão nos mostrar o melhor caminho.
– Que monte de babaquices! – exclamou Carla – você concorda com
essa atitude subserviente, Tônia?
Eu fiquei distraída por um momento, observando com fascínio a
discussão das duas.

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– Não sei o suficiente para assumir uma posição – confessei – mas


por enquanto concordo com Carla. Por que pedir desculpas se nem
sabemos por quê? Não soa muito verdadeiro.
– Vocês duas não entendem nada! – exclamou Irene, zangada – eu sei
mais sobre esse assunto porque li mais. Nesse momento há dois grupos
com visões opostas: aqueles que querem matar os Deuses e aqueles que
querem se sacrificar pelos Deuses. Esses últimos são chamados de
Sacrifício e sou a favor da posição deles.
– Como são chamados os que querem matar os Deuses? – perguntei,
curiosa.
– São chamados de idiotas! – exclamou Irene, fora de si – porque é
exatamente isso que eles são.
– Vamos, Irene – Carla sorriu – e nos diga logo o nome verdadeiro.
– Está bem – Irene suspirou – eles também se autodenominam
Sacrifício, mas isso é totalmente despropositado. Eles acham que estão
se sacrificando pela humanidade, mas só estão se sacrificando pelos
próprios egos. Eles são um bando de crianças que só querem aparecer.
– É mesmo? – comentou Carla, interessada – me conta mais.
– É incrível que já estejam fazendo grupos e planos de ação, sendo
que a existência dos Deuses nem foi confirmada – observei – e nem suas
intenções hostis. E se eles estiverem tentando nos ajudar?
– Realmente, furacões ajudam muito – comentou Carla, com desdém
– os desígnios dos Deuses devem ser mesmo misteriosos para enviarem
mensagens de amor tão enigmáticas como essas!
– Você está analisando a situação com seu cérebro humano limitado
– protestou Irene – há coisas que não entendemos.
– Também há coisas que os Deuses não entendem, já que eles não
são oniscientes – observou Carla – então precisamos matá-los para salvá-
los de si mesmos. Se eles podem se meter na nossa vida, que tal se nos
metêssemos na vida deles?
– Muito engraçado – observou Irene – nós não obedecemos nosso
pais porque eles são oniscientes, mas apenas porque sabem um pouco
mais que nós e têm mais experiência. Isso já é suficiente para obedecer.
Aquela discussão provavelmente prosseguiria noite adentro, sem
nenhuma conclusão aparente.

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– Não tem um meio termo? – perguntei – matar os Deuses ou servi-


los são os dois extremos de um caminho. Não podemos ser amigos?
As duas riram.
– Os Deuses não teriam nenhum interesse em manter relações
diplomáticas conosco porque não ganhariam nada com isso – disse
Carla – eles são uns filhos da puta e ponto final.
– Eles estão tentando nos mostrar alguma coisa importante – disse
Irene – talvez seja um teste. Se agirmos de forma correta, eles podem
nos recompensar.
– Com um paraíso? – zombou Carla – meu paraíso é ter a
oportunidade de viver aqui na Terra com minha família e meus amigos.
Se os Deuses arrancarem isso de mim, não pode existir nenhum paraíso
melhor para substituir. Podem me oferecer o céu, as estrelas, o universo.
Eu valorizo mais as pessoas próximas de mim e a vida que tenho.
– Obrigada por me considerar tão importante, mas eu tenho menos
importância do que pareço – observou Irene – essa pode ser apenas
uma vida dentre muitas. Pode ser que a morte não signifique nada e não
seja uma perda tão grande.
– Você especula demais – disse Carla – e baseia suas decisões em
apostas incertas. Eu prefiro apostar no que é certo: na minha vida e na
cretinice desses Deuses, pois isso vejo com meus dois olhos. Isso é real.
Não vou apostar minhas fichas em Deuses bondosos, outras vidas e
recompensas. Você não se deu conta de que a probabilidade de seu
otimismo ser verdadeiro é muito menor?
– Nós aprendemos uma matemática humana – observou Irene – a
matemática divina não funciona assim.
– Puta que pariu – Carla levantou-se – eu devia ter feito como o Caio
e ter saído daqui desde o começo. Talvez eu não acredite nos seus
Deuses e conspirações. Vou apenas viver a minha vida e aproveitar
minhas pequenas alegrias enquanto duram. Você que é ambiciosa e
insatisfeita por correr atrás de alegrias grandiosas e divinas. Valorize o
que você tem no presente. Aprecie as coisas da Terra!
– Não quero me prender às coisas da Terra – disse Irene – e não digo
isso por não gostar delas. É apenas porque sinto que há algo mais que
isso.

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– Seu cérebro humano limitado deve estar enganado – Carla sorriu –


e quem sabe seus Deuses estejam destruindo tudo como um sinal para
que valorizemos as coisas da Terra enquanto elas duram. Não é um sinal
para nos desprendermos delas. Sinceramente, a nossa mente sempre
enxerga o que quer enxergar. Todas as interpretações são possíveis. Ou
quase todas...
Carla saiu do quarto. Irene me lançou um olhar desolado, como se
me dissesse: “Até você vai ficar contra mim?” Eu, apenas uma criança
que mal sabia sobre as coisas do mundo.
– Eu respeito a opinião das duas – eu disse, por fim – e acho que a
única maneira de encontrar a resposta é contatar esses Deuses e
perguntar o que eles querem. Há uma forma de fazer isso?
– Sim... isso já foi feito. Os Deuses certamente existem. Muitas
pessoas já os viram. Mas eles não costumam aparecer em público. É
necessário passar por um treinamento rigoroso para enxergá-los e
contatá-los. Magia avançada.
– Magia – eu pronunciei.
E a palavra soou como mel na minha boca. Pensei em perguntar: “O
que quer dizer com magia?”, mas qualquer pessoa no nosso mundo sabia
o que era magia. Essa palavra estava em livros de histórias infantis e de
fantasia.
– Vamos supor que eu acredite nos Deuses e na magia – eu disse – o
que vem a seguir?
– Eles não vão revelar. Pode ser perigoso. Algumas informações
sigilosas são dadas apenas aos membros.
Suspeitei que a conversa terminaria por ali.
Com o passar dos dias, eu e Carla ficamos mais curiosas com o tal
fórum. Isso porque os rumores sobre Deuses serem responsáveis pelas
calamidades que andavam acontecendo somente aumentavam. E as
tragédias apenas cresciam.
Poucos meses depois, eram poucos os que duvidavam da existência
dos Deuses. A comunidade científica se confundia nas explicações e
alguns já tinham chutado o balde: havia algo de muito estranho naquilo
tudo. E mesmo que um dia fosse possível explicar tudo aquilo
cientificamente, já estava esquisito o suficiente para chamar de Deus.

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Obviamente, poucos admitiam isso abertamente. Alguns andavam


sugerindo que inventassem um termo científico difícil para as aparentes
aleatoriedades malucas e catastróficas que andavam destruindo o mundo.
A nossa realidade estava cada vez mais parecida com uma história de
ficção. E não num sentido positivo.
“Mesmo que a existência dos Deuses seja provada um dia, acredito
que eventualmente nós os explicaremos cientificamente” foi o
pronunciamento de um físico.
Nesse momento, eu concluí que não fazia a menor diferença se os
cientistas seriam capazes ou não de explicar os estranhos fenômenos.
Afinal, se os cientistas podiam explicar os Deuses nos termos técnicos
deles, os Deuses também poderiam dar uma explicação da perspectiva
divina de tudo o que nós chamávamos de ciência. Isso não invalidaria a
existência de nenhum deles. Apenas mudava a linguagem e o ponto de
vista.
– Você está errada – Carla me disse um dia – se a nossa ciência for
capaz de explicar os Deuses fará toda a diferença. Pode ser que isso nos
dê uma maneira de vencê-los.
Pouco depois do pronunciamento desse cientista, que se chamava
doutor Henrique, apareceu uma montagem na internet com o vídeo dele.
Era algo meio de mau gosto e que não ajudava em nada na busca da
tolerância entre os partidários das diferentes vias do Sacrifício, mas o
número de visualizações do vídeo foi para as alturas.
Era o seguinte: quando o doutor Henrique terminava de dizer a sua
célebre frase, de que eventualmente os cientistas explicariam os Deuses
cientificamente, um cara mascarado com uma arma entrou em cena
(obviamente uma montagem, que foi mal feita de propósito para deixar
isso claro), deu um tiro na cabeça do cientista (que despencou no chão
com um sorriso na cara, em mais uma montagem cretina) e exclamou em
tom raivoso e estridente: “Explique isso cientificamente, filho da puta!”.
– Esse vídeo não é nem mesmo engraçado – reclamou Carla – não sei
porque tem tantas visualizações. E é muito mal feito!
– Foi mal feito de propósito – expliquei – para ressaltar a ironia.
– Duvido – insistiu Carla – os outros vídeos desse cara são uma
merda. E não de uma forma boa.

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– Como algo pode ser uma merda de uma forma boa? – perguntou
Irene.
– De incontáveis modos – respondi, misteriosamente – que achou do
vídeo, Caio?
– Eu não desgostei – ele respondeu, de forma vaga – quem fez o
vídeo deve ser um cara como eu: que anda puto com toda essa bobagem,
essa briga entre religiosos e cientistas. É claro que ele não fez isso para
atacar os cientistas. Só pra mostrar que está de saco cheio com toda essa
polêmica. Ele quer que todos calem a boca.
O vídeo fez tanto sucesso na internet que em pouco tempo surgiram
versões com legendas em inglês e outros idiomas. Além disso, houve
montagens da montagem. Numa delas, o cientista voltava dos mortos e
começava a explicar todos os processos fisiológicos envolvidos no
momento da morte.
– Por que essa porra de vídeo está tão famoso assim?! – Carla estava
fora de si – que absurdo! Eu me sinto ofendida com isso.
– Eu me sinto ofendida que ele esteja fazendo tanto dinheiro com um
debate sério como esse – disse Irene.
– Deixa o cara fazer dinheiro, ele merece – Caio resolveu dizer –
acho que estou começando a gostar desse vídeo. É mais engraçado do
que parece.
Em pouco tempo, deixou de ser piada a suposta especulação de que o
mundo estava sendo destruído por forças obscuras, pois era literalmente
o que estava acontecendo. Porém, mesmo quando o assunto dos Deuses
foi seriamente colocado à tona, é claro que algumas piadas
permaneceram. Sempre havia alguém que não acreditava.
– OK, talvez esses Deuses sejam reais – admitiu Caio – mas que
diferença isso faz? Se eles estiverem mesmo por trás disso, teremos ainda
menos esperanças de nos salvar.
Se houvesse uma pequena chance de as destruições estarem sendo
causadas pelos Deuses, era necessário tentar recorrer a essa explicação
que, ironicamente, havia sido o mais próximo de uma resposta que havia
sido possível chegar até então.
Por isso, aos poucos a Sociedade do Sacrifício começou a ser levada a
sério. Era assim que ela se chamava.

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Algumas pessoas já sabiam da existência daqueles Deuses há décadas


ou mesmo há centenas de anos. Mas somente nos últimos anos que os
olhos do mundo se voltaram para eles.
A sociedade possuía subdivisões, que representavam diferentes
abordagens. Porém, as mais famosas e relevantes eram duas: o Caminho
da Mente e o Caminho do Corpo.
Os defensores do Caminho da Mente enxergavam os Deuses como
inimigos. Defendiam que devíamos usar a nossa inteligência para achar
um meio de derrotá-los. E não somente isso: era uma via fatalista e
extrema. Eles não queriam conversar. Só se dariam por satisfeitos
quando tivessem a carcaça de pelo menos um dos Deuses; isso se eles
tivessem um corpo físico.
Os membros dessa subdivisão da Sociedade do Sacrifício eram os
Saos: Sacrifícios do Caos. Os membros mais poderosos e importantes
eram os Sacrios.
Por outro lado, aqueles que seguiam o Caminho do Corpo queriam
oferecer seus próprios corpos como sacrifício para aplacar a ira dos
Deuses. Os Saem, Sacrifícios da Ordem, também eram radicais. A
existência de Sacriems era rara e controversa, já que os mais poderosos
dentre eles já tinham realizado o sacrifício maior pelos Deuses.
– O que isso significa? – perguntou Bianca, minha colega, enquanto
tomava um suco de caixinha pelo canudinho.
– Não é óbvio? – eu dei um sorriso divertido, de quem sabia de tudo.
Não que eu realmente soubesse. Mas eu sabia mais do que a maior
parte dos meus colegas.
– Eu ouvi que houve outro desastre natural na Colômbia – comentou
Jorge, outro colega meu – talvez um vulcão. Nem sei mais. Ultimamente,
há notícias de tragédias como essa ocorrendo em todos os países, todos
os dias. Já virou rotina.
– O fim do mundo já virou rotina – declarei – as pessoas já se
acostumaram a esperar a morte. Mas elas já não deviam se acostumar
desde o começo? A diferença é que provavelmente vamos morrer daqui
alguns meses em vez de ser daqui algumas décadas.
– Por que todos não entraram em pânico ainda? – perguntou Jorge,
intrigado.

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– Sei lá – respondi – alguns entraram. Outros não acreditam. Por que


não entrou em pânico ainda, Jorge?
– Deve ser porque não acredito que Deuses estejam realmente por
trás disso – respondeu Jorge – pode ser uma conspiração dos governos
para manter o controle populacional.
– Que governos poderosos que controlam as tempestades e furacões
– riu Bianca.
– Bem, se os cientistas podem fazer uma bomba atômica, por que
não? – perguntou Jorge.
– Mas isso não faz sentido! – exclamei – em alguns casos o país
ganha dinheiro quando tem muita gente, principalmente gente jovem que
ganha salários miseráveis, para explorar. Quanto mais gente, mais
competição e mais barata se torna a mão-de-obra. Se bem que também
vai ter mais gente precisando de serviços...
– É assim que funciona? – perguntou Bianca.
– Talvez – respondi, incerta – às vezes meu pai comenta sobre isso.
Ele reclama que trabalha demais, com más condições, que ganha pouco e
paga muitos impostos. Não preciso saber como funciona a fundo a
economia. Só tenho doze anos!
– O que é um imposto? – perguntou Jorge.
– Isso, Jorge, você já devia saber nessa idade – observou Bianca.
– Minha irmã mais velha costuma dizer que é mais importante saber
quem são os Deuses do que saber sobre impostos – observei – porque
ela diz que as coisas do outro mundo importam mais que as coisas desse
mundo. Mas eu não sei se concordo com isso! Se nossos pais não
trabalhassem duro, a Irene não teria nem dinheiro para comprar um pão.
Se ela não comer, não pode pensar sobre os Deuses.
– Pelo que você já me contou, ela não se importaria de estar morta –
disse Bianca.
Nesse momento, eu baixei os olhos.
– Ela adora os Sacrifícios – revelei – há muito tempo. Há mais tempo
que eu. Ela parece até mesmo gostar das tragédias que estão acontecendo
no mundo. Parece meio mórbido, mas ela diz que isso dá um sentido pra
vida dela. Se não fossem as coisas ruins ela ficaria entediada e sem
propósito. Ela não parece gostar muito da vida. Ela acha que a vida não
faz sentido. Só comer e respirar...

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– Mas a vida é muito mais que isso – disse Bianca – são os pequenos
momentos que só valorizamos quando perdemos.
– Eu sei – concordei – qualquer pessoa quando está triste ou
deprimida pode achar que a vida não é boa o bastante. Passar por esses
momentos é natural. Já passei por isso quando eu era mais nova e meu
avô morreu. Ele trabalhava nas minas também e teve um acidente. Ele já
devia ter se aposentado, mas a situação financeira dele não estava bem,
então ele continuou...
– Que droga – disse Jorge – deve ter sido uma merda.
– Meu pai costuma brincar que deseja que o mundo acabe logo para
não precisar ir trabalhar nas minas outra vez – observei – e tem muita
gente repetindo coisas assim ultimamente: “que bom que o mundo vai
acabar, assim não preciso estudar e trabalhar, não preciso envelhecer,
adoecer ou passar por situações desagradáveis”.
– Isso é um pouco triste – disse Bianca – eu não gosto de estudar,
mas certamente prefiro estudar a morrer.
– E se morrer for uma coisa boa? – perguntou Jorge.
Nós duas lançamos a ele um olhar atravessado.
– Não perguntei a sério – ele justificou – eu sei que o processo da
morte costuma ser doloroso, mas e se houver mesmo outros mundos e
outras vidas?
– Mesmo se isso for verdade, por que as outras vidas seriam mais
importantes que a atual? – perguntei.
– Porque as pessoas nunca estão satisfeitas – respondeu Jorge –
mesmo que a vida delas esteja razoável, ou até mesmo excelente, elas
sempre querem acreditar que há algo melhor. Ambição é bom, mas
ambição demais pode fazer o tiro sair pela culatra e tornar a pessoa
infeliz.
– Será que minha irmã é ambiciosa, então? – perguntei, incerta – ela
não parece realmente infeliz, mas no fundo sei que ela está insatisfeita.
Talvez seja o destino dela, karma ou o que seja.
– Será que as pessoas se tornam Sacrifício porque estão tristes? –
perguntou Jorge – ou será que é por tédio?
– Cada um se torna Sacrifício por um motivo diferente, ué –
respondeu Bianca – assim como cada um faz cada coisa por variados
motivos.

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– Eu sei! – protestou Jorge – eu quis dizer, qual será a motivação


mais comum para alguém se tornar Sacrifício?
– Nobreza, bondade, lealdade, altruísmo – listei – e todas as outras
palavras parecidas com essas. É isso que as pessoas gostam de dizer. E
eu gosto de acreditar que são esses os motivos principais. Mas...
– Esse “mas” na sua frase me dá um arrepio – confessou Jorge – o
que você vai dizer?
– Deve haver algo mais – concluí – afinal, por que alguém decide se
tornar um herói? Por que alguém escolhe se sacrificar para salvar o
mundo?
– Se não for por bondade, pode ser para se exibir – concluiu Bianca –
mas será que não é um preço alto demais só para se mostrar?
– Algumas pessoas não se importam com esse motivo – admiti –
porque muita gente se preocupa demais com o que os outros pensam.
Querem atender as expectativas dos outros. Ou talvez tenham
expectativas rigorosas demais para si mesmos.
– Há muita gente jovem se tornando Sacrifício hoje em dia –
comentou Bianca com um sorriso, num misto de emoção e medo – isso
é insano...!
– Antes eram só velhos excêntricos que se juntavam a esse grupo –
disse Jorge – mas agora que o grupo perdeu o status de louco e é
considerado famoso e nobre, mais gente está se juntando. Se quer saber
mesmo, acho que todos esses que estão se juntando agora são uns
vendidos! Os verdadeiros Sacrifícios são aqueles que entraram no grupo
há pelo menos uns dez anos. Antes dos boatos. Esses com certeza não
buscavam fama. Faziam tudo isso por ideal.
– Ah, essa polêmica de novo! – protestou Bianca, apoiando o rosto
nas mãos, cansada desse assunto – em compensação, está mais difícil
entrar pra SS atualmente. Então só consegue se tornar membro quem
realmente se esforça.
– Se os Deuses matassem um membro da minha família, eu entraria
na SS para me vingar – disse Jorge – na SSC, obviamente.
– Será que metade dos membros atuais não são vingadores? –
perguntou Bianca – afinal, tem muita gente morrendo atualmente. Não
seria estranho. Eles não teriam mais nada a perder.

19
Wanju Duli

– Talvez alguns se envolvam pelo dinheiro – sugeri – porque dizem


que ser Sacrifício dá uma boa grana. E também parece divertido.
– O que há de divertido? – perguntou Bianca.
– Partir numa aventura – expliquei.
– Pode parecer divertido para quem observa de fora – disse Bianca –
aposto que no primeiro dia eles já querem pular fora. Ouvi falar de
muitas desistências. A maioria não aguenta.
– Nem pelo dinheiro? – perguntei, surpresa – muita gente faz
sacrifícios muito maiores por dinheiro.
– Nem todo mundo sacrifica a vida por isso – disse Bianca – somente
uns poucos. Mas há algo muito mais tentador que fama e dinheiro:
poder.
– Ah – fiquei surpresa com minha própria ingenuidade – como pude
me esquecer disso?
– Eles adquirem conhecimento e poder – disse Bianca – alguns não
se importam em viver na pobreza ou no desconhecimento se podem
adquirir algum grande conhecimento ou habilidade. Isso vale mais do
que qualquer dinheiro do mundo: deleitar-se com o poder pelo poder.
Por que a fama seria necessária se podemos ser a nossa própria lenda
viva? O admirador de nós mesmos?
Eu não tinha palavras. Jorge também a fitava fascinado.
– Os alquimistas buscavam riqueza e vida eterna – observou Jorge – é
uma busca antiga, de uma velha ambição humana.
– Não era isso que eles realmente estavam buscando – explicou
Bianca – eles queriam o conhecimento do processo de produzir a Pedra
dos Filósofos. Era, como o próprio nome indica, a filosofia que eles
desejavam, porque o saber vale mais do que ouro e imortalidade.
– Por quê? – perguntou Jorge, confuso.
– Nós estudamos isso hoje na aula de história, seu burro – Bianca
arrancou um livro da mochila e localizou a página – “Todos os homens
têm, por natureza, o desejo de conhecer”. Aristóteles disse isso.
– E daí que ele disse? – teimou Jorge – ele é alguma autoridade no
assunto?
– Ele meio que é – respondeu Bianca, me lançando um olhar
nervoso, como se dissesse: “Duvido que ele saiba quem é Aristóteles”.

20
Sociedade do Sacrifício

– Mas há muitas coisas para se conhecer – insistiu Jorge – por que é


melhor conhecer matemática ou filosofia do que conhecer os hábitos de
vida do meu cachorro?
– Na verdade Aristóteles gostava de observar os animais – disse
Bianca – ele meio que fazia tudo.
– Pare de usar “meio” em todas as suas frases! – reclamou Jorge – é
irritante. Pense antes de dizer alguma coisa e decida se alguém fez a coisa
completa ou só pela metade.
Eu ri.
– É só uma expressão para enfatizar, como “tipo assim” – expliquei.
– Tá bom – disse Jorge, desistindo do assunto – o mundo vai acabar
em breve mesmo. Ninguém se importa mais em preservar a língua
portuguesa.
– Você é quem menos preserva – disse Bianca – nem sabe o que é
imposto!
– Sei sim, eu estava mentindo antes – disse Jorge – pagar imposto é
como ser Sacrifício: doar voluntariamente uma parte do salário para
ajudar o país, por idealismo.
– Que infeliz – falou Bianca – você sequer sabe o que a palavra
“imposto” significa em outros contextos? Quando se impõe alguém a
algo.
– Eu cansei dessa conversa – disse Jorge – por que a professora não
chegou ainda? O intervalo já acabou há muito tempo.
Eu também achei estranho. Alguns minutos depois, a diretora do
colégio entrou na sala para anunciar uma triste notícia:
– Infelizmente, a professora Zélia sofreu um acidente.
Depois de enrolar mais um pouco, a diretora anunciou solenemente
que nossa professora tinha morrido soterrada num terremoto.
– Mas que porra...?
Essa foi provavelmente a reação mais comum. Pensei que ela fosse
dizer que nossa professora estava no hospital em estado grave. Mesmo
que fosse uma mentira, seria menos chocante. Mas a notícia da morte
não foi o que mais me fez engolir a saliva do chiclete que eu estava
mastigando nos últimos segundos. A parte do terremoto foi estranha pra
caralho.
– Terremoto no Brasil? Isso é uma piada?

21
Wanju Duli

Eu não sei se ficamos mais chocados com a notícia da morte dela ou


com a notícia do terremoto. Porém, era preciso colocar as cartas na
mesa. A verdadeira informação que gerou o choque foi: nossa professora
foi assassinada pelos Deuses.
– Será que ela fez alguma coisa errada?
– Ela ia nos dar provas hoje. Os Deuses a puniram por isso.
– Que bom, não vou precisar fazer prova.
Os murmúrios eram confusos e idiotas. Eu já tinha ouvido o boato
da morte por punição divina, embora não fosse tão popular.
A primeira reação dos meus colegas foi perplexidade. Alguns ainda
não tinham entendido que era uma informação real. Pensavam que era
Primeiro de Abril.
Quando começaram a associar a morte dela com os Deuses, alguns
entraram em pânico.
– Onde foi o terremoto? – perguntou um dos meus colegas – por que
não sentimos nada? Quero saber se minha família está bem!
Mas o terremoto havia acontecido numa cidade próxima, onde nossa
professora morava. Alguns suspiraram aliviados.
Fomos liberados do colégio mais cedo naquele dia. Mas eu não me
senti bem com a liberação. As aulas me distraíam dos anúncios do fim
do mundo.
– Merda – foi o que consegui dizer, conforme eu caminhava com
meus dois amigos em silêncio até a parada de ônibus.
– Concordo – disse Bianca.
Eu não conseguia nem mesmo chorar diante do anúncio da morte de
alguém que eu conhecia. Eu estava mais aterrorizada em me dar conta
que a morte estava chegando cada vez mais perto de mim. Não estava
somente no meu país, mas na cidade ao lado. Quanto tempo levaria para
chegar na minha vizinhança? Na minha casa?
No meu corpo.
Eu estremeci.
– Vamos todos morrer – eu anunciei – talvez amanhã. Quem sabe só
tenhamos mais uma semana de vida, na melhor das hipóteses.
– Quando eu estava pensando em termos de meses não parecia tão
perto – confessou Bianca – mas alguns dias ou semanas... isso é forte.

22
Sociedade do Sacrifício

– Quando eu via as notícias na TV não parecia real – disse Jorge –


mesmo agora, essa notícia da nossa professora parece coisa de filme.
Era conhecimento geral que, embora as mortes inicialmente
parecessem ocorrer de forma aleatória, elas tendiam a aumentar em
regiões nas quais já tinham ocorrido outras mortes. Parecia alguma lógica
macabra dos Deuses. Ninguém ainda entendia bem como acontecia.
Bastou a primeira morte perto da minha cidade para desencadear o
pânico local. Isso porque não era exatamente a primeira. Havia outros
rumores de mortes. E no dia seguinte houve mais quatro mortes
confirmadas.
Eu não fui para o colégio no dia seguinte. Passei o dia deitada na
cama, chorando.
Eu era muito nova para lidar com a realidade da morte. Mas no
fundo ela não tem idade para chegar.
Meu pai estava estranhamente tranquilo. Imaginei que o trabalho dele
nas minas de carvão o tinha tornado emocionalmente forte. Ele já tinha
presenciado algumas mortes de colegas de trabalho. Tinha uma doença
pulmonar e sabia que provavelmente não teria muito tempo de vida pela
frente.
Por isso, para ele a notícia do fim do mundo não era tão alarmante.
No final daquele dia, ele convocou uma reunião de família. Aquilo
raramente acontecia.
– Há pessoas com dinheiro nessa cidade – informou meu pai – há
pessoas endinheiradas em praticamente todas as partes do mundo. E elas
poderão pagar pelos abrigos. Sabem o que são os abrigos?
– Sim, pai – respondi, prontamente – lugares com cheiro de mijo em
que se come rações.
– Esses lugares com cheiro de mijo estão valendo uma fortuna
atualmente – meu pai sorriu, satisfeito com minha descrição precisa – os
ricos estão brigando por uma vaga. Alguns cidadãos de classe média
estão chorando agora, porque não sabem quantos dias nos abrigos
poderão pagar. E nós, quantas lágrimas iremos derramar?
– Nenhuma – respondi de imediato outra vez – porque não temos
condições de pagar nem por um minuto da proteção nos abrigos. Então
em vez de perder tempo chorando vamos aproveitar os últimos dias que
nos restam como se nada estivesse acontecendo.

23
Wanju Duli

Meu pai me lançou um olhar orgulhoso.


– Pensei que essa seria uma noite difícil – ele disse – uma noite em
que eu teria que explicá-los o quanto somos pobres. Dizer que não
poderíamos vender a nossa casa em troca de um ou dois dias num abrigo
porque essa casa nem mesmo nos pertence.
– Nós sabemos de tudo isso – disse Carla, de braços cruzados – e não
estou nem um pouco desapontada, porque tive uma vida feliz.
– Se vendêssemos absolutamente tudo que temos, quem sabe
poderíamos comprar um dia num abrigo para um de vocês – disse minha
mãe – mas qual de vocês escolheríamos proteger?
– Pare de ser dramática, mãe – disse Irene – eu não estou com medo.
– Além do mais, quem pagaria por qualquer coisa num momento em
que todos estão querendo vender tudo que possuem? – perguntou Caio
– se fosse para escolher, eu diria que é mais inteligente aproveitarmos
para comprar as coisas que os outros estão vendendo por quinquilharias.
E se o mundo não terminar, estaremos ricos.
– Por que pensar em dinheiro agora, babaca? – perguntou Irene.
– Porque dinheiro é tão importante que pode até comprar mais
tempo de vida, como estamos acabando de perceber – retrucou Caio.
– Eu não me importo de morrer. Hoje ou amanhã, dá no mesmo –
insistiu Irene.
– Parabéns! – exclamou Caio, ironicamente – quer que eu te dê uma
medalha? Nós, meros mortais, estamos todos tocados pela valentia de
vossa alteza.
– Vai tomar no cu – disse Irene.
– Olha a linguagem, Irene – observou minha mãe.
– Grande bosta de diferença minha linguagem, se estaremos mortos
em breve – comentou Irene, de mau humor.
– Tem razão – concordou minha mãe – é força de hábito.
– Eu acho que se houver outras vidas você precisará cuidar com a
linguagem para não emputecer os espíritos, então o conselho ainda vale
– zombou Caio.
E Irene lançou-lhe outro olhar de fúria.
– Por que estão brigando? – Carla também ficou braba – não
devíamos estar, tipo, nos abraçando e chorando? Dizendo coisas como
“eu te amo mais que as estrelas do céu, quando morrermos

24
Sociedade do Sacrifício

vamos nos tornar as Três Marias para ficarmos perto uma da outra, etc,
etc”.
– Não leve a mal, mas não quero ficar perto de você na outra vida –
disse Irene – e que diabos é essa frase sobre as Três Marias?
– Inventei agora – disse Carla – e já vi que vou esperar sentada por
alguma despedida dramática, então vou começar. Como eu já disse, tive
uma vida feliz. Apesar de eu só ter quatorze anos, já fiz a maior parte das
coisas importantes que eu planejava fazer, como aprender raiz quadrada
ou os verbos intransitivos. Pensando bem, minha vida foi uma bosta. Eu
não tinha notado ainda, mas não me importo. Aliás, por que as pessoas
não se mudam de cidade simplesmente em vez de comprar vaga nos
abrigos?
– Deve estar um trânsito infernal e os aeroportos devem estar
parados com a multidão querendo se mandar – sugeri – e cedo ou tarde
todos vão morrer.
– Parece que tem um país que não registrou praticamente nenhuma
morte pelas mãos dos Deuses – lembrou Caio – Burma, se não me
engano.
– Devem estar todos se mudando para lá como loucos – eu disse – e
eu diria que seria o lugar número um a ser evitado exatamente por isso.
Imagine a população inteira da Terra espremida num só lugar. Quando
os Deuses notarem isso, vão mandar um maremoto engolir o país para
matar todos juntos.
Eu e minha boca. No dia seguinte, Burma teve a primeira tragédia
natural dos últimos meses, que matou uma quantidade considerável de
pessoas.
Nesse instante, minha mãe disse:
– Eles não são Deuses. São o Diabo.
Para completar, havia estourado algumas guerras ao redor do mundo.
Não sabíamos se os Deuses tinham influência direta ou indireta: se
tinham provocado diretamente a guerra ou era um desespero humano
diante da quantidade de mortes e falta de condições para os que ainda
viviam. Nós íamos acabar nos matando mais um pouco para ajudá-los.
– Os Deuses devem estar rindo agora – pronunciou Caio.
Soubemos que faltou luz em vários locais da cidade. Felizmente,
ainda conseguíamos usar o computador para saber o que estava

25
Wanju Duli

realmente acontecendo, já que os noticiários estavam cobertos pelo


pânico e por um bando de informações sem sentido, que assustavam
mais do que ajudavam.
Fiquei em dúvida se eu deveria ir ao colégio no dia seguinte. Meu pai
continuava a trabalhar nas minas como se nada estivesse acontecendo. E
minha mãe mantinha seu emprego como lavadeira. Estava até com mais
serviço que o habitual.
– As pessoas querem morrer com roupas limpas – explicou minha
mãe.
– Que tal sairmos para jantar num lugar chique, para variar? – sugeriu
Caio – para termos uma última refeição decente. Não me lembro da
última vez que fui num restaurante.
– Não se preocupe com essas trivialidades – disse Irene – se tiver
alguma religião, sugiro que reze pela sua alma. Ou reze para os Deuses...
– Eu não vou rezar para esses filhos da puta que estão destruindo
tudo – decidiu Caio.
– Exatamente – disse Carla – agora você entende.
– Quem não entende são vocês – falou Irene – pode ser que a ira dos
Deuses se acalme e hoje ou amanhã eles decidam interromper os
assassinatos por um tempo. Mas isso só acontecerá se nos esforçarmos
muito.
– Eu prefiro morrer hoje do que me humilhar pra viver mais um ou
dois dias – disse Carla – na verdade, acho que eu não barganharia com
esses putos nem mesmo por mais alguns meses.
Vou mentir se disser que eu não chorei durante aqueles dias. Mas eu
chorei menos do que eu imaginava que choraria. Eu precisava me distrair
com alguma coisa para esquecer. Ironicamente, o colégio era uma das
melhores distrações possíveis.
Quando fui para a aula, notei que pelo menos metade da turma havia
faltado. Felizmente, Bianca e Jorge estavam presentes. E pareciam
estranhamente animados.
– Todo mundo que disse antes que os Deuses não existiam, agora
está tomando nos dedos – disse Jorge, feliz da vida – até o doutor
Henrique gravou um novo vídeo hoje admitindo que a existência dos
Deuses é “altamente provável” devido às circunstâncias, mas é óbvio que
o cretino nunca vai admitir que os Deuses certamente existem.

26
Sociedade do Sacrifício

– Até porque nem mesmo nós podemos ter certeza disso – observou
Bianca.
– Qual é! – exclamou Jorge, indignado – você acha que algum
fenômeno físico plausível matou aquela galera lá em Burma
coincidentemente bem na época em que metade do mundo estava se
movimentando para lá? E terremotos mortais no Brasil? Fala sério. Isso
já deixou de ser piada há muito tempo.
– Fazia muito tempo que não havia mortes em massa em Burma,
então a probabilidade indica que já estava na hora de haver alguma –
tentou Bianca.
– Mesmo que caia coroa dez vezes seguidas numa moeda, na décima
primeira jogada a probabilidade de dar cara continua sendo 50% em vez
de aumentar.
– Mas desastres naturais não têm nada a ver com eventos
independentes! Se um vulcão está inativo há muito tempo não significa
que nunca vá entrar em atividade. Na verdade, pode ser exatamente o
contrário. Mas eu não entendo tanto sobre vulcões para dizer ao certo...
– Bia, que tal você se divertir comigo em vez de ficar procurando um
pretexto para dizer que estou errado, apenas para implicar? A Sociedade
do Sacrifício está tão famosa nesses últimos dias que já deve ter atingido
as estrelas. Literalmente meio mundo quer ser membro agora. É óbvio:
melhor partir numa grande aventura e salvar o mundo do que morrer
sem fazer nada, certo?
– Mas agora eles não querem dar vagas para ninguém – eu observei –
vi na internet ontem. A SSC mandou todo mundo se foder. Ou ao
menos foi esse o aviso oficial do líder.
– Sério? – Jorge riu a valer – quero ver isso! Vamos para o laboratório
de informática.
Por sorte, conseguimos ocupar um dos computadores pré-históricos,
que possuía a velocidade de uma lesma.
Nem mesmo eu havia lido o aviso formal. Apenas tinha ouvido falar.
Por isso, tive alguma diversão adicional.

Esse é um aviso oficial para todos os aspirantes idiotas que sonham em um dia se
tornar membros da nossa respeitável sociedade. Em poucas palavras, podem continuar
sonhando. Durmam para sempre em suas mortes bem merecidas. Porque quando

27
Wanju Duli

realmente precisamos de ajuda, ninguém veio. Ninguém nos escutou. Nos chamaram
de desocupados, loucos, preguiçosos, vadios, canalhas, filhos da puta, cuzões que
mamam nas tetas do governo. Querem que eu continue? Eu tenho uma lista com pelo
menos mais trezentos adjetivos que costumo usar em meus documentos oficiais. Mas
creio ter sido claro.
Os Deuses existem? Não me diga! Conte-me algo que não sei. Surpreenda-me.
Quer saber mais que eu, caralho? Sempre me chamando de ignorante e lunático e
agora todos vêm para beijar o meu traseiro? Pois eu os informo orgulhosamente que
meu traseiro vai muito bem, obrigado, e não preciso de beijos. Na verdade estou
cagando nesse momento. Aqui, sentado na privada, começo a pensar sobre a vida e só
tenho a lamentar pela categoria de profundos imbecis com os quais tenho que lidar
diariamente. Vocês valem menos do que a bosta que estou derramando agora. Sim,
estou cagando água porque tive uma diarreia infernal por causa de um rato podre que
comi. Para quem pensa que nadamos na grana, NÃO, seu bosta. Nós nadamos na
bosta. Não temos um centavo, seus ordinários! Queriam vir para a SSC em busca de
fama e glória? Bem, nós temos essa merda, mas pelo preço de merda aguada. E isso
não é o pior.
Esse bando de filhinhos de papai me enviam esses e-mails cretiníssimos, que já
atingiram um grau tão elevado de putaria que mereceriam um prêmio! Dizem que me
admiram, que querem salvar o mundo, blá, blá blá, e estariam dispostos a enfiar um
cotonete macio em todos os orifícios do meu corpo por uma vaga. Até mesmo dizem:
“sim, eu comeria um rato, uma lesma, uma barata”, mas assim que colocam os pés
aqui e se cagam, esquecem tudo sobre os belos discursos que fizeram e voltam correndo
para a barra da saia da mamãe.
A verdade é que 99% de vocês preferiria morrer hoje do que passar uma semana
conosco, mesmo que isso desse a vocês mais um ano de vida. Nós estamos lutando
contra DEUSES no meio do NADA, PORRA! Não tem cama, não tem teto,
não tem comida quente. Um Deus vai decepar seu braço e não vai ter atendimento
médico. Não tem kit de limpeza e antibióticos. E agora você pergunta: se não tem
nada de bom nesse cacete que vocês fazem e não há esperanças de vencer, por que
caralho vocês fazem essa merda?
Eu não vou perder meu tempo precioso explicando isso para cabeças de vento. Já
perdi muito tempo escrevendo isso. Sorte de vocês que estou na privada, que na verdade
nem é uma privada e sim uma cadeira com um furo sobre um buraco profundo e
malcheiroso. E como eu tenho acesso à internet no meio desse nada absoluto? Ah, se
eu te contasse você ia pirar. E não quero ninguém pirando por essa trivialidade, pois,

28
Sociedade do Sacrifício

como já avisei, não tolero mais esse tipo de gente. Sim, estou falando de você, trouxão,
que, se está me lendo agora à beira do caos do fim do mundo, é porque nutre alguma
esperança para admissão. E é com muito prazer que estou aqui hoje para acabar com
todas as suas esperanças.
Declaro que NÃO HÁ VAGAS! Não porque não haja de fato, mas porque
eu simplesmente declaro que não quero mais dar vagas a ninguém porque vocês já me
emputeceram o suficiente. Aquele meu velho e-mail está ENCERRADO e hoje
estarei muito ocupado fazendo uma nova paródia do vídeo do doutor Henrique, então
não encham meu saco. Amanhã vamos lutar contra outro Deus fodido, e se já fico de
caganeira apenas por comer um rato, a cagamerdeira vai piorar amanhã quando eu
estiver cara a cara com o putão divino. Embora eu tenha que preparar meu rabo para
a ocasião, não preciso de seus cotonetes.
Eu normalmente não toco muito no assunto das fezes, porque sou uma pessoa que
mantém sua vida privada em sigilo, mas meus nervos estão gritando tão alto que eu
sinto vontade de cantar. A canção seria mais ou menos assim:
“Habitantes da Terra, enquanto produzo a minha merda sorrio. Às vezes não sei
se choro ou se rio, mas perante tamanha asneira, estou à beira da loucura. A toda a
ganância e arrogância respondo com petulância e transumância!”
Eu nem mesmo sabia o significado da palavra transumância e só usei-a para
rimar, mas acabo de descobrir que é a passagem do rebanho de carneiros. Agora
percebo que ela deu ao meu poema um sentido profundo. Significa que prefiro passear
com meus carneiros a dar atenção às súplicas de vocês, suínos!
Tenho certeza de que as pessoas lerão qualquer merda que eu escrever aqui,
tamanha a ansiedade que estavam por meu aviso oficial. Por isso, eu propositalmente
fui evasivo e rude em meus comentários. Estava tudo planejado. Afinal, eu sei ir
direto ao ponto quando realmente desejo.
Isso, obviamente, não muda o fato de que estou puto. Não me lembro se eu disse
tudo o que eu tinha para dizer. Talvez eu tenha esquecido do principal, mas não
importa. O principal provavelmente é isso: eu sou o supremo líder da SSC e vocês são
apenas pedaços de lixo. Não se esqueçam disso. As vagas estarão fechadas para
sempre e, veja só, o mundo vai acabar logo e isso não fará diferença.
Minhas solenes despedidas e uma boa morte.
Ah, espere, vocês serão certamente esmagados e queimados vivos. Foi mal, mas
vocês causaram isso a si mesmos. Se tivessem me escutado antes não teria acontecido.
Sendo assim, apenas desejo a vocês uma morte rápida e com poucos ossos quebrados e
pele queimada, embora não mereçam.

29
Wanju Duli

Pensando bem, não desejo porcaria nenhuma! Eu não sou o Papai Noel. Não
estou aqui para dar presentes, e sim para trazer más notícias. No seu caso, uma
péssima notícia. Boa sorte na próxima encarnação.
Oh, espere outra vez! Não há outras vidas! Os Deuses me contaram. Essa foi a
sua última.
Que pena.

Cordialmente,

MAU

Líder Absoluto da SSC do Brasil, Imperador da SSC Internacional, Matador


de Cinco Deuses

PS: Não matamos nenhum Deus ainda, mas temos um excelente simulador que
indica que eu já teria matado cinco deles se eles não fossem indestrutíveis.

PPS: “Se os Deuses são mesmo imortais, por que, pela milésima vez, vocês ainda
estão nessa jornada cretina?” Ora, você que é tão esperto, me diga! Não, NÃO me
diga! Não ouse me enviar e-mails. Mas veja só, você não tem mais meu novo e-mail
que acabei de fazer, com um login ultra secreto, e não poderá mais me localizar.
Cuzão! Tenta beijar minha bunda agora, espertinho, e em breve descobrirá que isso
nunca seria necessário se você fosse capaz de construir uma máquina do tempo e vir
nos ajudar dez anos atrás antes de eu perder meu olho direito. Você ficou feliz por ter
os dois olhos, mas não os terá por muito mais tempo.

PPPS: Quantos “PSs” terei que escrever até conseguir terminar com uma frase de
efeito? Eu normalmente tenho uma lista de frases de efeito junto com minha lista de
xingamentos, mas acho que acidentalmente usei-as para limpar o rabo.

PPPPS: Essa foi boa.

Quando terminamos de ler o tal pronunciamento, eu me sentia tonta.


– Espera – eu disse – esse foi mesmo o aviso formal do líder?

30
Sociedade do Sacrifício

– É claro! – comentou Jorge, alegremente – genial, não é? Esse cara é


um gênio! Sou o maior fã dele!
– Ele literalmente cagou em todo mundo, inclusive em você –
observou Bianca – e você ainda o admira?
– É óbvio – reforçou Jorge – Mau é tudo o que desejo ser um dia.
– Sou mais da Manu – confessou Bianca – o Mau é meio perturbado.
Eu sempre desconfiei disso. E hoje ficou completamente claro.
Manu era considerada a mais forte da SSC. Diziam que se alguém
matasse um Deus um dia, seria pelas mãos dela. Mau aparentemente
tinha boas habilidades administrativas e não era muito bom em batalha,
embora clamasse ser habilidoso.
Mas naquele dia eu estava começando a duvidar até das habilidades
de liderança do cara. Ele perdia as estribeiras facilmente.
– Então é ele que está fazendo aquelas montagens ridículas na
internet – comentou Bianca – ele é terrível em editar vídeos.
– Ele é maravilhoso em fazer vídeos – corrigiu Jorge – o seu humor
que não é refinado o suficiente para apreciar isso.
Resolvi não entrar na discussão. Era um tema delicado.
– Vocês não estão chochados em saber que estamos realmente
ferrados? – perguntei.
– Todo mundo já sabia disso – respondeu Jorge – quem pensou de
outra forma estava apenas com dificuldade para aceitar o inevitável.
– Mau escreveu a mensagem como se ele ainda fosse viver –
observou Bianca, intrigada – será que ele está em algum abrigo especial
para membros da SSC? Se bem que ele mencionou estar no meio do
nada.
– Se eu fosse você, não tentaria tirar algum sentido do que ele diz –
opinei.
Eu não estava irritada com o que Mau escreveu, mas também não
fiquei morrendo de rir como Jorge. Eu sentia um tipo de prazer mórbido
em saber que ele estava tirando com a cara de todo mundo.
“Está bem, você venceu e merece mandar todo mundo tomar no cu”
eu pensei. Ele merecia palmas respeitosas, mas não minha aprovação
completa. Será que não tinha mesmo outro caminho?

31
Wanju Duli

Quando voltei para casa, meus irmãos também comentaram


animadamente sobre a “mensagem espetacular” de Mau. Somente Irene
encarava tudo aquilo com ceticismo.
– Honestamente, eu não gosto do Mau – confessou Irene – não
importa se o que ele escreveu foi engraçado. Foi idiota. Eu nunca
simpatizei com a SSC e simpatizo muito menos com o líder.
– Ele é extraordinário – disse Carla – ele sempre foi meu Sacrifício
preferido. Depois dessa mensagem, eu o respeito ainda mais.
– Como você pode respeitá-lo mais depois de toda essa merda? –
Caio riu – digamos que 10% do que ele escreveu foi risível, mas os
outros 90% foi vergonhoso. Tudo o que ele sabe fazer é embaraçar a si
mesmo.
– Não era você que estava pagando pau para o vídeo que ele fez? –
perguntou Carla.
– Só um pouco – respondeu Caio – e, pensando com mais calma, os
vídeos nem são tão bons. E o que você está dizendo? Você odiava as
montagens!
– Agora eu estou gostando um pouco mais delas – disse Carla.
Irene recusou-se a acompanhar o próximo vídeo do Mau e nos
chamou de crianças. Mau colocou seu novo vídeo no ar de madrugada,
ridicularizando o último vídeo do doutor Henrique, no qual ele admitia
que os Deuses poderiam ser reais, embora aquilo não fosse certo.
Na nova montagem tosca de Mau, ele colocava um monte de
bonecos sendo esmagados e decepados pelas mãos gigantes de Deuses
no fundo, enquanto o doutor Henrique mantinha seu discurso tranquilo.
Eu confesso que havia pouquíssima graça nessa nova montagem. Na
verdade, a maior parte das risadas de quem assistiu foram geradas pela
edição completamente mal feita. Dessa vez ficou bem claro que Mau se
esforçou para fazer uma boa edição, mas ficou um lixo completo.
Mau não parecia estar gostando nada dos comentários do seu vídeo,
que embora tivesse um número imenso de visualizações e muitos risos,
era pelos motivos errados.
Para piorar ainda mais a sua imagem, o próximo vídeo de Mau, que
ficou pronto apenas duas horas após a postagem do seu vídeo mais
recente, era uma paródia dos comentários do doutor Henrique incluindo
uma análise matemática da probabilidade de os Deuses existirem.

32
Sociedade do Sacrifício

Mau somente mostrou o quão péssimo ele era em matemática,


cometendo erros grosseiros, mas não ruins o suficiente para que ele os
tivesse cometido de propósito ou sarcasticamente. Até mesmo eu, que
tinha somente doze anos e nunca fui uma aluna brilhante em
matemática, notei os erros ridículos cometidos por ele e não pude deixar
de dar um sorrisinho ao flagrá-los.
Em vez de fingir que não se importava com os vermes que assistiam
seus vídeos, Mau rebaixou-se a ponto de responder alguns comentários
dos vídeos, gerando o maior furor na internet.
Ele dizia coisas como: “O mundo vai acabar em breve, cuzão! O que
você está fazendo a essa hora assistindo vídeos na internet, corno? Essa
nova geração está mesmo perdida e merece perecer lentamente e com
dor”.
E não somente isso: ele não escrevia de forma breve, mas respondia
com textos gigantes. Era vergonhoso ao extremo.
Uma hora depois, ele já tinha escrito textos enormes o suficiente para
que alguém criasse um site chamado “Merdas que o Mau diz”, colando
praticamente todos os textos gigantescos que ele escreveu nos
comentários dos vídeos nas últimas horas.
Mau ficou puto e ameaçou remover o site da internet. Ele clamou ser
um excelente hacker. Mas é claro que ele não conseguiu fazer nada. E
para provar que ele era uma autoridade em edição de vídeos, em
matemática e em programação, ele postou três tutoriais sobre isso em
sua conta do Youtube.
Dessa vez até mesmo eu chorei de rir junto com Carla e Caio. Os
tutorais não podiam ser sérios. Devia ser brincadeira. Não era possível
que aquele cara fosse tão burro.
Os tutoriais foram idolatrados. Já tinham legendas em inglês naquela
mesma noite e eles se espalharam pelo mundo, tornando a fama de Mau
ainda maior, pelos motivos errados.
O Sol nasceu. Já eram mais de seis da manhã e Mau ainda estava
postando merda na internet.
– O cara não dorme? – perguntou Caio, removendo as lágrimas dos
olhos – ele não disse que em breve teria que lutar contra Deuses ou
alguma merda parecida? E por que raios ele avisa toda hora que vai ao
banheiro cagar?

33
Wanju Duli

– Porque ele está com diarreia, lembra? – respondi – se esse idiota


não tomar cuidado, vai acabar falando demais e revelando sua
identidade.
– Calem a boca, ele não é um idiota – disse Carla, rindo com a gente
– ele é tão divertido!
– Ele não está fazendo isso ironicamente, Carla – avisei – ele é burro
pra caralho.
Até que Mau respondeu a essas acusações de uma forma que calou a
boca da galera por um tempo:
“Se eu sou tão burro assim e vocês são tão inteligentes, me
respondam porque vocês irão morrer e eu vou ficar vivo, bando de paus
no cu”.
– Ele tem um ponto – reconheceu Caio.
Mas acho que pouca gente estava realmente irritado com Mau. Ao
contrário, a maioria agradecia a ele nos comentários dos vídeos, por ele
tê-los feito chorar de rir em seus últimos momentos na Terra.
“Obrigada, Mau, por me proporcionar uma das madrugadas mais
divertidas da minha vida” comentou uma garota aleatória na internet.
Mas Mau não respondia aos comentários simpáticos. Ele somente
retrucava quem o atacava, para se defender. Quando o comentário era
mais ou menos neutro e apenas ligeiramente agressivo, às vezes ele
respondia com um “Zzzzzzzzzz”. Eu não sei se ele escrevia isso
ironicamente ou porque ele estava mesmo caindo de sono. Acho que
todos nós estávamos, mas era irresistível ficar acordado para
acompanhar o que aconteceria a seguir.
Eu já tinha telefonado para Jorge duas vezes, para perguntar se ele
estava acompanhando tudo e rir com ele. É claro que ele não estava
perdendo nada. Todos estávamos como zumbis.
Sinceramente, eu não me lembrava de já ter tido alguma madrugada
divertida como aquela. Nós três acordados no computador, rindo a valer,
checando vários sites ao mesmo tempo, acompanhando tudo ao vivo.
Eu sabia que não demoraria muito para o mundo terminar, mas eu
me sentia mais viva do que nunca. Naquela mesma madrugada
recebemos pelo menos uns cinco avisos de desastres naturais severos
ocorrendo naquele instante em diferentes partes do mundo. Meu
coração acelerava com medo e fascínio.

34
Sociedade do Sacrifício

Por mais estranho que parecesse, as pessoas não estavam mais


pressionando Mau para que ele desse notícias sobre o fim do mundo.
Não queriam saber sobre os Deuses. Elas só queriam se divertir um
pouco antes do fim, fazendo perguntas cretinas e ridículas, que Mau
respondia de forma ainda mais imbecil.
Às seis da manhã, já havia algumas paródias dos vídeos e tutoriais de
Mau, que ele certamente assitiu. Aquilo foi a gota d’água. Exatamente às
6:48 ele apagou a sua conta no Youtube e também o site oficial da SSC.
– É, pessoal, parece que a diversão da noite terminou – comentou
Caio, bocejando – isso foi revigorante.
– Eles não deviam ter sido tão malvados com o Mau – disse Carla –
agora sem o site da SSC não teremos como dizer se as próximas notícias
serão oficiais. Só teremos boatos.
Prevendo que Mau poderia apagar sua conta, muita gente já havia
baixado os vídeos dele e os repostou no Youtube em seguida. Todos os
comentários dos vídeos também tinham sido copiados no site “Merdas
que o Mau diz”, ou MMD.
Caio e Carla foram dormir. Duas horas atrás eu estava lutando contra
o sono, mas estranhamente naquele instante eu me sentia alerta e sem
sono. Por isso, em vez de deitar para tentar dormir, resolvi ir para o
colégio.
Porém, eu cochilei nos primeiros períodos e a professora me chamou
a atenção duas vezes.
Algumas escolas do país tinham suspendido as aulas naquele período
de turbulência, mas a nossa ainda estava funcionando, especialmente
porque a nossa cidade ainda não estava entre as zonas de perigo. E
mesmo com todos os alertas de fim de mundo, ainda havia uma
probabilidade de o mundo não terminar. Então as coisas não poderiam
parar.
No intervalo, fui checar como estavam as coisas na internet no
laboratório de informática. Fiquei desapontada ao ver que não havia
nenhuma novidade.
Eu apenas acessei o MMD outra vez para reler alguns comentários e
rir um pouco. Foi então que notei um comentário de uma tal de Vic:

35
Wanju Duli

VIC: Mau, deixa de ser infantil. Essas crianças estão brincando com você. Eu
não dou a mínima para as merdas que você posta na internet, mas você é o líder dessa
porra e precisa estar acordado amanhã para dar as ordens do ataque. Então, como
vice-líder eu ordeno que você vá dormir.
MAU: Eu não preciso dormir. Estou acima disso.
VIC: Se eu te flagrar dormindo amanhã, arranco seu outro olho.
MAU: Droga. Por que você é tão vaca?
VIC: Porque eu gosto de ser ;)
MAU: Vou deixar passar apenas por causa da sua piscadela sensual.
VIC: Também vou deixar passar a sua insubordinação inicial. Afinal, todo
mundo sabe que você só é o líder formalmente, mas quem realmente manda aqui sou
eu.

E a conversa terminou por aí. A maioria não havia notado essa


conversa devido às toneladas de mensagens que foram postadas
seguidamente naquela madrugada. Mas em pouco tempo esse breve
diálogo ganhou destaque. Afinal, todos sabiam quem era a Vic.
Eu telefonei para o meu irmão imediatamente.
– A Vic postou? – ele perguntou, fascinado.
Enquanto o Sacrifício preferido de Carla e Jorge era o Mau e a
favorita de Bianca era a Manu, Caio venerava a Vic. Então eu sabia que
aquela notícia iria deixá-lo de cabelo em pé.
Houve alguma agitação sobre isso na internet. Mas depois acabou,
pois não houve mais nenhum sinal de atividade dos membros da SSC
nos próximos dias.
Sim, isso mesmo: dias. O mundo não terminou. E quanto mais os
dias passavam, mais os desastres naturais diminuíam. Até que aquelas
ocorrências de mortes em massa pararam quase que completamente.
O mundo observou a isso fascinado. E muitas teorias da conspiração
começaram a surgir. O mais natural foi associar o comentário de Mau de
sua luta contra os Deuses naquele dia à diminuição da incidência de
mortes.
– Será que a SSC derrotou os Deuses? – perguntou Caio – por que
eles não anunciam? Por que não dão notícias?
– Talvez porque o Mau ainda esteja puto e quer nos torturar, nos
deixando no suspense – sugeri.

36
Sociedade do Sacrifício

– Se ele estivesse realmente puto, não teria nem lutado contra os


Deuses e teria nos deixado morrer – sugeriu Carla – acho que no fundo
ele é um cara legal.
– Quão no fundo, eu me pergunto? – disse Caio – essa palhaçada está
indo longe demais. Aposto que ele está rindo da nossa cara agora.
Dito e feito. Duas semanas depois, que pareceram pelo menos meses
ou uma eternidade, Mau reativou o site da SSC e escreveu uma nova
mensagem lá.

Bom dia, seus arrombados! Não, não, imagina, não precisa agradecer. Eu apenas
salvei o mundo, faço isso todo dia porque, diferente de vocês, perdedores, eu sou um
herói. DE NADA, seus animais.
Desde cedo na minha vida eu decidi que não queria ser um escroto fracassado
como vocês, que apenas escaparam da morte porque deram sorte. Eu não permito que
minha vida seja governada exclusivamente pela sorte. É isso que separa vocês,
desgraçados vadios, de mim, que sou um campeão: um abismo.
De que é feito esse abismo? Você já chegou longe em sua jornada, mas ousa olhar
para trás. Está com medo de avançar, porque o abismo é profundo, mas também teme
recuar depois de ter ido tão longe. A verdade é que vocês todos estão tremendo de medo
e tentam disfarçar isso para enganar a si mesmos. Vão em frente, suas bichas, e
critiquem meus vídeos o quanto desejarem! Eu posso não ser o melhor editor de vídeos
do mundo porque eu estava fazendo algo mais útil da minha vida na última década
em vez de postar merda na internet.
Contudo, devo ressaltar que não desprezo toda a merda. Ela pode se dividir em
diferentes categorias. Mas esse é um assunto complexo e refinado demais para a
compreensão de vocês.
Sugiro que usem esses próximos dias para repensarem suas vidas. Não
desperdicem tempo beijando minha bunda, cretinos! Isso não vai salvar a vida de
vocês. Em vez de babar diante dos Deuses e clamar por piedade, tentem fazer algo por
si mesmos. Chegou a hora de reverem suas prioridades. E lembrem-se que nada vem
de graça. Você vai ter que fazer algum sacrifício.
O que prefere? Prazer para o corpo? Prazer para a mente? Ou um deleite para o
espírito? É hora de decidir. Não se pode ter tudo.
Vocês, ratos imundos de internet, certamente já meteram seus focinhos
desagradáveis em todos os cantos mais obscuros e cabeludos da interwebz. Apesar de

37
Wanju Duli

todas as armadilhas, devem ter conseguido alguns queijinhos. Resta saber se o buraco
chamado SSO é um queijo ou uma ratoeira antes de se meterem nele. Estão avisados!
Confesso que me dobrei no chão de tanto rir nessas últimas semanas, devido aos
desesperados que venderam suas casas e tudo o que possuíam em troca de alguns dias
de proteção e desconforto nos abrigos. E agora que o mundo não acabou, estão
chorando por causa de dinheiro. Não quero julgar ninguém, porque já chorei por
causa de dinheiro muitas vezes, especialmente quando passei fome e não tinha nem um
fio de cabelo para comer. Mas, por favor! O mundo não acabou e vocês estão
CHORANDO? É como cuspir na minha cara. É como se minha última década de
sacrifício e sofrimento na SSC não tivesse significado nada.
Se vocês se aterrorizaram com esses últimos meses de iminência de fim de mundo
na segurança de suas casas, pensem nos últimos anos que passei, me arriscando nas
linhas da frente, em que cada dia podia significar tortura e morte.
“Oh, o Mau é muito engraçado. Ele escreve de forma engraçada, é muito
convencido, certamente tem problemas psicológicos e de autoafirmação, além de não ter
mostrado grandes sinais de inteligência. Eu tenho pena dele” é o que vocês escrevem.
Mas por que razões vocês teriam pena de mim? Vocês é que estão em minhas mãos e
não o contrário.
E todos estamos nas mãos dos Deuses. Mas isso não precisa ser assim.
Para aqueles que se sentem desconfortáveis com o fato de apenas poderem assistir à
batalha dos Deuses sem fazer nada: considerem seriamente associar-se à SS.
Agora que o perigo já passou, muitos de vocês vão preferir aproveitar suas vidas
em vez de arriscar perdê-la nessa empreitada perigosa. Mas tenho esperanças de que o
susto recente tenha acordado alguns.
Agora é que vem a grande notícia: NÃO HÁ MAIS VAGAS,
PALHAÇOS!!!
Preciso repetir isso quantas vezes? Não estou mais aceitando nenhum novo
membro na SSC. Nós seguimos o Caminho da Mente. Para isso é necessário
inteligência. Um tipo muito especial. Um tipo de sabedoria que não pode ser medido
pelos seus testes pretensiosos de matemática.
Para aqueles que ainda nutrem alguma esperança miserável de um dia serem
membros da SSC, dou o seguinte conselho: enfiem no cu.

Grato

MAU

38
Sociedade do Sacrifício

Líder Absoluto da SSC do Brasil, Imperador da SSC Internacional, Matador


de Um Deus

– Agora ele clama ter matado um Deus em vez de cinco – observei –


talvez dessa vez não tenha sido no simulador.
– Eu não entendo – disse Caio – primeiro ele nos recomendou entrar
para a SS. Depois anunciou que não queria abrir vagas. Será que ele quer
que entremos na SSO, apesar de poder ser, como ele diz, uma ratoeira?
– Os Saos odeiam o pessoal da SSO – disse Carla – então ele
basicamente não disse nada nessa mensagem. Ele apenas sugeriu que a
SSC estava por trás do fim dos “desastres naturais”.
– Eu não gosto do tom dele – disse Caio – mesmo sendo o líder, ele
não pode decidir barrar todo mundo. Eu quero saber a opinião dos
outros Sacrios quanto a isso: Manu, Vic e Yago. Especialmente Vic, que
é a vice. Ela não disse que no fundo é ela que está no comando?
– Como pretende contatá-la? – perguntei.
Caio cruzou os braços, pensativo.
– Em vez disso, eu poderia contatar o líder da SSC de outro país –
decidiu ele.
– Vão te mandar contatar a sede brasileira.
– Acho que eles vão entender que o líder da sede de nosso país anda
meio inflexível. Quero escutar a posição dos outros líderes quanto a isso.
– Caio... o Mau é o líder mundial da SSC – observou Carla – os
líderes dos outros países não têm poder de revogar a decisão dele.
– No mínimo quero esclarecimentos. De qualquer forma, como eu
poderia contatar a nossa sede se ele alterou o e-mail? Mau está de saco
cheio e não quer ser incomodado.
Caio pesquisou na internet quais eram os países mais fáceis de
contatar.
– Em vez de contatar os mais fáceis, darei preferência aos mais
influentes – ele disse – que, nesse caso, são a China, a Índia e a
Indonésia. Acho que vou começar com a China.
– A China tem limitações para o acesso a alguns sites – comentei.

39
Wanju Duli

– Sei disso, mas contato por e-mail não deve ser um problema –
respondeu Caio – de qualquer forma, parece que a líder da SSC chinesa,
Dan-Dan, está atualmente nos Estados Unidos.
– Como você sabe? – perguntei, desconfiada.
– O que você acha que as pessoas estão fazendo na internet
ultimamente, em todas as partes do mundo? Falando sobre a SS, é claro.
É apenas mais um boato que li num fórum...
Quando pesquisou mais um pouco, Caio descobriu que o contato
com a sede chinesa se daria através do preenchimento de um formulário
no próprio site.
– Eu não sei chinês – ele disse, desapontado – você tem alguma ideia
do que está escrito nesses espaços em branco?
Dei uma olhada, mas o site não permitia que copiássemos os
ideogramas para tentar uma tradução automática.
– Apenas contate a sede americana e acabe com isso – sugeri.
– Não que meu inglês seja perfeito – comentou Caio – mas o
problema principal é outro. Lembra que o Mau brigou com o líder da
sede americana?
– Porra – eu disse – eu me lembro dessa merda. E daí?
– Eles cortaram relações – explicou Caio – agora os americanos se
dividem em dois grupos: a SSC Alfa e Beta. A Alfa responde ao Mau
através da sede canadense e a Beta se tornou um grupo independente
liderado pelo antigo líder deles. Esse que teve a briga.
– Não foi culpa do Mau – Carla defendeu-o – dizem que o Eric
queria se tornar o líder mundial e os dois tiveram uma discussão feia. Até
que o Eric acusou o Mau de xenofobia e pulou fora.
– O que o Mau disse? – perguntei.
– Ele disse que os americanos sempre querem ser os líderes e mandar
em tudo.
– O Mau já disse coisas muito piores sobre outros países e ficou
impune – disse Caio – mas se o Eric já se ofendeu com isso, foi melhor
mesmo sair da SSC Internacional antes que o Mau começasse a xingá-lo
de verdade.
– Eu acho meio nada a ver essa atitude do Mau – confessei – se ele
quer xingar todo mundo só pra ser engraçado, ele devia colocar um nariz
de palhaço e ir para um circo. Em vez disso ele resolveu brincar de

40
Sociedade do Sacrifício

salvador do mundo. Como um cara como ele sequer chegou a ser líder
da SSC brasileira? E ainda mais da mundial, caramba!
– Duvido que tenha sido por networking – brincou Carla – ele deve
ser bom em alguma coisa. Ele mencionou já estar na SSC por pelo
menos uma década. A idade mínima para ingressar é dezoito, então eu
imagino que ele deva ter ao menos 28 anos.
– Eu não tinha pensado nisso – eu disse – ele parece bem mais novo
pela forma infantil que age.
– Que tal pararmos de falar do Mau por um minuto? – sugeriu Caio –
me ajudem a pensar! Eu tento contatar primeiro os indonésios ou os
indianos?
– Os indianos – respondi, de imediato.
– Eu sabia que você ia dizer isso, Tônia – sorriu Caio – ainda está
fascinada com a lenda dos Três Tesouros?
– É a única coisa que consigo pensar – respondi.
Um ano atrás espalhou-se o boato de que três membros da SSC
indiana foram capazes de viajar para o mundo dos Deuses através de
uma meditação profunda. Chegando lá, eles tiveram que sair depressa
para não serem notados. Mas antes de sair, cada um deles agarrou um
objeto desse mundo e levou consigo.
Tejas achou no chão uma pena de ave. Dizem que a pena confere a
ele o poder de voar.
Sarthak agarrou uma das pedras em seu caminho. De posse dessa
pedra ele adquire uma imensa força física.
Finalmente, Raghav colheu uma folha de árvore. Com ela possui
incrível resistência, sendo capaz de permanecer muito tempo sem comer
ou beber. Também o faz suportar calor ou frio extremo sem mover um
dedo.
Eu era particularmente fã de Raghav devido às histórias dos feitos
dele com a folha de árvore. Ele era meu Sacrifício favorito.
É claro que essas histórias eram apenas lendas. Eu não acreditava que
Tejas seria realmente capaz de voar.
– Vou enviar um e-mail para a líder, Sahana – decidiu Caio.
Não foi muito difícil. A espera seria pior. No entanto, após enviar sua
mensagem, ele ficou um pouco preocupado.

41
Wanju Duli

– Fiquei com vontade de entrar para a SSC só porque sei que é difícil
fazer isso – confessou Caio – e no meu e-mail para Sahana expressei
desejo de admissão. Só agora, pensando com mais calma, percebi que
não sei se quero mesmo entrar.
– Não se preocupe – disse Carla – você ainda poderá pensar.
– Não sei se quero passar pelos testes e conhecer todo mundo – disse
Caio, um pouco temeroso – eu admiro a Vic pra caramba e não sei se eu
teria coragem de abrir a boca na frente dela. A Manu certamente vai me
assustar mais que ela. Quanto ao Mau, eu vivo falando mal dele pelas
costas, mas não teria coragem de dizer nada na frente dele.
– Relaxa – disse Carla – você vai ser um novato. Talvez nunca chegue
a conhecê-los pessoalmente. Você vai morrer antes.
– Obrigado pelo apoio – zombou Caio – pode ser que essa história
de partir numa aventura e arriscar a vida seja demais para mim.
Eu também nunca tinha pensado seriamente em ser membro da SS.
Além de eu não ter idade suficiente, parecia aquelas coisas que as outras
pessoas fazem. Nunca você.
“Quem sabe, talvez, daqui seis anos...” eu fantasiava. Mas eu sabia
que no fundo, quando o tempo chegasse, eu não estaria preparada e
desistiria da ideia. Teria uma vida normal como qualquer outro. Afinal, o
que havia de errado em ter uma vida normal?
Mau era todo cheio de si por ser o líder, ou mesmo apenas por fazer
parte daquilo tudo, enquanto nós, meros mortais, não tínhamos coragem
de deixar tudo para trás e cruzar o suposto abismo que nos separava.
Algumas vezes eu pensava que só tinha vontade de entrar naquele
grupo para provar a ele que tinha coragem. Mas esse seria um motivo
muito bobo para ser membro. Ou poderia ser mais um motivo para me
fortalecer. Eu somente precisava de mais motivos importantes. Mas será
que eu queria mesmo possuí-los?
É claro que eu e meus irmãos não éramos somente fãs dos
Sacrifícios. Cada um de nós queria, secretamente, se tornar Sacrifício.
Escondíamos isso um do outro por mero capricho. Nada daquilo
precisava ser dito. Estava no brilho do nosso olhar quando
pronunciávamos essa palavra.
Dava muito trabalho se tornar Sacrifício. Só pelo nome. Só pela
glória. Não haveria algo mais?

42
Sociedade do Sacrifício

Eu não sabia se eu tinha interesse de salvar meu mundo. Quem sabe


isso fizesse eu me sentir útil. De qualquer forma, eu precisava confessar
que estava mais ansiosa pela aventura. Eu queria desafiar a mim mesma.
Mas essas motivações não eram o bastante! Os verdadeiros Sacrifícios
certamente possuíam motivações muito mais poderosas que as minhas.
Queriam conhecimento. Desejavam ajudar as pessoas. Coisas nobres
assim.
Nunca fui uma ávida buscadora de conhecimento. Eu tinha
esperanças de que nos anos seguintes eu conseguisse entender o que
realmente desejava. O que eu considerava importante na minha vida.
Uma semana depois, Caio recebeu a resposta de Sahana.

Caro Caio,

Obrigada pelo seu contato e interesse em se juntar à Sociedade do Sacrifício do


Caos.
Eu estou ciente da dificuldade de contato com a sede brasileira, pois outros
brasileiros me reportaram situação semelhante.
Infelizmente, não há nada que eu possa fazer. Como cidadão brasileiro, você não
pode realizar o teste do grupo através da sede indiana. Essas regras existem para fins
de organização.
Pedimos a sua paciência para aguardar a situação da SSC do Brasil se
normalizar, o que não deve demorar muito, visto que existem outros em posição
semelhante à sua.
Se as suas intenções são realmente sinceras, persevere e eventualmente você será
considerado apto para realizar o teste.

Atenciosamente,

Sahana

Líder da SSC da Índia

Caio suspirou.

43
Wanju Duli

– Eu já imaginava que ela fosse me dizer algo parecido – ele disse –


mas foi bom ter tentado, para ter certeza.
– Você ainda nem tem idade suficiente para entrar – observou Carla.
– Em breve vou ter – respondeu Caio – e com toda essa dificuldade
de comunicação, é bom eu já me informar com antecedência. Até
marcarem meu teste é provável que eu já tenha a idade mínima
requerida.
– Então o bloqueio só está acontecendo no Brasil? – perguntei.
– Talvez – disse Caio – Sahana não deixou isso completamente claro.
Pela mensagem dela, é provável que os indianos estejam realizando os
testes no momento. Mas não vai adiantar eles serem aprovados se o líder
da SSC Internacional continuar a bloquear as vagas.
– Então estamos todos no mesmo barco – concluiu Carla – resta
apenas esperar que Mau termine de ter a sua crise de adolescente tardia.
Dois dias depois, Mau criou uma conta no Tumblr. Como se já não
bastasse aquela palhaçada épica no Youtube. Mau não cansava de nos
surpreender com sua insolência. Ele realmente estava tirando com nossa
cara. Só podia ser. Enquanto os brasileiros aguardavam ansiosamente
para que o novo período de testes se iniciasse, ele estava brincando na
internet. Sendo que anteriormente havia nos criticado exatamente por
esse mesmo motivo.
– Ele está nos desafiando – concluiu Caio – vamos ver o que
acontece.
– Eu acho que ele apenas não se toca – observei – do quão
desagradável ele é.
No começo eu achei o Mau engraçado, mas minha paciência estava se
esgotando. O mundo provavelmente não terminaria nas próximas
semanas ou meses, então não estávamos com pressa. Mesmo assim, era
meio frustrante.
Como esperado, Mau postou muita merda no Tumblr e foi venerado
por seus admiradores. Venerado ironicamente. Mas acho que nesse
ponto ele não se importava mais. Ele já sabia que estavam copiando no
MMD tudo que ele escrevia. No começo ele ficou puto com isso, mas
atualmente ele devia até gostar.
Honestamente, era difícil dizer ao certo o que se passava na cabeça
dele. E algumas vezes eu achava que não queria saber.

44
Sociedade do Sacrifício

Muita gente de outros países queria ler o que ele escrevia. Os mais
fanáticos estavam até fazendo aulas de português apenas para poder ler
alguma coisa. O resto do pessoal aguardava as traduções, que aconteciam
quase simultaneamente, tamanho o entusiasmo do pessoal.
Logo foi inaugurado o MMD Internacional, chamado “Shit Mau
Says”, ou SMS. O nome grudou como chiclete, já que era a mesma sigla
de “Short Message Service”.
A melhor parte eram as perguntas e respostas do Tumblr. Mau avisou
que não conseguia responder todas as perguntas e que sequer estava
tendo tempo de ler tudo e pediu para o pessoal se acalmar.
Ele parecia curtir a sua fama, mas também se irritava com ela. Ele
nunca se decidia.
“Ei, Mau, qual é a sua idade?” foi uma das perguntas. Ele respondeu
colocando uma equação complicada de matemática, mas a resposta não
fazia o menor sentido.
Havia perguntas ainda mais ridículas, como “Se você estivesse numa
ilha deserta e pudesse levar apenas três objetos, o que você levaria?”. Em
vez de fazerem perguntas mais úteis sobre os Deuses ou sobre a SSC,
eles apenas tiravam com a cara dele. Ou provavelmente já sabiam que ele
se negaria a responder as questões importantes, então nem se davam ao
trabalho de perguntar.
“Eu levaria, em primeiro lugar, uma faca para cometer suicídio se eu
estivesse entediado. Também levaria uma foto minha e a olharia
enquanto passo a faca no pescoço, para me certificar de que não estaria
morrendo em nome de nenhum Deus, mas somente em nome de mim
mesmo. Finalmente, eu também levaria uma Sukita. Adoro aquela
merda” foi a resposta dele.
A próxima pergunta foi: “Qual a sua Sukita favorita?” e a resposta:
“Sukita Laranja Zero”.
“Você está tentando emagrecer, Mau?”
“Sim, para ficar bem gostoso para comer sua mãe”
“Por que você não para com essa viadagem e escreve um anúncio no
site da SSC sobre as vagas?”
“Você me pegou. Eu sou um viadão. E não vou parar com isso. Vou
fazer cada vez mais forte, querido”.
– Será que esse Mau não é fake? – perguntei.

45
Wanju Duli

– Os especialistas dizem que não – respondeu Caio – e eles já


analisaram bastante as coisas que Mau escreveu. Mas não deve demorar
muito para os fakes aparecerem. Os que surgiram até agora eram tão
ruins que nem causaram preocupação.
– Qual o critério que esses especialistas usam?
– Quanto mais imbecilidades ele escreve, maior a probabilidade de
ser autêntico. Mas precisa ser um grau bem específico de imbecilidade:
sincera e não forçada.
Ninguém media esforços para fazer perguntas cretinas para o Mau no
Tumblr. Mas eu duvidava que se eles não postassem no anonimato e
estivessem cara a cara com ele teriam coragem de desrespeitá-lo. Aquela
vaga valia ouro e ali estava o homem certo para garanti-la.
Infelizmente, Mau se cansou bem rápido do Tumblr e logo apagou
sua conta. Todas as suas atividades estavam obviamente registradas no
MMD e no SMS.
Uma vez que ele tornou-se novamente incomunicável, restava apenas
aguardar seu próximo pronunciamento no site oficial. Ou o próximo site
imbecil que ele inventaria de se registrar.
Porém, no mesmo dia em que Mau encerrou as atividades de sua
conta, Vic postou alguma coisa no site da SSC, que foi reativado.

Peço desculpas pelo período sem notícias. Muita coisa aconteceu recentemente,
incluindo desentendimentos internos que levaram à informação errônea de que nossas
inscrições estavam fechadas por um período indeterminado.
Tenho o prazer de anunciar que a partir de hoje estamos aceitando novos pedidos
de requisição para testes. Pedimos que preencham cuidadosamente o formulário de
inscrição do site e nos enviem. Os melhores candidatos terão atendimento prioritário.
Por favor, não incluam informações falsas em seus formulários, sob o risco de
serem permanentemente excluídos como candidatos.

Atenciosamente,

Vic

Vice-líder da SSC do Brasil

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Sociedade do Sacrifício

– Infelizmente ainda não posso me candidatar – disse Caio – mas


será que Irene não está interessada? Faltam poucos dias para ela
completar dezoito. Como ela tem sorte!
Nós três fomos até a a sala falar com ela. Irene estava lendo uma
revista e pareceu surpresa com nosso convite.
– Vocês sabem que eu não aprovo o Caminho da Mente e abomino
completamente os líderes da SSC. Por que estão perdendo tempo com
isso?
– De nós quatro, você sempre foi a maior fã dos Sacrifícios – eu disse
– nós só os conhecemos cedo por sua causa!
– Me sinto um pouco culpada. Por favor, me deixem terminar essa
revista.
Voltamos para o quarto. Irene andava agindo estranhamente. Estava
mais fria e indiferente do que de costume.
Ela certamente se sentia ofendida com a fama da SSC e com toda a
comoção na internet por causa deles.
“A SSO é muito mais centrada e discreta” ela dizia.
Eu já achava os Saos sérios o bastante. Não queria nem pensar nos
Saem e em suas filosofias fatalistas.
Muita gente na internet já estava animada e preenchendo suas fichas
de inscrição. Até que, uma hora depois, houve um novo anúncio no site
oficial.

Caríssimos cachorros e cadelas,

Vocês não leram os meus dois avisos anteriores? Ler e interpretar um texto deve
ser uma tarefa fenomenal para vocês.
Que parte de “As vagas estarão fechadas para sempre” vocês não entenderam? E
que parte de “Líder Absoluto da SSC do Brasil” vocês não entenderam?
Desconsiderem a mensagem da vice. Não haverá inscrições. Nunca mais! Eu
somente usarei esse site como meu playground para escrever o que minha magnificência
julgar relevante.

Cusparada

MAU

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Wanju Duli

Líder Absoluto da SSC do Brasil, Imperador da SSC Internacional, Matador


de Deuses

– A Vic nunca vai deixar isso de graça – garantiu Caio – ela é muito
melhor do que Mau jamais sonhou em ser.
Meia hora depois, houve nova postagem da Vic.

Queridos candidatos,

Não se preocupem com as idiotices do líder. Ignorem solenemente qualquer coisa


que ele escrever aqui.
As inscrições prosseguirão normalmente, conforme mencionado.

Atenciosamente,

Vic

Vice-líder da SSC do Brasil

A resposta de Mau veio quinze minutos depois:

Cara Vic,

Por que você me desafia na frente das pessoas? Está tentando me humilhar?
Eu não gosto das suas ações. Não que eu desgoste de você pessoalmente. Não me
entenda mal.
Eu proponho que conversemos mais sobre isso. Que tal irmos ao cinema juntos
hoje à noite? Está passando Cinquenta Tons de Cinza no cinema. Eu li os três livros
e sou um grande fã. Eu particularmente acho que sou muito melhor que Christian
Grey. Você se surpreenderia.

Sinceramente,

MAU

48
Sociedade do Sacrifício

Líder Absoluto da SSC do Brasil, Imperador da SSC Internacional, Matador


de Deuses

– O que foi isso? – perguntou Carla – ele não pode estar falando
sério.
– Deve ser uma mensagem privada postada por acidente no site
oficial – sugeriu Caio – o cara tem que ser muito burro.
– Mau não é burro – corrigiu Carla – ele é ousado.
Preferi não opinar, pois não havia mais nada a ser dito sobre o
assunto.
A resposta de Vic surgiu poucos minutos depois.

Mau,

Você é retardado?
E o que vem a ser esse Cinquenta Tons de Cinza? É outra de suas piadas ruins?
Não estou no humor para piadas. Além do mais, hoje à noite tenho um
compromisso. Vou passear com meu cachorro. Mas mesmo que eu não tivesse um
cachorro, você não seria um bom substituto para ele.

Passar bem,

Vic

Vice-líder da SSC do Brasil, ocupada demais para besteiras

– Ai – falou Caio – isso doeu até na minha alma. Eu não imaginava


que Vic era malvada a esse ponto.
– Que vadia – comentou Carla – isso não é ser malvada, Caio. É ser a
maior cadela do universo. Ela sabia que todos estariam lendo.
– A culpa foi do Mau que se expôs – eu dei de ombros – a SSC só
tem idiotas!
As postagens do site oficial da SSC foram a sensação da noite. Aquela
pérola estava sendo compartilhada em todos os sites possíveis e virou o
espetáculo da internet.

49
Wanju Duli

Naquela madrugada, Mau resolveu afogar as mágoas. Eu não sabia


que ele estava tão puto. Ele criou uma conta no Facebook.
– Mau e Facebook – eu observei – essa combinação só poderá
resultar em desastre.
– Aposto que ele só vai durar meia hora aí e apagar logo em seguida –
sugeriu Caio.
Quando descobriram a conta do Mau, ele já tinha preenchido sua lista
de preferências. Era mais ou menos assim:

Banda: Jota Quest.


Filme: A Gostosa e a Gosmenta.
Programa de TV: Malhação.
Livro: Quem mexeu no meu queijo?
Jogo: Candy Crush.

– Isso é verídico? – perguntou Caio, completamente pasmo – se bem


que esse filme é muito bom.
Na próxima hora, Mau apenas postou mensagens raivosas xingando
Vic.
“Eu mereço coisa melhor. Preciso me valorizar mais”.
Cada mensagem de Mau recebia centenas de curtidas, além de
dezenas de comentários de apoio.
Depois dessa hora, a própria Vic comentou no perfil de Mau, com
seu próprio perfil, provavelmente feito há cinco minutos, pois não havia
absolutamente nada lá:
“Parem de chupar o pau do Mau! Vocês não têm o mínimo de
dignidade?”
Mau respondeu: “Está com ciúmes, Vic?”
A maioria apoiou o Mau e criticou a Vic pela recusa, acusando-a de
ser cruel e insensível.
“Era só um cineminha! Com um filme para garotas! Que parte disso
você não gostou, Vic?” postou um aleatório.
Vic estava basicamente puta que Mau estivesse fazendo tanto drama
na internet. Por isso, ela deletou sua conta do Facebook logo a seguir,
ofendida por todos os xingamentos.
E postou no site oficial:

50
Sociedade do Sacrifício

Mau está certo. Vocês não merecem as vagas.


Acabo de cancelá-las de novo, meus docinhos. :)

Beijinhos carinhosos

Vic

Vice-líder da SSC do Brasil

Dessa vez foi Mau quem ficou zangado porque o pessoal a tinha
emputecido. Ele xingou todo mundo, consultando sua lista de palavrões.
Acho que ele também inventou alguns.
Depois disso, deletou a sua conta.
– Ainda são três da manhã – observou Carla – eles já finalizaram o
espetáculo de hoje assim tão cedo? Pensei que teríamos outra belíssima
madrugada.
Pelo menos eu poderia dormir um pouco antes de ir à aula.
Quando eu acordei, me senti um zumbi. Ao me encontrar com
Bianca e Jorge no colégio, notei que eles se encontravam em situação
parecida.
– O Mau é muito foda! – exclamou Jorge, com genuína admiração –
viram só como ele é fodão? Ele se declarou publicamente para a mulher
que ama. Isso que é coragem!
Jorge era o único de nós que ainda admirava profundamente o Mau.
Até Carla, que era fã dele, sabia ser razoável quando ele se portava de
forma ridícula.
– Bem, foi legal da parte dele convidá-la para ir ao cinema – observei
– Vic que foi excessivamente rude.
– Por que eles ficam expondo os problemas pessoais deles na
internet? – perguntou Bianca – isso é um festival de vergonha alheia.
Por causa daqueles constantes espetáculos de comédias e tragédias
protagonizados por Mau, com a participação especial de outros
membros da sociedade, eu já estava até me esquecendo da situação dos
Deuses.

51
Wanju Duli

Eu provavelmente teria continuado a esquecer de tudo, porque os


membros da SSC se mantiveram completamente inativos na internet na
semana seguinte. Imaginei que o líder e a vice ainda estavam resolvendo
seus negócios pendentes.
Porém, um acontecimento me fez voltar à realidade: o aniversário de
dezoito anos de Irene.
Ela saiu à noite com as amigas para celebrar. Voltou para casa altas
horas da madrugada, podre de bêbada. Eu já estava dormindo, mas a
ouvi chegar devido aos barulhos de coisas caindo no chão. Fui até lá e
encontrei-a cambaleando.
Ela riu quando me viu.
– Melhor forma de comemorar os dezoito – ela garantiu.
– Enchendo a cara? – perguntei – boa ideia. Acho que vou fazer a
mesma coisa na primeira noite em que eu tiver autorização para beber
legalmente.
– Eu também perdi a virgindade hoje – ela informou – e
experimentei um cigarro. Não curti o cigarro, mas a transa foi boa.
– Foi com o cara que você gosta? – perguntei.
– Com um aleatório qualquer – ela respondeu – foi legal pra caramba
trepar com um desconhecido. Mas vai ser mais legal ainda morrer com
desconhecidos.
– Do que está falando?
– Eu fui aprovada para a SSO – ela revelou, me fitando intensamente,
cheia de emoção – no dia do meu aniversário! Eu não poderia ter
recebido um presente melhor. Estou partindo amanhã.
Eu levei um susto.
– Por que não nos contou que estava estudando para a SSO? Isso é
muito importante!
– Eu sei, certo? – ela sorriu – importante pra caralho! Amanhã será o
melhor dia da minha vida. E hoje foi o segundo melhor.
Ela me mostrou a carta de admissão numa gaveta. O envelope havia
sido rasgado às pressas.
– Eu sinceramente queria te desejar os parabéns – eu disse, com um
sorriso triste – mas não tenho certeza se devo. Você pode me revelar o
que vai fazer lá?
– Não.

52
Sociedade do Sacrifício

– Bem, todo mundo sabe o que vocês fazem – baixei os olhos – não
é nenhum segredo.
– Estou preparada – o sorriso dela era radiante – e imensamente feliz!
Finalmente minha vida vai fazer sentido. Eu sempre esperei por esse dia.
Sacrificaria tudo o que já vivi e já senti. Tudo o que eu poderia viver e
sentir. Apenas por um segundo dessa sensação.
Eu a abracei. Quase chorei, mas me controlei. Ela era tão forte. Eu
queria mostrar que também era.
– Se você acredita nisso... – eu disse – pelo menos, não vai se
arrepender. Porque depois de feito, estará feito.
– É assim que deve ser.
Ela acariciou minha cabeça, como se eu fosse um cachorrinho.
– Agora vá dormir, minha querida – ela disse, com um olhar terno –
não quero acordar ninguém. Partirei bem cedo.
– Não vai se despedir? – perguntei, surpresa.
– Gosto de pensar que hoje de tarde foi nossa despedida – ela
respondeu – quando comemos o bolo juntos.
Minha mãe tinha preparado um bolo de morango para
comemorarmos o aniversário de Irene brevemente, antes de ela sair com
as amigas para a festa. Carla e Caio também estiveram presentes. O
único que não participou da festa foi meu pai, que ficaria até mais tarde
nas minas.
Mas eu sabia que Irene não queria se despedir do nosso pai. Ele não
gostava de Sacrifícios. Ele não ficaria feliz de saber que eles estavam
tomando a filha dele para si.
Meu pai era extraordinariamente compreensivo. Imaginei que ele
entenderia.
Segurei a mão de Irene uma última vez.
– Boa sorte – desejei.
Irene tirou a fita azul de seu cabelo e enrolou no meu pulso.
– Para você também.
E ela foi deitar-se, ainda cambaleando.
Eu não sabia se eu conseguiria dormir naquela noite. Demorei muito
tempo para pegar no sono.

53
Wanju Duli

Acordei com o barulho do despertador. Ou seja: Irene já tinha


partido. Eu não sabia para onde. Ela provavelmente não podia revelar
isso também.
Enquanto eu tomava meu café da manhã, imaginei que eu estaria
responsável pela triste tarefa de comunicar a todos o que Irene tinha ido
fazer. Porém, ela me surpreendeu outra vez: tinha preparado uma
cartinha de despedida para cada um de nós.
Por isso, quando vi meu pai e minha mãe pela manhã, eles já sabiam.
Minha mãe tinha no rosto uma expressão que era um misto de
tristeza e orgulho. Ela sabia o que significava ser Sacrifício. Ter uma filha
Sacrifício era uma honra maior do que ter uma filha, digamos, médica ou
engenheira. Era como se Irene tivesse partido para estudar numa
universidade conceituada num mundo distante e nunca mais fôssemos
vê-la.
Meu pai estava sério, mas eu também podia ver traços de tristeza em
seu rosto.
Ele não comentou uma palavra sobre isso.
Normalmente ele falava sobre as notícias do jornal pela manhã.
Muitas delas eram sobre Sacrifícios ultimamente. Mas nesse único dia ele
não as mencionou. Tomou o seu café completamente calado e saiu para
trabalhar.
Será que ele sentia que tinha falhado como pai? Imaginei-o dizendo:
“Não eduquei minha filha para ser Sacrifício”. Mas também imaginei-o
igualmente dizendo: “Eu criei minha filha para que ela encontrasse seu
caminho e o seguisse com confiança, não importa o que seja”.
Era difícil. Carla e Caio também estavam com expressões distantes.
– Por isso ela andava tão longe da gente nos últimos tempos – disse
Carla – ela sabia que se mencionasse isso, poderíamos impedi-la.
Naquele dia, eu não desejei mais ser Sacrifício.
Eu não queria que meus pais ficassem com aquela expressão no
rosto. Não desejava deixá-los tristes. Pelo menos não daquele jeito. Era
muito forte.
Se ao menos tivéssemos morrido juntos num desastre natural, não
precisaríamos passar por toda aquela dor. Se eu e meus irmãos nos
tornássemos Sacrifício um dia, meus pais perderiam um de nós quase
todos os anos. Seria doloroso.

54
Sociedade do Sacrifício

Quem iria cuidar do meu pai? Ele estava doente. E quando meu pai
morresse minha mãe ficaria completamente sozinha.
Eu não queria deixá-la sozinha.
Por isso, naquele dia resolvi ter uma conversa com meus dois irmãos.
– Irene foi egoísta – disse Caio, meio irritado – partiu sem dizer nada.
– Deveríamos ter discutido essa questão com ela antes de ela partir –
eu disse – mas agora eu entendi que nós três não poderemos ser
Sacrifício. Um de nós deverá ficar aqui para cuidar do pai e da mãe.
– Eu fico – disse Caio – fui o último de nós a se interessar pelos
Sacrifícios. E sempre fui o mais cético. É verdade que ultimamente eu
estava entusiasmado. Mas ficar não parece uma ideia ruim. Talvez eu
estivesse aguardando algo que me prendesse aqui antes de ir, como uma
namorada. Mas agora percebo que nem mesmo isso é necessário. Vou
ficar.
– Posso ficar também – disse Carla – eu realmente não me importo.
– Que tal decidirem quando chegar a hora? – sugeri – se vocês dois
decidirem partir, eu fico. Se um de vocês quiser ficar, eu vou. Deixarei a
decisão do meu futuro nas mãos de vocês.
Eles ficaram em silêncio diante do que eu disse.
Para mim era confortável: não precisar tomar essa difícil decisão e
apenas aguardar o rumo dos acontecimentos. Como eu era a mais nova,
eu tinha essa chance.
Contei para meus amigos do colégio o que tinha acontecido.
– Sua irmã fez algo grandioso – reconheceu Jorge – e digno de
respeito.
– Ou algo tolo – acrescentou Bianca – mas se ela acredita em seu
caminho, ficará tudo bem.
Duas semanas depois, foi meu aniversário de 13 anos. A SSC ainda
não tinha se pronunciado.
Quanto mais o tempo passava, mais nervosa eu ficava. Quando Caio
completou 17 anos, um mês depois, senti um arrepio. Dali exatamente
um ano, ele precisaria tomar a decisão mais importante de sua vida. Mais
importante do que escolher um curso na universidade. Isso você pode
trocar. Mas uma vez membro da SSC, era um caminho sem volta. Ou
assim diziam.

55
Wanju Duli

Ainda era possível retornar durante a fase de testes ou no primeiro


ano de adaptação. Mas após a sua iniciação formal, diziam que você
precisava seguir seu caminho até o fim. Esse era o peso de ser Sacrifício.
Quando me lembrei disso, perguntei-me se Mau no fundo não odiava
ser Sacrifício e somente continuava a sê-lo pela estupidez que cometeu
na adolescência: fazer o teste da SSC.
“Mas se ele realmente odiasse e fosse ruim nisso não seria o líder”
concluí.
Após quase dois meses de completa ausência, finalmente atualizaram
o site da SSC do Brasil com uma notícia. Foi meio inesperado. Eu até
tinha parado de acompanhar.

Boa tarde, amigos!

Os líderes estão ocupados nas linhas da frente da guerra, então eu fiquei


responsável por comunicar-lhes que as inscrições abriram outra vez.
É claro que elas podem fechar de novo a qualquer momento conforme o humor da
chefia. O pessoal por aqui costuma ser bem temperamental, mas eu já me acostumei.
Vocês irão se acostumar também se chegarem a ser membros. Não se acostumar
não é uma opção.
Alguns podem estar se perguntando quem sou eu. E eu respondo: sou da
assistência técnica, então não costumo fazer essas coisas grandiosas como ir para
guerras. Eu apenas organizo os dados e coço o saco.
Outra maneira de analisar isso é que eu sou a peça mais importante dessa guerra,
já que gosto de brincar com computadores e com as coisas divertidas que eles podem
fazer.
Mas podem perder as esperanças: há somente uma vaga para a minha função, que
é a minha. Sou insubstituível. Atualmente não estamos precisando da área de TI e
sim de uma galera com altos poderes psíquicos. Também aceitamos alguns médicos,
porque o povo sempre volta todo quebrado e fodido.
Boa sorte nas aplicações!

Saudações,

Yago

56
Sociedade do Sacrifício

Programador-mor da SSC do Brasil

– Acho melhor eu me inscrever logo antes que o Mau descubra que o


Yago abriu vagas – observou Caio.
– Mas você ainda não tem idade... – argumentei.
– Eles permitem começar o processo de admissão com 17 anos,
porque pode demorar alguns meses até eu ser chamado para o teste.
Lembra que a Irene recebeu a carta de admissão dela no dia do
aniversário de 18 anos? Isso significa que ela se inscreveu com 17.
– É mesmo.
Caio ainda teria tempo de decidir se queria aquilo mesmo. Então não
faria mal já ir adiantando o processo.
Porém, eu imaginei que se ele fosse aprovado no teste difícil, ele não
iria querer desperdiçar a oportunidade.
Surpreendentemente, dessa vez foi para valer. Mau não surgiu das
profundezas para postar alguma mensagem raivosa no site oficial,
invalidando o processo. Ou ele andava ocupado demais com outras
coisas ou estava sem saco para prosseguir com aquela brincadeira sem
sentido.
Eu ainda achava um pouco engraçado os cancelamentos súbitos,
porque ainda não estava na minha época de buscar admissão. Imaginei
que se eu já fosse maior de idade, estaria puta com aquelas intromissões
completamente desnecessárias.
Passei as mãos no envelope lacrado que Irene deixara no meu quarto
antes de partir. Havia uma indicação nele de que eu só deveria abri-lo aos
18 anos: a mesma idade com que ela mesma havia ido embora.
Ainda bem que Caio preencheu seu formulário com antecedência,
pois demorou quatro meses para ele finalmente ser chamado para o
teste.
– Dizem que o teste em si não é difícil – ele comentou – a verdadeira
provação começa ao longo do primeiro ano, como novato. Eles não dão
a iniciação para qualquer um.
O mês em que Caio realizou os testes foi uma tortura para mim e
para Carla, pois ele não tinha autorização de nos contar nada.

57
Wanju Duli

Ele só receberia o envelope com seu resultado em seu próximo


aniversário. Da mesma forma que tinha acontecido com Irene. A espera
era insuportável.
Enquanto isso, nosso mundo parecia tranquilo. Não havia
abominações meteorológicas ou desastres naturais em massa. Os Deuses
deviam estar sob controle. O pessoal da SSC devia estar fazendo um
bom trabalho.
Ou será que eram os membros da SSO que mais faziam diferença?
Eu não saberia dizer. Talvez os dois tivessem algum impacto sobre a
situação, mas de maneiras diferentes. Eu preferia imaginar que ambos
contribuíam positivamente.
Na noite anterior ao seu aniversário, Caio não dormiu. Ele saiu de
casa antes de o Sol nascer e permaneceu do lado da caixa de correio.
Eu ainda estava dormindo quando ouvi os gritos.
– Passei!!! Fui aprovado, porra!! Serei Sacrifício!!!
Ele acordou todos da casa. Abraçou todo mundo. Também fiquei
feliz, principalmente por vê-lo assim tão animado.
– Não está com medo? – perguntei.
– É claro que estou me cagando de medo! – ele respondeu, rindo –
mas o medo faz parte da aventura. Puta que pariu!
Eu estava com quatorze anos. Tinha chegado a hora de ver outro
irmão meu partir para longe.
Não doeu tanto no caso de Caio, porque eu sabia que eu ou Carla
estaríamos com ele dali alguns anos. Eu também considerava a SSC
muito mais segura que a SSO.
Dessa vez meus pais também ficaram mais tranquilos. Principalmente
porque Caio não foi embora secretamente, mas se despediu de todos de
manhã cedo, antes de sair.
– Vejo uma de vocês em breve! Quem sabe as duas – ele deu um
sorriso significativo.
E foi assim que eu o vi partir. Como eu conhecia alguns membros da
SSC, mesmo que eu apenas lesse os textos deles pela internet, eu sentia
como se Caio estivesse indo para boa companhia. Mesmo sabendo que o
pessoal lá não girava bem da cabeça. Algo me dizia que, apesar das
dificuldades, Caio iria se divertir.

58
Sociedade do Sacrifício

Foi então que me dei conta: já havia se passado mais de um ano


desde que Irene foi embora. Isso significava que ela já havia recebido sua
iniciação. Ela era, formalmente, Sacrifício. E não poderia mais voltar
atrás.
Caio também só se tornaria Sacrifício se aguentasse as provações
durante um ano. Então ainda era cedo para comemorar. Porém,
diferente da SSO, a SSC permitia que os membros enviassem notícias
aos parentes após a iniciação. No caso da SSO, era provável que nunca
mais recebêssemos quaisquer notícias de Irene.
Seria difícil aguentar ficar sem notícias por mais um ano. Felizmente,
a partir do mês seguinte houve algum entretenimento para mim e para
Carla: uma nova postagem no site oficial da SSC brasileira.

Aos aspirantes, meus cumprimentos

Os últimos meses têm sido agitados. Estamos com uma quantidade imensa de
novatos. Duvido que metade deles vá aguentar. Alguns já voltaram.
Meus treinamentos não são famosos por serem leves. E eu confesso que tenho
andado bastante puta com alguns idiotas. Estou seriamente pensando em alterar os
critérios de ingresso novamente devido à quantidade estúpida de imbecis que enviaram
para mim.
Calculo que a partir do próximo semestre exigiremos um teste de resistência física
mais pesada, porque muitos estão desmaiando e ficando doentes. Infelizmente dois
novatos morreram no período de treino, mas perto das centenas de newbies que temos
atualmente, isso não é praticamente nada.
Aviso aos sedentários que pretendem enviar formulários para que iniciem alguma
atividade física. Matriculem-se na academia, corram no parquinho. Não dou a
mínima para o que vocês vão fazer com seus corpos contanto que aprendam a movê-los
com destreza. Sexo selvagem também é uma boa pedida. Aproveitem enquanto têm
tempo para isso, pois aqui dificilmente terão tempo ou desejo para sexo, com seus
corpos suados e fedorentos.
Outra dica: pensem bem antes de virem para cá. Aprendam a desenvolver
motivação e disciplina, pois aqui não é escolinha do Paulo Freire. Nós mandamos,
vocês obedecem. Se não tiverem disciplina quando chegarem, nós os faremos ter à força.
E se a motivação faltar, ela irá queimar dolorosamente quando vocês chegarem aqui.

59
Wanju Duli

Alguns não aguentam esse fogo. Então é melhor prepararem suas mentes para recebê-
lo.
Leiam bem as propostas da SSC antes de enviarem um formulário. Não
precisamos de revoltados ou revolucionários desejando mudar o nosso sistema ou a
forma que fazemos as coisas. Quando estiverem aqui há muitos anos, podemos ouvir
suas ideias, mas nos primeiros anos treinem para ficar de boca fechada.
Espero ter sido clara, pois odeio me repetir.
Garanto que você irá odiar esse lugar com todas as suas forças. Você vai me
odiar. É sempre assim que acontece. Você vai desejar estar em qualquer outro lugar
que não seja aqui. Não vai aguentar mais fitar o meu rosto. É fácil me admirar de
longe. Não é nem um pouco fácil manter esse amor em meio às chicotadas da ordem e
disciplina.
Mas isso também faz parte do teste. Se deseja se destacar no meio da multidão
daqueles que desprezam a mim e ao treinamento, aprenda a encontrar amor no meio
de todo esse ódio.
Não se esqueça do porque veio. Se esquecer, melhor para mim, que estou com
alunos em excesso e não posso dar atenção para todos. Preparem-se, pois a tendência é
o processo de seleção tornar-se mais rigoroso e as vagas diminuírem.
Só é possível lidar com Deuses indestrutíveis com uma vontade igualmente
indestrutível.

Gloriosamente,

Manu

General do Exército da SSC do Brasil

– A Manu escreveu isso! – exclamou Carla, surpresa – ela raramente


escreve qualquer coisa.
Manu era famosa pra caralho. Era mais correto dizer que ela era o
Sacrifício mais famoso do mundo. E isso acontecia porque ela era a mais
poderosa de todos os Sacrifícios: comandava exércitos e sempre se
encontrava na linha da frente para combater os Deuses.
Além de ter um preparo físico excepcional, ela era uma respeitável
mestra de magia. Magia de Deuses. Ou, mais especificamente, magia para

60
Sociedade do Sacrifício

derrotar Deuses. O tipo de coisa que ninguém sabia, mas que devia ser
ensinado na SSC.
A partir daquele dia, eu e Carla começamos a dar caminhadas numa
praça próxima da nossa casa algumas vezes por semana. Aquilo não
devia ser o suficiente para melhorar muito nosso preparo físico, mas era
melhor do que nada.
Nos meses seguintes recebemos mais algumas notícias pelo mesmo
site. Yago, que era responsável pela parte da computação, era quem
geralmente nos atualizava. Eram apenas mensagens breves, de conteúdo
predominantemente técnico. Algo como: “O site estará em manutenção
nessa madrugada” ou “Por favor, preencham os campos do canto
superior direito do formulário. Estamos recebendo muitos formulários
sem essa informação, que é fundamental. Prestem atenção. Isso pode
custar a sua vaga. Não temos tempo para retornar e-mails a cada erro
que aparece”.
Eu estava cada vez mais assustada com aqueles avisos. Eu não podia
cometer erros! E parecia que quanto mais passava o tempo, mais difícil
era ingressar na SSC. Eu não estava com sorte.
Felizmente, para quebrar o clima tenso, no segundo semestre daquele
ano Mau surgiu outra vez na internet, dessa vez com uma pavorosa
conta no Twitter.
Mau foi recebido pelos seus inumeráveis fãs como um herói. Afinal,
ele tinha adquirido alguns fãs no MMD no último ano que apenas leram
o seu arquivo de mensagens, mas que não tiveram a oportunidade de vê-
lo em ação ao vivo. Aquela seria a primeira vez.
Até mesmo ele ficou surpreso com a grande animação com que foi
recebido. Ele já devia ter se acostumado com um clima de hostilidade em
relação a tudo que escrevia e ele mesmo pedia por isso. Mas daquela vez
foi um pouco diferente.
Mesmo assim, Mau não perdeu a compostura e continuou a xingar,
como sempre.
Os Tweets dele eram quase sempre ridículos. Algo como:
“Aumentei a minha lista de xingamentos para 364 itens. Sinto-me
orgulhoso”
“Não, eu não irei compartilhar a minha lista, porque preciso de
xingamentos originais para emergências”

61
Wanju Duli

“Como vocês sabem que também tenho uma lista de frases de efeito?
Eu já mencionei isso antes?”
“Eu realmente detesto aquela tortinha de maçã do McDonalds. Tem
gosto de merda”
“Provavelmente minha merda também tem gosto de merda, mas eu
nunca provei”
“Há esse site novo na internet chamado orkut. Alguém já ouviu falar
dele?
“Ah, não sabia que ele já tinha acabado. Por que ninguém me
avisou?”
“Deuses são como doenças. Você sabe que eles eventualmente vão te
matar, mas não sabe onde e quando vai acontecer”
“E, assim como as doenças, os Deuses de vez em quando te
arrancam um pedaço para te relembrar de sua mortalidade”
“Mau, deixa de ser um bebê chorão e vem até aqui me ajudar numa
coisa”
Quem enviou essa última mensagem para ele pelo Twitter foi a Vic.
“É importante?” perguntou Mau.
“Mais importante do que suas besteiras” ela respondeu.
Quando Mau retornou, parou de falar dos Deuses. Imaginei que Vic
havia ralhado com ele em relação a isso.
“Malhação era muito melhor antigamente. Sinto saudades. Eu
também gosto do Programa do Gugu”.
Em poucos dias, Mau escreveu mais de mil Tweets. Depois, ele
simplesmente se cansou e apagou a conta. Não teve paciência para
aguardar surgir uma polêmica que o irritasse o suficiente para que ele
desaparecesse de forma dramática.
– Acha que o Caio já conheceu Mau pessoalmente? – perguntou
Carla.
– Seria o máximo, não é? – eu disse – pelo menos sabemos que ele
deve estar sendo treinado por Manu e deve amaldiçoá-la todos os dias.
Ele está aguentando firme! Acho que ele vai conseguir se iniciar, Carla.
Não falta muito tempo para completar um ano.
Pouco mais de um ano após a partida de Caio, recebemos uma carta.
A família se reuniu para abri-la, com ansiedade. Era a primeira vez que
Caio nos contatava desde que havia partido.

62
Sociedade do Sacrifício

Para: pai, mãe, Carla e Tônia

Olá! Como vocês estão? Que saudades! Não acredito que um ano já se passou.
Escrevo para contar-lhes que recebi minha iniciação e estou muito feliz. Agora sou
Sacrifício. Vocês não vão acreditar onde estou. Eu contaria, se pudesse, mas a carta
passa pela inspeção da sociedade antes de ser enviada. Todas as cartas são lidas.
Já fiz alguns amigos aqui. O treino não foi nada fácil, mas a parte pior começa
agora. Mesmo assim, estou empolgado. Provavelmente os amigos que fiz foram minha
motivação para ir até o fim. Quando um de nós desanimava, lá estava o outro para
apoiar.
Não estou autorizado a contar sobre a maior parte das coisas que gostaria de
falar: sobre os Deuses e sobre o que teremos que fazer. Sobre as magias e tantas
outras coisas. Quanto mais tempo passamos aqui, recebemos mais segredos. Ainda
não sei de muita coisa, mas desejo um dia saber. Agora eu entendi que preciso estar
aqui e dar o melhor de mim, para um dia entender algo que está acima de mim
mesmo.
Antes eu pensava que a vida era somente isso que eu enxergava e sentia. Agora
que tive que passar por provações e testar os meus limites, eu aprendi que a vida é
muito maior do que os limites da minha mente.
Como eu queria contar as coisas que vi. Eu chorei. De repente, tudo fez sentido.
Não direi que descobri o sentido da vida, mas foi algo próximo disso. É algo que
não sei explicar com palavras. Ainda estou emocionado. Quando você se inicia, um
novo universo se abre diante de seus olhos.
Ainda tenho muito que aprender e entender. Meu ser ainda é muito pequeno para
abraçar todas essas coisas tão grandes.
Carla, Tônia. Vocês precisam vir para cá. As duas. Conversem com o pai e com
a mãe. Digam que querem muito vir. Na verdade, gostaria que vocês, pai e mãe,
viessem também.
Manu é uma mestra fascinante. Eu me impressiono que exista uma pesssoa assim
tão forte, em todos os sentidos. Ouvi-la discursar e vê-la batalhar é como contemplar
uma ave de rapina abocanhando sua presa. Ela é uma inspiração para mim.
E... vocês não vão acreditar. Se lembram do Mau? Ah, é claro que se lembram!
O cara é uma lenda. Mas eu não estava preparado para o que eu vi. Sim, ele nos
saudou pessoalmente no primeiro dia.

63
Wanju Duli

Sabe aquela imagem de irritado e estúpido que ele passa na internet? Esqueçam
disso. Apaguem de suas mentes. O verdadeiro Mau é uma pessoa completamente
diferente.
Às vezes é difícil acreditar que ele é a mesma pessoa que escreve aquelas coisas
engraçadas e abomináveis. Eu somente acredito nisso porque em breves momentos ele
exala ligeiramente essa segunda personalidade.
O verdadeiro Mau é sério e assustador. Ele leva extremamente a sério o que faz.
Ele discursa de modo formidável. Fiquei apavorado quando o ouvi falar pela primeira
vez. Sinceramente, por um momento pensei que ele mesmo fosse um Deus.
Eu não digo isso num sentido figurado. Todo o ser dele é coberto de magia. Eu
nunca havia me aproximado de uma carga tão forte de magia antes. O sujeito é
espetacular. Ninguém mais poderia ser o líder da SSC, a não ser ele.
Na verdade, eu e meus amigos temos uma teoria. Mau é tão sério e rigoroso
consigo mesmo e com todos nós na vida real que ele usa a internet como válvula de
escape. Lá ele pode estourar e escrever qualquer bobagem somente para relaxar um
pouco; de si mesmo e do mundo.
Até agora nós só o vimos no primeiro dia. De longe. Mas em breve serei
entrevistado pessoalmente por ele. Fico com medo só de pensar. Eu só não tremo na
presença de Manu porque já me acostumei com ela. Ela nos treinou por um ano,
todos os dias. Mas só vi Mau uma vez, então ainda o vejo como um poderoso
desconhecido.
Pode ser que Mau seja um pouco aquele ser da internet. Não o conheço o bastante
para afirmar. Mas definitivamente há algo de misterioso sobre Mau. Tomem cuidado.
E, ao mesmo tempo, não sei porque dei o alerta de cuidado. Ele parece extremamente
confiável.
Yago é super gente boa. Muito amigável. Gosto de pensar que há um Sacrios
como ele, que age como uma pessoa normal. Ele parece ser o único. A paciência dele é
admirável. Não sei como ele consegue.
Acontecem muitas coisas engraçadas por aqui. Ou talvez a gente sinta a
necessidade de se agarrar a esses poucos momentos de descontração para suportar todo
o resto. Geralmente só fofocamos sobre os Sacrios entre nós, mas Yago algumas vezes
participa das piadas. Ele sabe de muitas histórias engraçadas que aconteceram no
passado. Não posso contar aqui, mas um dia relatarei tudo com detalhes. Algumas
dessas histórias são como ouro. Lembro de um dia que rolei no chão de tanto rir e não
conseguia respirar.

64
Sociedade do Sacrifício

Bem, vocês sabem que eu sempre admirei a Vic. Ela foi, e ainda é, o Sacrifício
que acho mais fantástico. Para mim, conhecê-la pessoalmente foi superior a conhecer
Mau.
Como descrevê-la? Poderosa, elegante, inteligente, simpática, com um senso de
humor apurado. Falando assim, parece que estou apaixonado por ela, mas eu não me
atreveria. Conheço meu lugar. Mau me mataria.
Nesse próximo ano irei conhecer alguns Sacrios estrangeiros. Tivemos
pouquíssimo contato com eles até agora. A partir daqui, será diferente. Estou muito
animado.
Pena que não terei tempo de relatar todos os rumores fantásticos. E alguns deles
eu nem teria permissão para contar.
Venham logo para cá, queridas irmãs! Só tenho permissão de enviar uma carta
por ano. Vocês precisam chegar logo para não perder o show!
Sim, em parte tudo o que Mau disse sobre nossas dificuldades práticas é
verdadeiro: comida, conforto e atendimento médico são limitados. Mas, cara, vale a
pena! Por uma vida assim.

Com carinho,

Caio (o mais novo Saos!)

Quando terminamos de ler a carta, eu estava fascinada. Aquele lugar


soava mesmo como uma linda história de fantasia. Exceto que, no dia a
dia, não seria lindo. Seria difícil, doloroso. Mas eu estava disposta a
aguentar. Principalmente depois de todas aquelas frases motivadoras do
meu irmão.
Percebi que Carla se sentia do mesmo jeito. Por isso, decidimos que
iríamos aumentar os dias e durações de nossas caminhadas.
É curioso como num dia você pode subir ao céu e no dia seguinte
descer ao inferno. Pois foi exatamente o que aconteceu.
A correspondência de Caio me fez sentir incrivelmente viva. E a carta
que recebemos logo no dia seguinte fez meu mundo desabar.
Era uma correspondência num envelope oficial da SSO. Num
primeiro momento senti meu coração pular de alegria, achando que

65
Wanju Duli

Irene havia nos escrito contando sobre seu último ano. Mas aquilo não
podia ser. A SSO não permitia que seus membros escrevessem para casa.
A família se reuniu na sala para abrirmos juntos a carta, como
havíamos feito no dia anterior. Mas eu já estava tremendo. Sabia o que
me esperava.
A carta era breve. Uma pequena nota num pedaço de papel com
bordas douradas:

Nossas mais sinceras condolências.


A Saem Irene realizou o Sacrifício Sagrado na manhã dessa segunda-feira, às
5:59.
Lembramos à família que esse é o feito mais supremo da Sociedade do Sacrifício
da Ordem. Por isso, escrevemos com pesar, mas também com profundo respeito.
Saem Irene tornou-se mártir. Seu sacrifício será lembrado para sempre.

Minha mãe deixou a carta cair.


– Sacrifício Sagrado? – pronunciou meu pai, sem acreditar – a nossa
Irene?
– Droga! – exclamou Carla.
– Não diz na carta para qual Deus ela entregou a vida? – perguntei.
– Que diferença faz?! – gritou minha mãe, fora de si – quero minha
filha de volta!
Nesse momento, a situação saiu do controle.
No dia anterior, minha mãe estava animada com a perspectiva de eu e
Carla nos tornarmos Sacrifício também após a carta entusiasmada de
Caio. No entanto, após a devastadora notícia da morte de Irene, minha
mãe estava determinada a nos proibir de virar Sacrifício.
Eu não queria discutir aquilo naquele dia. Não era o momento. Eu
estava triste demais com a confirmação da morte de Irene. É claro que
no fundo eu já sabia que aquilo iria acontecer. Eu já tinha ouvido boatos
de que os Sacrifícios do Corpo cometiam suicídio poucos dias depois de
suas admissões formais na SSO.
Mas receber a carta e ler a fatídica notícia fez um sentimento
totalmente diferente nascer dentro de mim.

66
Sociedade do Sacrifício

Eu entendi a apreensão da minha mãe. Também fiquei com medo.


Mesmo que a SSC e a SSO fossem completamente diferentes, nós não
estávamos livres de morrer.
Era totalmente normal que os Sacrifícios do Caos tivessem mais que
uma década de vida após a entrada formal no grupo. Mas essa
perspectiva também não era exatamente animadora. Irene morrera aos
19 anos. Eu provavelmente morreria com 30 e poucos. Era isso o que eu
queria para mim? Uma vida breve, mas grandiosa.
Eu não me sentia bem para ir ao colégio no dia seguinte. No entanto,
quando voltei a ir às aulas contei o ocorrido para Bianca e Jorge.
– Isso é terrível – disse Bianca – mas você já desconfiava que fosse
acontecer, não é?
– Ela foi lá pra isso – respondi – eu achei que estivesse preparada
para esse dia. Mas quando a coisa real acontece é como ser esmagada por
uma rocha.
– Eu nunca entraria para a SSO – disse Jorge – já quanto à SSC... não
sei o que pensar. Terei que tomar uma decisão nos próximos dois ou três
anos. É angustiante.
Estávamos todos com o mesmo dilema.
Nunca imaginei que minha estreia no ensino médio fosse acontecer
daquela forma tão intensa: com uma alegria e uma tristeza.
Sendo totalmente justa, tudo já estava planejado para ocorrer assim.
Eu só não imaginava que receberíamos as duas cartas em tão curto
intervalo de tempo entre uma e outra. Não tive tempo de me preparar
emocionalmente.
Com quinze anos eu já sentia que havia vivido por milênios diante da
importância dos acontecimentos dos últimos anos.
A situação de Carla era ainda mais delicada: ela estava com 17. Já era
hora de enviar o formulário e aguardar ser chamada.
Ela e minha mãe tiveram longas conversas na semana seguinte, até
que Carla a convenceu de que realmente desejava fazer aquilo.
O mundo da minha mãe desabou. Já não tinha graça se gabar para os
vizinhos de que seus filhos eram Sacrifício. Um dos filhos já tinha
morrido e mais um seria enviado para a morte. Aquilo tudo não era
detestável?

67
Wanju Duli

Eu me sentei no sofá ao lado da minha mãe e abracei-a. Falei


baixinho para ela:
– Se quiser que eu fique aqui, eu fico, mãe. Não preciso virar
Sacrifício.
– Faça o que quiser – disse minha mãe – seja ir ou ficar.
É claro que ela queria que eu ficasse. Ela já tinha sofrido o suficiente.
Meu pai também estava sofrendo muito. Carla, eu, todos nós.
– Talvez Irene estivesse feliz quando morreu – eu disse – já pensou
nisso?
– Como ela poderia estar feliz? – perguntou minha mãe.
– Nós estamos sofrendo agora apenas por nós mesmos – concluí –
pela dor de perdê-la. Mas era isso o que ela queria. Ela realizou o
propósito da vida dela. Era o que Irene acreditava. Então fique feliz por
ela.
– Você não é mãe. Você não sabe nada.
Nesse momento, eu me calei.
Minha mãe tinha razão. Eu não sabia. Por isso, resolvi ficar quieta.
Não importava qual fosse a verdade. Algumas vezes não é da verdade
que as pessoas precisam. Minha mãe precisava chorar um pouco. Só
depois ela ia entender. Mas ainda não era o momento.
Aquele ano passou voando. Pouca coisa relevante aconteceu na
internet para me distrair. Eu sentia o mundo inteiro correndo. O relógio.
Minha vida.
No aniversário de 18 anos de Carla, a mesma cena se repetiu, como
um déjà vu: o grito de vitória. A alegria contagiante. A partida iminente.
Lá se ia minha outra irmã. Eu seria filha única. Até o dia em que eu
também partiria.
Na manhã em que Carla foi embora, senti-me a pessoa mais sozinha
do mundo.
Não estava mais divertido. Pensei que a diversão só aumentaria
conforme os anos passassem, mas eu me sentia cada vez mais
apreensiva.
Eu estava me sentindo esmagada pelo abismo do qual Mau falou.
Tínhamos chegado tão longe! Eu sentia que a vida dos meus irmãos
estava fortemente conectada à minha. Se os três tinham partido, não era

68
Sociedade do Sacrifício

o destino inevitável que eu também fosse? Eu não poderia mudar de


ideia. Não queria traí-los.
Por outro lado, eu poderia usar a desculpa de cuidar dos meus pais
para ter o conforto de ficar. Minha vida continuaria a mesma.
Mas... e se os Deuses retornassem? Se o nosso mundo terminasse,
não faria diferença eu estar aqui ou lá. Na verdade, seria melhor estar lá,
lutando.
Aos 16, eu já sentia um dos meus pés à beira do abismo. Eu deveria
pular? Ou voltar atrás?
A única coisa que clareou meus pensamentos naquele momento
doloroso foi a segunda carta de Caio.

Queridos pai, mãe e Tônia

Eu recebi a notícia sobre Irene poucos dias depois de enviar minha primeira carta.
Pensando com calma, foi melhor que tenha sido dessa forma. Eu não queria que
minha primeira carta fosse triste. E, agora que um ano já se passou, felizmente
poderei evitar uma atmosfera de tristeza nessa carta também.
Estou aguardando ansiosamente a chegada de Carla. Na verdade, fui comunicado
recentemente que ela já chegou, mas eu me encontro num local ligeiramente diferente e
ainda não pude vê-la.
Muitas coisas aconteceram nesse último ano. Tantas delas que nem sei por onde
começar a contar.
A cada dia que passa, meu entusiasmo aumenta. As coisas só ficam mais difíceis.
Mas isso me faz forte.
Meu melhor amigo nesse lugar é o Fernando. Igor e Thomas também são bons
amigos. Muitas vezes nos reunimos para papear até altas horas da noite, mesmo que
isso nos deixe mortos de sono no dia seguinte.
Eu sinto como se estivesse num colégio interno muito pobre e fodido. Ou, mais
especificamente, numa guerra de trincheiras. É ruim desse jeito, mas também é
extraordinário de muitas outras maneiras.
Não sei explicar. Esse lugar é mortalmente entediante. E quando não é o tédio a
tomar conta, é o desespero e a exaustão. Então vem a grande questão: por que gosto
tanto daqui? O motivo de eu continuar não é porque não posso mais voltar. É porque
todos esses momentos difíceis compensam por alguns breves instantes de êxtase.

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Wanju Duli

Tônia, eu sugiro que você já vá treinando não somente seu corpo, mas a sua
mente. É preciso saber lidar com o medo sim. Mas, acima de tudo, é necessário saber
como encarar o tédio e as atividades repetitivas. É preciso se tornar forte para suportar
isso.
Em mais de 90% do tempo estamos mergulhados no tédio. Não há nada para
fazer. Às vezes o desespero é tão grande que já me vi riscando um jogo da velha no
chão e jogando comigo mesmo.
As pessoas não gostam de tédio. Elas o acham detestável. Mas eu estou
aprendendo tanto com ele! O tédio tem sido meu mestre.
O tédio é uma estratégia da mente para nos manter ativos, ou para mudarmos
nossas atividades frequentemente para nos desafiarmos. Mas na vida real isso não é
possível em todos os momentos. Precisamos realizar muitas repetições. Especialmente
nesse lugar.
Aprenda a amar as repetições. Tire algo bom delas. Tente se surpreender. Treine
encontrar uma pequena coisa nova a cada vez que faz a mesma coisa.
Estou aprendendo muitas habilidades inesperadas, como tratar feridas
superficiais, cozinhar e lavar uma montanha de pratos com rapidez. Por aqui você se
sente abençoado quando seu serviço é lavar pratos. Significa que vai ter comida. Além
do mais, há outros trabalhos bem mais pesados que este.
Não digo tudo isso para te desestimular, Tônia. É só pra te dar uma perspectiva
mais realista. E te dizer que, mesmo nos piores momentos, eu não me arrependo de ter
vindo.
Eu finalmente pude ver o Mau de perto e conversar com ele. Eu quase borrei
minhas calças quando eu estava ao redor de uma fogueira à noite com o pessoal e ele
apareceu e se sentou no meio de nós. Todo mundo calou a boca. Ele mandou que
continuássemos a conversar normalmente. Disse que só tinha ido lá filar um rango,
mas os novos Saos, como eu, ficaram paralisados.
Ele disse que estava de bom humor naquela noite e que não nos colocaria para
fora nem se xingássemos a mãe dele. Mas ninguém acreditou nisso. Mau tem uma
péssima fama de ter excomungado membros por praticamente nada. E se ele decide te
chutar de lá, você já está fora. Não tem direito a advogado ou tribunal. Às vezes nem
a Vic tem poder para desfazer isso.
Eu não tinha notado, mas a Vic é somente a vice da divisão nacional da SSC.
A vice da SSC Internacional é a líder da SSC da Indonésia: Farah. Eu a conheci.
Ela é extraordinária! Assim como a Vic, é uma das únicas que consegue colocar
rédeas curtas no Mau. Mas ela também é muito atrevida. Ela fica dando em cima do

70
Sociedade do Sacrifício

Mau descaradamente! Vic não gosta disso. Farah é uma das pessoas mais engraçadas
que já conheci. Mau não sabe direito como lidar com ela. Principalmente porque ele
não sabe nada de inglês e precisa de um tradutor para saber tudo o que Farah diz.
Às vezes ela brinca com isso, diz um monte de merda e manda o tradutor traduzir de
outra maneira. Mas ela está aprendendo português.
É uma honra trabalhar para o Mau. É uma honra servir a todos esses Sacrios
poderosos.
O mais angustiante é que não posso contar as coisas que eu realmente queria te
dizer: sobre os Deuses. Sobre nossa missão.
Por favor, Tônia, venha logo. Venha ser parte dos melhores do mundo.

Carinhosamente,

Caio

Fiquei feliz com aquela carta. Sempre que eu lia o que Caio escrevia,
eu ganhava mais confinça de que faria uma escolha linda.
No entanto, três meses depois aconteceu algo completamente
inesperado.
Carla voltou para casa.
Quando eu abri a porta e ela me abraçou, eu fiquei perplexa.
– Que está fazendo aqui? – perguntei, surpresa – você não devia
estar...?
O rosto dela era um misto de tristeza e alegria.
– Estou exatamente onde eu devia estar.
Meus pais não se continham em si de alegria ao vê-la de volta. Isso
fez com que Carla ficasse ainda mais feliz.
– Agora eu sei que fiz a escolha certa em voltar – concluiu ela.
– Por favor, Carla, me conte tudo! – exclamei, ansiosa.
Quando nos sentamos juntas na cama do nosso quarto para
conversar, ela tinha uma expressão sonhadora.
– Mesmo que eu tenha voltado, fiz um voto – ela me disse – que me
proíbe de contar muitas coisas que eu vi e vivi. Eles não mostram muitas
coisas para quem ainda está em treinamento, mas é suficiente para
impressionar.

71
Wanju Duli

– Então me conte apenas o que você puder contar – decidi – você se


encontrou com Caio?
– Sim, ele está ótimo. Quero dizer, meio acabado. Ele emagreceu
muito, mas também ganhou um pouco de massa muscular. À primeira
vista, a imagem dele parece a de um morto de fome voltando da guerra.
Mas o brilho nos olhos dele, Tônia! Eu também tinha aquele brilho nos
primeiros dias.
– Por que voltou? – perguntei.
– Eu descobri que isso não é pra mim. Passar fome, não ter noites de
sono, fazer atividades físicas pesadas. Eu quase morri. Duas vezes.
Primeiro de exaustão com os treinamentos ridículos da Manu. Depois de
uma infecção, de um ferimento horrível que tive. Pode ser que eu tenha
tido apenas azar. Mas eu concluí que eu não queria isso pra minha vida.
Mesmo que a situação melhorasse depois, era muito angustiante.
Eu entendi o que ela quis dizer. Talvez eu fosse me sentir da mesma
forma quando eu chegasse lá. E me confortava saber que eu não me
sentiria uma perdedora se retornasse. Afinal, minha irmã Carla, que era
tão forte, tinha voltado.
Então estava tudo bem voltar. Isso me deixava mais tranquila. Eu
partiria sem arrependimentos, sabendo que ainda teria um ano de
treinamento para pensar bem sobre aquela escolha.
– Eu já queria ter voltado no primeiro mês – ela confessou – quem
sabe até na primeira semana. Alguns já retornaram nos primeiros dias.
Eu só fiquei um pouco mais pela insistência de Caio. Ele vivia dizendo
que as coisas iam melhorar. Agora estou feliz por ele ter insistido, pois
apesar de toda a dor foram três meses incríveis. Eu teria perdido de ver
muita coisa se tivesse voltado logo no começo.
Mostrei a ela a segunda carta de Caio. Ele tinha contado quase tudo
aquilo para Carla enquanto ela estava lá.
– Caio não está errado – disse Carla – lá é incrível mesmo. É como
um sonho misturado com pesadelo. O problema é que tem muita gente e
pouca estrutura para receber esse pessoal. Nós dormimos no aperto,
somos treinados num grupo grande e a comida é limitada. Não há como
recebermos atendimento individual nessa etapa. Se você quiser mesmo
ir, vou te dar dicas para você se preparar para o que vai enfrentar.

72
Sociedade do Sacrifício

– Você conheceu os Sacrios pessoalmente? – perguntei – além de


Manu.
– É tradição que Mau cumprimente os novatos no primeiro dia. Mas,
assim como aconteceu com Caio, nesse dia só o vi de longe. Mas foi o
suficiente para eu me impressionar. É tudo como Caio descreveu. Ainda
mais incrível.
Eu não entendia muito bem o que havia em Mau para causar
tamanho impacto. Mas aqueles relatos só me deixavam cada vez mais
curiosa.
– Vou construir altas expectativas e quando chegar lá descobrirei que
ele é só um cara normal – concluí.
– Ninguém é normal nesse lugar – garantiu Carla – Manu tem uma
força assombrosa. Parece uma amazona. E Vic é como uma rainha.
– Você viu Farah?
Ela fez que não.
– Mas falam coisas fantásticas sobre ela – disse Carla.
Meu aniversário de 17 anos chegou muito depressa. Quando eu tinha
12 parecia que aquele dia demoraria uma eternidade. E lá estava ele!
Resolvi não pensar muito. Preenchi o formulário e o enviei naquela
mesma noite. Na verdade, não havia o que pensar: eu decidiria se queria
aquilo quando fosse para lá e não durante o processo de admissão.
Jorge e Bianca também tinham enviado seus formulários. Enquanto
no colégio a maioria estava nervosa se preparando para o vestibular, eu e
meus dois colegas estávamos ansiosos por um motivo muito mais
importante.
Nós três costumávamos treinar juntos, auxiliados pelas dicas de Carla.
Passamos a correr na praça e não somente caminhar. Combinamos de
fazer dois dias de jejum num fim de semana. Houve um sábado em que
passamos o dia olhando para as paredes (literalmente e seriamente), para
saber como lidaríamos com o tédio.
Jorge nos surpreendeu conseguindo emprego como lavador de pratos
num restaurante local.
– Seu irmão mencionou que lá nós precisamos fazer todo tipo de
limpeza – ele lembrou – então quero me preparar.

73
Wanju Duli

Meus pais curtiram o meu treinamento, porque eu me dispus a


realizar todas as atividades domésticas da casa naqueles próximos meses:
cozinhar, lavar pratos, lavar roupa, limpar toda a casa.
Eu amadureci muito ao longo daquele treinamento que fizemos.
Carla disse que o principal era saber cuidar de si mesmo: eu precisaria
aprender a lavar minhas roupas à mão. Tinha que saber costurar os
rasgos das roupas, pois elas rasgariam bastante no treinamento.
– Você não pode ser preguiçosa – ela me avisou – ninguém vai ficar
cuidando e te mandando lavar as roupas ou escovar os dentes. Você é
responsável por sua higiene. Deve tomar banho todo dia e sempre se
manter limpa. Esse é um dos requisitos principais para evitar doenças:
higiene. As doenças se espalham como o inferno para onde você irá no
futuro. Também há as pulgas e ratos. Nunca coma onde você vai dormir,
pois restos de comida atraem ratos. Lave regularmente suas roupas e
cobertores para evitar as pulgas.
– Onde vou encontrar tempo para tudo isso? – perguntei.
– Você não vai encontrar. Vai ter dias que não terá tempo nem de
respirar, muito menos de tomar banho. Você vai ter que aprender a lidar
com isso também. Os preguiçosos e sujos não se adaptam a esse estilo
de vida, mas eu diria que os maníacos por limpeza se adaptam muito
menos. Você vai ter que se acostumar a ter merda nas calças e micoses
nos pés. Está preparada?
Eu não tinha pensado em todos esses fatores. Essas coisas me
desanimavam. Mas Carla sempre insistia que isso não era o pior.
– Você não vai somente visitar um ninho de doenças – ela lembrou –
há os ferimentos horríveis das lutas contra os Deuses, como membros
decepados. Está preparada para ter um membro costurado sem
anestesia?
– Eles nos fazem lutar contra os Deuses já no primeiro ano? –
perguntei, assustada.
– Não. Só os veteranos que lutam. A maior parte deles está em
pedaços. Acho que não existe nenhum Sacrios sem pelo menos uma
parte do corpo faltando.
Lembrei que Mau tinha mencionado ter perdido um olho. Pelo jeito,
aquilo não devia ser praticamente nada.

74
Sociedade do Sacrifício

Quando eu ouvia todos aqueles terrores pela primeira vez, minha


reação inicial era pensar em desistir de tudo. No entanto, eu aprendi que
cada vez que eu ouvia mais, eu me acostumava.
Logo, eu adquiri tolerância a ouvir todas essas coisas. Com o tempo,
elas já não pareciam tão terríveis. Eu me sentia muito grata por ter sido
exposta a aquelas realidades antes de tudo começar. Senão, era provável
que eu também desejasse sair correndo já nos primeiros dias.
Quando fui convocada para realizar o teste, alguns meses depois,
Carla me tranquilizou.
– O teste em si não é difícil. Você vai realizar alguma provas escritas,
uma entrevista e um teste físico.
Ao todo eram três semanas de testes: uma para cada modalidade.
Foram cinco dias de provas escritas, de segunda a sexta. Quatro horas
por prova. Aquilo se parecia muito com um vestibular, embora os
conhecimentos exigidos não fossem exatamente os mesmos do colégio.
Somente em parte.
No primeiro dia foram essas três provas: lógica, gramática e retórica.
Eu tinha ouvido falar que Yago e Vic, que eram particularmente
inteligentes, eram os responsáveis por elaborar parte considerável das
provas.
Eu fazia as provas numa sala, junto com um monte de gente. Eu não
sabia que tantas pessoas estavam tentando entrar na SSC. E aqueles eram
somente os candidatos da minha cidade.
Eu fiquei apavorada naquele primeiro dia de provas. Havia umas
questões de lógica na prova que mais se pareciam com questões de
matemática. Eu nunca tinha visto aquilo na minha vida. Até mesmo a
gramática que eles cobravam era diferente da que eu estudava no colégio.
Já na prova de retórica eu consegui enrolar um pouco, mas não tinha
certeza se eu tinha conseguido enrolar bem.
Voltei para casa xingando Carla.
– Por que não me avisou que as provas seriam tão difíceis? –
perguntei, indignada – eu nunca estudei lógica na vida! Eu vou me foder!
Se eu soubesse, teria comprado um livro para estudar.
Carla riu de mim.
– Relaxa – ela disse – lógica também tem um pouco de senso
comum. A maioria se assusta com as provas escritas do teste de

75
Wanju Duli

admissão, mas eles não exigem que você acerte sequer metade das
questões. É só para eles medirem seus conhecimentos e terem uma ideia
das áreas nas quais você é forte.
– Mesmo assim, eu queria poder causar uma impressão melhor.
– Na prática, você vai usar pouco desse conhecimento teórico no dia
a dia. As provas escritas contam pouco. A entrevista conta mais.
Provavelmente era pior ainda saber que a entrevista tinha todo esse
peso. Desse jeito eu ficaria ainda mais nervosa.
No dia seguinte, fiz quatro provas: aritmética, geometria, música e
astronomia.
Eles só podiam estar de brincadeira.
Surpreendentemente, a prova de aritmética não foi difícil. A de
geometria também explorava conceitos mais gerais e teóricos, mas se eu
lembrasse de algumas fórmulas isso teria me ajudado.
Eu desisti de tentar adivinhar alguma coisa na prova de música e
chutei tudo. Fiz a mesma coisa na prova de astronomia.
Aqueles primeiros dois dias de prova deviam ter sido especialmente
preparados para desestabilizar psicologicamente os candidatos. Só podia.
– Nós estamos na Idade Média? – queixou-se Bianca – por que eles
estão cobrando o Trivium e o Quadrivium nas provas? O que isso tem a
ver com lutar contra os Deuses? Nós vamos lutar contra Deuses do
medievo?
Ela e Jorge também estavam realizando as provas comigo. Eles
estavam tão indignados quanto eu.
O terceiro dia foi dedicado às provas de línguas: inglês, mandarim,
hindi e bahasa indonesia. Eu quase ri. Me ferrei até na prova de inglês e
chutei todas as questões nas outras três provas.
– Mau não pode exigir que eu saiba inglês ou matemática, sendo que
nem ele sabe – opinei.
– É verdade – concordou Jorge – mas ele é o líder. Se ele decidir que
nós devemos ter conhecimentos de agronomia, o problema é nosso. Não
importa se ele conhece a área ou não.
No quarto dia fizemos prova de filosofia, sociologia, conhecimentos
da área médica e informática. Eu enrolei nas duas primeiras provas e
chutei tudo nas outras duas.

76
Sociedade do Sacrifício

No quinto dia havia uma prova de teologia e uma de redação. O tema


da redação era muito “simples”: “Qual o sentido da vida?”
– Prova de teologia? Sério? – Jorge ficou indignado – e o que diabos
era aquele tema de redação?
Eu nem me lembrava o que eu tinha escrito na redação, pois fiquei
muito perturbada com aquela prova de teologia para pensar em qualquer
outra coisa. Acho que eu comecei assim:

“O sentido da vida é uma questão sobre a ‘vida’ e sobre o ‘sentido’. Para iniciar,
analisemos a etimologia dessas duas palavras”

Como eu não conhecia a etimologia, não lembro como eu prossegui a


partir daí. Basicamente, eu cavei minha própria cova.
A semana seguinte seria dedicada aos testes de resistência física.
Também seriam cinco dias. Na verdade, fiquei sabendo que alguns
desses dias seriam dedicados para testar outras coisas. Tivemos inclusive
testes de habilidades de culinária e costura.
– Ué – comentou Carla – eu não tive que fazer esses testes. Devem
ter colocado agora.
A SSC também exigia a entrega de exames médicos, para confirmar
que nenhum candidato tinha uma enfermidade grave que comprometeria
seu desempenho nas atividades físicas.
Nossas enfermidades graves aconteceriam depois, é claro...
Meus exames estavam bons. Eu me saí bem na culinária e na costura
graças ao meu treinamento dos últimos meses. Mas eu não me saí tão
bem assim nos testes de resistência. Eu estava com medo de ser
eliminada por causa disso.
Também houve testes de procedimentos básicos de sobrevivência e
verificação de como agiríamos rapidamente em situações de risco. Eu
não estava muito otimista sobre meu desempenho.
Carla sempre insistia para que eu não me preocupasse. Ela citou
inúmeros casos de pessoas que se saíram muito mal numa área
específica, mas foram aprovados porque se destacaram em outra.
O problema é que eu possivelmente não me destacaria em nenhuma
área para compensar meus erros em outras. Minha entrevista precisaria
ser divina para compensar isso.

77
Wanju Duli

Recebi os resultados dos meus testes escritos antes da entrevista. Era


preciso acertar um mínimo de 10% em cada prova para ser aprovado. E
pelo menos 30% em uma das provas. Teoricamente, atingir aquele
resultado era fácil. Se eu chutasse todas as questões na mesma alternativa
eu já garantiria minha nota mínima.
Meus resultados foram satisfatórios, mas só isso. Não me destaquei
em absolutamente nada.
Quando recebi meus resultados da segunda semana, alguns dias
depois, foi pior ainda. Eu tinha sido considerada apta, mas estava no
limite. E até na culinária e na costura, que eu achei que fosse me sair
bem, recebi um resultado apenas mediano.
Fui orientada a levar os resultados dos meus testes para análise do
entrevistador. Haveria somente um dia de entrevista na terceira semana e
isso era tudo. Mas essa única entrevista seria decisiva.
A minha foi marcada para uma terça-feira pela manhã. Tive que faltar
aula naquele dia, mas nesse ponto essa era uma das minhas menores
preocupações.
Meu período na sala de espera foi quase insuportável. Eu via
candidatos entrando e saindo da sala, o tempo todo.
Minha entrevista estava atrasada. Duas horas atrasada. Eu precisava
me queixar disso quando eu entrasse na sala do examinador. Eu tinha
acordado às quatro da manhã para pegar um ônibus na rodoviária e
chegar na capital a tempo, pois a entrevista seria lá. Eles não tinham o
mínimo de consideração?
Quando eu finalmente fui chamada, já não estava mais nervosa, mas
impaciente.
Entrei na sala com irritação. Sentei no sofá com estrondo, sem nem
esperar ser convidada para isso.
Lá estava o examinador, sentado confortavelmente em outro sofá
macio, numa sala bonita com ar condicionado. Ele estava até mesmo
com uma xícara de café em sua frente. Aquilo não era irritante?
Apesar da minha cara amarrada, ele tentou ser simpático.
– Bom dia, Antônia. Obrigado por vir. Aceita alguma bebida? Café,
chá, água...?

78
Sociedade do Sacrifício

– Não, obrigada – respondi, de modo ríspido – acho melhor irmos


rápido com a entrevista, porque há outros candidatos esperando na sala
ao lado, morrendo de calor.
– O ventilador não está funcionando?
“Só tem um ventilador inútil que não ventila nem metade da sala e
está fazendo quase 40 graus!” pensei em dizer, mas segurei a minha
língua. Eu estava suando, com os cabelos colados na testa. Tinha me
arrumado toda para causar uma boa impressão, mas aquele dia quente
tinha arruinado tudo.
Eu sabia que a culpa daquilo não era do examinador, mas de alguma
forma eu quis acreditar que era. Por que ele não mandava colocar um ar
condicionado na sala de espera também em vez de apenas ter um em sua
própria sala? Nem me passou pela cabeça que aquele lugar podia não
pertencer a ele, mas ter sido alugado apenas para aquela semana de
entrevistas.
– Sim, ele está – respondi – mas a maioria está esperando há muito
tempo.
– Peço desculpas pelos atrasos. Tive que estender algumas
entrevistas.
Ele foi gentil em suas respostas, então eu devia ter deixado minha
indignação de lado e ter me tocado que eu estava no meio de uma
entrevista importantíssima e precisava me portar de acordo.
Mas por alguma razão eu não conseguia deixar de fazer uma
expressão ranzinza para deixar claro que o atraso e o calor tinham me
incomodado muito. Não sei se ele percebeu minha cara carrancuda, mas
se percebeu fingiu não notar. Ele estava agindo normalmente e
educadamente.
Ele tomou mais um gole da xícara de café. Que raiva daquela
lentidão! Eu queria sair logo de lá. E já estava quase me arrependendo
por ter recusado um copo d’água. Eu estava com a garganta seca.
– Posso analisar seus resultados?
Entreguei a ele as folhas de papel, sem dizer nada. Ele percorreu os
olhos por cada uma das folhas.
– Você tem suas provas escritas consigo?
– Tenho – respondi, surpresa – mas não sabia que elas seriam
necessárias.

79
Wanju Duli

– Não se preocupe – ele deu um sorriso simpático para me


tranquilizar – só quero dar uma olhada. Checar algumas coisas.
Nervosa, tirei as provas da mochila e entreguei a ele.
Eu não esperava que aquilo fosse acontecer! Ele ia descobrir que eu
tinha chutado quase todas as questões!
Mas ele devia saber que a maioria das pessoas fazia isso. Não era
nenhum crime. Ele não poderia me reprovar por esse motivo.
Ele se demorou um pouco mais na prova de informática.
– Você leu a primeira questão? – ele perguntou, me indicando.
Se era a primeira, eu devia ter lido. Quando ele me mostrou, lembrei
qual era.
– Sim – respondi, sem entender a pergunta.
– O primeiro parágrafo foi uma piada. Engraçada, não é?
Era uma piada infeliz que misturava o Mac do Macintosh com o Mc
de McDonalds. Ele mencionava a empresa Apple e relacionava a Apple
Pie, certamente por causa do comentário cretino do Mau sobre as
tortinhas de maçã do McDonalds, que virou uma moda relâmpago
imbecil na internet.
– Sim, morri de rir – dei um sorriso amarelo.
– Que bom – ele sorriu outra vez – fui eu que inventei a piada.
– Foi você que elaborou essa questão?
– Eu fiz essa prova inteira – ele respondeu – e algumas outras, como
a de aritmética e geometria. Oh, que legal, você acertou a questão do
Windows Vista! Também fiz uma piada nessa. Não uma de minhas
melhores piadas, admito.
“Você não notou que eu chutei a prova inteira, otário?” pensei,
contrariada. Ele apenas estava fingindo não notar, ou queria testar
minhas reações com seus comentários. Ele devia saber que eu sequer
tinha lido aquela questão.
Ele estava apenas desperdiçando tempo precioso e deixando os
outros candidatos torrando na sala ao lado. Por alguma razão aquilo me
incomodava. Talvez porque passei por isso.
– Pensei que Yago tinha ficado responsável por elaborar essa prova –
comentei.
– Muito prazer.
– Quê?

80
Sociedade do Sacrifício

– Eu sou Yago.
Meu queixo caiu. Devo ter feito uma cara engraçada, porque ele riu
da minha reação.
Pelas barbas do profeta! O que diabos Yago estava fazendo tomando
um cafezinho naquela cidade?
“Ele está fazendo as entrevistas de admissão, sua idiota!” eu pensei.
Mas ele não devia ser responsável por algo tão trivial assim. Eu não era
ninguém e ele era um Sacrios! O primeiro que eu conhecia pessoalmente.
Será que eles estavam com falta de pessoal? Yago era importante
demais. Ele não devia estar comandando pesadas máquinas de guerra
pelo computador ou algo assim? Bem, se Mau tinha tempo para falar
merda no Twitter, Yago poderia muito bem dar uma banda pela cidade.
Eu não esperava ser entrevistada por um Sacrios! Se eu soubesse que
aquilo ia acontecer, teria me preparado muito melhor. Teria estudado
para as provas. Teria me portado como uma princesa quando entrei. Eu
pensei que estivesse falando com um aleatório. OK, eu esperava que
meu entrevistador fosse um Saos, mas achei que seria um membro
comum. As entrevistas estavam ocorrendo simultaneamente naquela
semana por todos os estados do Brasil. Por que Yago tinha ido logo para
lá?
Caio e Carla tinham sido entrevistados por membros comuns. Por
isso eu não tinha me preparado psicologicamente para aquele encontro.
“Calma, Caio disse que Yago é gente boa” eu me recordei. Imaginei
que ele não fosse querer me ferrar, mas facilitar a minha vida.
Só que as vagas estavam ficando cada vez mais limitadas e os testes
mais seletivos. Então eu não podia contar com isso.
Eu queria dizer: “É uma honra conhecê-lo, senhor! Perdão pela
minha rudeza quando entrei” ou qualquer coisa assim, mas eu fiquei tão
nervosa com a revelação que perdi a voz.
– Diga-me, Antônia – ele resolveu começar efetivamente a entrevista
– por que quer entrar para a SSC?
Eu ainda me sentia meio perdida. Precisaria dar uma boa resposta
para isso, mas nada bom vinha à minha mente. Quem sabe o melhor
fosse ser sincera.
– Gosto de pensar que estarei fazendo diferença – respondi – e
também desejo respostas para grandes enigmas da vida.

81
Wanju Duli

No final, minha resposta foi mentirosa. Eu só disse aquilo porque


soava bonito: entrar para a SSC por altruísmo e pela busca do
conhecimento. Meus verdadeiros motivos eram bem menos importantes.
Eu era fã dos Sacrifícios há muitos anos e parecia ser grandioso ser
um deles. Eu ganharia status e fama. Me sentiria importante. A aventura
também me atraía. E uma curiosidade ingênua.
– Que grandes enigmas da vida são esses? – perguntou Yago, em tom
divertido.
Ele estava tirando com a minha cara? Estava me tratando como
criança. OK, ele devia ter uns trinta e poucos anos, enquanto eu estava
no final da adolescência. Aos olhos dele, eu era nova e imatura. Não
tinha idade o suficiente sequer para saber quais eram os grandes enigmas
da vida e muito menos para exigir respostas.
– Você sabe – eu disse – o tema da redação.
– Ah – Yago sorriu – foi ideia de Mau.
É claro. De quem mais seria? Mau gostava de posar de sábio e
profundo.
– Então você quer entrar para a sociedade para descobrir o sentido
da vida? – perguntou Yago.
– Sim – respondi – meu irmão se tornou Saos recentemente. Ele
disse que conseguiu sentir algo bem parecido com isso onde ele está.
– Quem é o seu irmão? – perguntou Yago, com curiosidade.
– O nome dele é Caio – respondi.
– Acho que sei quem é – disse Yago, satisfeito.
Provavelmente pesaria a meu favor se Yago soubesse que eu já tinha
um irmão na SSC.
– Você acha que sua vida atualmente não tem sentido? – ele
perguntou.
– Tem sim – respondi – mas se eu entrar na SSC pode ter ainda mais
sentido. Então quero tentar. Minha irmã mais velha realizou o Sacrifício
Sagrado na SSO. Ela sim achava que sua vida conosco não tinha sentido.
Só que eu não penso assim. Acho que devemos ter o direito de decidir
pelo que queremos viver e não esperar que um Deus decida isso por nós.
– Então você vem de uma família de Sacrifícios. Está no sangue.
Eu não tinha pensado nisso. Achei agradável o pensamento de que eu
possuía o potencial para ser Sacrifício dentro de mim.

82
Sociedade do Sacrifício

– O que você espera oferecer para o grupo, Antônia?


– Como assim? – eu não entendi a pergunta.
– Fale-me sobre seus pontos positivos e habilidades. Coisas que você
considere que podem ser de ajuda para nós.
– Ah, sim! Eu... hã...
Merda. Estava claro pelos resultados de meus testes teóricos e
práticos que eu não me destacava em nenhuma área.
– Sou positiva, otimista, sorridente, gosto de ajudar as pessoas – que
monte de bobagem! – tenho paciência e perseverança.
Só mentira.
Yago continuava a sorrir.
– Isso é ótimo – ele me incentivou – gostamos de pessoas animadas e
motivadas. Mas você também não teria alguma habilidade e
conhecimento que julgue serem de utilidade prática para o grupo? Algo
mais objetivo.
– Estou disposta a aprender o que for necessário – resolvi dizer –
caso considerem que eu não tenho habilidade suficiente para participar
da guerra, posso ajudar em qualquer outra atividade: cozinhando,
costurando, limpando...
– Nós não selecionamos candidatos exclusivamente para a limpeza –
explicou Yago – ao contrário, queremos que cada membro tenha
independência para cuidar de si. Também pedimos para que cada um
contribua um pouco nessas áreas, em prol do grupo.
– Entendi. Isso é bom, porque eu gostaria de ver os Deuses um dia.
– Gostaria de vê-los ou de matá-los? – perguntou Yago.
– Provavelmente os dois – respondi, de forma confusa – porque se
pretendo matá-los primeiro tenho que vê-los, certo?
– Suponho que sim.
Ele parecia estar se divertindo com minhas respostas. Ele já devia ter
notado que eu era uma péssima candidata, com notas medíocres e sem
nada a oferecer. Mas ali estava eu, tentando conquistar uma das poucas
vagas disponíveis.
Se eu fosse desqualificada, era provável que eu jamais tivesse a
oportunidade de me encontrar com um Sacrios outra vez. Então eu
precisava fazer uma pergunta.
– Por que os Deuses tentaram destruir a Terra?

83
Wanju Duli

– Cada Deus quer uma coisa diferente. Eles também fazem guerras
entre si.
– Então existem alguns Deuses bonzinhos? – perguntei, surpresa.
– Em geral, todos os Deuses são destrutivos. Uns mais que outros.
Com raras exceções.
– Hmmm...
– Nós somos como mosquitos para eles. Em geral, todos os
humanos são destrutivos em relação aos mosquitos. Com raras exceções.
– Então não estamos sendo hipócritas se realizamos os mesmos atos
que criticamos nos Deuses?
– Estamos lutando por nossa sobrevivência – respondeu Yago –
numa guerra, ética e nobreza nem sempre são relevantes. O homem, por
natureza, precisa matar para permanecer vivo. O único caminho para
quem acha errado matar para viver é cometer suicídio, como os
membros da SSO.
Eu sabia que aquele não era o momento de fazer essas perguntas. Eu
estava no meio da entrevista. Mas eu me sentia tão insegura sobre minha
possibilidade de aprovação que eu desejei sair de lá pelo menos com
algumas respostas para minhas perguntas.
Houve um instante de silêncio.
– Tem mais alguma pergunta ou algo a me dizer? – perguntou Yago.
Sim, eu tinha incontáveis perguntas. Mas havia mais candidatos
esperando na sala para suas entrevistas. Candidatos provavelmente mais
aptos que eu.
Eu fiz que não. Yago levantou-se.
– Você tem 17 anos, não é? Quando é o dia do seu aniversário?
– Daqui dois meses.
– Então, aguarde nossa correspondência nesse dia.
Ele estendeu a mão. Eu a apertei.
E isso foi tudo.
Quando eu saí da sala com ar condicionado gelado senti como se eu
estivesse entrando num forno. E enquanto eu caminhava até a parada de
ônibus, aborrecida com meu suor, eu me dei conta do quão tola eu havia
me portado na entrevista.

84
Sociedade do Sacrifício

Eu havia me queixado de um calorzinho. Sendo que eu estava


fazendo uma entrevista para enfrentar condições de desconforto
infinitamente piores. Devo ter passado uma péssima impressão.
Voltei para casa desanimada. Carla me tranquilizou, afirmando que
era sempre assim: que todo mundo pensava ter ido super mal, mas no
fim passava.
– Então ninguém é reprovado nesse teste? – perguntei.
– Claro que há reprovações, mas elas não são muito comuns. A SSC
gosta de testar o seu potencial depois que você já está lá dentro.
– A Manu não parece muito satisfeita com os imbecis que enviam
para ela – comentei, me referindo ao que ela havia dito no site.
– Pelo menos você já conheceu o Yago – comentou Carla – é uma
honra enorme. Mesmo no caso improvável de reprovação, você já vai ter
tido mais sorte que a maioria.
Fiquei sabendo que Jorge e Bianca não tinham sido entrevistados
pelo Yago, mas por outros Saos experientes. Pelo jeito, eu tive sorte
mesmo.
Chequei na internet os comentários sobre as entrevistas. Fiquei
sabendo que até mesmo o próprio Mau realizou algumas entrevistas na
capital de São Paulo. Enquanto alguns podiam se considerar sortudos
por verem o líder pessoalmente antes mesmo de ingressarem na
sociedade, outros consideravam isso a pior sorte possível, já que Mau era
conhecido por realizar entrevistas rigorosas.
Mas aquela era uma situação incomum. Disseram na internet que ele
não costumava entrevistar candidatos, pois não tinha paciência para isso.
Ele devia andar entediado.
Um dos paulistas entrevistados pelo líder foi retardado o suficiente
para gravar um trecho da entrevista e publicar na internet.
“Eu não acho que você é um bom candidato. Na verdade, você é um
lixo humano. Mas como o mundo é grande e misterioso, posso mudar de
ideia e te aprovar se eu estiver com bom humor para isso na ocasião”
Foi apenas esse trecho que ele gravou. Poucos segundos. Em pouco
tempo, o áudio se espalhou em diferentes sites. É claro que Mau ficou
sabendo.

85
Wanju Duli

A primeira ação dele foi eliminar o candidato de imediato, que


pareceu não se importar. Mau devia ter ficado puto porque ele não
queria a voz dele na internet.
Sua próxima ação foi escrever um anúncio no site oficial da SSC.

A todos os merdinhas que se inscreveram nessa putaria

Tenho péssimas notícias para vocês e maravilhosas notícias para mim. Acabo de
bloquear as vagas outra vez. As inscrições estarão suspensas por tempo
indeterminado. Vocês desperdiçaram tempo fazendo nossos testes. HÁHÁHÁ
BEM FEITO!!! Quem manda ser um cuzão?
Agora eu tenho mais o que fazer além de entrevistar gente escrota que não
reconhece meus esforços. Estou agora mesmo indo para o show do Restart. Espero
conseguir um autógrafo do Pe Lanza.

Chupem, palhaços!

Mau

Líder Absoluto da SSC do Brasil, Imperador da SSC Internacional, Matador


de Deuses

– Puta que pariu! – exclamei – bem no semestre em que vou entrar!


Vai te foder, Mau! Enfia suas péssimas notícias no cu!
– Ah, sim, é claro que Mau estava se esforçando muito nas entrevistas
que fez – zombou Carla – deu pra ver pela gravação.
O pior é que talvez Mau só estivesse tirando com a cara do
candidato. Era completamente possível que ele o aprovasse depois. Mas
o carinha se ofendeu, fez aquela merda e deu nessa porra toda.
Inacreditável!
O mais curioso é que havia mesmo um show do Restart marcado em
São Paulo para aquela noite. Teve um pessoal que foi no show só pra ver
se achavam o Mau. Mas somente pela voz eles não conseguiriam
localizá-lo. Ninguém sabia como ele era, com exceção dos poucos que

86
Sociedade do Sacrifício

foram entrevistados, que se negaram a descrevê-lo com medo de serem


eliminados caso as inscrições reabrissem.
Algumas horas depois, Yago postou no mesmo site.

Mau,

Deixa disso, moleque. Que filha da putice é essa? Você me manda fazer umas
cinquenta entrevistas e depois vem dar uma de bonzão? É foda, hein!
Vou interpretar a sua infantilidade como mais uma de suas tentativas de chamar
a atenção. Quando você voltar ao normal (se esse for mesmo seu estado normal) sei
que você reabrirá as vagas, pois sabe que se não fizer isso a Vic vai liberá-las de
qualquer forma.

Esperando o fogo baixar

Yago

Programador-mor da SSC do Brasil

Mais duas horas depois veio a resposta de Mau. No topo da


postagem ele colocou uma selfie bem escura. Dava para notar apenas os
contornos de um rosto e um dedo médio levantado. Havia um palco no
fundo e algumas luzes coloridas, deixando claro que ele tirou a foto num
show.
Logo abaixo havia a seguinte mensagem:

Ora, ora, se não é o meu programador preferido, expressando toda a sua


indignação. Você certamente tem colhões. Te respeito por isso.
Mas não se precipite. Não pretendo voltar atrás na minha decisão. A Vic que se
lasque. Ela não manda em mim.

Adiós

Mau

87
Wanju Duli

Líder Absoluto da SSC do Brasil, Imperador da SSC Internacional, Matador


de Deuses

PS: Dedico esse dedo (foto acima) a todos os haters. Chupem haters!!!

– Ele tá de sacanagem – eu disse – só pode ser.


E eu teria achado tudo muito engraçado se eu não estivesse sendo
diretamente prejudicada por toda aquela merda.
Pela manhã, Mau postou outra foto sua, bem escura. Ele estava sem
camisa e sem cabeça. Honestamente, não dava para ver merda nenhuma
naquele lixo. Era uma foto de uma qualidade admiravelmente fodida.
Ele colocou a seguinte legenda na foto: “Meu peitoral”.
E abaixo: “Desejo a todas inimigas vida longa pra que elas vejam cada
dia mais nossa vitória. Bateu de frente é só tiro, porrada e bomba –
Beijinho no Ombro, Gaiola das Popozudas”
Poucos minutos depois, Vic escreveu uma resposta no site oficial.

Mau,

Para de postar fotos suas no site oficial. Ninguém se importa. Vá criar uma
conta no MySpace ou em qualquer outro site no qual você queira brincar. Aqui não é
lugar para isso.
Quanto à questão do cancelamento das vagas, vou encarar apenas como mais uma
de suas piadas de mau gosto. As inscrições prosseguirão normalmente.
Desconsiderem quaisquer mensagens que o Mau escrever a partir daqui. Elas não
possuirão validade nenhuma.

Cordialmente

Vic

Vice-líder da SSC do Brasil

88
Sociedade do Sacrifício

A resposta de Mau foi imediata:

Vic,

Postei as fotos de propósito somente para atrair sua atenção. Eu sabia que você
não resistiria em dar os seus comentários sobre elas.
Por que está me ignorando ultimamente? Você não responde meus e-mails!
É fácil prosseguir com o processo de admissão, sendo que você não está ajudando
em nada. Não foi você que teve que entrevistar um bando de adolescentes imbecis.
Eles tiram minha paciência.
Você basicamente só me critica e não contribui em absolutamente nada. Belíssimo
exemplo, vice-líder!

Grato pela atenção de Vossa Majestade

Mau

Líder Absoluto da SSC do Brasil, Imperador da SSC Internacional, Matador


de Deuses

Logo veio a réplica de Vic:

Mau, Mau....

Eu realmente não sabia que você se sentia dessa forma. Eu sempre me esqueço do
quanto você é sensível.
Me desculpa? Desculpinha? :3

Miau, miau!

Vic

Vice-líder da SSC do Brasil

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Wanju Duli

E a resposta de Mau:

Nossa, que inesperado...!


Te pego pro cinema às oito? Está passando esse filme incrível chamado Bob
Esponja.

Piscadela

Mau

Líder Absoluto da SSC do Brasil, Imperador da SSC Internacional, Matador


de Deuses

Dois minutos depois, Vic respondeu:

Eu estava sendo irônica.


Por favor, Mau, não faça isso consigo mesmo. É degradante.

Um minuto depois, a resposta de Mau:

Eu estava sendo irônico sobre o fato de você estar sendo irônica.


Honestamente, estou ficando cansado dessa discussão. Um homem tem dedos que
ficam doloridos após digitar demais.
Vou dormir, boa noite

E a resposta dela:

Que diabos? São sete da manhã e você vai dormir? Seu ritmo circadiano será
prejudicado.
Bem, o que se pode fazer? Foda-se.
E eu também não me importo se as vagas forem canceladas. Não é problema meu.

90
Sociedade do Sacrifício

E assim, os dois pararam de digitar.


– Ah, não, Vic, até você? – choraminguei – era minha última
esperança!
Resolvi não levar aquilo tão a sério. Imaginei que no máximo em
alguns dias ou semanas a situação se normalizaria. Bastava aguardar.
Dois meses depois, exatamente dois dias antes do meu aniversário de
18 anos, Manu escreveu no site oficial.

Caros candidatos

Informo que o processo de admissão será continuado. As vagas foram reabertas.


Iremos enviar os envelopes com os resultados para vocês, por Sedex. Não irei
pagar pelo custo adicional do Sedex, então é melhor vocês fazerem um depósito gordo
na minha conta hoje e me enviarem os comprovantes de depósito por e-mail se desejam
receber seus resultados rapidamente.

Grata pela atenção

Manu

General do Exército da SSC do Brasil

O erro foi deles e nós que teríamos que pagar por isso. Típico.
Mas eu estava tão ansiosa que peguei todas as economias do meu
cofrinho e fiz o tal depósito. Queria receber logo meu envelope e acabar
com o suspense.
Na madrugada antes do dia do meu aniversário, enquanto eu
esperava a chegada da manhã para checar o correio, abri a carta da Irene.
Aquela que eu só poderia abrir quando tivesse 18 anos.

Oi Tônia!

91
Wanju Duli

Parabéns pelos seus 18 anos! Agora você tem exatamente a idade que eu tinha
quando parti.
Eu me pergunto se você já recebeu sua carta de admissão ou está esperando por
ela.
Nesse momento eu provavelmente já realizei o Sacrifício Sagrado. Foi uma
decisão que tomei há muito tempo e não havia meios de evitar.
É maravilhoso descobrir aquilo a que queremos dedicar a vida. Ou a morte. No
fundo, é um pouco de cada.
Não tenha medo, Tônia! Eu sei que a vida pode parecer muito assustadora. Mas
ela é maravilhosa.
Você deve estar pensando: se eu acho a vida maravilhosa, por que eu decidi ir
embora? Tenho certeza de que você possui suas próprias respostas para isso agora,
pois sua situação é parecida.
Quanto a mim, eu queria uma vida que valeria a pena ser vivida, mesmo que
fosse muito breve. Eu notei que a maior parte da vida é uma série de repetições: comer,
dormir, amar, odiar... só mudava a forma. O conteúdo era o mesmo.
Então eu percebi que já tinha entendido o que era a vida e não precisava mais das
repetições para me ajudar a enxergar isso. E eu fiz o que precisava ser feito.
Você sabe que nunca gostei muito da SSC. Sempre preferi a SSO. Mas eu não
desaprovo o desejo de vocês pelo Sacrifício da Mente. Na verdade, se a SSO não
existisse, eu provavelmente acabaria entrando na SSC.
“Mas como? São sociedades opostas! Uma idolatra os Deuses e a outra os
repudia”, você deve estar pensando. Bem, não é assim que vejo as coisas. Para mim,
só muda a forma e o conteúdo é o mesmo. As duas sociedades possuem objetivos
semelhantes, que é o contato dos Deuses e humanos, que gera o sentido. Uma
reconexão de algo que foi perdido há muito tempo.
Nesse momento, estou feliz por mim e por todos vocês. Vamos todos construir
nossos futuros extraordinários! E, somente assim, cumprir nossos destinos.

Eternas saudades,

Irene

PS: Lembra da pulseira azul que eu te dei? Ela é encantada. Usei magia na
minha fita de cabelo para fazê-la. E para desvendar o feitiço você precisará aprender
magia divina. Eu sei que você sempre foi muito curiosa, Tônia. Então, se não tiver

92
Sociedade do Sacrifício

mais nenhuma motivação para entrar na SS, eu te dou essa: desvendar o segredo da
fita.

Olhei para minha pulseira. Eu jamais iria suspeitar que havia magia
nela. Mas, pensando bem, fazer aquilo era a cara da Irene.
É claro que eu não conseguiria dormir. Eu olhava para o relógio e
para as frestas da janela, observando o céu clarear.
Era lindo. Meu coração estava batendo forte.
Quando a correspondência chegou, eu corri para a entrada. Estava
preparada para presenciar o mesmo espetáculo, mas agora eu seria a
protagonista: eu gritaria, correria pela casa, contaria a notícia para Carla.
Talvez eu até chorasse de emoção.
Abri o envelope, com ansiedade, rompendo o selo vermelho da SSC:

Cara Antônia,

É com pesar que informamos que a senhorita não foi considerada apta para
ingressar na Sociedade do Sacrifício do Caos, a SSC.
Existe a possibilidade de fazer o teste uma segunda vez daqui exatamente um
ano. São permitidas somente duas tentativas de ingresso. Caso falhe nessa segunda
tentativa, você será permanentemente bloqueada da sociedade.
Desejamos-lhe boa sorte em sua segunda tentativa, caso ela venha a ocorrer.

Atenciosamente,

Yago

Chefe de Programação da SSC do Brasil

De fato, eu gritei após terminar a leitura, como esperado. Porém,


gritei de raiva.
– Inacreditável...! – reli a carta para me certificar.
Um ano. Não era tanto tempo assim. Ao longo daquele período eu
poderia me preparar melhor. Eu tinha ouvido falar que estavam abrindo
até cursinhos preparatórios para ingressar na SSC.

93
Wanju Duli

Na prática, eu ia acabar me tornando membro somente dali um ano e


meio ou dois anos, se eu adicionasse o tempo de espera até o início dos
testes. A vantagem era que quanto mais tempo eu tivesse antes do teste,
mais tempo eu teria para me preparar.
Pensando dessa forma, será que não era melhor eu esperar mais uns
cinco anos antes de me inscrever de novo? Afinal, eu só teria mais uma
chance! Precisava ter certeza de que passaria.
Porém, se aguardar mais um ou dois anos já era difícil, esperar mais
cinco seria insuportável. E depois de todo esse tempo eu poderia perder
meu foco e motivação.
Resolvi entrar em casa e mostrar a carta para Carla. Eu precisava de
conselhos.
– Acho que você deveria tentar refazer o teste daqui um ano – ela
sugeriu.
– Você não pode refazer também? – perguntei.
– Não. No meu caso foi desistência por vontade minha. Não posso
refazer. De qualquer forma, eu não iria querer.
Eu ainda não tinha me conformado com o resultado. Será que não
teria jeito de reverter a situação?
Yago acrescentou seu endereço de e-mail no envelope. Ele iria se
arrepender disso, pois eu decidi que queria encher o saco dele.
Mandei a seguinte mensagem:

Caro Yago,

Acabo de receber a carta com meu resultado. Gostaria de saber por que motivo fui
reprovada, para que eu possa melhorar meu desempenho nessa área no próximo ano.
Como minha entrevista foi realizada por você, concluo que saiba me informar o
motivo.

Respeitosamente,

Antônia

94
Sociedade do Sacrifício

Fiquei surpresa quando recebi a resposta quinze minutos depois. Ele


devia estar checando o e-mail naquele exato instante. Pensando bem,
aquele cara não devia sair da frente do computador.

Cara Antônia,

Chequei novamente seus resultados. De acordo com minhas anotações, não há


nada de errado sobre o seu desempenho. Você atendeu os requisitos mínimos para
ingresso, matematicamente falando.
Eu te colocaria numa lista de espera, se essa lista de fato existisse. Infelizmente,
as vagas foram totalmente preenchidas.
Eu estaria disposto a rediscutir os seus resultados, mas essa área não é de minha
jurisdição. Sugiro que contate os líderes, contanto que o faça nos próximos dias. Em
breve irei incluir a lista de aprovados no sistema e não haverá possibilidade de
modificação posterior.

Atenciosamente,

Yago

Chefe de Programação da SSC do Brasil

Por que Yago era tão simpático comigo? Minha entrevista foi uma
porcaria e meus resultados foram totalmente medianos. Ele testemunhou
isso em primeira mão. Mesmo assim, ele teria me aprovado se pudesse.
Eu não o culpava por ter dado preferência aos candidatos com
melhor desempenho. Era o natural a se fazer.
O problema era a limitação no número de vagas. Eu desconfiava que
Mau estava diretamente por trás desse problema.
Mas contatá-lo era quase impossível. Ele tinha apagado seu endereço
de e-mail antigo, para não ser incomodado. E eu também não tinha o
contato da Vic.
Naquele mesmo dia Mau inventou de criar uma conta no
Formspring. E eu imediatamente pensei: “Que sorte! Vou perguntá-lo
sobre a questão do número de vagas e discutir minha situação”. Mas eu

95
Wanju Duli

não podia fazer isso em público. Mau provavelmente me trataria de


forma totalmente rude, como fazia com todos os outros. Quando era
com os outros eu achava engraçado. Se fosse comigo, eu ficaria chateada.
Eu não estava nem mesmo no humor de curtir a sessão de perguntas
e respostas no Formspring.
“E aí, Mau, já conseguiu levar a Vic no cinema?”
“Isso não é da sua conta”
“Mas há algo rolando entre vocês dois, não é?”
“Isso você tem que perguntar para ela”
Sinceramente, eu estava me irritando. Eu não queria saber se os dois
já tinham assistido Bob Esponja. Eu queria a porra da minha vaga! Era
tão difícil que um deles dispusesse de cinco minutos para discutir aquela
questão comigo?
Mas... será que não havia outros na minha situação? Outros nomes na
frente do meu que estariam na lista de espera imaginária?
Resolvi enviar um e-mail para Yago pedindo o e-mail dos líderes.
Porém, não recebi resposta. Imaginei que Yago não tinha autorização
para me repassar os e-mails. E ele devia estar ocupado com outras coisas.
Foi então que tentei uma solução desesperada: contatar a SSC de
outro país. Digamos, da Índia.
Enviei um e-mail para Sahana e aguardei. Eu sabia que ela demorava
para retornar.
Enquanto isso, Bianca e Jorge estavam em clima de comemoração.
Os dois tinham sido aprovados.
Acho que eu era a única pessoa que eu conhecia que não havia
passado naquele teste supostamente fácil. Eu não teria chance de
descobrir tão cedo se eu queria aquilo para a minha vida ou não.
Eu não estava sequer no clima de ler a carta mais recente do Caio,
que já tinha dado minha aprovação por garantida e estava “me
aguardando”. Ele também contou mais histórias fantásticas, o que me
deixou ainda mais ansiosa, lamentando o que eu tinha perdido.
Uma semana depois, recebi a resposta da líder da SSC indiana:

Prezada Antônia,

96
Sociedade do Sacrifício

Eu e os líderes de outros países estamos cientes da situação delicada da sede


brasileira. Você deve entender que Mau é responsável não somente pela SSC do
Brasil, mas também pela SSC Internacional, o que o deixa duplamente ocupado.
Você deve saber que a SSC brasileira é a mais requisitada, até mesmo por
membros de outros países. Muitos almejam a oportunidade de receber treinamento
diretamente do líder. Essa é uma das principais razões do número reduzido de vagas,
particularmente nesse ano: Mau liberou o ingresso de estudantes internacionais na
SSC do Brasil. Ele vinha sendo muito conservador quanto a isso, só aceitando treinar
estudantes brasileiros no primeiro ano. Ele finalmente abriu uma concessão, somente
para testar. Se não der certo, o processo será revogado no próximo ano.
Peço que compreenda a limitação do número de vagas e tente novamente o ingresso
no ano seguinte, que talvez não apresente tantas dificuldades em caso de revogação da
referida situação.

Atenciosamente,

Sahana

Líder da SSC da Índia

– Eu realmente li o que acabei de ler? – perguntei-me, incrédula.


Havia uma série de informações novas e esquisitas naquele e-mail.
Eu já sabia que a SSC do Brasil era a mais famosa do mundo.
Suspeitei que isso acontecesse porque o líder da SSC Internacional era
brasileiro.
Mas por que os estrangeiros estavam tão desesperados em serem
treinados pessoalmente pelo Mau? Será que era apenas fruto das
palhaçadas que ele fazia na internet? Não devia ser só isso.
Então Mau havia separado uma parte das vagas daquele ano somente
para estudantes estrangeiros. Em parte, aquilo ocasionou a perda da
minha vaga.
Mas... espere. Se os estrangeiros poderiam ir para a sede brasileira,
então eu também devia ter direito de treinar na SSC de outro país. Enviei
um e-mail perguntando a Sahana sobre isso e ela me confirmou que, de
fato, era possível.

97
Wanju Duli

Enviei a ela uma cópia dos meus resultados por e-mail, para que ela
os analisasse. Ela entendia um pouco de português e me confirmou que
meus resultados eram aceitáveis e com eles eu poderia conseguir uma
vaga em outro país.
Só que eu não tinha muito tempo sobrando para escolher onde eu
queria ir. Naquele ponto, eu estava disposta a aceitar qualquer lugar. Não
ia demorar muito para que os treinamentos do novo ano começassem.
Eu precisava me apressar.
A Indonésia era o segundo país mais procurado para treino, após o
Brasil, talvez porque a vice-líder da SSC Internacional era de lá. Então eu
resolvi nem tentar esse lugar, já que as vagas também deviam ser
limitadas. Com meu baixo desempenho, eu não tinha muita chance de
conseguir os lugares famosos.
Sahana pesquisou para mim e me informou que alguns países
europeus e asiáticos ainda não tinham completado o número máximo de
vagas. No entanto, para receber admissão eu devia ter algum
conhecimento da língua desse país. Isso limitaria muito minhas opções.
Ela disse que por eu ser uma candidata brasileira isso já contava
muito, devido à fama do Brasil na SSC.
Esse pensamento me animou. Será que eu seria disputada? Sim, eu
seria, se ao menos meu desempenho tivesse sido um pouquinho
melhor...
Até que algo totalmente inesperado aconteceu. Sahana me enviou o
seguinte e-mail:

Analisei o resultado das suas provas de idiomas e notei que você tirou 40% em
inglês e 30% em hindi. Eu diria que com esse resultado a SSC indiana possa te
aceitar.

Meu coração deu um salto. 40% em inglês ainda era uma merda, mas
Sahana estava disposta a ignorar isso por causa dos meus 30% em hindi.
De onde aquela porcentagem tão alta tinha vindo? Eu tinha chutado
todas as questões! Só que nessa prova eu não chutei na mesma letra, sei
lá porquê. E tive uma sorte inacreditável.

98
Sociedade do Sacrifício

Só que aquilo não era o bastante. Na primeira entrevista em hindi que


fizessem comigo eu seria desmascarada. Eu não sabia dizer uma só
palavra nesse idioma.
Mas como também se falava inglês na Índia, achei que meus
conhecimentos seriam suficientes. Qualquer coisa, eu poderia usar
mímica.
Sahana propôs a realização de uma entrevista na semana seguinte,
mas não por ela, que não se encontrava no país no momento. O vice-
líder me entrevistaria.
Porém, eu expressei a ela por e-mail minhas duas maiores
preocupações:

Acredito que meu hindi não seja tão bom assim para eu ser submetida a uma
entrevista. Se ela ocorresse em inglês, eu teria mais chances. E também não tenho
dinheiro para a passagem.

Surpreendentemente, Sahana me comunicou que nada daquilo seria


um problema. Ela me garantiu que a entrevista seria uma mera
formalidade e que pelos meus resultados eu já estava aprovada. Como
havia pressa, já que o treinamento seria iniciado na próxima quinzena, ela
disse que poderia me arranjar uma passagem numa companhia aérea não
muito cara e eu poderia pagá-la posteriormente.
Aquilo tudo estava muito estranho. Eu tinha recém saído do colégio,
nunca tinha trabalhado na vida e já iria começar minha vida adulta com
uma dívida de não sei quantos mil reais? Eu não poderia aceitar isso!
Por que Sahana estava sendo tão generosa? Somente por eu ser
brasileira?
Depois ela me confessou que havia enviado um e-mail para Yago
para se inteirar sobre minha situação e ele tinha apoiado a ideia de eu
treinar na Índia.
Só tinha mais um problema: eu não tinha passaporte. Sahana disse
que talvez ainda desse tempo de fazer. Sobre o visto, também era
possível requisitá-lo em pouco tempo.
Agendei a solicitação do meu passaporte e tive sorte: ele ficou pronto
em dez dias. Solicitei um visto de turismo que ficou pronto em quatro
dias. Meu tempo estava se esgotando e terminei tudo em cima da hora.

99
Wanju Duli

Gastei uma graninha para conseguir preparar tudo. Meus pais tiveram
que me ajudar. Fiz até uma vacina contra febre amarela.
Tive que arrumar as malas às pressas. Eu iria viajar na madrugada de
terça para quarta, às cinco da manhã. Esse foi o horário que Sahana me
conseguiu e eu certamente não iria reclamar.
Era minha primeira viagem internacional e a primeira vez que eu
viajaria de avião sozinha. Aquilo não me soava bem. Eu tinha medo de
me perder.
Sahana me garantiu que o vice me pegaria no aeroporto. Eu pensei
em dizer que não queria incomodar, mas não consegui.
Contando com a conexão na África do Sul, aquele voo duraria mais
de 30 horas. Seria cansativo, mas valeria a pena.
Meus dois colegas já tinham partido para a área de treino brasileira,
que eu não sabia onde ficava. Carla e meus pais me acompanharam até o
aeroporto e trocamos uma calorosa despedida.
Quando o avião decolou, eu finalmente parei para refletir: “O que eu
estou fazendo aqui?”
Fechei os olhos. Lembrei da Antônia de 12 anos, que admirava os
Sacrifícios e pensava em se tornar um deles um dia. Mas era só uma
fantasia. Achei que com o tempo eu ia esquecer.
Meu coração batia forte, repleto de emoção. Eu estava realizando
meu sonho de infância. Aquilo era especial. E mesmo que eu retornasse,
tudo teria valido a pena. Eu teria uma dívida salgada para pagar e teria
que conseguir um emprego qualquer como garçonete assim que voltasse
para o Brasil.
Mas estava tudo bem. Eu não precisava pensar nisso ainda.
Só uma parte daquilo tudo ainda me deixava meio puta: Mau. Eu
poderia ter tido o conforto e a alegria de treinar na SSC do meu próprio
país, considerada a melhor do mundo. Com pessoas falando minha
língua. Junto com meu irmão e meus amigos.
Mas Mau tinha tirado aquilo de mim. Então meu sonho não
aconteceria exatamente do jeito que eu queria; como eu tinha imaginado.
Para completar, eu ainda estava devendo dinheiro para Sahana. Minha
família passava por sérias dificuldades financeiras. Aquela brincadeira
estava saindo muito cara.

100
Sociedade do Sacrifício

Talvez a culpa tenha sido minha, que não fui capaz de esperar mais
dois anos para fazer o teste de novo.
Mas agora era tarde para lamentar. No impulso, acabei aceitando a
proposta de Sahana. Eu não tive muito tempo para pensar. Se eu tivesse
pensado, teria escolhido ir para a SCC de um país mais próximo, para
que a passagem não saísse tão cara. Mas é claro que eu contatei a SSC
indiana, já que eu admirava os famosos Sacrifícios de lá.
Eu não conseguia ficar tranquila. Tentei me distrair e ler um livro.
Não fui capaz de passar da terceira página.
Eu estava tão estressada! Em vez de curtir a viagem, eu só conseguia
pensar nos problemas.
“Calma, Tônia. Não estrague tudo. Eu prometo que essa viagem será
inesquecível”.

101
Wanju Duli

Capítulo 2
Quando cheguei no aeroporto da África do Sul fiquei aliviada. Eu
finalmente poderia esticar as pernas. Eu teria que enrolar algumas horas
até meu próximo voo. Então comecei a observar os estabelecimentos
para procurar um lugar para comer.
Optei por um café que também era uma lanhouse, porque eu estava
ansiosa para usar a internet e dar notícias para minha família. Eu não
tinha levado celular. Meu velho aparelho tinha quebrado há muito
tempo.
Enviei um e-mail rápido, avisando onde eu estava. Naquele momento
notei que eu havia recebido um e-mail de Yago.

Cara Antônia,

Gostaria de agradecer por você ter aceitado a proposta de Sahana de começar seu
treino na Índia. Explicarei melhor como essa oportunidade surgiu.
Nesse ano, Mau finalmente cedeu e resolveu aceitar estrangeiros pela primeira vez.
No entanto, diferente dos candidatos brasileiros, que já se acostumaram às flutuações
de humor de Mau e às brincadeiras que ele faz de cancelar vagas subitamente para em
seguida reabri-las, os candidatos dos outros países não receberam bem a notícia do
cancelamento.
Isso gerou uma repercussão internacional extremamente negativa. Eu já enviei
publicamente um pedido de desculpas a todos que se sentiram lesados. E para
prosseguir na política de boa vizinhança, resolvemos enviar mais brasileiros para
treinar lá fora. As pessoas daqui são muito cobiçadas no exterior, devido à nossa
reputação de melhores do mundo.
Há países que já receberam alguns de nossos Saos. Mas você será a primeira
brasileira a ser treinada na SSC da Índia. Esse acontecimento será muito positivo
para fortalecer a relação entre a SSC desses dois países. Você certamente sabe que os
Sacrifícios indianos também são famosos e poderosos. Então te garanto que você estará
em boas mãos.
Sahana se mostrou tão interessada em receber uma brasileira que se propôs até
mesmo a pagar sua passagem. Você entende o peso que temos? Provavelmente muitos

102
Sociedade do Sacrifício

iniciantes indianos terão interesse em te conhecer e perguntar coisas sobre a SSC do


Brasil.
Naturalmente, como você ainda não estudou conosco, não poderá haver uma troca
mais rica. No entanto, isso poderá mudar.
O seu visto de turista dura seis meses. Depois que ele terminar, você poderá optar
por voltar ao Brasil e prosseguir seu treino aqui ou continuar por mais um semestre,
até decidir onde desejará ficar permanentemente.
Seria muito interessante para nós se você retornasse para o Brasil daqui seis meses
e, após seis meses conosco, voltasse para a Índia. Dependendo do seu desempenho,
podemos discutir a questão dos valores.
Sacrifícios não ganham nenhum tipo de salário e possuem uma vida dura, mas
recebem alguns benefícios. Se você receber sua iniciação formal, não precisará pagar
sua passagem para a Índia. A sociedade tomará conta desses custos.
Qualquer coisa que precisar, estou à disposição.
Boa viagem!

Saudações cordiais,

Yago

Chefe de Programação da SSC do Brasil

Agora as coisas já faziam mais sentido. Eles estavam me usando


como instrumento diplomático. Eu sabia que o governo cobria parte dos
custos da SSC. Devia haver muito mais por trás da mensagem de Yago,
que ele não podia me dizer. Ele não era estúpido de me revelar tudo o
que estava em jogo.
Era verdade que Yago era uma pessoa naturalmente simpática. Mas
toda aquela ajuda extra que ele e Sahana me deram só poderia possuir
uma explicação maior. Afinal, se eu fosse contar apenas com minhas
notas nos testes, nenhum país faria questão de me acolher, a não ser que
houvesse muitas vagas sobrando.
Fiz o pedido de um suco de frutas e de uma torta de frango. Paguei
caro, porque era comida de aeroporto.

103
Wanju Duli

Enquanto eu comia, continuava perdida em pensamentos. Yago tinha


dito que os novatos indianos provavelmente iam me abordar? Eu não era
exatamente a pessoa mais comunicativa e não tinha assim tanta
confiança no meu conhecimento de inglês.
Estranhamente, também não fiquei muito feliz de saber que o custo
da minha viagem seria pago caso eu me iniciasse na SSC. Isso poderia me
induzir a ingressar no grupo pelos motivos errados. Eu tinha medo que
isso acontecesse.
Eu não me sentia confortável com a empolgação de Yago. Ele
parecia ter certeza de que eu me tornaria Sacrifício. Embora fosse um
antigo desejo de infância, algo pelo que eu havia ansiado pelos últimos
seis anos, eu sabia que só estava indo lá para experimentar. Não queria
criar expectativas.
Quando terminei de comer, dei mais um passeio pelo aeroporto, com
o cuidado de não ir muito longe, porque eu estava com medo de me
perder naquele aeroporto enorme. E se eu acabasse chegando atrasada
para o próximo voo?
Acabei embarcando bem cedo, devido ao meu nervosismo. Tive que
esperar bastante na sala de embarque.
E lá estava eu, rumo ao meu destino. Quando o avião decolou,
finalmente consegui dormir um pouco. Só acordei quando a comissária
de bordo me ofereceu comida.
Quando faltavam duas horas para chegar, fiquei apreensiva. Aqueles
voos tinham demorado uma eternidade, mas quando descobri que em
breve eu chegaria, fiquei com medo.
“Eu quero voltar para o Brasil” pensei, agarrando fortemente a
cadeira.
Mas depois pensei: “Pare de agir como um bebê. Você já tem 18
anos. É uma adulta”.
E levantei-me, confiante, arrastando minha mala.
Ainda demorei muito até mostrar meus documentos, encontrar a
minha outra mala e percorrer aquele monte de corredores. Felizmente,
não houve atrasos nos voos, então imaginei que o vice-líder da SSC
indiana não deveria ter esperado muito por mim.
E agora, quem era ele? Quando finalmente fui liberada, eu não
conseguia encontrá-lo.

104
Sociedade do Sacrifício

Tentei procurar por um homem de uns 30 ou 40 anos que estivesse


sozinho. E que estivesse procurando por alguém...
A minha especulação sobre a idade era porque eu sabia que membros
da SSC não costumavam passar muito dos 40, mas para se tornar um
Sacrios era preciso muitos anos de experiência.
Cruzei meu olhar com algumas pessoas, até que alguém veio falar
comigo, em inglês, com um sotaque muito bonito e exótico.
– Por acaso você seria a Antônia, do Brasil?
Acho que foi isso que ele disse.
– Sim, sou eu, Antônia! – pronunciei, num inglês bem alto e claro –
Sahana me enviou.
– Que bom. Eu sou Raghav, vice-líder da divisão indiana da SSC.
Ele me estendeu a mão e eu a apertei.
Pensei não ter ouvido direito.
– Você é o famoso Raghav da lenda dos Três Tesouros? – perguntei,
sem ter certeza se meu inglês tinha soado certo, tamanha era minha
surpresa.
– Esse mesmo. Fico contente que tenha ouvido falar de mim.
– Ora, quem não teria ouvido falar de você? – eu disse, com um largo
sorriso, deixando o entusiasmo transparecer na minha voz – você é um
dos Sacrios mais fortes!
– Eu sou? – ele riu – isso é novidade para mim.
Eu queria poder me jogar no chão e sair gritando. Eu estava falando
pessoalmente com Raghav, o Sacrifício que eu mais admirava. Eu ouvi a
lenda sobre ele quando eu tinha uns dez ou onze anos. Na época, eu
considerava uma história de fantasia. Mas e agora?
– Sou sua fã! – foi tudo o que consegui dizer.
Eu não conseguia parar de sorrir. Eu devia estar parecendo uma
idiota.
– Obrigado – ele inclinou ligeiramente a cabeça – Antônia, que tal
nos sentarmos para conversar num lugar mais tranquilo? Pensando bem,
você deve estar cansada da viagem. Quer ir direto para o estabelecimento
local da SSC?
– Não se preocupe, estou ótima – menti – adoraria conversar.
Eu não perderia essa oportunidade.

105
Wanju Duli

Ele se ofereceu para me ajudar a levar as malas. Ele era tão educado!
Eu estava cada vez mais fascinada.
Ele sugeriu que tomássemos um café num lugar mais sossegado do
aeroporto. Nos sentamos juntos na mesa, fizemos nossos pedidos e
Raghav iniciou o assunto.
– Você sabe por que está aqui?
– Sahana e Yago me esclareceram a situação – respondi – sou como
uma estudante num intercâmbio, certo?
– Perfeito. E eu supostamente deveria fazer sua entrevista. Seu inglês
é bom. Você sabe hindi? Pelo menos o básico?
E agora? Se eu dissesse que não, iam me mandar de volta para o
Brasil? Mas se eu mentisse, seria facilmente desmascarada.
Resolvi ser sincera, para me poupar de um posterior embaraço.
– Não sei nada de hindi – confessei.
– Tudo bem – ele respondeu – saber apenas inglês será suficiente.
Mas aos olhos da nossa sociedade, você possui um score de 30% na
prova.
– Isso significa que eu deveria começar a estudar um pouco de hindi
para disfarçar? – perguntei.
– Não seria uma má ideia – ele concordou – mas não precisa
prejudicar seu treinamento por causa dessa questão. Se você não se opor,
podemos ir numa livraria e comprar para você um livro com lições
básicas de hindi. O que acha?
– Parece ótimo. Então se eu ler esse livro será o bastante para eu
justificar meus acertos na prova, dizendo que conheço as letras do
alfabeto e algumas frases simples.
– Você entende rápido – Raghav parecia satisfeito – de qualquer
forma, quanto mais tempo você permanecer conosco, mais hindi
aprenderá. Não creio que essa pequena situação será um problema. Será
facilmente resolvido. Podemos passar para o próximo assunto?
– É claro – eu disse, curiosa e empolgada.
Eu estava tomando café e conversando com o Sacrifício que eu mais
admirava, lá do outro lado do mundo. Aquilo não era extraordinário?
Poucas semanas atrás, eu jamais sonharia que algo assim aconteceria na
minha vida.

106
Sociedade do Sacrifício

– Naturalmente, você já deve estar ciente de que terá toda a liberdade


de permanecer conosco ou retornar para seu país após o término do seu
visto.
– Sim, Yago me avisou – confirmei.
– Eu gostaria de te lembrar que caso decida ficar conosco você
poderá permanecer por longos períodos através de um visto religioso.
Eventualmente, se a sua decisão for viver na sede indiana, receberá
cidadania.
– É mesmo? – perguntei, intrigada.
Eu não sabia direito que benefícios eu receberia, mas parecia uma
coisa boa. O que ele realmente queria me dizer?
Foi então que eu entendi: os indianos queriam que eu morasse lá.
Eles nem me conheciam. Eles só queriam possuir o prêmio de ter uma
Saos brasileira com eles, porque isso fortaleceria o peso da SSC indiana
na visão internacional.
Meu papel era apenas um: ser extraordinária, ou pelo menos fingir
ser. Afinal, eu não poderia manchar a fama do meu país. Por ser
brasileira, eu precisava saber jogar futebol, sambar e matar Deuses fortes
na SSC.
Quando eu disse isso para Raghav, ele riu.
– Você é tão rápida no entendimento – ele me elogiou – tão sagaz.
Mas eu também não quero que você se sinta desconfortável com sua
situação, Antônia. Quero que seu período aqui, independente de quanto
tempo for, seja o mais agradável possível. Saiba que pode contar comigo
para qualquer coisa. Se alguém te incomodar, eu falo com o membro e
dou um jeito.
Então eu seria tratada como uma estrela? Isso era novidade.
Eu entendi isso também: caso eu retornasse para o Brasil e relatasse
minhas experiência para amigos ou na internet, ou mesmo para os
membros da SSC do Brasil e elogiasse bastante a SSC indiana, a imagem
deles brilharia. Mais brasileiros teriam interesse em visitá-los. Talvez até
mesmo nossos Saos mais poderosos.
Então era isso: eles estavam mais interessados com a imagem que eu
teria deles. Eles estavam interessados nos Saos brasileiros fortes que
chegariam no futuro, e não em mim.

107
Wanju Duli

Mas para cumprir meu papel, eu precisaria ser uma candidata


extremamente disciplinada e motivada. Um modelo.
No começo eu gostei da ideia de ser uma estrela. Mas nos minutos
seguintes comecei a concluir que aquilo não era assim tão positivo.
O que eu realmente queria era ser uma iniciante anônima na SSC do
Brasil e ter toda a liberdade de sair se eu não me adaptasse, sem causar
grandes danos.
Mas e agora? E se eu não gostasse do dia a dia de um Sacrifício? E se
eu quisesse largar tudo no primeiro mês? Na primeira semana? Pegaria
extremamente mal para os dois países. As notícias na internet seriam
algo como:
“Primeira brasileira a realizar seu treinamento na SSC da Índia decide
sair definitivamente da sociedade. Será que os brasileiros são assim tão
fracos? Ou é a SSC indiana que é ruim?”
Não, não! Pegaria extremamente mal!
Não importava o que acontecesse: eu estava decidida a finalizar pelo
menos os seis meses de treinamento na Índia. Ficaria até o fim da
duração do meu visto, mesmo que eu estivesse louca para sair da
sociedade. Quando eu retornasse para meu país, eu realizaria o processo
de saída do grupo de forma discreta e sem alarde, antes que o primeiro
ano se completasse.
Eu também precisava pensar em Sahana, que havia apostado suas
fichas em mim e comprado minha passagem. Yago também era
simpático demais para desapontar.
– Eu não preciso ter tratamento especial – resolvi dizer para Raghav.
– Não é isso – ele disse – eu sei que você estará sob muita pressão
nesses próximos meses. Já fui iniciante. Sei como é difícil. Então
qualquer apoio que você precisar, dirija-se diretamente a mim antes que
as coisas se tornem difíceis e fujam do controle.
Eu não sabia do que ele estava falando. Mas ao se tratar das
dificuldades do treino da SSC, poderia ser qualquer coisa.
Ao menos eu torcia para não ter um instrutor tão rigoroso quanto
Manu.
Quando terminamos de tomar café, Raghav me convidou para
escolhermos um livro com lições de hindi para estrangeiros. Foi bem
divertido o processo de escolha. Estávamos em dúvida entre três livros,

108
Sociedade do Sacrifício

mas acho que ele sabia qual deles ele queria me dar desde o começo. Ele
se ofereceu para pagar.
Eu me sentia mal por ser assim tão mimada pelo vice. Se os outros
membros da SSC vissem isso, poderiam achar que ele estava me
favorecendo e isso poderia gerar hostilidade.
“Ela nem é tão boa assim, então por que todo esse favoritismo?” eu
os imaginei dizendo.
Raghav tinha vindo de carro e me deu uma carona. Eu não sabia para
onde estávamos indo, mas provavelmente era para o “estabelecimento
local da SSC”, como ele havia dito.
Eu estava meio surpresa com as mordomias. Raghav tinha
mencionado que na sociedade eles não recebiam salário. Então de onde
ele tinha tirado o dinheiro para o livro e para o café? E aquele carro era
realmente dele?
Raghav percebeu a confusão no meu olhar. Nem precisei dizer nada.
– O carro não é meu – ele disse – é propriedade da SSC, de uso
público entre os membros, geralmente para emergências ou situações
especiais. Como vê, é um modelo usado e antigo.
Imaginei que a sociedade também havia cedido a ele dinheiro
contado para ele me receber de forma cortês, mas sem extravagâncias.
Pensando bem, as roupas usadas por Raghav, embora bem limpas e
relativamente novas, pareciam ser de tecido bem simples. Ele não parecia
usar nada de marca, apesar de ele ser tão famoso.
“Então é isso que significa ser Sacrifício: viver de forma simples, mas
profunda” concluí. Então de onde Mau tirava todo aquele dinheiro para
esbanjar? Não que ele realmente tivesse gastado horrores, mas ele não
tinha ido ao show do Restart? Duvidei que a SSC brasileira fosse a favor
de ceder dinheiro a ele para isso. Ele podia ser o líder, mas
provavelmente não era quem controlava a parte financeira.
Eu estava me mordendo de curiosidade. Tinhas tantas coisas para
perguntar! Algumas muito mais importantes que essa dúvida, é claro.
Mas resolvi ir fazendo minhas perguntas para o vice conforme as
questões surgiam na minha cabeça.
– Mau postou na internet que foi num show de uma banda
recentemente – expliquei – de onde acha que ele pode ter tirado dinheiro
para isso? Será que ele tem família ou amigos generosos?

109
Wanju Duli

– Mau é excêntrico – observou Raghav – ele é um caso muito


particular. De qualquer forma, existe um sistema em que é possível
patrocinar um Sacrifício. Não estou ciente se Mau o usa, mas se usasse
talvez já tivesse ficado rico. Ele tem muitos admiradores.
– Ele também já mencionou que vive na pobreza e que teve que
comer um rato podre uma vez – lembrei – então como é que ele vai a
shows? Não entendo...
– Ah, compreendo sua confusão. Na maior parte do tempo os Saos
estão treinando duro para desenvolver seus poderes físicos, mentais e
espirituais. Realizamos essas atividades em lugares remotos e de difícil
acesso. Lá as nossas condições de vida são difíceis, já que em geral não
há nenhuma cidade próxima para oferecer suprimentos. E mesmo que
alguém nos trouxesse tudo pronto, teria pouco valor. O objetivo do
treinamento é que possamos aprender a nos virar sozinhos em condições
difíceis. É aprender a vencer a fome, o sono, superar os próprios limites.
Quando um Saos é promovido a Sacrios, o que geralmente leva em
torno de oito anos para acontecer, ele é autorizado a participar das
batalhas contra os Deuses. Nesse momento, ele não precisa mais
restringir a si mesmo tão rigorosamente. Ajuda a cuidar da parte
administrativa, treinar os Saos ou realizar diferentes atividades nas
cidades. Pode parecer um estilo de vida mais confortável, mas em
compensação você passa a arriscar sua vida seguidamente. A maior parte
de nós perde uma parte do corpo.
– Então você teve sorte – observei.
– Olhe para minhas mãos.
Eu levei um susto. Faltavam alguns dedos nas duas mãos dele. Como
eu não havia notado isso antes enquanto tomávamos café e
comprávamos o livro?
Ele achou graça na minha surpresa.
– Você não tinha mesmo reparado?
– Não – respondi, perplexa.
– Eu acho engraçado que a maioria não nota imediatamente.
Eu tinha uma boa teoria para isso. O sorriso de Raghav era tão
bonito e contagiante que era difícil não fitar o rosto dele. Então era
difícil notar as mãos.

110
Sociedade do Sacrifício

Obviamente, eu não mencionei a minha bela teoria, porque achei que


era inapropriado.
Tentei fazer as contas. Eu tinha entrado para a SSC com 18 anos, que
era a idade mínima. Levaria mais um ano para me iniciar. Depois disso,
haveria mais sete ou oito anos de treinamento, pois eu não sabia se os
oito anos consideravam a etapa pré-iniciação. Isso significava que eu só
me tornaria Sacrios com 26 ou 27 anos. Eu ainda seria muito nova para
morrer, mas se eu tivesse aguentado até esse momento, imaginei que eu
não me importaria de arriscar a vida. Afinal, os oito anos de treinamento
serviam exatamente para isso.
Pensando melhor, a SSC não era tão diferente assim da SSO. A
diferença fundamental era que os Saos passavam por sete anos de tortura
antes de cometerem suicídio, enquanto os Saem realizavam o Sacrifício
Sagrado assim que se iniciavam. Analisando dessa perspectiva, era difícil
determinar qual dos dois sistemas era o mais cruel.
Eu não achava que lutar contra Deuses fosse muito diferente de
cometer suicídio, sinceramente.
– Onde estão os Deuses? – perguntei.
– Haverá tempo para você descobrir isso – foi a resposta.
Então ele ainda não podia me revelar. Será que só os Sacrios sabiam
dessa informação sigilosa? Eu teria que aguardar oito anos para saber
daquilo?
Ele havia usado o termo “descobrir”. Então será que eu teria que
encontrar os Deuses sozinha? Aquilo era um pouco assustador e
emocionante.
Será que o teste de iniciação para a passagem de Saos para Sacrios
consistia numa caça aos Deuses, assim como uma criança que busca a
cesta de ovos de chocolate do Coelho da Páscoa? Por algum motivo,
aquele pensamento me pareceu estranhamente familiar. Acho que eu já
tinha lido um rumor parecido na internet.
Mas as pessoas falavam muita merda na internet. Será que era mesmo
verdadeira a lenda de que Raghav havia visitado o mundo dos Deuses,
colhido uma folha de árvore e que com ela adquirira o poder de resistir à
fome, à sede, ao calor e ao frio?

111
Wanju Duli

Será que eu tinha coragem de perguntar isso a ele? Achei melhor não.
Ele provavelmente me daria a mesma resposta que usou na minha
pergunta sobre os Deuses.
Em vez disso, resolvi fazer outra pergunta.
– Nós aprendemos magia assim que chegamos?
– No primeiro ano o foco é no treinamento físico – explicou Raghav
– você conhece a Yoga?
– Já ouvi falar. É como academia?
– É uma escola do hinduísmo – ele explicou – as asanas, que são as
posturas corporais, servem apenas para treinar o corpo para algo maior.
Ou seja, o objetivo final da Yoga não é se tornar um elástico humano. É
adquirir um corpo forte e resistente, capaz de sustentar estados mentais
profundos.
– Você se refere a meditações?
– Quase. As meditações, ou dhyana, também são estados
intermediários. Através delas podemos obter samadhi. E para batalhar
contra os Deuses, nós encontramos as siddhis no samadhi.
Eu não sabia o que significava aquele monte de termos. Raghav me
explicou que samadhi era um estado de bem-aventurança. Eu fiquei na
mesma, porque não sabia o que esse termo queria dizer. Ele mencionou
que havia um longo caminho até dominar completamente o samadhi,
mas que o domínio completo não era necessário para batalharmos contra
os Deuses.
No meio dos caminhos mentais poderíamos encontrar as siddhis, que
eram os poderes psíquicos. Eles eram extremamente efetivos em batalha.
– Aqueles que obtiveram algumas siddhis passam a ser conhecidos
como siddhas. Esses indivíduos são altamente respeitados na SSC.
– Então eles são Sacrios – concluí.
– Alguns Saos aprendem a dominar siddhis antes de se tornarem
Sacrios. Mas samadhi é somente um dos meios de se obter siddhis. Ele é
apenas a via mais usada na SSC da Índia. É a minha favorita. Você será
treinada nela, pois é assim que fazemos as coisas por aqui.
Parecia divertido.
– Quais são outras formas de se obter esses poderes paranormais? –
perguntei.

112
Sociedade do Sacrifício

– Há muitas formas, mas há as mais populares. Nós não costumamos


usar substâncias alucinógenas no treinamento dos Saos. Mas permitimos
preparar poções com essas substâncias a serem ingeridas nas guerras
contra os Deuses. Ou seja, somente Sacrios possuem autorização de
bebê-las. Algumas dessas poções são muito perigosas e devem ser
consumidas com moderação e bom senso. Por isso são proibidas aos
Saos. E também porque queremos que eles primeiro treinem suas
mentes sem isso. Se você dá uma calculadora para uma criança antes de
ensiná-la aritmética, ela se tornará dependente da máquina. Primeiro ela
precisa usar o cérebro, decorar a tabuada e fazer contas simples de
cabeça. A calculadora somente deve ser usada para operações mais
complexas, ou o cérebro fica preguiçoso.
Eu concordei.
– A SSC brasileira usa a auto-disciplina como meio de desenvolver
esses poderes. Principalmente com rigoroso treino físico. No nosso caso,
as posturas também são treino físico, embora com intensidade bem mais
moderada do que o treinamento de exércitos que Manu realiza. Ela é
uma especialista nessa área.
Aos poucos as peças começavam a se encaixar.
– Na China os Saos usam encantamentos para despertar a magia. A
língua chinesa é excelente para isso, com sua imensa variedade de sons e
entonações – explicou Raghav – e assim como nós usamos alguns dos
ensinamentos do hinduísmo em nossos fundamentos, os chineses
utilizam o taoísmo.
– Eu ouvi falar que na SSC do Brasil havia influência do candomblé –
observei.
– A verdade é que a SSC de cada país é influenciada por inúmeras
religiões e filosofias. Eu cito o hinduismo somente como nossa
influência maior, mas também aceitamos práticas do budismo, jainismo,
sikhismo e muitas outras. Na Indonésia há enfoque no islamismo.
Portanto, tem forte elementos de sufismo.
Eu me sentia tonta com todos aqueles nomes. Teria muito a
aprender. Não era à toa que eu havia tirado uma nota muito baixa na
prova escrita de teologia. Raghav sugeriu para que eu não me
preocupasse, pois havia mini bibliotecas nos diferentes acampamentos da

113
Wanju Duli

SSC pelo país e eu teria oportunidade de estudar a fundo todas essas


coisas. Eu também teria aulas.
– Ah, sim – Raghav acrescentou – há outro meio de obter siddhis que
não é muito mencionado, por ser muito raro: por nascimento.
– Isso significa que a pessoa já nasce com esses poderes e pode
despertá-los mesmo quando criança? – perguntei.
– Exato. Mas não estamos falando de poderes moderados aqui e sim
de uma criança que é um mago poderosíssimo. Nós possuímos meios de
detectar um siddha de nascença através de certas etapas do teste de
admissão.
“Quais?” pensei, curiosa. Não poderiam ser os testes escritos. Seriam
os testes de resistência? Ou a entrevista? Eu sabia que devia haver alguns
segredos escondidos naqueles testes esquisitos. Afinal, fizemos muitas
coisas desnecessárias. Então eles realmente acrescentavam testes secretos
nas entrelinhas...
Aquilo estava ficando cada vez mais emocionante.
– Infelizmente não posso contar quais partes do teste servem para
revelar esses poderes – acrescentou Raghav – no dia em que você se
tornar Sacrios poderá receber essa informação.
Pelo jeito, um novo mundo se abriria para mim dali oito anos.
– Há muitos siddhas de nascença na SSC? – perguntei.
– Acho que você não entendeu o quão raro é encontrarmos um deles.
Até hoje, em toda a história da SSC, só possuímos o registro de cinco
pessoas assim. Duas delas eram os membros mais fortes da SSC indiana,
que infelizmente perderam a vida na batalha contra os Deuses mais de
dez anos atrás. Também havia uma pessoa como essa na SSC chinesa e
outra na SSC indonésia. As duas já estão mortas. Só há um membro
siddha de nascimento vivo atualmente na nossa sociedade. E você o
conhece.
– Você? – perguntei, surpresa.
– A sua opinião a meu respeito é realmente alta – ele achou graça –
estou falando de Mau.
De repente, tudo fez sentido.
Então era por esse motivo que ele era o líder mundial. Por isso a SSC
do Brasil era tão famosa. Por isso ele podia falar todas as merdas que

114
Sociedade do Sacrifício

desejasse e ainda assim não perdia o posto de líder. Todos queriam ser
treinados pessoalmente por ele. É claro!
E ele nem precisou se esforçar para ser tão forte. Nasceu com os
poderes. Assim era fácil!
– Quando um siddha de nascença é descoberto, ele não precisa passar
pelos oito anos de treinamento dos Saos. Ele é imediatamente
promovido a Sacrios e já começa a participar das guerras desde seu
primeiro ano na sociedade.
De repente, senti vontade de matar Mau. Ele tinha sorte demais! Por
isso era tão convencido. Por isso havia muitos que o odiavam e o
invejavam, mas também muitos que o admiravam profundamente.
– Mau entrou para a SSC com dezoito anos? – perguntei.
– Não posso revelar isso – respondeu Raghav.
“Foi antes. Ele entrou com cinco!” pensei, loucamente. Mas meu
pensamento louco não era assim tão impossível. Por isso Mau havia se
tornado um adulto petulante daquele jeito. Havia sido paparicado pelos
Sacrios desde criança.
Será que ele ainda era um adolescente? Pela forma que agia, devia ser.
Mas não deixariam alguém com pouca idade ser líder.
De repente, eu não sabia de mais nada. As mais absurdas teorias
começaram a surgir na minha cabeça.
Mau era meio burro ou avoado, como se vivesse fora do mundo.
Imaginei que ele não tivesse frequentado o colégio, pois foi direto para a
SSC. Por isso ele era terrível em matemática daquele jeito. Por isso não
sabia nada de nada do que as pessoas em geral deveriam saber.
Por todas essas razões, ao mesmo tempo que o respeitavam, as
pessoas tiravam com a cara dele. Ele era tratado na internet como se
fosse um animal exótico de circo. Era testado constantemente e riam do
que ele escrevia.
Pensando bem, aquilo devia ser terrível.

Todo o ser dele é coberto de magia. Eu nunca havia me aproximado de uma carga
tão forte de magia antes. O sujeito é espetacular. Ninguém mais poderia ser o líder da
SSC, a não ser ele.

Caio havia escrito isso em sua primeira carta. Eu finalmente entendi.

115
Wanju Duli

– Antônia?
– Oi? – perguntei, distraída.
– Nós chegamos.
Eu desci do carro. Ainda estávamos na cidade. Raghav explicou que
aquele era um pequeno e singelo estabelecimento da SSC usado pelos
Sacrios quando possuíam negócios a tratar em Mumbai. Eu poderia
dormir ali, para descansar devido à fadiga da minha viagem. No dia
seguinte, ele me levaria para um dos acampamentos. Ele me disse que
seria uma viagem longa e cansativa, então eu precisava dormir.
Dividi um quarto com uma Sacrios chamada Meera, que ficou muito
contente em me ver.
– Antônia, certo? – ela me cumprimentou – você já está famosa por
aqui.
“Ah, não” pensei, desolada. Eu não queria ficar famosa. Queria ter
uma existência discreta. Não era justo que me bajulassem só por uma
condição de nascimento: por eu ter nascido brasileira.
Pensando bem, Mau também era bajulado por uma condição de
nascimento! E a minha nacionalidade só era relevante por causa da
nacionalidade dele. Não dava para acreditar.
Mas eu não queria conversar com Meera para perguntar sobre Mau.
Eu iria aproveitar a oportuniade para perguntar sobre Raghav. Afinal, eu
estava ansiosa para saber mais sobre ele. Certas coisas eu não tinha
coragem de perguntar diretamente a ele.
Conversamos um monte naquela noite, como se fôssemos duas
melhores amigas fofocando coisas do colégio. Foi divertido. Deitamos
nas camas e começamos a papear infinitamente. Ela queria saber tudo
sobre os Sacrifícios do Brasil. E eu queria saber tudo sobre os Sacrifícios
da Índia.
– A lenda dos Três Tesouros – mencionei – ela é real?
– Sim! – confirmou Meera, fascinada com minha pergunta – eu estou
feliz que você a conheça.
Meera era muito atraente com sua longa trança negra. Ela também
usava um sari amarelo que parecia muito confortável.
– Então Tejas pode voar e Sarthak é forte como um elefante? –
perguntei, prestes a cair para trás.
– São siddhis.

116
Sociedade do Sacrifício

Pelo menos agora eu já conhecia o significado daquela palavra e não


ficaria perdida na conversa.
– Eles usam essas habilidades para lutar contra os Deuses?
– É claro – ela confirmou – são muito úteis.
– Então Raghav possui mesmo a siddhi da resistência?
– Isso. Eles acharam os frutos das siddhis no mundo dos Deuses e...
ops! Não posso contar mais!
E ela riu. Ela obviamente tinha deixado escapar aquela pequena
revelação de propósito, para me entreter. Só para acender ainda mais a
chama da minha curiosidade.
Será que aquele mundo dos Deuses era literal ou figurado? Existia
num mundo material ou era acessado apenas mentalmente? Achei que a
segunda opção era mais provável.
Se esse mundo fosse mental, será que era comum para todos ou cada
um imaginava um mundo dos Deuses diferente? Eu não podia fazer
nenhuma dessas perguntas! Era frustrante ter que esperar oito anos. Já
foi frustrante o suficiente esperar seis anos até eu ter a idade mínima para
entrar para a sociedade.
Pelo jeito, a virtude mais poderosa que eu precisaria desenvolver seria
a paciência.
Reparei que Meera não tinha o antebraço direito e a orelha direita. Eu
percebi a falta do antebraço um pouco depois de entrar no quarto, mas
demorei um pouco mais para notar a falta da orelha.
– Qual a sua siddhi? – perguntei, aguardando uma grande revelação.
– Anima, Laghima e Prapti. Mas ainda não dominei o Prapti
completamente. Estou trabalhando nisso.
Quando contei que não sabia a que ela se referia, Meera ficou
surpresa.
– Você definitivamente precisa saber disso.
Ela foi até a estante, alcançou um livro e me entregou.
– Leia isso enquanto estiver no acampamento. É essecial.
Eu já tinha dois livros pendentes para ler. Se cada membro da
sociedade que eu encontrasse me entregasse um livro, logo eu não teria
nem mesmo tempo de respirar.

117
Wanju Duli

Consultei no livro o significado das palavras. Aprendi que Meera


possuía três das oito siddhis primárias. Ela podia se tornar muito
pequena, muito leve e acessar um imenso número de lugares.
Descobri que Raghav tinha uma siddhi da Yoga e meditação chamada
advandvam, que conferia a ele alta tolerância ao calor e ao frio. Ele
também tinha uma siddhi secundária chamada anurmi-mattvam:
tolerância à fome e à sede.
– Mas tome cuidado – Meera me alertou – não saia por aí
perguntando as siddhis das pessoas. Isso é considerado rude.
Principalmente porque a maior parte dos Saos ainda não possui
nenhuma siddhi e essa pergunta só geraria desconforto e uma situação
ruim.
– Entendi. Desculpe por perguntar suas siddhis.
– Não se preocupe. Eu não me importo. Não é tão rude assim
perguntar a siddhi de um Sacrios, pois espera-se que ele já tenha pelo
menos uma. E as siddhis dos Sacrios famosos costumam ser conhecidas.
Sem querer me gabar, muita gente já conhece as minhas, então não é
nenhum segredo.
– Então... posso perguntar qual é a siddhi da líder?
– A siddhi de Sahana é tri-kala-jñatvam.
Consultei no livro. Ela tinha o poder de conhecer o passado, presente
e futuro.
Senti um arrepio. Será que ela tinha insistido que eu fosse naquela
viagem porque conseguia ler o meu futuro? Será que eu me tornaria
alguém importante? Mencionei isso a Meera.
– Sahana não possui pleno controle sobre esse poder. Às vezes falha.
Mas é bem forte. Ela tem outros poderes também.
– Ela sabe se um dia a SSC conseguirá matar os Deuses?
– Tudo que tem relação com os Deuses é complicado – respondeu
Meera – então acho improvável que ela saiba. Mas não é que ela não
saiba nada a esse respeito. Ela tem pistas importantes.
– Você sabe as siddhis dos Sacrios brasileiros? – perguntei.
– Somente de alguns deles – respondeu Meera – e talvez eu não
conheça todas as siddhis que um Sacrios possui. Sempre tem aqueles
caras que gostam de manter segredo sobre algum poder oculto que nos

118
Sociedade do Sacrifício

salvará no último instante. Mas ocultar não é bom. Dificulta nosso


trabalho como equipe.
– Você conhece o poder de quem?
– Sei que Manu tem Mahima – informou Meera – ela consegue tornar
o próprio corpo gigantesco. É uma das maiores fontes de poder dela.
Um dos motivos de ela ser considerada a Sacrios mais forte do mundo.
– Achei que Mau era o mais forte – comentei, intrigada.
– Mau não entra na lista, porque o caso dele é diferente.
Imaginei que ela estivesse se referindo à condição dele de siddha de
nascença.
– A vice-líder de vocês – acrescentou Meera – ela tem kama-rupam.
Então ela podia assumir outras formas.
– Que poder legal! – comentei – parece difícil.
– Sim, é difícil. Por isso, ela possui limitações. Dizem que ela só
consegue se transformar em animais, e somente em alguns.
– Isso já é incrível o bastante. Se ela conseguisse se transformar
somente em um animal seria suficientemente admirável.
– Yago tem para-kaya pravesanam. Ele pode entrar no corpo dos
outros.
– Isso é assustador.
– Mas dizem que ele não costuma usar esse poder em pessoas, mas
somente em máquinas.
– Para se tornar um computador – comentei – bem típico dele. E
quais são as siddhis de Mau? Imagino que ele tenha mais de uma.
– Sim, ele tem várias. Algumas ele não deve revelar, para evitar
incomodação. Ou para que os outros não tenham medo dele.
– Cite pelo menos algumas – pedi.
– A lenda diz que ele tem Istva e Vastva, mas é improvável.
Consultei o livro. Possuir soberania absoluta. Ter o poder de subjugar
a todos.
Eu ri.
– Ele só está se gabando – garanti – ele não consegue subjugar nem
os adolescentes aleatórios da internet.
– Esse aqui com certeza ele tem – ela apontou para um nome longo
no livro.

119
Wanju Duli

O termo significava testemunhar e participar dos passatempos dos


Deuses.
– Não entendi direito o que isso quer dizer, mas parece ser útil para a
guerra – comentei.
– Muito útil – confirmou Meera – sabe, há um monte de boatos
terríveis sobre o Mau. Eu esperava que você pudesse me confirmar
alguns deles.
– Infelizmente ainda não o conheci pessoalmente. Mas foi Yago
quem me entrevistou no teste de admissão, então ele eu já vi.
– Que fantástico!
– E quais são esses boatos terríveis sobre o Mau?
– De que ele já matou um monte de Saos e Sacrios por acidente
numa explosão de fúria.
– Deve ser mentira.
Eu não levei a sério.
– Outro boato ainda mais controverso é o de que Mau foi
responsável pelos desastres naturais que assolaram a Terra alguns anos
atrás.
Eu ri a valer. Aquilo já estava virando piada.
– Um terceiro boato é que ele pediu um autógrafo para um brasileiro
famoso chamado Tiririca.
– Isso deve ser verdade – confirmei – se parece mais com algo que
ele faria.
Eu já estava ficando com sono. Decidimos comer alguma coisa e
deitar para dormir.
Meera me acordou para o café da manhã e disse:
– Aproveite as mordomias, porque no acampamento não vai ter nada
disso.
Comi iogurte com frutas.
– Tem certeza de que não quer algo mais reforçado? – ela perguntou
– sua viagem será demorada e com poucas paradas.
Se eu já tinha achado minha viagem de avião longa, eu mal podia
imaginar o que me esperava.
Perdi a conta dos dias. Não sei quantas vezes trocamos de veículo e
quantas paradas fizemos em diferentes locais da SSC pelo país.

120
Sociedade do Sacrifício

Eu queria encarar aquela viagem como meu primeiro teste de


resistência: pouca comida, poucas horas de sono, cansaço.
Raghav ia me contando os nomes das cidades conforme fazíamos as
paradas, mas eu não conseguia lembrar de nenhum nome. Algumas ele
apontava pela janela e eu somente dava uma olhada rápida.
Ele falava da cultura local, dos idiomas. Acho que passamos por
alguns lugares lindos, que nem pareciam ser desse mundo. Infelizmente,
eu estava exausta demais para apreciar.
De fato, foi uma aventura. Não meu tipo preferido de aventura,
porque eu nunca fui o tipo de pessoa mochileira e andarilha. Felizmente,
não tivemos que caminhar muito, pelo menos não no começo. Mas eu
estava com a bunda quadrada de ficar tanto tempo em carros.
Eu queria perguntar para onde estávamos indo. Se já estávamos
chegando. Mas eu desconfiava que Raghav não fosse me contar.
De repente, ele parou de dizer os nomes dos lugares. Tivemos que
fazer caminhadas por alguns trechos. Eu não sabia quanto mais eu ia
aguentar.
Eu estava desapontada comigo mesma. Eu nem havia chegado ainda
no local de treinamento e já não aguentava.
Eu queria voltar para casa. Deitar na minha cama, dormir e não
acordar mais.
Por que eu estava passando por tudo aquilo? Mais de uma vez
dormimos ao relento. Os mosquitos nunca me deixavam ter uma noite
de sono tranquila. O calor também me matava. Era muito mais quente
do que qualquer coisa que eu já tivesse sentido. Achei que eu iria
desidratar.
E a areia. Voando. Minha blusa branca já tinha deixado de ser branca
há muito tempo.
Enquanto isso, Raghav mantinha sua expressão serena. Eu sabia que
as mudanças de temperatura e a comida modesta não o incomodavam.
Porque ele tinha siddhis.
Decidi que eu precisava de uma daquelas siddhis para mim. E eu não
queria uma delas porque pareciam bonitas e sim porque poderiam
facilitar muito a minha vida.
Embora a maior parte das minhas lembranças do trajeto daquela
viagem interminável tenham sido extremamente desagradáveis devido às

121
Wanju Duli

provações físicas que passei, eu tenho algumas lembranças espetaculares


que compensam todo o resto.
Uma delas é a lembrança do Sol. O pôr do Sol. O nascer do Sol. O
espetáculo de cores. Quando eu via aquele monstro vermelho no céu, eu
não podia deixar de concordar com os antigos, que o consideravam um
Deus.
Eu não pude deixar de perguntar. A pergunta me soou extremamente
natural naquele instante.
– Raghav... o Sol – eu pronunciei – seria ele um Deus?
Ele sorriu diante da minha pergunta.
– É sim.
“De verdade?” pensei. Provavelmente tudo estava cheio de Deuses.
Se eu bem me recordava, um filósofo havia dito isso uma vez. Talvez...
Tales de Mileto?
Nós adentramos em um deserto. Eu mal podia acreditar. Se eu já
estava incomodada com a areia voando antes, eu podia me esquecer da
minha incomodação anterior.
Felizmente, nossa passagem por lá foi muito breve. Eu não sofri
muito.
As mudanças de temperatura eram bruscas entre as diferentes cidades
que passavam. Eu fui do céu ao inferno em diferentes etapas da viagem.
E quando eu estava odiando o calor com todas as minhas forças,
começou a esfriar. E a temperatura não parou mais de cair. Suspeitei que
estávamos indo para o norte.
Geada. Vi umas partes da grama começando a congelar em alguns
pontos. No começo notei isso com uma leve curiosidade. Devia ser
apenas pelo friozinho de manhã cedo.
Mas a geada começou a aumentar. Ela cobria boa parte da paisagem
pela qual pássavamos.
Vi algumas montanhas ao longe, escondidas pelas nuvens.
Raghav estacionou o carro em dado momento. Abriu o porta-malas.
– Trouxe roupas quentes? – ele perguntou.
– Não...
Como eu tinha ido para a Índia, imaginei que eu não precisaria.
Aparentemente eu estava enganada.

122
Sociedade do Sacrifício

Ele me entregou algumas roupas extras que havia trazido, incluindo


casacos de lã.
– Isso é realmente necessário? – eu não estava com tanto frio assim.
– Logo será necessário. Principalmente as luvas. Se você não sentir
mais seus dedos, me deixe saber. Eu te dou um par de luvas extras.
Realmente, quanto mais avançávamos, mais a temperatura caía. Em
pouco tempo, eu resolvi vestir o casaco.
Eu acabei dormindo no banco do carro. Provavelmente por longas
horas. Quando acordei, notei que havia um cobertor em cima de mim.
Olhei pela janela do carro. Havia neve cobrindo todo o caminho lá
fora. O céu estava branco, de tantas nuvens, e no horizonte o céu estava
alaranjado pelo Sol.
Estávamos num carro velho que não tinha ar quente. Puxei o
cobertor para mais perto do meu rosto, pois meu nariz estava gelado.
Eu finalmente perguntei, timidamente:
– Nós... já estamos chegando?
– Mais do que antes – ele respondeu.
Aquela resposta não me ajudou em nada. É claro que, quanto mais
avançávamos, estaríamos mais perto do nosso destino do que na hora
anterior.
Não saber quanto tempo ainda tínhamos pela frente me angustiava
de uma forma desconfortável.
Resolvi mudar a abordagem:
– Nós estamos indo para algum lugar, certo? – perguntei.
Quero dizer, não estávamos apenas dando voltas e passeando para
que ele pudesse me apresentar o país, não é? Eu conhecia inúmeras
formas muito mais confortáveis (mas provavelmente mais caras) de
conhecer o país que não fosse aquela.
– Ah, certamente – ele sorriu – não se preocupe. Sei bem para onde
estou indo.
– Então você não está perdido – acrescentei.
– Não estou perdido – ele repetiu, concordando.
Ele não tinha cara de mentiroso, então resolvi acreditar no que ele me
disse.
Naquela etapa da viagem estávamos fazendo cada vez menos paradas.
A comida estava escassa. Eu torcia para que aquele carro velho não

123
Wanju Duli

pifasse no meio do caminho. Pude visualizar na minha mente a tragédia


que seria: eu estava sem celular e não sabia se meu mentor tinha um.
Imaginei nossas tentativas frustradas de fazer uma fogueira. Por fim,
morreríamos congelados no meio do nada. Ou nos enfiaríamos no carro
embaixo de uma montanha de cobertores até morrer de fome.
“Regiões remotas? Isso aqui é um grandioso nada em meio a um
nada ainda maior”. Eles eram realmente literais quando se referiam a
treinamentos em áreas remotas. Certamente não queriam ser
incomodados! E não temiam a morte. Será que dava para confiar
somente em siddhis?
Fiquei contente quando Raghav sugeriu que eu comesse uma comida
industrializada que ele havia guardado num saquinho para emergências
no porta-luvas. Eu não fazia a menor ideia do que era, mas devorei com
gosto.
Mais algumas horas depois, em meio à paisagem branca
extremamente entediante, cochilei. Outra vez. Dormir era um dos meus
passatempos preferidos durante a viagem. Facilitava muito a minha vida.
Assim o tempo passava mais depressa.
Subitamente, Raghav estacionou o carro. Eu abri os olhos.
– Você vai dormir? – perguntei.
Ele não tinha dormido quase nada naqueles últimos dias.
– Não – ele respondeu – se você me permite, irei vendá-la.
– Por quê?
– É um procedimento padrão quando chegamos nesse ponto – ele
explicou – para que você não conheça o trajeto que vamos fazer a partir
daqui.
Só podia ser brincadeira. Eu estava num país desconhecido por mim,
no meio do nada, e todos os trajetos me pareciam exatamente iguais. Ele
realmente achava que eu iria conseguir gravar na cabeça todo o caminho
que havíamos feito nos últimos dias para descobrir o esconderijo secreto
deles?
Mesmo assim, se era procedimento padrão, resolvi concordar.
Ele colocou uma venda negra nos meus olhos. Aquilo era ótimo.
Facilitaria para que eu dormisse.
Então era por isso que Carla não sabia dizer para onde tinha ido.
Quando a levaram para o acampamento da SSC no Brasil, deviam tê-la

124
Sociedade do Sacrifício

vendado em uma parte do caminho. Ela disse que nem tinha certeza em
qual estado ela estava. Aquilo era insano! Ela achava que era
possivelmente o norte do país, mas nem disso ela estava certa.
De qualquer forma, havia vários acampamentos nos diferentes países.
Eles trocavam de lugar com frequência e às vezes se separavam em
grupos. Isso dificultava ainda mais rastreá-los.
Eu contava a passagem do tempo através do número de vezes que eu
comia e dormia. Acho que fiz isso mais duas vezes a partir daquele
ponto. Raghav não ia dormir mais? Ele conseguia aguentar longos
períodos sem dormir. Imaginei que aquilo também fosse uma siddhi.
Ele também devia estar com pressa para chegarmos logo ao nosso
destino agora, pois no início da viagem fizemos muitas paradas inúteis.
Finalmente, ele estacionou o carro. Eu não sabia o que estava
acontecendo, pois ainda estava vendada. Seria uma parada para ir ao
banheiro? Para descanso? Suprimentos?
Eu não acreditei que havíamos chegado de verdade. Quando ele
falou, pensei que fosse piada. Eu já estava começando a me acostumar
com a ideia de que tinham me colocado numa viagem eterna. Eu já tinha
bolado várias teorias na minha cabeça. Aquilo poderia ser um teste. Eles
queriam ver quanto tempo de viagem eu aguentaria. Quem sabe me
mantivessem viajando num carro ao longo de todos os seis meses. Eu
me perguntava quem pagaria por toda aquela gasolina.
Mas não era nada disso. Raghav retirou a minha venda. Era um
acampamento de verdade, com tendas e tudo o mais! Completamente
improvisado, mas perdidamente simpático.
– Cuidado onde pisa – ele me avisou – está um pouco escorregadio.
Desci do carro cuidadosamente. Cobri a cabeça com uma touca e a
boca com a gola alta.
Eu tinha quase certeza de que teríamos uma calorosa recebida, com
muita gente nos cumprimentando. Mas não consegui ver ninguém lá.
Até que chegou um rapaz que devia ser poucos anos mais velho que
eu e dirigiu-se ao Raghav, me ignorando:
– A torneira congelou de novo, estamos sem água. Ananya acha que
há outras partes da tubulação congeladas.
A moça que devia se chamar Ananya estava vindo logo atrás, com um
secador de cabelo na mão.

125
Wanju Duli

– Eu te disse para não usar o secador para descongelar! – exclamou o


rapaz – não desperdice energia. Use as toalhas que te dei. E sal.
– Raghav, diga para Vivaan parar de implicar. Vai demorar uma
eternidade para descongelarmos a tubulação assim. Nós precisamos de
água para cozinhar.
– Usem neve – disse Vivaan.
– Essa neve suja misturada com barro que mais parece areia? –
perguntou Ananya – eu posso cozinhar com ela para você, se quiser.
– Com licença, Antônia – disse Raghav – pode me aguardar aqui por
um momento? Só vou resolver esse problema e logo estarei de volta.
E Raghav seguiu com os outros dois, que continuaram discutindo no
caminho.
Achei que aquele não seria o momento ideal para que Raghav me
apresentasse àqueles dois, que certamente estavam irritados e nem um
pouco no clima para apresentações.
Resolvi ficar exatamente ali onde eu estava: parada ao lado do carro.
Apesar de haver muitas barracas, eu não via muita gente nos arredores.
Abaixei-me e segurei um pouco de neve com as luvas. Em seguida,
arrependi-me de ter feito isso. Restaram alguns cristais nos meus dedos e
logo as luvas ficaram molhadas. Um pouco depois, minhas mãos
começaram a ficar doloridas e eu não sabia se era melhor continuar com
as luvas molhadas ou ficar com os dedos expostos ao frio.
– Ei, você!
Percebi que alguém estava me chamando de dentro de uma das
barracas. Eu me virei.
– Você mesmo – a garota confirmou – entre aqui.
Sem saber quem era ela e o que queria comigo, entrei na barraca. Lá
dentro havia mais três garotas, que sorriram para mim.
– Você veio com Raghav?
– Isso mesmo – confirmei – acabei de chegar. Meu nome é Antônia.
– Meu nome é Sella. Sou da Indonésia. Essas são: Mei-Xiu, de
Taiwan – ela foi apontando para cada uma conforme apresentava –
Roshni, do Nepal, e Iaboni, de Bangladesh.
Cada uma de um lugar diferente. Será que eu estava num
acampamento para estrangeiros? Quando perguntei isso a Sella, ela
achou minha pergunta engraçada.

126
Sociedade do Sacrifício

– Quase todo mundo aqui é indiano. Ou paquistanês. Nossa tenda é


uma exceção bem multicultural. E você, de onde é?
– Brasil.
– Uau! – exclamou Mei-Xiu – é mesmo?
Confirmei com a cabeça.
– Legal – disse Mei-Xiu – então... o que você está fazendo aqui?
As outras três riram da pergunta de Mei-Xiu, como se estivessem
pensando a mesma coisa.
Logo eu descobriria que aquela se tornaria uma pergunta natural onde
eu estava.
Eu tentei explicar para elas que aquela pergunta não fazia sentido,
porque se fôssemos pensar em termos de países onde a SSC era forte, a
Indonésia e a China eram ótimos exemplos. Então por que Sella não
estava treinando na Indonésia, terra de Farah, a vice-líder da SSC
Internacional? E por que Mei-Xiu não estava treinando na China, onde
havia a famosa líder Dan-Dan?
– É diferente – explicou Sella – Índia, China e Indonésia são países
muito próximos. Podemos dar uma banda por aí de tempos em tempos.
Mas você veio lá do outro lado do mundo! E, convenhamos: por que
alguém deixaria de treinar na SSC do Brasil para treinar em qualquer
outro lugar?
– Eu acho que... – comecei – eu não consigo mais sentir meus dedos.
Tirei minhas luvas molhadas, aproximei as mãos da boca em concha
e soprei ar quente nelas.
– Tenho uma luva melhor – Sella levantou-se.
Ela me emprestou uma luva em que havia apenas uma divisão para os
quatro dedos e uma para o polegar. Era bem mais quente.
– Nem uso luvas mais – Mei-Xiu mostrou as mãos nuas. Ela estava
usando roupas relativamente leves – eu não me importaria de sair por aí
de mini saia. Você se acostuma.
– Você já foi treinar na China? – perguntei, curiosa.
Eu já tinha lido muita coisa legal na internet sobre os Sacrifícios
chineses.
– Não tive interesse – respondeu Mei-Xiu – a SSC taiwanesa também
é muito forte.

127
Wanju Duli

Eu não sabia daquilo. Eu não lia os sites em chinês. Apenas as


traduções das notícias mais importantes.
– Treinei seis meses em Taiwan e depois vim para cá – explicou Mei-
Xiu – porque gosto de budismo, meditação, essas coisas. Os Sacrifícios
indianos têm muita notoriedade e ensinam siddhis por samadhi. Então
para mim foi ideal.
– Também vim por um motivo parecido – disse Sella – amo meditar.
Mas eu me diverti mais no semestre passado quando fiquei no
acampamento do deserto. Era muito melhor do que essa merda de neve.
– Aqui na Índia os Sacrifícios adoram montar acampamentos em
ambientes extremos de frio e calor – disse Roshni – é o estilo de treino
deles, para nos preparar a viver em condições adversas. Eu gosto.
– É tradição – acrescentou Iaboni – os yogues fazem isso há centenas
ou milhares de anos.
Entendi rapidamente que as quatro estavam ali basicamente porque
curtiam o estilo de treino indiano pela meditação. Enquanto isso, eu nem
mesmo sabia fazer a posição de lótus. Confessei isso a elas.
– Isso não é um problema – garantiu Sella – você pode simplesmente
cruzar as pernas, meditar de pé ou deitada. Há muitas maneiras.
Eu nem mesmo tinha interesse em meditar. Meu interesse pela SSC
da Índia era por causa da lenda dos Três Tesouros. Mas resolvi não
mencionar isso, ou a minha presença ali se tornaria ainda mais
misteriosa.
– Você está ciente de que o nosso semestre já começou mais de uma
semana atrás, certo? – perguntou Sella – você perdeu o belíssimo
discurso de abertura de Sahana.
– Ela estava aqui? – perguntei, perplexa – pensei que ela estava no
exterior.
– Ela só deu uma passada rápida para saudar os novatos – disse Sella
– e agora já foi embora. Foi para a Nigéria.
– Por que ela viaja tanto? – perguntei.
– Os líderes precisam viajar para cuidar das questões administrativas
– explicou Sella – algo assim. Pelo mesmo motivo que presidentes
precisam viajar. Você tem ideia da importância que eles têm?
Para mim eles eram apenas um grupo que vivia no submundo. Mas
acho que os governos tinham algum interesse em financiar aquela

128
Sociedade do Sacrifício

empreitada porque eles estavam tentando, tipo, salvar o mundo. Não que
o mundo estivesse sob alguma grave ameaça no momento. Mas aquilo
poderia mudar num futuro próximo. Era melhor estar sempre alerta.
– Farah, a líder da SSC da Indonésia, também está fora no momento
– informou Sella – ela está em São Paulo. Com Mau, aparentemente, já
que ela é a vice da SSC Internacional. É impossível arrancar o Mau do
Brasil, então as pessoas precisam ir até lá se quiserem vê-lo.
– Eu ouvi dizer que ele detesta viajar de avião – informei.
– Então é esse o motivo – Sella sorriu – muita gente fica dizendo que
ele é xenófobo, principalmente quando ele bloqueou o acesso dos
estrangeiros à SSC do Brasil. Achei que ele não queria sair do país pela
mesma razão. Sempre que há alguma questão para resolver lá fora é a Vic
que precisa viajar no lugar dele.
Imaginei que Vic deveria ficar puta com isso.
– Acho que ele bloqueava os estrangeiros porque as vagas da nossa
SSC são bem limitadas, por causa da enorme procura – expliquei – nem
mesmo eu consegui uma vaga.
– Ah, então é por isso que você veio para cá! – disse Mei-Xiu,
triunfante.
– É... mais ou menos – admiti.
– Por que escolheu a Índia e não a Indonésia? – perguntou Sella –
sem querer me gabar, a Indonésia é o segundo destino mais buscado
pelos Sacrifícios depois do Brasil. Há inclusive três brasileiros nesse
momento treinando conosco.
“Sei lá!” pensei, incomodada. Eu não queria mais responder àquele
questionário. Eu não achava que era tão estranho o fato de eu estar lá.
Eu estava porque a líder da SSC da Índia tinha pagado minha passagem?
Eu não podia contar isso.
– Talvez um dia eu treine um semestre na Indonésia – resolvi
responder assim e depois desconversei.
“Até parece” pensei. Eu já estava nervosa pensando em como eu iria
pagar aquela passagem para Sahana. Eu não queria mais pensar em
viagens para o exterior pelos próximos dez ou vinte anos.
– Então, me contem como são os treinamentos por aqui – eu disse –
vocês só meditam?

129
Wanju Duli

– Como se fosse pouca coisa – diss Sella – há muita técnica envolvida


nisso. Eu vou te emprestar um livro.
Sella tirou da mochila um livro sobre meditação e me entregou.
Ótimo. Agora eu tinha três livros pendentes para ler: o de hindi que
Raghav me deu, o de poderes paranormais que Meera me emprestou e
agora esse de Sella sobre meditações. Resolvi que eu já iria começar um
deles naquela noite, antes de dormir. Pois se continuasse naquele ritmo
eu iria acumular leituras demais.
– Obrigada, parece um ótimo livro – comentei, folheando-o.
“Que mentira! Não tenho o menor interesse. As pessoas não param
de me enfiar livros que não quero ler!” pensei, em desespero. Mas eu me
via obrigada a ler para não ficar chato. Felizmente, os três livros eram
pequenos.
– Tenho um livro melhor – falou Mei-Xiu, tirando outro livro da
própria mochila – esse é bem mais interessante. Você vai adorar!
Meu queixo caiu. O livro parecia um daqueles volumes universitários
de medicina com milhares de páginas, que você precisa carregar com um
carrinho de mão. Eu honestamente pensei que ela estivesse brincando.
– Ele tem duas mil páginas, mas você não precisa ler tudo – explicou
Mei-Xiu – ele está em chinês, mas é um chinês bem simples de entender.
Se quiser, te ensino o básico de chinês para você poder começar. É bem
fácil.
A piada já tinha passado do limite. Até o lamentável momento em
que eu entendi que não era uma piada.
– Não tente recusar, Antônia – Sella sorriu, adivinhando meus
pensamentos – Mei-Xiu nos ensinou chinês nesses últimos meses só
para que pudéssemos ler alguns capítulos disso. Então você também não
vai escapar.
Provavelmente aquele era o preço da amizade. Lembrei que Caio
mencionou ter feito amigos no primeiro ano de seu treino. Então eu
também queria fazer minhas próprias amigas. Ele disse que aquele era o
segredo para se motivar a continuar o treinamento.
Em pouco tempo entendi que a melhor maneira de me conectar a
elas era mostrar interesse por livros e meditações. Duas coisas que eu
não gostava muito, mas que eu teria que aprender a gostar.

130
Sociedade do Sacrifício

– Ah, droga! – eu me levantei subitamente – Raghav deve estar me


preocurando. Ele me disse para esperar perto do carro. Eu já volto, OK?
Tive que deixar o livro grosso com Mei-Xiu por um momento, pois
seria difícil carregá-lo comigo.
Saí da barraca delas e saí perguntando por Raghav para as pessoas
que encontrei no caminho. Em pouco tempo, fui capaz de localizá-lo.
– Então aí está você – disse Raghav – deve estar cansada e com fome.
Vou procurar algo para você comer.
– Eu posso escolher em que barraca irei dormir? – perguntei – acabo
de conhecer essas garotas super legais.
E expliquei a ele onde eu estive nos últimos minutos. Ele achou
maravilhoso que eu já estivesse socializando e me deu autorização para
ficar na mesma barraca que elas. As quatro concordaram na hora e me
receberam com alegria.
Na verdade, Rhagav não poderia permanencer muito tempo no
acampamento, porque tinha outro compromisso. Então ele iria me
encaminhar para a pessoa que me explicaria sobre o sistema de refeições.
– Mas você acabou de chegar! – observei – e mal dormiu. Já vai sair
de carro outra vez? É perigoso dirigir sozinho nesse clima.
– Não se preocupe, estou acostumado. E já fiz esse mesmo percurso
dezenas de vezes. Viajar sozinho também tem seu encanto.
Resolvi ceder. Ele devia saber o que estava fazendo, com todas as
suas siddhis e como vice-líder.
Quando Raghav foi embora e eu me vi lá sozinha no acampamento
em meio às tendas e à neve, pensei: “Não vai ser tão difícil quanto eu
imaginei”. Caio tinha me aterrorizado focando nas dificuldades que eu
enfrentaria ao estar lá, mas senti que não seria assim tão terrível.
Quando voltei à barraca das garotas, elas estavam bem animadas,
debruçadas num canto.
– Antônia, vem aqui ver uma coisa – chamou Sella.
– Nosso segredinho – disse Mei-Xiu apertando os olhos, como se
estivessem fazendo algo muito errado.
Debrucei-me para ver. Era um celular com internet. Um dos artigos
proibidos nos acampamentos.

131
Wanju Duli

– O sinal por aqui é um horror – explicou Mei-Xiu – mas demos um


jeitinho e conseguimos ter acesso à internet. O sinal costuma ser instável.
A internet cai bastante e é bem lenta.
– Os Sacrios têm autorização para usar a internet, então estamos
roubando a Wi-Fi deles – comentou Roshni, que também parecia estar
se divertindo com a travessura.
– Estávamos discutindo se já deveríamos te revelar isso, mas como
agora você é nossa companheira de barraca e estamos checando o celular
com frequência, você ia acabar descobrindo – disse Sella.
– Se alguém nos pegar com isso podemos ser expulsas, não? –
perguntei, apreensiva.
– É um risco – concordou Sella – mas eu realmente não conseguiria
esperar mais sete anos para usar a internet de novo. Eu quero saber o
que está acontecendo com os outros Sacrifícios ao redor do mundo.
– Você não vai nos delatar, certo? – perguntou Roshni.
– Não... claro que não – garanti.
Eu não era assim tão vaca. Seria sacanagem fazer isso depois de elas
me receberem tão bem.
Embora eu apreciasse a perspectiva de ter acesso à internet, confesso
que eu não estava tranquila em saber que estávamos quebrando uma
regra tão óbvia e evidente. Se descobrissem aquilo, eu seria expulsa junto
com elas.
Droga! Eu já tinha me metido numa enrascada daquelas assim que
cheguei. Eu supostamente deveria ser a estudante modelo do Brasil. Se
alguma coisa desse errado, eu ficaria numa péssima situação com Sahana
e Yago, que tinham me ajudado.
OK, agora que não tinha mais volta, era melhor eu esquecer aquilo.
Se eu continuasse preocupada nas próximas semanas, bastava requisitar
uma mudança de barraca. Simples.
– Ei, Antônia, acabaram de postar alguma coisa no site da SSC do
Brasil! – informou Sella, animada – o pessoal da internet às vezes demora
um pouco para traduzir em outros sites. Você pode fazer isso para nós?
Eu sabia. Elas iam me usar como tradutora. Eis a vantagem de ter
uma brasileira na tenda.
Dei uma olhada na postagem mais recente. Era uma mensagem do
Yago.

132
Sociedade do Sacrifício

Yago! Foi então que me lembrei que não respondi o e-mail dele. Eu o
li quando estava na lanhouse na África do Sul. Eu fui lá para enviar um
e-mail para minha família. Eu não tinha avisado a eles que tinha chegado
na Índia! Eles deviam estar mortos de preocupação. Já fazia muitos dias
que eu não os contatava.
Mas eu não podia enviar e-mail com aquele celular, ou eventualmente
alguém poderia rastrear a origem e descobrir que eu estava usando a
internet escondida.
O mais correto era falar com algum Sacrios do acampamento e pedir
para que ele contatasse minha família, dando notícias. Eu faria aquilo
mais tarde.
O aviso de Yago era o seguinte:

Aos candidatos internacionais,

A SSC do Brasil pede desculpas pelos inconvenientes que ocorreram no processo


de admissão dos aspirantes de outros países. Infelizmente, só conseguimos receber 20
novos estudantes nesse semestre, quando havíamos anunciado que receberíamos 50.
Para o próximo semestre avisamos com antecedência que haverá somente 10 vagas
disponíveis para os estudantes internacionais.
Pedimos a compreensão de todos, pois no momento estamos enfrentando alguns
problemas técnicos. Não há estrutura para receber a todos. Os 30 candidatos que não
foram chamados nesse semestre terão preferência para concorrer às 10 vagas que
iremos disponibilizar. Sendo assim, para que um novo candidato que não está entre os
30 receba aprovação, terá que mostrar um destaque marcante.
Devido ao grande número de inscritos no último processo de seleção, também
estamos aumentando os requisitos mínimos para aprovação. Agora é necessário um
desempenho de pelo menos 20% em cada uma das provas teóricas e 60% em pelo
menos duas provas. Outra mudança: os candidatos só poderão realizar os testes no
Brasil, e ocorrerão somente nas capitais dos 26 estados e em Brasília.
As provas escritas estarão completamente em português e a entrevista também
ocorrerá na mesma língua. Exigimos comprovação de nível avançado no idioma
através da realização do teste Celpe-Bras (Certificado de Proficiência em Língua
Portuguesa para Estrangeiros).

133
Wanju Duli

Ressalto também que daremos preferência a aceitar médicos com especialização em


cirurgia, anestesiologia, infectologia e emergência. Também estamos aceitando pelo
menos um engenheiro de computação.
Boa sorte a todos.

Atenciosamente,

Yago

Diretor de Programação da SSC do Brasil

Quando eu fiz a tradução, elas ficaram chocadas.


– Agora é necessário viajar até o Brasil para realizar esse teste? –
perguntou Sella, sem acreditar – acho que só isso já vai eliminar 90% dos
aspirantes. Ninguém tem dinheiro sobrando para viajar tão longe para
fazer um teste que só oferece 10 vagas!
– Não acho que essa regra vá eliminar tantos candidatos assim, já que
ouvi dizer que a maioria que se inscreve para o programa brasileiro são
nativos de países da América Latina – expliquei – e para eles também é
mais fácil aprender o português, porque o espanhol é bem parecido.
Então acho que para os latino-americanos não será tão difícil.
– Mas essas novas regras praticamente eliminam as chances para
pessoas desse lado do mundo – insistiu Mei-Xiu – o problema da
distância e do idioma é mortal para nós.
Eu também achei aquilo tudo meio exagerado. Eu tinha sido aceita na
Índia com o teste horrível que fiz no Brasil, sem precisar passar por
nenhuma competição ou provar habilidade nenhuma. Pensando com
calma, eu era realmente sortuda.
Eu não duvidava que até mesmo os testes da SSC do Brasil para
nativos tivessem aumentado o nível de dificuldade. Se continuasse assim,
muitos brasileiros iam começar a realizar suas aplicações para uma SSC
estrangeira e, após a aprovação, pediriam transferência para o Brasil no
semestre seguinte. Era o que eu pretendia fazer.
Será que não eram esses os planos de Yago? Incentivar que mais
brasileiros treinassem fora? Não, não podia ser isso, pois essa medida

134
Sociedade do Sacrifício

também dificultava o ingresso dos estrangeiros no Brasil. Estava mais


difícil para todo mundo.
Suspeitei que em pouco tempo a SSC brasileira só conteria membros
de elite. Isso significava que eu estaria fora. Eu comecei a duvidar se iria
conseguir mesmo minha transferência para o próximo semestre.
Dei uma olhada nas mensagens anteriores do site. Também havia
avisos sobre os novos procedimentos de admissão para aplicantes
nacionais. Havia ficado mais difícil mesmo. Menos vagas. Notas de corte
mais altas.
E, veja só, também havia uma mensagem sobre as possibilidades de
transferências. Era curta e grossa:

Não estaremos aceitando nenhum tipo de transferência para o próximo semestre.

Ou seja, eu tinha me ferrado.


Mas essas transferências se referiam a novatos e a Saos. Eles ainda
estavam aceitando umas poucas transferências de Sacrios, dependendo
do caso.
É claro. Depois que o cara treinou duro por oito anos ganhava alguns
privilégios. Não deixava de ser justo.
Um pensamento assustador tomou conta de mim: será que eu só
conseguiria voltar para o Brasil depois de me tornar Sacrios, dali oito
anos?
Mas... Raghav tinha me garantido que eu poderia voltar para o Brasil
em breve se eu quisesse.
No entanto, a garantia de ninguém tinha validade se Mau não
autorizasse. No fundo, a palavra final para qualquer coisa era dele. E é
claro que ele não tinha interesse nenhum em me transferir. Afinal, quem
eu era? Apenas uma brasileira aleatória que se saiu muito mal no teste.
Se eu realmente esperava obter transferência para o Brasil no
próximo semestre, eu teria que me destacar muito durante meu
treinamento na Índia. Eu daria o máximo de mim.
– Meninas, tem um novo aviso no site! – avisou Roshni,
entusiasmada.
Nós quatro observamos o celular por trás dos ombros dela.

135
Wanju Duli

“Ah, não, é um aviso de Mau” pensei, desesperançosa. Que tipo de


merda ele iria escrever dessa vez?
Eu mal podia esperar para ler. Qual seria a polêmica de hoje?
Ele começava assim:

Linda mensagem, Yago. Muito tocante.


Se você me permite, irei traduzir o seu aviso, revelando o que você realmente quis
dizer com toda essa pompa e elegância.

Às pessoas irritantes que não param de lotar a caixa de entrada do meu e-mail
com merda

A SSC do Brasil pede desculpas por Mau ter cancelado as vagas, embora isso
não tenha feito diferença nenhuma para nós. Na verdade, até nos ajudou a nos
livrarmos de candidatos fracos que desistem no primeiro problema que aparece.
Pensando bem, não pedimos desculpas nenhuma e sim agradecemos ao Mau pela
ajuda que nos deu. Obrigado, Mau. Você é um grande líder.
Felizmente só conseguimos receber 20 estudantes nesse semestre, porque com
certeza não caberiam 50 pessoas nesse cu. Algum Sacrios idiota que só vive coçando o
saco em São Paulo e nunca visita nossos acampamentos inventou que caberiam 30
estudantes a mais. Eu me pergunto porque Mau ainda não enfiou a cabeça desse
cretino num vaso sanitário.
Para o próximo semestre avisamos que somente receberemos mais 10 idiotas.
Preferíamos cancelar o processo de admissão por um ano até que alguns Sacrios
morram e liberem mais vagas, mas precisamos fingir que estamos interessados em
receber mais gente, então estabelecemos que somente chamaremos 10, embora Mau
tenha sugerido 5 pessoas. Mas como todos sabem que Mau irá cancelar essas 10
vagas na última hora, na prática não faz diferença nenhuma serem 5 ou 10.
Pedimos a compreensão de todos, pois no momento não há nem espaço para se
cagar com privacidade naquele acampamento com cheiro de bosta e mijo. Os 30
candidatos que não foram chamados nesse semestre serão completamente ignorados.
Eu sequer lembro quem são. E os outros candidatos que não estejam entre os 30 não
terão nem mesmo seus desempenhos avaliados, porque não temos o menor interesse de
perder tempo com isso. Temos coisa melhor para fazer.

136
Sociedade do Sacrifício

Devido ao grande número de infelizes que estão ansiosos para desfrutar de nosso
dia a dia fantástico cagando atrás de pedras e comendo lagartos no espeto no meio do
nada, agora vocês deverão usar dois miolos em vez de um para resolver nossas provas.
Os candidatos só poderão realizar os testes no Brasil porque esse critério
diminuirá consideravelmente o número de aplicantes e nos dará menos trabalho. Dessa
forma, só farão o teste aqueles que estão realmente determinados a se tornar membros.
Mau ainda acha que é muita mamata oferecer o teste em todos os estados e está
pensando em aplicá-lo somente em Pernambuco para que ele possa desfrutar da praia
de Porto de Galinhas enquanto realiza as entrevistas.
As provas escritas e a entrevista serão em português porque Mau não sabe porra
nenhuma de inglês e se irrita enormemente toda vez que quer analisar o desempenho
de algum candidato e precisa chamar um tradutor. Aproveitamos a oportunidade para
informar que estamos em busca de novos tradutores, porque Mau se irritou com os que
tínhamos e despediu todos.
Exigimos comprovação de nível avançado em português porque Mau não tem a
menor paciência em tentar se comunicar com os desconhecedores de nosso idioma nos
acampamentos. Ele está farto de palhaços fazendo piadinhas com as traduções e por
isso a partir de agora só será permitida comunicação em língua portuguesa nos
acampamentos e se alguém for flagrado falando qualquer outro idioma será chicoteado
na primeira ocorrência e expulso na segunda.
Ressalto também que daremos preferência a aceitar médicos com especializações
em: cirurgia (porque sempre há algum animal que se machuca durante os treinos e fica
à beira da morte. Também precisamos de cirurgiões para costurar os Sacrios que
perdem pedaços do corpo nas lutas contra os Deuses), anestesiologia (porque gostamos
de sentir menos dor enquanto costuram nossa pele. O nosso estoicismo nos permite esse
pequeno capricho), infectologia (porque muitos de nós já morreram de sepse ou tiveram
membros amputados só porque não sabiam tratar uma porcariazinha) e emergência
(porque precisamos de médicos que estejam acostumados a pensar rápido e agir rápido
em qualquer situação para os primeiros socorros).
Também estamos aceitando pelo menos um engenheiro de computação porque eu
(Yago) sou um incompetente que se acha um gênio em software, mas quando o negócio
é hardware me sinto uma mula. Manu quebrou meu computador acidentalmente e o
governo não quer me dar outro tão bom quanto o meu. Estou chorando agora porque
meu computador era como minha esposa. Na verdade eu preferia fazer sexo com a
Manu, mas tenho baixa autoestima e não tenho coragem de convidá-la para sair. Eu

137
Wanju Duli

queria ser como o Mau, que é muito confiante e inteligente, por isso a Vic sempre
quer sair com ele.
Desejaríamos boa sorte a todos, mas isso não é necessário, porque as vagas serão
canceladas cedo ou tarde, então sua sorte ou azar não influenciará em nada.

Sintam-se gratos pela minha atenção, vermes, porque sou uma pessoa ocupada!

Y@go

Cacique de Programação da SSC do Brasil, a SSC mais pop do mundo

Eu teria trabalho pra caralho para traduzir aquela redação enorme do


Mau. Felizmente, colocaram uma tradução logo em seguida no SMS (O
“Shit Mau Says”, tradução do famoso site brasileiro “Merdas que o Mau
diz”, ou MMD).
Quando as quatro leram a tradução, ficaram sem reação.
– Que cara mais ignorante – comentou Iaboni, sentindo-se ofendida
– e arrogante. Desculpe, Antônia, mas eu jamais iria para a SSC do
Brasil. Não para ser tratada feito lixo. Eu tenho meu orgulho.
– Sim, você tem toda a razão – eu disse – Mau foi muito
desrespeitoso com os Sacrifícios dos outros países com essa piadinha de
mau gosto.
Eu provavelmente só achei um pouquinho engraçado porque eu era
brasileira e aquilo não me afetava muito. Mas se eu fosse estrangeira,
acho que eu não ia curtir.
Não que Mau tratasse bem os Sacrifícios brasileiros tampouco. O
desprezo dele era universal.
– Iaboni, a esse ponto você já devia ter se acostumado com as coisas
que o Mau escreve – observou Roshni – eu nem me ofendo mais,
porque sei que ele tem sérios problemas mentais e de personalidade. Ele
devia ter convocado um médico psiquiatra em vez de um cirurgião. No
caso dele, acho que é mais urgente.
– Eu achei muito engraçado o que ele escreveu – garantiu Mei-Xiu –
não estou nem um pouco ofendida. Eu rio com qualquer besteira que ele
diz.

138
Sociedade do Sacrifício

– Eu também – disse Sella – eu realmente gostaria de ir para a SSC do


Brasil um dia. Quero dizer, quero ficar mais tempo aqui na Índia, porque
prefiro o treinamento com as meditações. E para ficar definitivo, prefiro
meu país mesmo. A Indonésia tem bem meu estilo de SSC. Mas eu não
me importaria nem um pouco de treinar um semestre no Brasil. Acho
que seria uma experiência incrível.
– Mas agora Mau cancelou as transferências – lembrei – estou meio
preocupada com isso. Não sei se vou conseguir voltar pro Brasil no
próximo semestre.
– Você é brasileira, então tem prioridade – disse Sella – relaxa. Você
vai conseguir.
Se ela dizia isso, era porque ela não conhecia Mau o suficiente. Eu
tinha passado os últimos seis anos lendo as porcarias que ele escrevia na
internet, então eu sentia como se ele fosse um parente distante meu ou
algo assim. Algumas vezes eu era até capaz de adivinhar o que ele
escreveria a seguir. Era assustador. Se bem que Mau era tão previsível
que não era tão difícil assim encontrar o padrão de suas escritas.
É claro que Yago não demorou muito para escrever sua réplica no
site.

Mau,

Tem certeza de que está bem? Precisa de alguma coisa? De um calmante, talvez?
Você não se cansa de ficar irritado o tempo todo? Ah, espere, você só está fingindo
que está irritado. Deve estar rindo na frente do computador, tomando sua Sukita
enquanto aperta F5, aguardando ansiosamente minha resposta.
Em primeiro lugar, o que você fez foi muito rude e infantil. Agora eu precisarei
escrever dezenas de e-mails pedindo desculpas para os líderes dos outros países.
Sinceramente, as suas atitudes completamente descuidadas me fazem perder mais
tempo do que se eu estivesse avaliando as aplicações de candidatos sérios. Eles podem
nos ajudar muito no futuro, Mau. Não os despreze. Você pode ser muito poderoso,
mas sozinho não vai vencer os Deuses. Você precisa das pessoas. Não somente dos
brasileiros. Precisamos de apoio do mundo inteiro se queremos vencer.
Então, pare de brincar com o vento. Agora ele não te machuca, mas você nunca
sabe quando ele se transformará em furacão.

139
Wanju Duli

Alianças não são somente úteis num sentido prático. Não se esqueça porque
estamos lutando. Pela nossa sobrevivência. E queremos viver para quê? Para
compartilhar momentos e não para se isolar numa ilha. O que torna a vida
significativa são os outros. Talvez um dia você se dê conta disso. Eu ainda estou
aguardando pacientemente por esse dia, mas nem todos têm paciência. Pode ser que
suas atitudes te façam perder pessoas importantes e você nunca mais consiga recuperá-
las.
Há algumas coisas que fazemos na vida que não têm volta. Pense sobre isso.
Existem coisas mais importantes do que ser o famoso palhaço da internet.
E agora que já fiz o meu discurso politicamente correto, vamos ao que realmente
interessa.
Eu, incompetente? Mau, por favor. Você não sabe diferenciar uma impressora de
um scanner. Uma vez vi você colocando folhas brancas num scanner tentando
imprimir fotos da Paris Hilton. E isso aconteceu logo depois de você xingar um
membro por estar gastando tinta colorida da impressora desnecessariamente.
Sobre o que você disse a respeito da Manu e da Vic, sem comentários. Cresça,
Mau. Daqui a pouco elas vão ler o que você escreveu e vão ficar putas, com razão.
Por que é que você não... arrrrgggg!!! Esquece.

Porra

Yago

Traduzi a mensagem para as meninas. Aquilo estava ficando


cansativo.
Mau respondeu logo depois:

Zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz
Já terminou o sermão, pai?
Elas vão ficar putas comigo? Não me diga! Você se esqueceu de mencionar que a
Manu quebrou seu computador de propósito porque ficou puta com você. Duvido que
eu consiga deixá-la mais puta do que você a deixou.
Quer que eu exponha na internet o que você fez? Vou contar para todo mundo.

E a resposta de Yago:

140
Sociedade do Sacrifício

Eu não fiz nada de mais. Só estava divulgando o número de vagas no site.


Enquanto eu fazia isso, Manu apareceu dizendo que não havia estrutura no
acampamento para receber tanta gente. Eu respondi: “Só estou seguindo ordens e
informando a quantidade de vagas disponíveis que me passaram”. Ela retrucou,
dizendo: “Você está divulgando as vagas porque não é problema seu. Eu sou a
responsável por treinar essas centenas de pessoas. Tenho que lidar com problemas todo
dia por causa da superlotação. Isso também prejudica o desenvolvimento individual
dos membros, que não recebem toda a atenção que deveriam para progredir”.
Depois disso, esclareci a ela o quão importante era termos um grande número de
membros e que convidar muitos estrangeiros contribuiria para nossas relações
internacionalmente. Ela disse que isso era conversa para boi dormir e que estava farta
dos meus belos discursos. Que eu era sempre visto como o mocinho defensor dos
candidatos, que sempre dava um jeito de incluir mais um, enquanto ela e você, Mau,
eram vistos como o demônio. Sim, Mau, acredite: ela te defendeu. Surpreendentemente
há pessoas que fazem isso.
Quando eu continuei a defender meu ponto com outros bons argumentos e insisti
que iria manter as vagas, ela quebrou meu computador. Vejo o ato dela como uma
mostra clara de intolerância. Ela tinha uma opinião e visão do caso que eu entendo e
respeito, mas não estava preparada para ouvir as minhas.
Mau, que tal vir até onde eu estou para conversarmos sobre isso pessoalmente em
vez de expor nossos problemas no site oficial? Isso é ridículo. Estamos no mesmo
prédio e você não coloca um pé para fora da sala. Depois fica posando de sociável na
internet, tirando fotos em shows, como se você realmente tivesse uma intensa vida
social. Lamentável.
Se os seus admiradores te conhecessem pessoalmente iriam descobrir que você é
uma pessoa completamente diferente na vida real. Não sei porque essa sua necessidade
de ficar posando de idiota.
Ou melhor, eu conheço seus motivos, mas diferente de certas pessoas que ficam
expondo a vida dos outros na internet, eu não faço isso.
Então deixa de ser fresco, desce aqui e vamos conversar sobre a questão das vagas
antes que você realize seu próximo cancelamento sem informar ninguém.

Mau escreveu a seguir:

141
Wanju Duli

Vejam só que apropriado! Eu nem precisaria ter me dado o trabalho de tecer


discursos sobre a necessidade de cancelar vagas. Manu já disse tudo por mim. Ela
entende o que eu penso.
É curioso que quando é para repassar uma informação do seu interesse, a sua
desculpa é que “você está seguindo ordens”, mas quando é para anunciar o
cancelamento das vagas você se opõe.
Você está seguindo ordens de quem? Estou curiosíssimo para saber disso. Até
onde eu sei, você segue ordens minhas. Não há ninguém superior a mim nessa porra
de hierarquia.
E, não, eu não vou descer. Você é que vai subir. É isso que significa hierarquia.
Está na hora de você se lembrar quem está em cima antes de chamar seu líder de
idiota.
Eu dou liberdade para vocês e é isso que acontece. Eu deveria me punir pela
minha gentileza.

Aquilo estava indo de mau a pior. Yago respondeu:

Eu não te chamei de idiota. Disse que você gostava de posar de idiota. É


diferente.
Eu raramente me porto de forma ofensiva em relação a você. Mas você sempre
xinga todo mundo! Com os piores xingamentos da sua lista.
Sei que você é o chefe. Respeito isso. Não há necessidade de você ficar dizendo:
“Eu sou o chefe, eu sou o chefe!” o tempo todo. Isso é chato.
E você não está me pagando salário nem nada. Estou aqui porque quero. E,
acredite, eu quero te ajudar. Mas para isso você precisa me ajudar também.
Não vejo nenhum problema de subir até a sua sala. Você não precisa ficar
criando caso disso.

Provavelmente Yago foi até a sala de Mau, porque Mau não


respondeu mais nos minutos seguintes.
Mas nem tivemos tempo para ficarmos desapontadas com o fim da
conversa, porque Manu postou no site um pouco depois:

Mau e Yago,

142
Sociedade do Sacrifício

Eu nem sei qual de vocês dois eu xingo primeiro. Em primeiro lugar, nem sei
porque estou escrevendo aqui. Essa conversa de vocês não era para ter acontecido. E,
se tivesse acontecido, eu não precisava ter lido. Se vocês escreveram aqui, estou supondo
que o fizeram porque queriam que eu desse uma resposta por escrito e não
pessoalmente.
Eu deveria começar com Mau porque é geralmente aí que se inicia a fonte dos
problemas. Mas como foi Yago que enviou a primeira mensagem do dia, vamos partir
desse ponto.
Yago estava apenas enviando a mensagem idiota de praxe, anunciando a abertura
de vagas de uma forma educada, mesmo sabendo a oposição minha e de Mau em
relação a isso.
Mau teria feito bem se tivesse escrito uma mensagem informando dos problemas de
superlotação que estamos enfrentando e que por esse motivo a abertura de vagas não
estava completamente confirmada. Como veem, teria sido possível informar isso em
apenas uma linha.
Mas Mau sempre escolhe o caminho mais árduo, longo, dramático e ofensivo.
Seus comentários a respeito de mim e de Yago foram completamente
despropositados e infelizes. Espero que você tenha a decência de se desculpar
pessoalmente comigo posteriormente. Mas como se trata de você, eu não nutro
expectativas de que um pedido de desculpas vá realmente acontecer.
Você sempre usa a carta de “Eu sou o líder” quando sabe que não tem razão e
não tem mais nenhuma boa resposta. Não estamos falando de hierarquia aqui e sim
de seres humanos que merecem ser tratados com respeito e dignidade.
Eu tenho orgulho de dizer que realizo minha função na SSC com honra e
eficiência. Dou o melhor de mim a cada um dos dias. Espero que você, Mau, possa se
dedicar tanto à sua função de líder como eu me dedico à minha de comandar os
exércitos dos Sacrifícios. Eu sei que você já faz muito e muita gente não entende isso,
mas eu tenho certeza de que você ainda consegue melhorar se realmente quiser.
Agora, quanto a você, Yago. A sua descrição da nossa conversa não foi
completamente fiel. Eu diria que foi extremamente tendenciosa.
Eu sei que você enfrenta muita pressão diariamente, principalmente tendo Mau
como chefe (eu sei, não é fácil) e tendo que lidar com uma quantidade imensa de
tarefas sozinho. Por isso, eu apoio sua decisão de chamar um engenheiro para te
ajudar. Você geralmente diz que não precisamos de mais pessoal de TI e gosta de
cuidar de tudo sozinho. Eu sugiro que você repense essa posição, porque parte do seu
estresse atual pode estar vindo disso.

143
Wanju Duli

Quanto à solução para o problema do estresse de Mau, eu desisto de dar sugestões.


Eu mesma tenho que lidar com uma imensa carga de estresse diariamente por motivos
parecidos e ainda não descobri uma boa maneira de resolver isso.
Então, rapazes, depois me atualizem sobre o resultado da conversinha de vocês
sobre as vagas, pois eu também gostaria de dar a minha opinião antes de chegarem
num veredicto.

Novamente, demorou um pouco para haver resposta, pois os dois


ainda deviam estar conversando. A próxima mensagem foi de Vic:

Mau, Yago e Manu,

Que circo, hã? Nossa SSC já virou uma piada há muito tempo por causa de
Mau.
Mau, por que você precisa mencionar tanto meu nome? E sempre nos piores
contextos possíveis.
Sobre a questão das vagas, eu tenho uma proposta. Manu, que tal dividir o
acampamento em dois, como fazem na SSC de outros países? Você treina uma
metade e arranja outra pessoa para treinar o resto do pessoal. Mas quem seria um
candidato excelente o suficiente para estar à altura de tamanha tarefa?
Digamos, Mau. Parece que Mau anda muito desocupado ultimamente, fazendo
contas no Formspring e em sites semelhantes. Vamos dar a ele um exército para
treinar! Assim matamos dois coelhos com uma só cajadada: resolvemos o problema
das vagas e tiramos Mau da frente do computador para que ele fique um bom tempo
sem postar besteiras.
Queríamos diminuir as vagas porque não há estrutura suficiente em nosso
acampamento atual e também porque Manu não está dando conta de treinar tanta
gente ao mesmo tempo. Organizar outro acampamento leva certo tempo, mas assim
haverá mais espaço e melhores condições de treino a longo prazo. Acho que acabo de
descobrir uma boa solução para o problema do seu estresse, Manu.
Estou ansiosa para saber o que acham da minha ideia.

A resposta de Manu veio depressa:

Eu já tinha pensado nessa possibilidade. Porém, assim como Yago, gosto de fazer
tudo sozinha. A ideia de deixar metade dos novatos e Saos com outra pessoa me

144
Sociedade do Sacrifício

deixa com medo que o exército perca sua unificação. Temo que seja difícil harmonizar
as duas partes depois e na hora da guerra haja alguma confusão.
Mas, pensando bem, podemos dividir o exército em duas categorias. Por exemplo:
a metade mais avançada e a metade que está iniciando. Se as categorias forem
diferentes é possível que eles sejam treinados de formas diferentes. Assim todos eles
passariam pela tutela de nós dois.
Acho melhor deixar Mau responsável pela metade mais avançada, principalmente
porque eu duvido que ele teria paciência com os iniciantes. Às vezes nem mesmo eu
tenho. E como Mau possui uma legião de fãs, essa pode ser uma boa motivação para
os novatos se esforçarem e concluírem seus próximos anos de treinamento: serem
treinados por Mau um dia.
Mau só costuma aparecer no acampamento para dar o discurso de boas vindas,
para dar uma olhada geral e para reclamar do que está errado sem apresentar solução
nenhuma. Como líder, acho que ele precisa ser mais ativo nos acampamentos.
Eu sei que Mau já está ocupado coordenando os Sacrios, mas como Sacrios já são
veteranos e receberam o treinamento de oito anos, não acho que isso ocupe tanto o
tempo dele. Qualquer coisa, se Mau ficar ocupado demais, quem sabe você também
possa dar uma ajuda. Que tal, Vic?

Vic respondeu da seguinte forma:

Sim, posso ajudar. Conversarei com o Mau posteriormente sobre quais tarefas ele
prefere fazer, até chegarmos num acordo.
Eu diria que você sempre possuiu uma legião de fãs maior do que o Mau, Manu.
Ele só se tornou mais famoso depois que fez aquela conta no Youtube. Fatídico dia.
O que será que aqueles dois estão conversando que ainda não leram nossas
mensagens? Chegamos numa solução em pouquíssimo tempo. Aposto que eles
desviaram o assunto e iniciaram outra polêmica qualquer.

Alguns minutos depois, Mau respondeu:

Vic e Manu, é um prazer tê-las por aqui.


Manu, você disse que ia xingar a mim e ao Yago, mas você me xingou muito
mais. Achei injusta a sua divisão de xingamentos, então sugiro que você os partilhe
melhor da próxima vez.

145
Wanju Duli

Vic, que história é essa de eu estar desocupado? Eu sempre estou ocupadíssimo


com funções que uma vice-líder não entenderia. Porém, sempre tenho um tempinho
livre no fim da tarde, para o dia em que você aceitar ir ao cinema comigo.
Eu me recuso a treinar aquele bando de escrotos. Por que eu? Por que não
colocam a Vic para treinar aquelas bichonas? Por que querem me colocar para
realizar tarefas subalternas como essa? Manu já tem experiência em treinar essas
bichas. Vic provavelmente também vai gostar de fazer isso. Ela gosta de ter novas
experiências, embora se recuse a tê-las comigo.
E, não, eu e Yago não chegamos a nenhuma solução para o problema das vagas.
Sei lá, Vic, sua solução é meio fodida. Com todo o respeito.

E a resposta de Vic:

Por favor, Mau, não esqueça de que está postando no site oficial da SSC.
Algumas vezes parece que você se esquece.
Bem... digamos que você não tem escolha. Eu também não estou a fim de treinar
aquelas bichas. E, antes você do que eu, certo? Como um líder cavalheiro, você irá
poupar a sua vice. Você já me faz viajar até os quintos dos infernos para cumprir as
funções administrativas, então dessa vez você vai fazer esse favorzinho pra mim,
hmmmm? :)

Mau respondeu:

Você sabe que eu não resisto quando você pede assim.


Mas dessa vez serei inflexível. E vou aproveitar essa situação para barganhar.
Eu somente treinarei suas bichas se você for ao cinema comigo. E precisa ser hoje.
Mais especificamente, agora.
Esses são meus termos e não estou disposto a negociar.

Vic escreveu:

Grrrrrrrraawwwwwwwsjdjdhfdhfd!!!!! (esse é um grito de ódio e não uma risada)


Que merda, Mau! Por que não para com essas idiotices? Nós nem ao menos
temos tempo para essas porcarias.
Eu nem sei mais se você está fazendo esses pedidos ironicamente ou se tem um
filme que você realmente quer ver. Se tiver, vá sozinho! Chame Yago. Ou, se está a

146
Sociedade do Sacrifício

fim de se exibir com uma garota, peça para qualquer Saos ir com você. Aposto que
várias delas desmaiariam de alegria por essa oportunidade.
Não sou uma de suas fãs, Mau. Talvez seja difícil para você acreditar, mas eu
quero fazer um trabalho sério na SSC. E ter um envolvimento amoroso com o líder
não é a ideia que faço de um trabalho sério.

Mau ainda aguardou uns quinze minutos para escrever alguma coisa.
Devia estar pensando no que dizer. Ou demorou pelo tamanho de seu
texto.
Por fim, ele postou o seguinte:

Vic, estou desapontado. Falando assim, parece que você não me conhece.
É claro que estou te convidando para ir ao cinema ironicamente. Eu nem mesmo
gosto de ir ao cinema. Você sabe que metade do que coloco na internet são um monte
de mentiras, para tirar com a cara de todo mundo que deseja saber mais a meu
respeito, como se eu fosse uma estrela de cinema.
Eu levo muito a sério a SSC. Provavelmente mais do que qualquer um de vocês.
E não poderia ser diferente, por causa do meu passado. Eu não pedi para ter esse
passado. Foi algo fora do meu controle. Mas você pode ter certeza de que qualquer
boato que diga que estou inclinado a ir para o outro lado é mentiroso. Minha vida
sempre teve somente um lado: o que clama minha mente, independente da história do
meu corpo. E por isso sigo o Caminho da Mente e jamais me desviarei dele.
Eu desprezo todos esses ditos “meus admiradores” que acompanham as merdas
que escrevo na internet. Cada vez que os vejo atrás de mim, mais eu os odeio. Porque
eu somente confirmo o que eu sempre soube: essas pessoas merecem morrer pelas mãos
dos Deuses.
Então por que eu ainda luto? Que seja pelo menos por mim e pelos meus
companheiros Sacrios. Os Saos podem ser fracos agora, mas um dia se tornarão fortes.
E também merecerão a salvação, exatamente porque terão forças para salvar a si
mesmos.
Eu não faço o que faço para “ajudar os outros”. Eu não “ajudo”. Não faço
caridade. Tudo o que faço é mandar que esses escrotos parem de chorar por pena de si
mesmos e que, em vez de lamentar a vinda de um meteoro e de um furacão para os
trucidar, que eles lutem para adquirir as mãos de gigantes e freem o meteoro no céu
antes que ele os esmague.

147
Wanju Duli

“É impossível adquirir mãos de gigantes” eles dizem. E a isso eu respondo: “Mas


é possível adquirir a mente de gigantes. E uma vez que se tem a mente, as mãos já
não fazem diferença. Você nem mesmo precisa mais de um corpo. A mente finalmente
compreende o que deve ser feito”.
Eu não quero ser rude, Vic, mas acho que você entendeu errado. Não tenho
nenhuma intenção de ter um envolvimento amoroso com você. Eu só flerto contigo na
internet para que meus fãs ridículos me mostrem cada vez mais como são ridículos e eu
os deteste com cada vez mais força.
Todos que nos conhecem na vida real, que são os Saos e Sacrios, sabem que
sempre mantivemos uma distância respeitosa. Nem eu e nem você temos o menor
interesse um no outro. É uma relação estritamente profissional.
Fico muito satisfeito que você tenha me deixado claro que leva a sociedade a sério,
Vic. Só continuo desapontado que você tenha pensado seriamente que eu tinha
segundas intenções, quando você sabe que minha mente sempre esteve voltada para
uma coisa única: a vitória absoluta contra os Deuses.

Uau, que drama.


– Mau não precisava ter escrito isso – comentou Mei-Xiu – foi meio
idiota. Meio desesperador. Algo do tipo: “ela me rejeitou, então eu vou
fingir que não estava interessado nela desde o começo, para manter a
compostura”.
– Não acho que tenha sido isso – disse Sella – acho que Mau nunca
gostou de Vic. Ele é um grande mentiroso.
– Acho que ele mente tão bem que nem ele mesmo sabe o que é
verdade ou mentira dentre as coisas que diz – opinou Mei-Xiu.
Eu não sabia o que pensar. Aquela mensagem me deixou confusa.
Mau era muito complicado.

Vic não demorou para responder:

Ah, esses discursos de novo... me poupe.


“Eu sou o líder, tenho um passado sombrio, na verdade sou sério, não sou um
palhaço”, blá, blá, blá. Eu já me cansei de ouvir isso.
Você realmente precisa dar um jeito nessas suas questões existenciais. É
deprimente.

148
Sociedade do Sacrifício

Você apenas falhou em perceber que eu recusei as suas supostas “investidas


amorosas” ironicamente. É tão difícil entender que só estamos montando um teatro
aqui no site para divertir os imbecis que nos leem? Muitas coisas que escrevemos aqui
não têm validade nenhuma.
Enfim, Mau, eu tenho mais o que fazer além de ficar discutindo idiotices com
você. Eu treinarei os Saos, porque pelo menos um de nós precisa ser responsável. Não
precisava ter feito todo esse drama só para jogar essa responsabilidade para mim.

Mau escreveu:

Vic, você está muito desagradável hoje. Parece uma velha rabugenta.
Onde está o seu senso de humor? O tom soturno da minha última mensagem
também foi feito ironicamente.
Estamos usando tantas máscaras, uma por cima da outra, que eu não sei mais
onde foi parar meu rosto. Provavelmente no chão, após ter sido PISOTEADO por
uma certa galinha.

OK, agora Mau tinha ido longe demais. E agora? O que ia acontecer?
Vic escreveu sua resposta na velocidade de um relâmpago:

Vai te foder.
Seu escroto mal educado. Vai tomar no cu!
Se eu sou uma galinha, você é um corno, cretino, chupa rola.
Seu puto. Vai lá, pode me expulsar se quiser, seu merdinha. Um líder que
chama a vice de galinha não merece respeito.
Não deviam ter deixado uma criança ser líder. Você é mimado e arrogante, seu
bosta!
Eu sou muito mais velha que você. Só por isso você deveria me respeitar. Tenho
mais experiência de vida. Você ainda está cagando nas fraldas.
Não me importo de sair da SSC. Se é para ter um líder boçal como você, prefiro
ser esmagada por um meteoro.
Pensando bem, se você não me expulsar, eu mesma sairei. Isso mesmo! Acabo de
me retirar da SSC. Nem vou esperar ser expulsa.
Até nunca mais, seu estúpido. Viva seus 500 anos de vida enquanto eu morro, já
que isso não faz a menor diferença para você.

149
Wanju Duli

Continue fingindo ser imortal. E mesmo se você fosse, ser imortal sozinho não
faria a menor diferença.
Porco!

– Puta que pariu! – deixei escapar.


– Ela ficou puta – comentou Sella, divertindo-se.
– Caramba...! – disse Roshni.
– Parece uma novela – disse Mei-Xiu – mas eu não acho que essa vá
ter um final feliz.
– A não ser que tenha sido tudo armação – opinou Iaboni – pode ser
que os dois estejam rindo agora.
– Não sei quanto a vocês, mas isso me pareceu genuíno – disse Mei-
Xiu – dava para sentir a fúria de Vic rasgando a tela. Eu não queria ser o
Mau nesse momento.
– Pois eu não queria ser a Vic – disse Sella – e se o Mau ficar muito
puto com ela? Ele pode fazer qualquer coisa. Ele tem poder. Vocês
ouviram as lendas.
Surpreendentemente, Mau não postou mais absolutamente nada
depois disso. Depois que passou certo tempo, concluí que ele não iria
escrever mais. Provavelmente ficou chocado. Acho que ele não esperava
que a escolha do termo “galinha” fosse causar toda essa explosão.
Havia outra coisa me incomodando na troca de mensagens. Mau
havia mencionado sobre um boato de que ele poderia passar para “o
outro lado”. O que ele queria dizer com isso? Será que em algum
momento ele havia cogitado ingressar na SSO?
Assim como minha irmã Irene. Mas aquilo não fazia o menor
sentido. Por que esse boato sequer existia?
Finalmente a troca de mensagens havia acabado.
Eu estava exausta. Havíamos passado as últimas horas
acompanhando escondidas a feroz troca de mensagens. Havíamos
perdido todas as atividades do acampamento. Eu ainda tinha autorização
de não participar delas naquele dia, porque recém havia chegado, então o
dia foi cedido para que eu pudesse organizar as minhas coisas.
Mas acabei não tendo tempo para organizar nada. Eu ainda estava
exausta da viagem e havia gastado meu momento de descanso naquela
tensão, acompanhando as postagens do site.

150
Sociedade do Sacrifício

Resolvi levantar. Eu precisava de um banho, urgentemente.


Eu soube que ainda estava faltando água, porque a tubulação
continuava congelada. Por isso, tive que aquecer um pouco d’água que
restou e tomar banho numa bacia, num recinto reservado somente para
isso.
Aquele banho foi extremamente desconfortável. Apesar de a água
estar quente, estava nevando lá fora. Tomei aquele banho tremendo. Eu
não podia acreditar que aquilo se repetiria todos os dias. Não achei que
meu conforto fosse aumentar tanto assim se a água retornasse. Aliás, se a
água demorasse mesmo para voltar não haveria mais banhos. Seria ainda
pior.
Com o banho terminado, era hora de procurar comida. Eu não estava
somente morta de fome. Meu estômago já estava começando a doer.
Para minha surpresa, não havia ninguém disponível para preparar
comida para mim. Eu aprendi que lá eu não teria nenhuma babá.
Pelo menos um dos Saos conseguiu para mim uns restos de carne.
Mas eu teria que tirar a pele do animal, que eu nem sabia qual era. A Saos
me ajudou a fazer isso, mas parecia com pressa para fazer outra coisa.
Ela não foi muito simpática.
Levei muito tempo para preparar aquela comida e nem o fiz tão bem
assim. E quando terminei de comer continuei com fome, pois não era o
bastante. Mas não havia mais nada, pois a comida estava sendo
racionada.
“Eu vim para cá para passar fome e frio” pensei, desesperada.
E Raghav não estava lá para me mimar. Naquele lugar, eu era apenas
uma novata qualquer, que ficava somente com os restos. Provavelmente
a comida de melhor qualidade era somente para os Sacrios.
Aquilo me irritou um pouco.
Fui procurar um Sacrios para avisar que eu precisava contatar a
minha família e deixá-los saber que eu havia chegado bem na Índia.
Ele anotou num caderno telefone, e-mail e endereço que forneci
como meio de contato. O Sacrios apenas me confirmou que iria contatá-
los em breve e isso foi tudo.
Ele não foi exatamente rude. Mas também não sorriu e não parecia
muito interessado na minha situação. Por algum motivo, desconfiei que

151
Wanju Duli

depois ele esqueceria de avisar minha família. Isso me deixou com uma
sensação ruim.
Desde que li a última mensagem de Vic no site e saí da barraca para
cuidar dos meus afazeres, estava dando tudo errado: o banho, a comida,
o telefonema. Nem mesmo uma coisa tinha saído como eu queria!
Para completar, me colocaram para fazer atividades domésticas. Me
deram uma pá e me mandaram tirar a neve ao redor dos carros do
acampamento. Aquela era uma atividade braçal intensa, que me deixou
morta de cansaço. Depois disso, fui escalada para tentar resolver o
problema dos canos congelados, junto com outros dois novatos. E
mesmo depois de muito tempo procurando, não encontramos nada.
Achei tudo aquilo uma merda. Eu estava com muito, muito frio.
Exausta. Com ainda mais fome. Preocupada com minha família. E
profundamente deprimida após a conversa do site.
Quando finalmente voltei para a barraca, pelo menos fui
recepcionada com alegria pelas minhas novas amigas. Elas me deram um
pedaço de uma comida que tinham escondido para emergências. Mesmo
sendo pouco, eu me senti profundamente agradecida.
Aqueles pequenos gestos faziam toda a diferença naquele lugar. No
começo eu estava julgando aquelas meninas por elas esconderem um
celular com internet. Mas agora eu entendia que elas deviam ficar
entediadas após estar há tanto tempo no acampamento. A internet era
um dos únicos meios de entretenimento que tinham.
E embora fosse proibido esconder comida nas barracas, aquilo me
ajudou muito. Então, quis acreditar que tudo daria certo no final.
“Caio... você estava certo. A vida aqui é difícil. Mesmo com todos os
seus avisos, hoje eu descobri que as dificuldades são ainda maiores do
que eu imaginava” pensei.
E olha que eu ainda estava no primeiro dia. E meu treinamento
formal sequer tinha começado.
Uma coisa era ler sobre passar fome, realizar atividades corporais
pesadas ou ficar doente. Outra bem diferente era passar por todas
aquelas coisas.
E eu ainda não sabia o que era passar fome de verdade. Já estava
morta de cansada apenas por remover neve com uma pá. E se eu pegasse

152
Sociedade do Sacrifício

alguma doença naquele lugar abandonado, com praticamente nenhum


atendimento médico... eu ia me foder.
Uma montanha de sentimentos invadiu meu ser. Eu me sentia
infinitamente triste, mesmo ali com minhas novas amigas. Tão fraca.
Eu me sentia sozinha. Estava com saudades de casa. Entendi porque
Carla voltou para casa: viver assim era muito pesado. Os sentimentos
ficavam uma bagunça. As provações físicas se misturavam com as
emoções. E meu cérebro começava a associar a fome e o desconforto
com o lugar onde eu estava, como se gritasse: “Este lugar = dor. Não
quero dor. Saia daqui o quanto antes. É só sofrimento”.
Será que era tão duro no Brasil também? Pelos rumores,
provavelmente era bem pior.
– Calma, Antônia – Iaboni sorriu para mim, ao notar minha
expressão abatida – tudo vai ficar bem. Já passamos por isso. O começo
é o pior. Depois passa. Você vai ver.
Essas palavras me confortaram.
Enquanto Roshni lia um livro, Sella e Mei-Xiu ainda estavam
mexendo no celular. Algumas vezes aquela internet era mesmo uma
distração desgraçada que nos fazia perder tempo precioso do
treinamento.
Se era para ir até o acampamento só para usar a internet, eu poderia
fazer isso em casa com muito mais conforto, cama, comida e banho.
Agora eu entendia como a proibição de usar aparelhos eletrônicos era
importante.
Li um pouquinho do livro de hindi antes de dormir. Porque aquele
livro me lembrava do tempo mágico que estive com Raghav: quando
ainda havia o mistério e a esperança de viver uma aventura incrível.
Antes que a dura realidade desabasse na minha cabeça.
Acho que dormi assim que encostei a cabeça no travesseirinho
murcho do saco de dormir.
Mas não tive muitas horas de sono. As meninas me acordaram cedo.
Precisávamos ir para a meditação matinal às cinco da manhã. E somente
depois disso poderíamos ter nosso café da manhã, que seriam restos de
rações.
Eu provavelmente dormi durante a hora inteira em que meditamos. E
aquele café da manhã nem serviu para aperitivo.

153
Wanju Duli

Depois do café da manhã, me mandaram cortar vegetais. Mei-Xiu


estava cortando ao meu lado, em silêncio.
Foi então que Sella chegou correndo até nós, com lágrimas nos olhos.
– Antônia, Mei...
Ela abraçou nós duas. Notei que ela estava tremendo. Senti que algo
terrível havia acontecido.
– Mau postou no site – disse Sella.
– O que ele disse? – perguntei, com medo.
– Ele anunciou que Vic será executada. Em 24 horas. A cerimônia de
sacrifício vai acontecer diante de todos os Saos e Sacrios da SSC do
Brasil.
Eu senti uma sensação desagradável percorrendo minha espinha.
– Mas... por quê? – perguntei com voz fraca, largando a faca na mesa.
– Você deve saber disso – disse Sella – estavam comentando na
internet desde ontem sobre essa regra: depois que se recebe a iniciação, é
proibido sair da sociedade.
– Eu conheço essa proibição – confirmei – mas eu não tinha certeza
sobre as implicações dela.
– Já houve casos de Saos que resolveram sair da SSC antes de se
tornarem Sacrios e foram liberados com discrição, contanto que fizessem
vários votos e entregassem uma parte do corpo – explicou Sella – mas
uma vez que nos tornamos Sacrios, esse se torna um compromisso para
a vida inteira. Se alguém opta por sair, significa que aceitou a morte.
– Não é possível fugir? – perguntei.
– Não com todos esses Sacrios poderosos no seu encalço – disse
Sella – lembre que eles têm as siddhis. Portanto, há somente duas opções
para um Sacrios que anuncia querer se retirar da SSC: fugir e ser
perseguido pelos Sacrios até ser assassinado, ou aceitar voluntariamente
ser executado numa cerimônia formal. Vic escolheu a segunda opção.
– Por que essa regra estúpida sequer existe? – perguntou Mei-Xiu,
chocada.
– É uma regra antiga – disse Sella – ela existe porque os Sacrios
recebem muitos segredos após serem iniciados. Se um deles sai do
grupo, poderia espalhar esses segredos para qualquer um e isso poderia
impedir a derrota dos Deuses e gerar o fim do mundo. Por isso, eles

154
Sociedade do Sacrifício

consideram que o sacrifício de uma única pessoa é um preço pequeno a


pagar pela salvação de todas. Fazem isso em nome do “bem maior”.
Eu não conseguia acreditar que Vic seria executada somente porque
Mau a chamou de galinha. Ela era orgulhosa ao extremo: preferia morrer
a continuar a ser liderada por ele. Mas havia muito mais nessa história.
A verdade era que eu realmente não sabia o que estava acontecendo
por baixo dos panos. Antes disso houve aquela discussão boba por causa
do pedido de Mau para levá-la ao cinema. Vic recusou o pedido dele.
Mau deu um passo para trás. E a partir daí a discussão pesada começou.
No fundo eu ainda estava com esperanças de que alguém me dissesse
que tudo aquilo foi uma piada ruim. Uma armação.
Só que todas nós sabíamos que era sério. Todo mundo sentiu o clima
tenso da discussão deles no site. Aquilo era bem real. Começou como
uma piada, uma coisa ridícula. E levou a isso.
– Tem certeza de que a notícia da execução é verdadeira? – perguntei,
para me certificar – foi escrita pelo Mau, certo? Mas ele mesmo não disse
que metade do que escreve na internet é mentira?
– Infelizmente, eu acredito que essa notícia se inclua na metade
verdadeira do que ele escreve – disse Sella – eu te mostro quando vocês
voltarem para a barraca. Até lá, disfarcem. Não chorem na frente das
pessoas, ou elas podem descobrir sobre o celular. Afinal, não deveria
haver meios de ficarmos sabendo disso. Se chorarem pela Vic, em breve
estarão chorando por si mesmas quando forem expulsas.
Ao dizer isso, Sella correu de volta para a barraca.
Pelo menos se fôssemos expulsas ainda poderíamos voltar para casa.
Vic seria morta.
De repente, os problemas de adaptação que eu estava enfrentando no
acampamento pareceram muito pequenos diante da grandiosidade e
importância daquela notícia mórbida.
Resolvi começar a cortar cebolas para que eu pudesse derramar
algumas lágrimas tranquilamente e ter uma desculpa para isso.
Derramar aquelas lágrimas serviu como uma catarse. Foram apenas
poucas lágrimas discretas. Mas elas me trouxeram um grande alívio.
Quando terminei meu dever, corri para a barraca junto com Mei-Xiu.
Olhamos juntas a última postagem no site oficial da SSC do Brasil:

155
Wanju Duli

É com imenso pesar que anuncio que nossa vice-líder, Vic, solicitou a
excomunhão da Sociedade do Sacrifício do Caos.
Com base em nossas leis, ela deve ser executada em até 48 horas. Vic está a par
de seu destino e opta por ele por livre vontade.
A cerimônia de execução será realizada em exatamente 24 horas no campo de
treino da SSC brasileira. Todos os Saos e Sacrios devem estar obrigatoriamente
presentes para assisti-la. Aqueles que ainda não receberam a iniciação de Saos estão
proibidos de assistir a cerimônia.
Nós não permitimos que Saos ou Sacrios estrangeiros viajem para o Brasil
exclusivamente para assistir à execução. Recebi esses pedidos ofensivos por e-mail
vindo de pessoas que nem conhecem Vic pessoalmente. A execução dela não será um
espetáculo de que nos orgulhamos e sim um procedimento necessário que está
plenamente de acordo com as regras da sociedade e com nossas crenças.
Por favor, parem de enviar e-mails infelizes implorando para que eu “tenha
piedade e não mate a Vic”. Também estou ignorando completamente mensagens do
tipo: “Vocês eram quase namorados. Você não tem coração?” Como mencionei antes,
jamais aconteceu absolutamente nada entre nós e mesmo que tivesse acontecido eu não
deixaria de cumprir o meu dever.
Eu mesmo irei matá-la com minhas próprias mãos da forma ritualística
apropriada. Isso já está decidido e não poderá mais ser mudado, então parem com
essas petições ridículas de internet, como “Vamos recolher um milhão de assinaturas
em 24 horas para salvar Vic”. Se vocês pensam que isso muda alguma coisa,
definitivamente não me conhecem e não conhecem a SSC.
Espero que a morte da Vic sirva como exemplo para que os candidatos a membro
pensem mil vezes antes de enviar seus formulários de inscrição. Alguns se inscrevem
apenas para “experimentar”. Essas pessoas não compreendem o peso que a nossa
iniciação possui.
Certamente experimentaremos uma enorme baixa no número de novas inscrições
após o acontecimento de amanhã. As pessoas se chocam com a morte, mas a morte é
apenas uma parte natural da vida. É uma grande honra morrer por aquilo que se
acredita. Muito mais honroso do que morrer de repente pelos acasos que nos arrastam
na vida.
Continuo a ter respeito pela Vic, mesmo que ela tenha perdido o respeito por
mim. Especialmente após ela optar pela execução formal. Vic está completamente
preparada para isso. Sempre esteve. Ela é muito forte. Talvez mais forte que eu.

156
Sociedade do Sacrifício

O novo vice-líder ainda não foi decidido, então parem de insistir nessa pergunta.
Ainda haverá um período formal de luto antes de tratarmos dessa questão.
Antes estávamos preocupados com a falta de vagas para o semestre que vem.
Porém, agora que decidimos iniciar um segundo acampamento e aumentar as vagas,
teremos menos candidatos. É uma grande ironia.
Eu mesmo irei treinar os Saos mais avançados nesse segundo acampamento por
sugestão da Vic, já que ela não estará mais conosco para fazê-lo em meu lugar. Irei
honrar esse último pedido dela.
Finalmente, alguns me perguntaram se estou com raiva. Sim, estou furioso.
Escrever todos esses parágrafos gentis exigiu um imenso autocontrole da minha parte e
só o fiz porque minha razão concluiu que ela merece, devido aos excelentes serviços que
ela prestou em mais de uma década ao nosso lado.
Não fiquei nada satisfeito com o que ela escreveu para mim ontem. Mas eu não
irei matá-la por ter me sentido ofendido como líder. Isso seria abominável. Ela
somente morrerá porque ela decidiu que prefere morrer a continuar me servindo na
SSC.
Também deixarei claro: eu poderia recorrer a outras leis e conseguir fazer Vic
sair dessa com vida. Afinal, eu sou o senhor da SSC. Estou acima das leis. Eu optei
por seguir o método tradicional simplesmente porque eu quis. Porque não sou a favor
de favoritismos. Eu não mudaria a lei para salvar a pele de um desconhecido, então
não vou mudar para salvar alguém que conheço. Eu vivo por princípios.
Isso não significa que irei matá-la porque quis. É porque ela quis seguir esse
caminho. Entendem a diferença? Eu e ela seguimos princípios semelhantes, então
nossas vontades se conectarão nessa cerimônia.
Vic sempre foi vista como o monstro que recusava minhas tentativas de
aproximação. Agora eu serei visto como o monstro que a matei porque não aceitei a
recusa dela. É assim que irão comentar a meu respeito na internet. Porque vocês, na
internet, não sabem de nada. Vocês não são Sacrios. Sequer viram os Deuses. Não
aguentariam oito anos de treinamento. Enlouqueceriam com a visão de um Deus.
Continuem a viver suas vidas confortáveis e ignorantes enquanto realizamos as
coisas grandes. Num dia vocês me idolatram. No outro me temem e me desprezam.
No futuro, voltarão a me amar e a me odiar por muitos outros motivos que vocês
sequer compreenderão.
Repito: vocês não sabem de nada. Então não ousem julgar essa situação. Em
nenhuma circunstância.

157
Wanju Duli

Os Saos seriam obrigados a assistir à cerimônia.


– Meu irmão é Saos na SSC do Brasil – falei – ele terá que assistir à
execução.
– É verdade? – perguntou Mei-Xiu, chocada.
Confirmei com a cabeça. Merda.
Se eu tivesse sido aprovada no Brasil, eu ainda seria iniciante e estaria
proibida de assistir à cerimônia. Então não faria tanta diferença estar aqui
ou lá.
Ou, pensando bem, faria sim. Eu poderia abraçar o Caio. Eu sabia
que ele iria chorar.
Afinal, o Sacrifício preferido dele sempre foi a Vic. Era a pessoa que
ele mais admirava. Vic tinha sido uma inspiração para ele.
Caio nunca gostou muito de Mau. Ao entrar para a SSC, ficou
fascinado com ele. Porém, imaginei que muito em breve ele iria odiá-lo.
Mau poderia ter escrito apenas uma mensagem breve anunciando a
execução. Apenas os três primeiros parágrafos bastariam. Porém, Mau
sabia como era a internet. Ele optou por se posicionar antecipadamente
em relação a várias questões envolvendo a execução de Vic.
Nunca houve um furor tão grande a respeito dos Sacrifícios desde
seis anos atrás. Ou seja: a morte de Vic seria quase tão importante
quanto a iminência do fim do mundo que aconteceu quando eu tinha
doze anos. Ela era grandiosa a esse ponto.
Ninguém escreveu mais nada no site naquele dia.
Eu participei de várias meditações ao longo do dia e assisti algumas
palestras de Sacrios. Ajudei na preparação da janta. Li mais um pouco do
meu livro. Tomei um banho, tremendo.
Esse segundo dia não foi tão ruim quanto o primeiro. Mas minha
cabeça estava longe. Decidi que no dia seguinte ia começar a tricotar
minhas próprias roupas de lã para me aquecer, já que eu não havia
levado roupas quentes na mala. Seria um dia exaustivo.
Quando eu deitei, estava acabada.
Sella me acordou às 4:30 da manhã no dia seguinte. Ela acordou nós
todas. Ela estava nervosa. Por que ela estava nos acordando tão cedo? A
meditação seria somente às 5:00.
Os olhos dela estavam vermelhos.

158
Sociedade do Sacrifício

– Vic morreu.
Senti meu peito doer.
– Ainda não passaram as 24 horas – falei, debilmente.
– Eles adiantaram algumas horas na execução – informou Sella,
engasgando-se nas próprias palavras – porque Mau não aguentou
esperar.
Ela mostrou o celular para nós. Eu e as outras meninas lemos o que
estava escrito. Dessa vez era uma postagem de Yago.

A execução foi consumada. Vic morreu hoje, às 4 da manhã.


Mau não quis esperar que as 24 horas se completassem e organizou a cerimônia
com duas horas de antecedência. Todos os Saos e Sacrios estavam presentes nesse
momento.
É improvável que Mau escreva alguma coisa aqui hoje.
Não vejo necessidade de detalhar os acontecimentos. Se Mau desejar informá-los
sobre as partes mórbidas, ele que o faça.
Todos estão com medo de Mau agora. Inclusive eu. E se sinto a necessidade de
confessar isso aqui é porque ainda estou muito chocado. É muito pior quando um de
nós morre por nossas próprias mãos. Morrer assassinado pelos Deuses é esperado.
Um Sacrifício que mata outro Sacrifício é muito mais raro. As pessoas não falam
disso porque só gostam de mostrar as partes bonitas e heroicas de ser Sacrifício, como
salvar o mundo.
Mas ser Sacrifício não é só matar Deuses. Há muitas outras coisas que
Sacrifícios fazem. Coisas dolorosas. Coisas odiosas.
Nós Sacrifícios sofremos quando fazemos essas coisas porque ainda temos parte
da nossa mente antiga. A mente que possuía outras noções sobre a vida e a morte.
Até mesmo Mau ainda possui parte dessa mente de antes e não quer perdê-la.
Talvez ele precise dessa dor.
Mau irá odiar que eu conte, mas eu preciso contar. Pelo menos para defendê-lo de
todos aqueles que agora o odeiam com todas as forças. Quando Mau leu a última
postagem de Vic, eu o vi chorar como um bebê. Ele chorou porque sabia o que aquilo
significava: que ela ia morrer. Mau mal conseguia se manter em pé.
Ele não comeu nada nessas últimas 24 horas. E provavelmente também não
comerá nada hoje.
Eu temo por ele. Mas também temo por mim mesmo e por todos os Sacrios.

159
Wanju Duli

Mau mandou que todos os Saos fossem passar um dia em casa com a família e
repensassem suas escolhas. Essa será a única chance que eles terão de retornar para
casa sem uma perna ou um braço faltando. No momento em que se tornarem Sacrios,
não terão permissão para mudar de ideia.
Eu estou me sentindo extremamente mal hoje. Muito mais do que já me senti nas
guerras contra os Deuses ou quando perdíamos companheiros na batalha. Pois em tais
momentos estávamos lutando juntos. E agora, estamos todos lutando sozinhos: contra
as emoções aflorando em nossas próprias mentes. Emoções malignas.

Estava doendo. Mas, assim como Mau, eu talvez precisasse daquela


dor.
Eu precisava sentir a dor agora. Não quando não tivesse mais volta.
“Saia desse lugar, Tônia. Em que insanidade você se meteu?” eu
pensei comigo mesma.
Se até mesmo os Sacrios sofriam tanto com todas aquelas coisas, eu,
que ainda não era nem mesmo Saos, sofreria muito mais.
Quando eu era criança, achava que Mau e Vic iam acabar se casando.
Tendo filhos. Todos lutando e morrendo juntos na guerra contra os
Deuses: aqueles dois Sacrifícios poderosos e as suas próximas gerações.
Mas tudo havia terminado de repente. Foi tudo tão rápido!
Merda, merda! Eu não conseguiria esquecer daquilo. Jamais. Mas será
que eu queria esquecer?
Quando abracei Sella e minhas lágrimas caíram levemente, sussurrei
no ouvido dela:
– Sente-se pronta para ser asssassinada por Farah ou Sahana?
Ela fez que sim. Eu sorri.
– Então tudo vai ficar bem.
Depois do grande sofrimento do primeiro impacto diante de algo
terrível, nos tornamos mais fortes. Aquilo que antes era tão chocante não
parece mais tão aterrador.
Éramos apenas humanos tentando sobreviver. Mas desde muito
tempo já sabíamos que íamos morrer no final. Então por que nos
assustávamos tanto com as diferentes possibilidades de morte que
inventávamos? No fim, morte era apenas morte.

160
Sociedade do Sacrifício

E com tais pensamentos em mente apaguei o fogo do medo do meu


coração. Somente por um momento. Eu precisava de medo para me
manter viva.

161
Wanju Duli

Capítulo 3
Com muito esforço, secamos as lágrimas e seguimos para a primeira
meditação da manhã. Depois da meditação e do café da manhã, senti-me
muito melhor.
Mas aquela sensação forte no peito sempre persistia.
Depois do café, peguei uma vassoura e um pano molhado e ajudei a
limpar o chão da nossa cozinha improvisada.
Eu me surpreendi quando um Sacrios se aproximou de mim e me
entregou um celular.
– Antônia, certo? – ele perguntou – acho que é seu irmão.
Segurei o celular com a mão trêmula, enquanto com a outra mão eu
ainda segurava a vassoura. O Sacrios se afastou por um momento.
– Tônia?
– Caio! Oh, meu Deus! Você está bem?
– Então você já sabe? – ele perguntou, com uma voz chorosa.
Merda! Eu já estava começando a me recuperar de toda aquela dor e
agora eu teria que revivê-la outra vez. Estava retornando tudo: o medo, o
terror...
Por um momento ele apenas chorou no telefone. No começo fiquei
em silêncio, segurando minhas lágrimas para não apavorá-lo ainda mais.
– A Vic...
– Sim, eu sei! – eu disse, sem conseguir mais conter as lágrimas.
– Eu vi, Tônia. Eu estava lá!
– Eu li no site... você está em casa?
– Sim. Tônia, Mau estava lá em cima com um manto cerimonial
completamente negro, como se fosse um demônio. Eu fiquei apavorado.
Ele estava tão sério! Parecia estar gostando...
– Pare – eu disse.
Ele estava se torturando.
– Era como um teatro, mas todos sabíamos que era real. Mais real do
que qualquer coisa que já vi. Diferente da internet, eles não estavam
atuando. Os dois estavam de cara limpa, olhando um para o outro. O
olhar que os dois trocaram me destruiu. Era um olhar ao mesmo tempo

162
Sociedade do Sacrifício

tão terno e tão severo. Como se estivessem competindo para ver quem
era o mais forte. Até mesmo naquele momento.
Por alguma razão, eu conseguia formar a imagem claramente em
minha imaginação.
– Antes de realizar o ato final, ele pronunciou muitos versos
decorados da Lei – explicou Caio – ele parecia um Deus quando fez isso.
Quase me dobrei no chão, coberto de terror.
– Você já viu um Deus?
– Não... mas imagino que eles sejam como Mau. Não digo
fisicamente, mas mentalmente e espiritualmente como ele. Mau impõe
respeito. Eu fiquei com um pouco de medo dele desde a primeira vez
que o vi pessoalmente, mas dessa vez foi muito diferente. Todos na
plateia, sem exceção, estavam apavorados. Até mesmo os Sacrios. Foi
insano. Eu nunca tinha visto algo parecido.
– Você se encontrou com Jorge e Bianca? Meus colegas que entraram
na SSC, lembra?
– Apenas rapidamente – respondeu Caio – eu não os vi hoje, até
porque eles não tinham permissão de assistir à cerimônia.
Quando ele disse “hoje” eu pensei “mas ainda é tão cedo”. Foi só
então que lembrei que eu estava oito horas e meia na frente deles.
– Ainda bem que eles não assistiram. Teria sido chocante demais para
eles.
– Não só para eles. Foi chocante para absolutamente todos os
presentes. Se eu fosse tentar adivinhar, eu diria que a menos chocada ali
era Vic. Ela aceitou sua condição com naturalidade e portou-se de forma
magnífica o tempo inteiro. Foi inacreditável. Eu não conseguiria.
– Me diga logo como ela morreu, ou morrerei de ansiedade. Eu já
recriei a cena da morte dela centenas de vezes na minha cabeça. Quero
saber o que realmente aconteceu.
– Você sabe como são os rituais. Eles fazem coisas desnecessárias.
Tem certeza que quer saber?
– Conta logo!!
– Está bem – ele disse – depois de pronunciar as palavras ritualísticas,
ele passou a faca no pescoço dela. Uma morte limpa, ou assim deveria
ser. Mas essa é apenas a primeira parte do ritual. Na segunda parte, ele
cortou a barriga dela, mas infelizmente ela ainda estava viva. Mau não

163
Wanju Duli

colocou tanta força no corte do pescoço, então ela ainda estava


agonizando no chão. Mas não fique chocada.
– Não estou chocada – garanti – eu já esperava algo assim quando
você disse que coisas desnecessárias foram feitas. Na verdade, eu
esperava algo pior.
– Pouca coisa pode ser pior – disse Caio – ele puxou com as mãos as
vísceras dela quando Vic ainda estava viva. Mas Mau não fez isso porque
quis ser mórbido. Ele não é tão louco. Ele apenas quis ser tradicional e
realizar a execução conforme o ritual antigo. Ele passou dois dedos no
próprio rosto, para se pintar com o sangue. É assim que os antigos
faziam. Apesar de ser macabro, a aparência dele com a pintura de sangue
foi extraordinária.
Por que eu conseguia visualizar tudo o que Caio dizia tão
perfeitamente? Era como se eu estivesse vendo tudo ao vivo naquele
instante.
– Mau levantou as vísceras dela para o alto e pronunciou as palavras
ritualísticas. Naquele momento deu o barulho de um trovão. Bem
quando ele terminou. Não acho que foi coincidência. Pode ser que Mau
controle o trovão. Dizem que ele controla muitas coisas. E quando ele
pronunciou esses dizeres, a voz dele estava tão alta e poderosa que
parecia até a voz de outra pessoa. Como se outro alguém estivesse
falando pela boca dele.
Ninguém sabia ao certo quais siddhis Mau tinha. E algumas vezes eu
achava que era melhor não sabermos.
– Para finalizar, Mau deveria comer um pedaço das vísceras –
explicou Caio – e ele fez isso. A boca dele ficou toda vermelha. Parecia
um animal furioso. Só que a partir desse ponto o ritual se tornou muito
menos elegante.
– O que aconteceu?
– Mau vomitou. Acho que qualquer um vomitaria comendo aquilo,
mas ele também devia estar há muito tempo sem comer. Ele estava
muito fraco. Levantou-se com dificuldade, tateando os arredores, como
se estivesse cego. Yago teve que ir até o palco para ajudar Mau a sair de
lá. Depois disso, quando já estava lá embaixo, Mau desmaiou.
– Porque ele estava sem comer.

164
Sociedade do Sacrifício

– Não, Tônia. Eu não acho que ele tenha vomitado e desmaiado


apenas porque estava fraco fisicamente. Foi pelo peso do que ele tinha
acabado de fazer. Ele desmaiou pelo choque de ver Vic morta. É o que
eu acho. E não somente ver, porque ele estava muito perto. Ele fez...
– Acho que todos os fatores contribuíram para que isso acontecesse
– concluí.
– Foi muita coisa chocante acontecendo ao mesmo tempo. Mas no
final Mau ainda retornou ao palco e abriu a gaiola dos urubus, que
devoraram as vísceras de Vic e também os restos do corpo dela. Aquele
lugar estava fedendo. Eu também quase vomitei. Foi asqueroso.
Eu já me sentia mais calma. Por alguma razão, doeu muito mais no
meu coração quando Caio contou no começo sobre o olhar que os dois
trocaram antes de tudo do que na descrição da execução. Afinal, a morte
em si era apenas uma série de gestos mecânicos e ritualísticos.
Foi bom eu ter ouvido, pois, por pior que fosse, a realidade
raramente poderia ser pior do que aquilo que minha imaginação era
capaz de conceber. Pelo menos assim eu ficaria em paz.
– Então Mau fez o que queria – concluí – e agora?
– E agora Mau certamente vai ficar por um bom tempo sem se portar
como um imbecil na internet.
– Isso é óbvio. Ele jamais faria piada com a Vic. E quanto a você?
Pretende voltar para o acampamento ou ficar em casa?
– Você faz essa pergunta como se não fosse nada. O que você está
realmente perguntando é se pretendo prosseguir em meu treinamento e
me tornar um Sacrios ou desistir dele.
– Exato.
– Tenho me perguntado a mesma coisa desde ontem. A verdade é
que, se eu fosse pensar racionalmente, eu sairia correndo para o mais
longe possível de Mau. A perspectiva de um dia ter meus intestinos
devorados por ele não me agrada. Mas... eu também não quero fugir.
– Eu entendo.
– Isso tudo me deixou chocado, mas estranhamente eu não estou
com raiva do Mau. Porque eu sei que ele não é como a gente. Ele vê
outras coisas. Entende aquilo que ainda não compreendemos. E não foi
para isso que entramos na SSC? Para entender. Um dia eu gostaria de

165
Wanju Duli

entender o que é essa coisa tão grandiosa que fez com que o Mau
aceitasse com naturalidade realizar esse ato aparentemente abominável.
Então Caio ia continuar.
– Se você vai prosseguir, eu também vou – decidi.
– Você ainda tem um ano para pensar. Mas fico contente que tenha
dito isso. Obrigado. O que está achando da SSC indiana?
– Muito austera – respondi – mas é um tipo de austeridade diferente
do que você experimentou. Eu acho que devo estar no Himalaia.
– Tem certeza?
– Que parte do “acho” você não entendeu?
– Bem, espero que esteja se divertindo. Pensa em voltar para o Brasil
ou ficar por aí mesmo?
– Vou voltar, é claro. Apesar de que já fiz amigas aqui.
– Isso é ótimo.
– Vou tentar pedir transferência para o Brasil no próximo semestre,
mas isso depende do número de vagas que tiver.
– Depois do que aconteceu hoje, não acho que o Mau vá continuar
brincando de cancelar vagas.
Ficamos em silêncio por alguns segundos. Até que eu perguntei:
– Você acha que somos loucos?
– Hã?
– Uma pessoa que decide continuar na sociedade depois do que
aconteceu hoje não deve girar muito bem da cabeça. Você acha que
algum dia eu vou despertar da minha loucura daqui oito anos, quando eu
já for Sacrios, e me arrepender? Querer voltar atrás quando não tiver
mais volta. Tenho medo disso.
– Estranho. Eu não tenho esse medo.
– Por que não? – perguntei, tentando entender como alguém poderia
não ter aquele medo.
– Nós geralmente nos arrependemos mais das coisas que não fizemos
do que das coisas que fizemos. Se eu chegar a ponto de me tornar
Sacrios e quiser retornar... eu iria retornar para quê? Sequer haverá algo
para voltar.
– Para o pai e a mãe – eu disse – para Carla. Para o conforto da vida
que tínhamos.

166
Sociedade do Sacrifício

– Depois de tudo que já sei? E depois de tudo que saberei no futuro?


Não, Tônia. Vic não decidiu morrer porque se arrependeu de ter entrado
para a SSC. Ela teve uma vida grandiosa, fez coisas grandiosas. Fez
diferença. Acho que ela concluiu que já era o bastante. E, por alguma
razão, acho que ela queria punir Mau. Ou ajudar.
– Por que você diz isso?
– A Vic era muito mais sábia e experiente que o Mau. Para ela,
morrer não era muita coisa. Ela certamente não sofreu muito por estar
deixando Mau e o mundo. Mas ficou evidente que Mau sofreu muito
mais que ela. Ele não sabe lidar com isso ainda.
Se o próprio Mau não sabia, será que um dia eu saberia?
– Acho que é melhor eu desligar – disse Caio – essa ligação vai sair
muito cara.
– Ah... droga. É verdade. Ligação internacional. E a gente falou um
tempão.
Era a hora da despedida.
– Quando será que vamos nos falar de novo? – perguntei.
– Eu não tenho a menor ideia.
Uma despedida inusitada. De certa forma, eu gostava dela. Era meio
mágico.
– Espere – disse Caio – Mau postou alguma coisa no site. Eu não
acredito! Yago disse que ele não postaria nada hoje.
– Merda. Bem, vou lá ver.
– Você tem internet aí? – ele perguntou, estranhando.
– Ah, é uma longa história. Não a melhor para falar por telefone.
– OK. Mas toma cuidado com isso, hein?
– Pode deixar.
E nos despedimos. Procurei o Sacrios para devolver a ele o celular e
agradeci. Depois disso, corri de volta para minha barraca. Até me esqueci
de terminar de limpar o chão da cozinha.
Pensei que eu fosse arrasar com minha notícia, mas as quatro já
estavam sentadas num canto lendo com uma concentração assustadora.
Então eu simplesmente me juntei quietamente a elas.
Mau escreveu o seguinte:

Yago, se você sabia que ia me irritar com sua postagem por que a escreveu?

167
Wanju Duli

Você diz que está com medo de mim e isso me incomoda. Muito.
Eu não fiz o que fiz para que as pessoas ficassem com medo. E não me arrependo
nem um pouco. Vejo que realizei a coisa certa. De certa forma, estou orgulhoso.
Não quero que as pessoas me sigam por temor. Eu gosto da liberdade que tenho
com você e outros membros. Não se preocupe. Não vou excomungar e executar
ninguém por um xingamento. Eu só expulso os novatos, já que eles não vão perder
nada com isso. Se eles vêm para bagunçar, que baguncem em suas casas.
Para você ter uma ideia, embora eu tenha ficado furioso com todos os xingamentos
de Vic, eu não pretendia expulsá-la por causa disso. Ela que tocou no assunto e
expulsou a si mesma. A Vic sempre foi muito mais orgulhosa que eu. Não há como
comparar.
É claro que eu sempre fui completamente apaixonado pela Vic. Loucamente
apaixonado. Ela era tudo para mim. Mas amor não é uma coisa simples. É uma
dança. Para que essa dança seja harmoniosa, é preciso que o casal dê alguns passos
para frente e outros para trás, no momento certo.
Eu não poderia simplesmente dizer que a amava e começar a persegui-la
insistentemente. Se eu o fizesse, ela daria meu amor por garantido e me desprezaria.
Além do mais, eu, sendo mais novo e inexperiente, precisava ter cuidado redobrado.
Achei que Vic entenderia que esse era somente mais um de nossos jogos. Eu
jamais imaginava que seria o último.
Ela deu um passo para trás, me desprezando abertamente, então achei que para
acompanhá-la na dança minha única escolha era recuar junto com ela. Achei que
ainda teríamos tempo de alcançar um ao outro. Não sabia que meu tempo estava tão
curto, ou teria jogado todas as cartas na mesa há muito tempo.
Eu sei que Vic não olhava para mim da mesma forma que eu a olhava, mas
houve alguns breves momentos que senti que estávamos dançando juntos. E esses
momentos foram inesquecíveis. Eles já valeram por tudo.
Eu só precisava de mais tempo. Mas não sou o senhor do tempo.
Pensando bem, foi muita arrogância da minha parte pensar que tempo era tudo o
que eu precisava. Talvez ela só estivesse se divertindo na brincadeira, mas apenas
como alguém que brinca com uma criança. Podia ser que eu nunca a alcançasse.
Acho que ambos sempre soubemos que era um amor impossível. Então por que
manter esse sofrimento? Vic declarou o fim de jogo. Eu não queria ser uma criança e
bater o pé, dizendo que eu queria continuar jogando até o maldito fim, mesmo
sabendo que não havia esperanças. Eu quis mostrar a Vic que, após todos esses anos,
eu tinha amadurecido.

168
Sociedade do Sacrifício

Quando eu entrei para a SSC ainda era uma criança. Vic tinha acabado de se
tornar vice nessa época. Eu me apaixonei por Vic à primeira vista. Porém, minha
pouca idade me impedia de fazer qualquer movimento, ou eu seria motivo de piada.
Digamos que ela foi meu primeiro amor.
Quando o líder morreu na luta contra os Deuses e eu assumi a posição de líder,
pensei que eu e Vic ficaríamos mais próximos, mas nos tornamos ainda mais
distantes. Isso porque no fundo ela se sentia ofendida por uma criança ser superior a
ela. Vic me fitava com um olhar de desprezo.
Eu aguentei esse olhar. Conforme eu ficava mais velho, notei que as coisas
começaram a mudar. Ela me respeitava mais. Mas para ela, eu sempre seria “o líder
mais novo que ela”. Eu não podia mudar isso.
E também havia a minha condição. Acho que ela invejava quem eu era. Não
tenho certeza. Ou se sentia desconfortável com isso. Éramos diferentes de muitas
maneiras.
Sei que fui egoísta. A morte dela acabaria com minha angústia e eu jamais
resolveria minha dúvida. Era isso que eu queria. Mas o que eu realmente queria era
aguardar mais um pouco. Ela simplesmente não quis.
E por que eu só escrevi tudo isso agora que ela já morreu? Porque a dança
terminou. Então não importa mais.
Porém, eu não sou tão romântico quanto faço parecer. Se alguém pensou isso, irei
acabar com as expectativas agora mesmo.
Não tenho nenhuma intenção de passar a vida inteira em celibato chorando por
ela. Nunca iniciamos um relacionamento, então por que eu faria isso?
Pode parecer um pensamento meio frio, já que ela acabou de morrer. Ou, melhor
dizendo, já que eu acabei de matá-la. Mas eu nunca fui fã de histórias trágicas. Sou
uma pessoa prática. Por acaso, passei por essa situação, mas não tenho nenhuma
intenção de passar por algo assim de novo.
Agora aprendi o que devo fazer: ser claro, direto, sem jogos ou danças. Se eu não
for acompanhado, a direção apenas muda.
Lição aprendida. De qualquer forma, Sacrifícios não são conhecidos por terem
uma vida longa, então o pragmatismo se torna uma boa escolha.
Em compensação, algo me diz que terei uma vida longa...

– Por que o Mau se tornou tão doce de repente? – perguntou Mei-


Xiu – sendo que pela manhã ele estava tão macabro.

169
Wanju Duli

– Acho que foi por isso mesmo – opinei, em tom de brincadeira –


para equilibrar...
Eu achava aquela declaração de Mau muito suspeita. Na minha
opinião, ele que tinha feito um movimento errado em relação a ela. Não
era justo ele colocar toda a culpa em Vic e dizer: “Ela que quis morrer”
como se ele não tivesse nada a ver com isso. Era estúpido. E usar a
morte dela como uma lição de moral era ainda mais pretensioso.
Mesmo assim, Mau escreveu umas coisas legais que me faziam
desconfiar que ele não fosse tão idiota.
Ele só estava naquela fase de sentir pena de si mesmo.
Algum tempo depois, Yago escreveu outra coisa:

Mau,

Você sempre acha que está certo, que sabe de tudo. Vive dizendo que quem não é
Sacrios não sabe de nada e não te entende. Surpreendentemente, até mesmo quem não
é Sacrios é capaz de viver um romance normal sem todos os seus conflitos e dramas.
Não me leve a mal. Eu realmente achei graciosa a sua reflexão sobre amor e
dança, e tudo o mais. Só que dessa vez, adivinhe só: você está completamente errado.
Mortalmente errado.
Por acaso eu tenho uma prova. Vou colar aqui o trecho de uma conversa que tive
com Vic esses dias. Acho que ela não vai se importar mais se eu te mostrar:

Vic: Yago, o que Mau quer dizer quando ele me convida para ir ao cinema?
Yago: Não é obvio? Exatamente isso: que ele quer ir ao cinema com você. Não
há como ser mais direto que isso.
Vic: Ele está brincando ou o quê?
Yago: Pode ser que esteja. Mas provavelmente ele acharia legal se a brincadeira se
tornasse realidade. Eu, por exemplo, curtiria ir ao cinema contigo.
Vic: Me desculpa, não estou a fim.
Yago: Mas com Mau você iria?
Vic: Talvez. Às vezes eu gostaria que ele fosse mais ousado. Ir ao cinema é meio
bobo. Se ele está realmente interessado em mim, por que não me convida logo para ir a
um motel?
Yago: Quê? Se o convite fosse esse você aceitaria?
Vic: É claro que não. Eu só estava brincando.

170
Sociedade do Sacrifício

Aí está a conversa, Mau. Analise e tire suas próprias conclusões.

A resposta de Mau foi imediata e furiosa:

Como você OUSA zombar de mim com essa conversa obviamente forjada?
Você é foda, hein, Yago! Não respeita a porra do meu luto. Cuzão!

E Yago respondeu:

Cara, não vem com essa história de luto, porque você a matou porque quis. Nada
do que me disser vai me convencer do contrário.
Tive essa conversa com ela por e-mail e acabei de te encaminhar a mensagem.
Agora você vai acreditar que foi real.
Você fica com essa de “não me arrependo”, “realizei a coisa certa” e “estou
orgulhoso” porque não tem coragem de admitir que cometeu um erro.
Ela gostava de você, meu. E você estragou tudo. Você sempre estraga!

Mau respondeu o seguinte:

E posso saber por que você deu em cima dela? Se é assim, também vou dar em
cima da sua garota.
Manu, quer ir ao cinema comigo? Ou ao motel? Ou a qualquer outro lugar que
vocês, garotas, gostam de ir?

Yago disse:

Mau, você é o PIOR trovador da história!


Você é 8 ou 80: ou faz a corte mais longa, que dura mais de dez anos, ou não
faz corte nenhuma?
Eu desisto. Você vai ficar solteiro. Desculpe.
E, Manu, desculpe o Mau. Por razões óbvias que você deve saber, ele está meio
perturbado e não sabe o que diz. Não o escute. E também não seja rude demais com
ele, antes que Mau mate outra pessoa. Infelizmente, isso não foi uma brincadeira.

A resposta de Manu não demorou muito:

171
Wanju Duli

Eu resolvi dar uma olhada no site porque eu estava preocupada com Mau, mas
pelo jeito ele já se recuperou rapidamente da perda.
Mau, eu gostava muito da Vic e respeitava o que você sentia por ela. Mas essa
sua brincadeira de agora foi totalmente infeliz.
Com todo o respeito, líder, vá tomar no cu. E, não, eu não quero ser
excomungada, expulsa ou morta.
Obrigada.

E lá estava Mau digitando de novo. Aquilo não tinha fim?


Ele disse:

O único lado bom do que acabou de acontecer é que hoje em vez de escreverem na
internet: “Mau matou Vic friamente, ele é um monstro”, escreverão: “Mau dá em
cima de Manu poucas horas após a morte da Vic, ele é um monstro”.
Sim, eu sou um lixo humano! Fui trazido ainda criança para a SSC, luto com
os Deuses desde pequeno, só penso em ficar mais forte e nunca tive uma infância
normal. Então quando ajo como criança ou adolescente vocês acham estranho?
Muito obrigado pela imensa compreensão de vocês, imbecis.

– Atenção, meninas! Nesse momento Mau está usando a carta


“problemas de infância” – avisei – para substituir a sua carta “passado
sombrio”.
– Que babaca – disse Iaboni.
Por que Mau não calava a boca um pouco? Pensei que com a morte
de Vic ele seria capaz de permanecer pelo menos alguns dias longe do
computador para evitar problemas, mas nem isso ele era capaz de fazer.
Ele sentia necessidade constante por aprovação e por isso precisava ficar
expondo todos os seus pensamentos confusos o tempo todo, para ser
elogiado.
Achei melhor eu voltar à minha vida normal de treinamento e parar
de pensar naquela situação. Se Mau já estava bem, então eu não precisava
me preocupar.

172
Sociedade do Sacrifício

Eu concordava com Yago que ele havia cometido um erro. Mas era
algo impossível de desfazer, então ele devia seguir em frente e não ficar
tentando justificar algo que não podia ser justificado.
Depois dessa mensagem de Mau, ninguém escreveu mais nada pelo
resto do dia. Embora ele tivesse feito uma merda naquela manhã (ou na
manhã anterior, na minha perspectiva), os outros tiveram tato para
entender que ele tivera um dia difícil e o deixaram em paz.
Naquela tarde, tricotei um cachecol para mim. Ficou bonitinho. Era
uma das coisas mais fáceis de tricotar, por isso escolhi fazê-lo.
Fiz tantas atividades domésticas naquele dia que fiquei morta de
cansada. E, em meio a isso tudo, pensei numa coisa particularmente
estranha: “Eu chorei mais com a morte da Vic do que com a morte da
minha irmã”. Sendo que eu nem mesmo conheci a Vic pessoalmente. Ela
só era alguém que eu conhecia por postagens na internet. Eu sequer
havia visto uma foto dela.
Mas então eu percebi a diferença. Irene escolheu a morte
voluntariamente. O Sacrifício Sagrado tinha um sentido maior para ela.
Minha irmã garantiu que estava feliz.
Pode ser que Vic tenha escolhido morrer voluntariamente, mas não
achei que ela estivesse tão feliz assim com isso. Ela simplesmente estava
preparada.
Outro fator é que eu tive um ano para me preparar para a morte da
Irene, mas apenas um dia para me preparar pela Vic.
Eu já tinha terminado de ler o livro de hindi que Raghav me
emprestou. E tinha começado a ler o livro de Meera sobre siddhis.
Essa segunda leitura me prendeu bastante. Descobri que havia muitos
tipos diferentes de poderes sobrenaturais. Será que eu poderia escolher
qual deles eu queria desenvolver? Perguntei para as meninas da minha
barraca se elas sabiam algo sobre isso.
– É uma boa pergunta – comentou Sella – agora você me pegou.
– Posso dar minha opinião? – perguntou Mei-Xiu – eu acho que
normalmente nós encontramos as siddhis ao acaso, perdidas na mente,
nos altos estados de meditação. Não é como se você escolhesse. Apenas
topa com uma delas e aprende o caminho para ir até lá, até dominá-la.

173
Wanju Duli

– Eu acho que se alguém quer muito possuir uma siddhi específica há


maneiras de procurá-la na mente – disse Roshni – mas normalmente é
necessário um bom instrutor para te ajudar.
Eu não conseguia pensar em nenhuma siddhi específica que eu fazia
questão de ter. Então eu não precisaria percorrer o caminho mais difícil.
Eu preferia usar a via mais divertida: encarar a minha mente como
uma caixinha de surpresas. Um dia eu toparia eventualmente com uma
siddhi. Deixaria que o destino escolhesse a siddhi que eu possuiria. Se a
minha mente fosse até lá, significaria que, de alguma forma, aquela era a
melhor siddhi para mim, ou eu tinha alguma aptidão natural que me
guiou até ela. Eu queria acreditar nisso.
– Existe algum mapa que contenha todos os caminhos da mente? –
perguntei.
– Claro que não, bobinha – riu Mei-Xiu – a mente é um universo.
Cada mente possui caminhos diferentes. Mas às vezes pela mesma
técnica duas pessoas podem chegar ao mesmo lugar. Há momentos em
que esses caminhos coincidem.
– Por que nas palestras que temos aqui no acampamento os Sacrios
só falam sobre samadhi e não falam sobre siddhis? – perguntei.
– Provavelmente porque é mais fácil ensinar samadhi do que siddhi –
respondeu Roshni – ou melhor, o domínio completo da samadhi é mais
difícil de atingir do que qualquer siddhi. Mas se você ficar muito bom em
samadhi, encontrar as siddhis depois é muito mais fácil. Se você focar só
nos poderes, pode acabar perdendo algumas coisas pelo caminho. Seu
treino fica incompleto.
Eu não tinha certeza se tinha entendido. Provavelmente a samadhi
era como um terreno muito seguro no qual eu apoiaria minha mente.
Eram os fundamentos fortes nos quais eu construiria uma casa depois.
Se não houvesse uma boa base, a casa desabaria.
Algo assim. Acho que li isso no livro, ou qualquer coisa parecida.
Preferi não insistir muito no tema dos poderes, porque, como Meera
tinha mencionado, alguns encaravam o assunto como um tipo de tabu.
Eu tive uma diarreia terrível naquela noite. Quando mencionei isso
para Mei-Xiu, ao acaso, ela apenas sorriu e disse:
– Bem-vinda à Índia! Até que a sua veio tarde. A minha já veio no
primeiro dia.

174
Sociedade do Sacrifício

– Você está sendo rude, Mei – disse Roshni – qualquer viajante pode
pegar diarreia viajando para outro país, por não estar acostumado com a
culinária local. E não se esqueça de que estamos no acampamento. Por
aqui a barriga sempre faz sons estranhos, seja de fome, de comida
estragada, ou o que seja.
No outro dia de manhã, após a primeira meditação e nosso modesto
café da manhã, fiz uma coisa divertida: mandaram que eu, Iaboni e uma
das garotas indianas do acampamento fôssemos juntas colher umas
ervas.
Num primeiro momento pensei: “Merda, vão me fazer caminhar um
monte no frio”. Mas peguei botas apropriadas emprestado e também
usei o cachecol que tricotei. No começo foi bem chato mesmo, pois
demoramos para chegar lá.
Porém, quando chegamos num canto mais afastado, a neve começou
a diminuir e apareceu uma paisagem bonita. Colhemos várias coisas. A
garota indiana, que devia ser Saos, entendia daquilo e ia nos indicando o
que deveríamos pegar.
Era bem cedinho e o Sol ainda estava baixo no céu. Era por
momentos como esse que eu pensava: “Ainda bem que eu vim. A vida
não é mesmo mágica?”. Era tão simples. Eu não precisava desejar algo
espetacular para a minha existência. Os momentos em que eu me sentia
mais alegre eram em ocasiões completamente inesperadas, como sentir
um raio de Sol num dia frio ou ficar sabendo que teríamos batata doce
para o almoço.
Algumas vezes a gente arranjava comida nos arredores. Outras vezes
nos traziam suprimentos da cidade. Variava bastante. Em geral, a gente
se virava.
Também separei um momento daquele dia somente para lavar roupa.
Embora não fizesse muito tempo desde que eu tinha chegado, algumas
das minhas roupas estavam nojentas por causa dos primeiros dias de
calor intenso que suei muito. E, convenhamos, mesmo no frio minhas
roupas ficavam nojentas, porque algumas vezes esquentava um pouco,
eu estava cheia de roupa fazendo tarefas domésticas e começava a suar
por baixo daquilo tudo. Provavelmente essa situação era ainda mais
incômoda. E dava muito mais trabalho lavar roupas de inverno.

175
Wanju Duli

E, no meio das tarefas, ainda tínhamos uma diversão adicional, já que


Sella mantinha seu celular escondido. Assim que eu lavei minhas roupas
e voltei para a barraca, ela me chamou com entusiasmo.
– Mau escreveu no site.
– Ah, não – eu já fui dizendo, esperando o pior.
– Não se preocupe – Mei-Xiu riu da minha preocupação – não é tão
ruim.
– Já traduziram? – perguntei, surpresa.
– Os donos do SMS estão cada vez mais rápidos.
– Quem são os donos do site? – perguntei, curiosa.
Eu nunca tinha pensado nisso.
– Acho que são americanos – disse Sella.
– Americanos que sabem português bem o suficiente para traduzir
em cinco minutos – balancei a cabeça em aprovação – eles ganharam
meu respeito.
E como a internet ainda estava em polvorosa por causa dos recentes
acontecimentos, é claro que todos queriam traduções o mais rápido
possível.
– Eles são da SSC americana Alfa, liderada pelo Andrew – disse
Roshni – os que respondem ao Mau.
O que Mau escreveu foi o seguinte:

Estou recebendo muita merda por e-mail e isso está me deixando puto. Por isso
acabei de apagar esse e-mail. Farei outro, que só darei para membros da SSC.
E eu tenho uma mensagem especial para o Eric e os membros de sua sociedade
falsa, que não possui validade nenhuma: vão chupar um pau.
Não sei porque todos estão fazendo tanto fiasco. Não é como se fosse a primeira
vez que realizei uma execução. Essa foi a quarta. Mas como os dois primeiros
fugiram e tive que sair ao encalço deles para matá-los e a terceira era uma ninguém
que recém havia se tornado Sacrios, houve pouquíssima repercussão. No máximo eu
recebia comentários me parabenizando. Coisas do tipo: “Aqueles dois eram uma
vergonha para o grupo. Foi uma caçada magnífica”.
Mas agora a SSC está pop e a Vic era pop. Há muita gente que só nos conhece
superficialmente e acham que têm direito a dar alguma opinião. Um conselho: enfiem
a opinião no rabo.

176
Sociedade do Sacrifício

Na verdade eu não vim aqui para escrever nada disso e sim para informar que,
como esperado, muitos iniciantes e Saos abandonaram a SSC hoje. Eu mandei que
todos passassem um dia em casa ontem e muitos deles ficaram.
Isso não me deixa triste. Ao contrário, me deixa contente. Agora sei que tenho ao
meu lado somente quem merece ficar.
Isso é tudo. Por enquanto.

Adeus, seus merdões!

Mau

Líder Absoluto da SSC do Brasil, Imperador da SSC Internacional, Matador


de Deuses e Sacrificios Desertores

– Eric é o líder da Beta, não é? – perguntei.


– Isso – confirmou Mei-Xiu.
– Eric está usando o que Mau fez como argumento para mostrar o
quão péssimo líder ele é – explicou Sella – mas a opinião dele já não faz
diferença nenhuma. Ele nem faz mais parte da SSC Internacional e o
grupo dele não tem a menor influência. A Alfa americana é bem mais
importante.
– Eu não sei porque vocês ainda defendem o Mau – comentou
Iaboni, incomodada – eu já não gostava dele antes. Agora eu o abomino
completamente.
– Mas não o suficiente para sair da sociedade – comentou Roshni.
– Apesar de ele ser o líder mundial, eu respondo à Sahana – disse
Iaboni.
– E Sahana responde ao Mau, como todos os outros líderes – disse
Roshni.
– Não me importo – disse Iaboni e encerrou o assunto.
Quando completou uma semana desde que eu tinha chegado no
acampamento, Mau escreveu outra coisa no site.

Caríssimos... ora, meus caros

177
Wanju Duli

Sei que ainda é um pouco cedo, mas já decidi quem terá a honra de ser vice-líder.
Como Manu já treina os iniciantes e Saos no acampamento e eu liderarei metade
deles em breve, assim que o novo acampamento ficar pronto, penso que ela é a pessoa
ideal para o cargo.
Manu também já fazia parte da SSC antes mesmo de eu entrar, então ela é
minha veterana e alguém muito confiável. Sempre nutri o maior respeito e admiração
por ela. Não consigo pensar em alguém melhor para ser minha mão direita.
A cerimônia de posse da vice acontecerá amanhã de manhã e todos os membros
estão convidados, incluindo os iniciantes.
Aproveito a ocasião para convidar a nova vice a viajarmos amanhã para Porto de
Galinhas para passarmos o dia juntos na praia debatendo as questões
administrativas pelas quais ela ficará responsável a partir de agora.
Alguns de vocês devem estar se perguntando: “agora que ela se tornou vice, será
que rolará algo entre os dois?” Porém, eu sinto desapontá-los, pois garanto que nosso
relacionamento será estritamente profissional.

Respeitosamente,

Mau

Líder Absoluto da SSC do Brasil, Imperador da SSC Internacional, Matador


de Deuses

Manu só respondeu algumas horas depois, pois provavelmente não


tinha visto a mensagem. Essas horas já foram tempo suficiente para
muita gente encher a internet de rumores obscuros.
Manu escreveu:

Caro senhor líder/imperador/matador,

Muito obrigada por me dar a honra de ser sua vice-líder!!! Sempre sonhei com esse
dia! Será incrível discutirmos juntos as questões administrativas na praia! Ameeeei a
ideia!
...
Mau... sério?

178
Sociedade do Sacrifício

Já que você aprecia tanto ser estritamente profissional, eu também serei. E


também serei direta: eu não tenho nenhuma intenção de ser a vice-líder. Pelo menos
não enquanto você estiver no poder.
Eu serei sua mão direita, você diz? Sei bem para que você quer a vice como sua
mão direita: para bater uma com ela. Nesse caso, irei declinar a oferta solenemente.
Você estava falando sério sobre viajar para a praia? Você sequer tem noção de
como meus dias são extremamente ocupados? Você só pode estar sonhando.
E mesmo se você não tivesse sido tão pretensioso e grosseiro com seu pedido, eu
provavelmente não iria aceitá-lo, pois minhas tarefas como treinadora dos Saos já
ocupam meu tempo o bastante.
Por que você não simplesmente coloca Yago como seu vice e acaba com isso?
Assim você não precisará lidar com seus conflitos internos de pensar com seu pau
enquanto conversa com seu imediato.

Sinceramente,

Manu

General do Exército da SSC do Brasil

– Manu foi muito mais rude nessa recusa do que Mau foi no pedido –
comentei – ela não precisava ter feito isso. Poderia ter tirado com a cara
dele de forma mais leve.
– Eu achei genial – riu-se Sella.
– Eu concordo com Antônia – disse Roshni – isso que ela fez não foi
legal. Ela exagerou. Mau estava apenas querendo agradar Manu da
maneira desajeitada dele. Mas ela não deixou passar.
– Daqui a pouco Mau vai escrever uma mensagem raivosa dizendo
que não queria Manu como vice desde o começo e que ele estava sendo
irônico – disse Sella – vocês vão ver.

Mau respondeu rapidamente:

Manu, seu movimento foi extremamente mal calculado.

179
Wanju Duli

Eu estava seriamente te convidando para ser a vice-líder. Você não precisava ser
tão estúpida.
Fiz o pedido em tom amigável, com uma leve brincadeira. E você me responde de
forma pesada e arrogante, com intenção de me humilhar.
Suas duas piadas com conotação sexual foram extremamente inapropriadas e
abomináveis. Nesse momento você deixou a sua falta de respeito bastante clara.
Minha piada sobre a praia não tinha nenhuma intenção de desrespeitá-la. A sua
reação foi totalmente infeliz.
A propósito, de onde você tira essa sua certeza de que Yago não pode suscitar em
mim certas sensações? Vocês, Sacrios mulheres, costumam me tratar de forma tão
degradante que não vejo porque eu não poderia tentar voltar o meu olhar para outras
direções.
Não pense que irá escapar ilesa depois dessa confrontação direta, Manu. Você
não será excomungada, porque eu tenho o mínimo autocontrole das minhas reações,
diferente de você. Mas você será destituída de sua função de instrutora dos Saos.
Eu irei rebaixá-la para outra função qualquer menos importante. Farei questão
de descobrir uma função bem chata que te desagrade para te colocar nela.
Minha decisão não será revogada sob nenhuma circunstância, mesmo que você se
ajoelhe e me peça desculpas mil vezes. Oh, eu esqueci, as mulheres da SSC nunca
possuem a humildade de pedir desculpas e nunca admitem quando estão erradas.

Atenciosamente,

Mau

Líder Absoluto da SSC do Brasil, Imperador da SSC Internacional, Matador


de Deuses

Então aquela era a SSC brasileira: sempre repleta de altas emoções.


Mau faria questão de excomungar e rebaixar de posição todas as pessoas
que não atendessem suas vontades. Era melhor que Yago se cuidasse, ou
ele poderia ser o próximo.
– Não há alguma forma de tirar o Mau do poder? – perguntou Iaboni
– por votação, ou algo assim?
– Não sei – falei.

180
Sociedade do Sacrifício

Ele provavelmente só continuava como líder porque ele era siddha de


nascimento. Ou será que havia algo mais? Ele agia como se fosse imune
a qualquer tipo de rebaixamento de posição ou expulsão: agia como um
rei, fazia o que queria, falava o que queria.
Eu já estava tão acostumada com isso que não me perguntava mais
porque ninguém fazia isso parar. Era por causa da popularidade dele?
Também não devia ser esse o motivo.
Mas um dia eu ia descobrir.
– Um dia o rei vai cair do trono – garantiu Iaboni – eu tenho certeza.
Que um dia Mau deixasse de ser o líder me parecia algo
completamente impossível. Eu nem conseguia conceber tal disparate.
Mas se acontecesse... quem sabe fosse para melhor. Só que,
provavelmente, se fosse acontecer não seria tão cedo.
Manu escreveu o seguinte no site:

Se você não se importa em ser derrotado na guerra contra os Deuses, pode me


destituir da minha função. Provavelmente seu orgulho é mais importante que nossa
vitória.
Estou ansiosíssima para assistir às suas tentativas de lidar com meus alunos.
Treinar metade deles é uma coisa. Agora, treinar o grupo inteiro como faço exige uma
habilidade excepcional. Espero que você esteja à altura do desafio... líder.

Um pouco depois, Yago escreveu:

Mau, sobre o que você disse ao meu respeito, espero sinceramente que esteja
brincando.

E as mensagens pararam por aí. Mau não respondeu mais.


Na semana seguinte, Tejas e Sarthak, os dois outros Sacrios da lenda
dos Três Tesouros, visitaram o acampamento. Todos estavam
entusiasmados.
– Será que eles farão uma mostra de seus poderes sobrenaturais? –
perguntei às meninas, ansiosa.
– Quem dera – disse Sella – serão apenas palestras. Mesmo assim,
será incrível.

181
Wanju Duli

Contudo, tive que faltar às palestras do dia, porque eu tive uma


diarreia extremamente severa.
Eu queria me matar! Por que logo naquele dia? Porcaria! Eu sempre
perdia os discursos mais importantes.
Para minha surpresa, antes de ir embora, Tejas pediu para me ver.
Espere. Ele queria especificamente ME ver? O que eu tinha de
especial?
“É claro, sou brasileira” pensei, confusa. Eu já tinha me esquecido
que essa era considerada uma condição especial.
Engraçado que ninguém me tratava diferente no acampamento por
causa disso. Uns poucos ficaram curiosos, mas nada de mais. Lá no
acampamento não importava tanto de onde você tinha vindo, mas o que
você conseguia fazer: cozinhar, costurar, limpar, tratar doenças...
É claro que iniciantes, Saos e Sacrios eram tratados de forma
diferente. Nós, novatos, sempre ficávamos com as tarefas mais
desagradáveis, como limpar banheiros... quando tínhamos o luxo de ter
algo parecido com um banheiro! Os Saos também não tinham tantos
privilégios a mais, mas os Sacrios... ah, eles tinham até internet! Também
podiam ir e vir do acampamento quando queriam. Claro que eles
também ajudavam nas tarefas domésticas, mas era um pouco menos.
Eles tinham coisas grandes para se preocupar, como arriscar a pele
lutando contra Deuses.
Nós invejávamos os privilégios dos Sacrios, mas às vezes
esquecíamos das responsabilidades que eles possuíam e das situações
perigosas pelas quais eles precisavam passar.
Tejas pediu para conversar comigo em particular. Ele apertou minha
mão com animação e deu um largo sorriso.
– Vejam só quem está aqui! – ele exclamou, de forma simpática – a
famosa Antônia!
– Famosa? – perguntei, estranhando.
Ele só podia estar brincando.
– É que Raghav me falou muito de você – Tejas explicou.
Ah, então era isso.
– Espero que tenham sido coisas boas – eu disse.
– É claro – garantiu Tejas – ele disse que você roncou bem alto nas
viagens de carro. Há, há, brincadeira!

182
Sociedade do Sacrifício

Nossa, que cara rude. Dei um sorrisinho amarelo.


– Então... por que você queria me ver? – resolvi perguntar.
Provavelmente era só por curiosidade.
– Eu estava me perguntando porque você não apareceu na minha
palestra.
Putz. Ele tinha notado? Mas ele nem sabia quem eu era!
Provavelmente alguém contou que não fui.
– Eu estava... meio doente. Queria ter ido.
– É mesmo? Que pena. Espero que esteja melhor agora.
– Sim, estou melhor, obrigada.
Eu estava me sentindo ligeiramente desconfortável na presença dele.
Queria que aquela conversa terminasse logo.
– Está gostando daqui? – ele perguntou.
– Bastante – garanti.
– Qual a sua parte preferida? Limpar as latrinas ou lavar os pratos?
Puta que pariu. Ele estava tentando me encurralar. Eu precisava dar
respostas inteligentes.
– Não me importo de fazer as tarefas a que sou designada – resolvi
dizer – é divertido quando as faço com minhas amigas.
– Entendi – ele sorriu – está ansiosa para se tornar Sacrios e conhecer
os Deuses?
– Muito! – exclamei – mas estou tentando dar um passo de cada vez.
Meu objetivo agora é completar esse semestre com sucesso. Meu
objetivo do próximo semestre será receber minha iniciação de Saos.
– Que organizada!
Ele estava tirando com a minha cara.
Foi então que notei que ele usava um colar com uma pena. Meu
coração deu um salto.
Se ele era tão ousado nas perguntas que fazia, senti-me encorajada a
ser ousada também.
– Essa é a pena que você achou no mundo dos Deuses? – apontei
para o colar dele – aquela que te faz voar?
– Essa mesma – ele respondeu naturalmente, com um sorriso.
– Como é o mundo dos Deuses? – perguntei.
– Meio sem graça – ele respondeu – gosto mais do nosso mundo.
Quando somos Saos ficamos ansiosos para conhecer o mundo dos

183
Wanju Duli

Deuses. Quando somos Sacrios tudo que queremos é sair de lá e voltar


para o nosso.
– Por quê?
– Porque algumas pessoas ficam um pouco ansiosas sob a perspectiva
de saber que podem ser mortas a qualquer instante quando estão lá.
Fazia sentido.
– Então aproveite a sua vida aqui enquanto dura – recomendou Tejas
– aproveite bastante o nosso mundo. Porque um dia tudo o que você vai
desejar será voltar para ele. Preferencialmente com os dois braços e
pernas inteiros.
– Obrigada pelo conselho.
Diferente de outros Sacrios, Tejas parecia responder qualquer
pergunta que eu fazia. Ele até mesmo mencionava assuntos
supostamente proibidos, como se estivesse falando sobre o tempo.
Será que eu deveria me aproveitar disso?
– Posso te ver voar? – perguntei.
– Eu adoraria te mostrar se você tivesse me feito esse pedido uma
hora atrás – ele respondeu – agora comi uma carne de porco tão pesada
que mal consigo me mover. Estou com muitas gases. Então se você
sentir um cheirinho estranho, já sabe o que é.
Caramba. Aquele cara era uma figura. E não exatamente num bom
sentido.
Acho que eu ao mesmo tempo gostava e desgostava dele. Eu não
conseguia decidir. Ele era divertido, mas de uma forma que me deixava
embaraçada e sem reação. Então às vezes eu não gostava muito daquela
conversa.
– Pretende permanecer definitivamente conosco?
– Ainda não decidi – resolvi responder – mas irei curtir meu tempo
aqui enquanto dura e dar o meu melhor, pois caso eu resolva voltar para
o Brasil no semestre que vem não terei arrependimentos.
– Já quer voltar no semestre que vem? – ele fingiu estar
impressionado.
Ele tinha ouvido uma palavra do que eu disse?
– Fique mais tempo conosco! Você não precisa ser espetacular no seu
desempenho. Nós só queremos nos exibir por termos uma brasileira
aqui.

184
Sociedade do Sacrifício

Ele era bem direto.


– Mas se você já tomou sua decisão, acho que não há o que fazer –
ele prosseguiu, no mesmo tom dramático – mande meus cumprimentos
para o Mau e para a Vic quando voltar.
– Infelizmente, a Vic não é mais a vice-líder – informei, em tom de
pesar – ela foi excomungada da SSC do Brasil.
– Oh – ele estreitou os olhos e deu um sorriso matreito – e como
você sabe disso? Essa notícia é muito recente e você não tem acesso à
internet.
Merda! O desgraçado já sabia. E estava me testando!
– Ah... meu irmão me telefonou contando – falei, tropeçando nas
palavras – ele é Saos lá e naquele dia Mau os mandou para casa por um
dia.
– Entendo – ele respondeu, com o mesmo sorriso, em tom de quem
não acreditava muito.
É óbvio que ele desconfiou, diante de minha confusão e de meus
gaguejos. Eu praticamente denunciei a mim mesma de que tinha feito
algo que não devia.
Eu não deixava de ter um pouco de medo cada vez que falava com
um Sacrios. Aqueles caras tinham siddhis. E se ele soubesse ler
pensamentos?
Pelo jeito, todo mundo acompanhava as postagens do site da SSC do
Brasil, incluindo os Sacrios estrangeiros. Mau devia saber disso e mesmo
assim não tomava o menor cuidado com o que escrevia.
– Seu irmão tem sorte – Tejas comentou – eu teria viajado para
assistir à execução, mas infelizmente Mau proibiu a presença dos Sacrios
estrangeiros.
Perdão?
Eu realmente não esperava esse comentário.
– Então você é a favor do que Mau fez? – perguntei.
– Completamente. Mau sabe o que faz.
Ele sabia? Como ele poderia ter certeza?
– Por que Mau é o líder da SSC Internacional? – resolvi perguntar – o
que ele tem de especial? Por que a palavra dele é sempre absoluta?
Dessa vez, Tejas abriu um sorrisão.
– Eu não posso te contar isso.

185
Wanju Duli

Finalmente eu tinha encontrado uma pergunta que Tejas não podia


responder.
Tejas parecia muito contente por eu ter encontrado uma das
perguntas proibidas.
– Bem, eu preciso ir agora. Foi um prazer conhecê-la, menina
brasileira. Como é seu nome mesmo?
– Antônia.
– Isso! Antônia! Nos vemos por aí.
E ele saiu, com as mãos nos bolsos.
Primeiro ele tinha me dito que eu era famosa. No final, já tinha se
esquecido do meu nome.
Tudo bem. Foi uma conversa interessante. Minha viagem para a Índia
já começava a dar seus frutos.
Como eu já estava há duas semanas por lá, eu já tinha terminado de
ler meus três livros. Quando Mei-Xiu descobriu, começou a me dar
lições diárias de mandarim para que eu pudesse ler alguns capítulos do
livro gigantesco dela.
– Eu não vou conseguir aprender seu idioma difícil a ponto de
conseguir ler um livro – eu me queixei.
– Você vai ficar aqui por mais cinco meses e meio, não é? – ela me
perguntou – então se você se dedicar bastante nos seus estudos, no seu
último mês aqui você já vai conseguir ler algumas coisas.
Eu duvidava muito. Era mais fácil ela simplesmente traduzir os
capítulos para mim conforme lia. Mas ela queria fazer da forma mais
difícil.
Eu também estava estudando um pouquinho de hindi diariamente,
mas eu estava mais fingindo estudar do que estudando de fato. Só
porque Raghav me pediu e eu considerava os pedidos dele muito
importantes.
Eu vivia morrendo de sono, porque dormíamos muito pouco e
acordávamos bem cedo. Mais de uma vez eu já tinha dormido em cima
dos livros.
Frequentemente eu pensava na minha cama, na minha casa. Eu tinha
saudade dos domingos. Lá não havia sequer um dia no qual eu poderia
dormir até mais tarde.

186
Sociedade do Sacrifício

Confesso que de vez em quando eu dava uns cochilos na barraca,


mas eu raramente tinha tempo durante meu dia cheio para fazer isso.
Por causa da minha falta de sono, eu dormia em pelo menos metade
das meditações que fazia. Era terrível. Eu sentia que não estava
avançando nada.
– Não se preocupe – Roshni tranquilizou-me – não importa se sua
meditação é calma ou agitada, acordada ou dormindo. Nada disso
importa. Só pelo fato de você sentar regularmente para meditar você já
está avançando, mesmo que não perceba.
A partir daí, essas palavras se tornaram minha força para eu sempre
seguir em frente.
Quando completou um mês desde que eu havia chegado, senti-me
orgulhosa. Eu já tinha ouvido falar de iniciantes que desistiam do
treinamento nas primeiras semanas, especialmente no Brasil, onde o
treinamento era mais pesado. Mas se eu tinha conseguido passar pelo
primeiro mês, senti que a partir daí as coisas melhorariam um pouco. Eu
estava começando a me acostumar. E estava me sentindo cada vez mais
confiante de que conseguiria enfrentar tudo.
Até que caiu a tempestade.
Eu fiquei muito assustada. Eu não sabia que lugares com neve
podiam ser tão perigosos.
Alguns de nós entramos dentro dos carros ou das poucas habitações
improvisadas que havia. Algumas tendas e barracas foram
completamente destruídas. Dedicamos a semana seguinte para consertar
tudo.
Eu nunca me senti tão exausta. Nossa rotina mudou completamente.
Eu quase chamei um Sacrios para dizer que eu desistia de tudo e queria
voltar para minha casa, no Brasil.
Mas eu aguentei. Não porque fui forte, mas simplesmente porque tive
vergonha de dizer que eu queria voltar.
Para completar, as portas dos carros estavam congeladas. Mas aquilo
não foi o pior. O motor congelou. Estávamos presos naquele lugar. Eu
não conseguiria voltar nem se eu quisesse.
Faltaram suprimentos. Estávamos sem comida, porque os Sacrios
não podiam usar os carros para comprar alguma coisa na cidadezinha
mais próxima.

187
Wanju Duli

Nossos “mecânicos” estavam tentando dar um jeito nos carros,


enquanto outros tentavam dar um jeito no sinal da internet.
Não poderíamos ler as últimas merdas escritas pelo Mau. Que pena.
Porque não tínhamos outras preocupações mais importantes, como
ficarmos vivos.
Tivemos que pegar cobertores extras, porque o frio ficou
insuportável naqueles dias.
Que ideia mais idiota montar um acampamento no meio daquela
neve! Quem foi o imbecil que teve essa ideia? Eu apostava que tinha sido
algum Sacrios que permanecia confortavelmente em seu escritório em
alguma cidade grande.
Ficamos por duas semanas intermináveis naquele inferno congelante
até as coisas voltarem ao normal.
É claro que uma das primeiras coisas que fizemos foi checar o site da
SSC do Brasil. Mau já tinha postado algumas coisas novas. Ele já tinha
escolhido o novo vice-líder.
– Eu não acredito – eu disse – desde quando Mau está interessado
em chamar gente de outros países? Ele nem sabe falar inglês.
E ele não convidou qualquer um. Ele chamou Dan-Dan, a líder da
SSC da China, para ser a treinadora do exército no lugar de Manu. E
como vice-líder chamou Farah, líder da SSC da Indonésia, que já era
vice-líder da SSC Internacional.
– Isso não faz o menor sentido! – eu não conseguia entender – por
que pessoas tão poderosas e influentes como Dan-Dan e Farah
deixariam de ser as líderes da SSC de seus próprios países para assumir
postos de general de exército e vice-líder no Brasil?
– Você não faz a menor ideia da influência de Mau, não é? – disse
Sella, divertindo-se com minha surpresa – você pode não notar, já que
ele é do seu país, mas para o pessoal dos outros países Mau é quase um
Deus. É uma honra assumir postos no Brasil. É a primeira vez que Mau
permite que membros de outros países assumam posições de
importância na SSC de lá. É claro que elas não iam recusar.
Era tão legal assim ser um siddha por nascimento? Os poderes
psíquicos do Mau eram tão fodas? Ou ele era assustador por outros
motivos?

188
Sociedade do Sacrifício

Quem assumiu o posto de líder na SSC da Indonésia foi o antigo


vice: Afif. E o novo líder da SSC chinesa também foi o que era vice:
Jian-Jun.
Mau escreveu uma mensagem de boas-vindas no site. Às vezes eu
achava que era melhor ele deixar as mensagens a cargo do Yago, que
conseguia escrever de forma mais profissional. Mas Mau não queria
perder nenhuma oportunidade para bagunçar.

Caríssimos aleatórios brasileiros e estrangeiros que leem a merda desse site porque
amam as putarias que eu escrevo,

É com orgulho que eu anuncio a chegada de duas novas senhoritas para a SSC
mais popular do mundo. É claro que vocês as conhecem, porque elas são grandes
estrelas mundialmente famosas entre os Sacrifícios: Dan-Dan, antiga líder da SSC
da China, e Farah, que vocês certamente já conheciam pela sua posição de vice-líder
na SSC Internacional.
Farah já tinha vindo algumas vezes para o Brasil e inclusive já estava aqui na
ocasião da minha decisão. Ela assistiu à execução de Vic, embora eu tivesse proibido
a presença de Sacrifícios de outros países no dia da cerimônia. Eu somente a autorizei
porque ela insistiu muito e encheu tanto meu saco que tive que ceder. Ela parecia
muito entusiasmada no dia da execução e foi a única que bateu palmas.
Dan-Dan chegou ontem no Brasil. Ela ainda está se acostumando com as coisas,
mas como ela é uma pessoa extremamente competente, creio que pegará o jeito rápido.
Em geral, as coisas aqui não são muito difíceis de entender. Vejam o exemplo do
funcionamento desse site.
As duas donzelas podem se sentir à vontade de escrever o que desejarem. Como já
notaram, nós, Sacrios brasileiros, usamos o site oficial da SSC do Brasil para
praticamente tudo: confissões amorosas, selfies, discussões pesadas e leves, exposição
das nossas vidas pessoais, etc. Aqui é tudo muito exposto e alegre. Então não se
acanhem, moças, e digam tudo o que vier à mente de vocês.
Ah, sim, ocasionalmente nós também usamos esse site para dar avisos relevantes,
como nostalgia da lembrança da função original que esse site possuía quando começou.
Yago costuma dizer que o objetivo desse site ainda é dar avisos, mas há controvérsias.
Podem se apresentar, meninas, todos terão o maior prazer em conhecê-las!

Amavelmente,

189
Wanju Duli

Mau

Líder Absoluto da SSC do Brasil, Imperador da SSC Internacional, Matador


de Deuses

Argh! “Senhoritas”, “donzelas”, “moças”, “meninas”. Todos eles


termos extremamente irritantes e inapropriados para uma comunicação
daquele tipo. “Senhoritas” era o melhorzinho, mas eu tinha quase certeza
de que Mau tinha usado todos eles ironicamente. A não ser que ele
tivesse mesmo completa falta de tato e não se desse conta do quão ruim
aquilo soaria. Era como se ele as estivesse tratando como crianças ou
com uma excessiva reverência desnecessária.
Mau jamais teria feito aquilo se estivesse falando com Vic ou Manu.
Acho que cada mulher gostava de ser tratada de um jeito diferente e Mau
se atrapalhava com isso, porque ele definitivamente não sabia como se
dirigir ao sexo feminino.
Porém, aparentemente as duas não ligaram para nada disso. Farah
respondeu primeiro:

Querido Mau,

Muito obrigada pela amável recepção! Sinto-me muito bem-vinda aqui! :)


Agora devo me dirigir aos leitores? É assim que funciona?

Oi amores!

Eu sou a Farah. <3


Como Mau mencionou, já sou vice-líder da SSC Internacional há um tempão,
então a maioria já me conhece. Como o Mau é o líder da SSCI, eu e ele já sentamos
juntos para debater um montão de assuntos. Conheço ele há muitos anos. Na verdade,
vocês não têm nem ideia do quão bem eu o conheço! ;)
Eu já conversei pessoalmente com ele incontáveis vezes! Eu sei que a maioria
apenas sonha em conhecer o Mau pessoalmente. Vão sonhando, suas vacas! Ele não
se mostra para qualquer um.

190
Sociedade do Sacrifício

Voltando ao assunto da minha apresentação, eu também era líder da SSC da


Indonésia. Como vocês devem saber, os Sacrifícios do meu país estão entre os melhores
do mundo. Eu deixei meu vice, o Afif, cuidando de tudo lá. Então não se preocupem
que nossa SSC está em excelentes mãos!
Não há muito que dizer sobre mim, eu sou uma pessoa simples. Oh, sinto muito,
não irei revelar minhas medidas. Isso é segredo! Mas se o Mau quiser saber eu conto.
:3
Para iniciarmos, irei soltando algumas informações preliminares. Preparei essa
singela ficha:

Apelido: Farinhah (tem uma palavra parecida com essa em português)


Idade: 31 anos
Signo: Leão
Tipo Sanguíneo: O - (Sacrios perdem bastante sangue, então é importante saber!)
Altura: 1,61
Peso: 52kg
Cor favorita: vermelho (de paixão)
Animal favorito: lóris
Comida favorita: sate ayam
Banda favorita: Noah
Livro favorito: nenhum, odeio ler
Filme favorito: qualquer um de romance
Esporte favorito: badminton
Idiomas que sei: além de bahasa indonesia, inglês e português (tive que aprender
português perfeitamente por exigência do Mau)
Hobbies: ir ao cinema!!! Estou só esperando alguém me convidar ;)
Cidade que nasci: Jakarta
Cidade que moro: São Paulo! (bem pertinho do Mau)

Acho que isso já é suficiente como apresentação. É claro que há muitas outras
coisas para saber sobre mim, mas também gosto de guardar alguns segredinhos, hihi.
Espero que tenha gostado da minha apresentação, Mau! Me esforcei bastante!

Carinhosamente,

191
Wanju Duli

Farah

Vice-líder da SSC do Brasil e Primeira-dama da SSC Internacional

– Nossa, ela se esforçou mesmo nessa apresentação – comentei.


– Sou fã da Farah – garantiu Sella – eu a admiro há muitos anos. E
não se deixem enganar quando ela se finge de boba na internet. Às vezes
ela é um pouco como Mau: ela finge que é burra para brincar, mas na
verdade é super inteligente.
– Ela está dando em cima de Mau de verdade ou só está tirando sarro
dele? – perguntou Mei-Xiu.
– Os dois – sorriu Sella.
Um pouco depois, Dan-Dan escreveu o que pareceu quase uma cópia
comportada do que Farah disse:

Olá Mau e Farah! Olá pessoal!

Obrigada Mau, pela recepção, e obrigada Farah, pela apresentação.


Hmmm.... eu não sei o que dizer :)
Eu sou um pouco tímida. Nós chineses, em geral, somos tímidos.
Como Mau disse, eu era a líder da SSC na China e agora deixei o vice Jian-Jun
como líder.
Cheguei ontem no Brasil e a coisa que mais gostei até agora foi o pãozinho de
queijo!
Sou uma grande fã do site da SSC do Brasil, então é muito divertido poder
escrever aqui e estar participando de tudo isso! Eu sempre acompanhei o site colando
as postagens no Google Tradutor ou esperando as traduções. Mas agora meu
português está muito melhor. Até morei em Macau por um tempo para melhorá-lo.
Hã... acho que irei colar a lista da Farah aqui para vocês poderem me conhecer
melhor. Que vergonha!

Apelido: D-D
Idade: 33 anos
Signo: Câncer
Tipo Sanguíneo: O +

192
Sociedade do Sacrifício

Altura: 1,58
Peso: 49kg
Cor favorita: branca
Animal favorito: panda-vermelho
Comida favorita: cha siu bao
Banda favorita: Top Combine <3
Livro favorito: The Joy Luck Club, de Amy Tan (não sei como traduziram em
português)
Filme favorito: MUITOS, de comédia e especialmente romance, como esses: 不能
說的秘密, 非誠勿擾, 我的最愛, 七年很癢.
Esporte favorito: ping pang qiu
Idiomas que sei: mandarim, cantonês, inglês e agora português! (algumas vezes eu
cometo gafes terríveis em português)
Hobbies: cozinhar, costurar, cantar, ler.
Cidade que nasci: Shanghai
Cidade que moro: estou temporariamente em São Paulo, mas em breve me moverei
para o acampamento e não tenho autorização para dizer em que cidade fica.

Acho que isso é tudo!

Beijos,

Dan-Dan

Instrutora de Saos na SSC do Brasil

– Ela é fofa – disse Roshni.


– Ela só gosta de filmes populares – comentou Mei-Xiu.
A resposta de Mau veio a seguir:

Dan-Dan e Farah,

Estou comovido pelo esforço que vocês colocaram em escrever suas respectivas
apresentações.

193
Wanju Duli

Fiquei tão comovido que irei até preencher essa lista também, para socializar. Só
não irei preencher os campos de livro, filme e banda porque esses eu já informei na
minha antiga conta do Facebook. Meus verdadeiros fãs irão se lembrar.
Já tem tantas informações pessoais minhas na internet que, foda-se, essa lista é
quase inofensiva em comparação.

Apelido: meu nome já é um apelido. Mau não é meu verdadeiro nome.


Idade: 20 anos (como veem, não sou mais adolescente. Para os escrotos da internet
que insistem que escrevo como adolescente, chupem).
Signo: não sei essa merda. Acho que é áries.
Tipo Sanguíneo: não sei essa merda. Deve ser mutante.
Altura: 1,71
Peso: nunca me pesei.
Cor favorita: nunca pensei nisso. Deve ser verde, ou laranja, ou preto.
Animal favorito: deve ser cachorro, morsa, ou tubarão.
Comida favorita: pizza de... bosta.
Esporte favorito: surf, boliche, futebol, qualquer coisa que esteja na moda.
Idiomas que sei: há, há, muito engraçado.
Hobbies: tirar meleca do nariz e comer.
Cidade que nasci: Recife.
Cidade que moro: São Paulo, mas gostaria de morar em Ipojuca.

Pronto. Demorei para escrever isso. Tive que pensar muito. Espero que valorizem
meu esforço.

Aquilo tudo foi mais informações do que eu poderia computar.


Partindo do pressuposto de que Mau não estivesse mentindo, na
época em que ele fez aquela paródia do vídeo no Youtube ele tinha 14
anos. Parecia pouco provável. Nessa época ele também escreveu um
texto no site oficial sugerindo que já estava na SSC há dez anos. Ele não
poderia ter entrado com 4, mesmo sendo um siddha expecional.
As contas não batiam. Tinha alguma coisa errada.
– Mau tem praticamente a nossa idade! – exclamou Mei-Xiu, chocada
– ele estava no colégio pouco tempo atrás. Dá pra acreditar?

194
Sociedade do Sacrifício

Eu realmente não achava que ele tinha frequentado um colégio. Ele


devia ter ido direto pra SSC. Mau tinha mencionado antes que não teve
infância e blá, blá, blá.
– Que pirralho – concordou Sella – bem, os “escrotos da internet”
estão certos. Mau só podia ter mais ou menos essa idade do jeito que
escreve.
– Aposto que ele só estava esperando completar 20 anos para revelar
a idade – sugeriu Roshni – só para alegar que não era mais adolescente.
Isso é tão bobo.
– Vocês notaram que ele intencionalmente não revelou o nome real,
né? – comentou Mei-Xiu – ele está evitando essa pergunta faz tempo.
E ele era de Recife. Não havia motivos para ele mentir aquilo.
Eu também era do nordeste, embora eu não fosse de Pernambuco.
Por alguma razão, achei legal saber que éramos da mesma região.
Farah enviou uma mensagem logo depois:

O_O
Meu Deus, Mau!! Eu vou te matar, eu juro!!!!!
Eu SEMPRE te fiz algumas perguntas dessa lista e você sempre se negou a
responder. E agora você simplesmente resolve dizer, como se não fosse nada!
Se eu soubesse que você ia responder a minha lista, eu teria colocado outros itens
que eu queria saber sobre você. Ahhhhhhh não acredito que perdi essa oportunidade!
:/
Quando você está na internet, você se transforma em uma pessoa completamente
diferente!! O quão longe você pretende ir para se exibir?
Você fica escrevendo essas merdas nessas listas só pra posar de cool. “Surf, boliche
e futebol”? Faça-me o favor, Mau. Você nunca surfou na vida. u_u
Você pode enganar esses imbecis da internet, mas a mim você não engana!
Eu fiquei rolando os olhos na sua lista de cores e animais favoritos. Você
provavelmente não usou nem dois segundos pra pensar nessas perguntas e depois vem
com essa história de “demorei para escrever isso”? Até parece! Você peidou suas
respostas.
E como é que alguém nunca se pesou? Que resposta mais ridícula! Você nunca
fez um exame médico? Ou você fez seu último exame quando tinha 12 anos?
Sobre seu tipo sanguíneo... fala sério, Mau, você está louco pra contar, né? Eu
posso ver os seus dedos coçando para escrever isso.

195
Wanju Duli

Como esperado, você não contou seu nome. Eu não sei seu nome real. Você nunca
me contou. Já tentei descobrir muitas vezes. Como é que você faz para esconder tão
bem?
E agora, o principal: sobre a sua idade.
PORRA, FINALMENTE!!!! Você finalmente contou! Não acredito!! Eu
esperei TANTO por esse dia!! Estou quase chorando!
Eu sempre achei que você tinha 22 ou 23 anos. Sei lá porque achei isso. Quando
eu te vi pessoalmente pela primeira vez eu percebi que você era meio adolescentezinho.
Então eu fiz os cálculos e cheguei mais ou menos nesses números.
Mas você é ainda mais novo do que eu pensei. Que fofo. :)
Você nunca mencionou nenhuma vez sua idade na internet. Sei disso porque eu
pesquisei bastante. Então esse é um momento histórico, gente! TODO MUNDO vai
estar falando sobre isso hoje!!
Muito obrigada, querido, por todos esses momentos de revelações. Você me deixou
sem fôlego! ;)

– Nossa, que exagero – comentei.


Farah estava fazendo todo aquele drama por nada. E o tom dessa
segunda mensagem dela havia mudado completamente em relação à
primeira. E depois ela ainda vinha com essa de que o Mau mudava a
personalidade dele. Imaginei que aquela moça fosse como um camaleão
emocional, podendo passar da meiguice à fúria em poucos segundos.
Coitado do Mau. Não devia ser nada fácil lidar com ela. Eu me
lembrava vagamente que em uma das primeiras cartas que Caio me
mandou ele mencionava que Farah ficava dando em cima de Mau
descaradamente e ele não sabia como reagir. Tentei imaginar isso.
– Que garota escandalosa – observou Iaboni.
– Ah, para, ela é o máximo! – disse Farah – ela é uma das únicas
pessoas que realmente consegue confundir o Mau. Porque ela fala
praticamente qualquer coisa que vem à mente. A maoria tem um pouco
de medo do Mau e receio de perguntar certas coisas.
Eu não tive um bom pressentimento sobre isso. Mau podia acabar
executando Farah um dia, da mesma forma que fez com a Vic. Se ela
fosse longe demais, ele ia arrumar alguma desculpa para realizar a
execução. Ele não disse que estava acima das leis? Ele podia fazer o que

196
Sociedade do Sacrifício

queria. Por isso, não era estranho o fato de tanta gente ter medo de Mau.
Farah que era meio louca por não ter.
Mau respondeu:

Eu estou até com preguiça de passar os olhos pela sua mensagem e refutar cada
coisa que você disse.
Para início de conversa, não vi nada de errado nas minhas respostas. Foram
respostas normais.
Não há nenhum motivo especial pelo qual eu não conto algumas coisas que você
me pergunta. Às vezes só não estou a fim.
E como você sabe se eu já surfei ou não? Você fica me vigiando 24 horas por dia?
Com certeza não.
Sobre o peso, eu estava sendo irônico. Embora faça muito tempo desde a última
vez que subi numa balança, eu sei mais ou menos quanto peso. Eu só não estava a
fim de dizer, novamente por nenhum motivo especial. Nem sei porque essa pergunta
existe nesses tipos de questionários se o peso de uma pessoa normalmente varia não só
de um dia para o outro mas em diferentes horários de um mesmo dia. Então seria
preciso mudar a resposta do questionário a cada hora?
Eu não sabia que você se incomodava tanto com o fato de não saber meu nome
real. Não é mistério nenhum. Meu nome está na minha carteira de identidade. Você
nunca viu porque não quis.
Agora, a minha idade. Grande coisa.
Satisfeita?

Farah respondeu:

Satisfeitíssima! Obrigada! :]
Até que você é bom nisso, Mau. Quero dizer, dar boas respostas que soam legais,
sem se comprometer.
Se bem que às vezes você escreve tanta besteira que eu sinto até vergonha de te
conhecer. Mas acho que todo mundo pode ter dias ruins.
Independente de você estar num dos seus melhores dias ou nos piores, eu gosto de
você todos os dias. <3

Mau não respondeu à declaração casual. Ele estaria deliberadamente


ignorando Farah?

197
Wanju Duli

Quem enviou a próxima mensagem foi Manu:

Eu realmente não aguento mais ler isso. Por favor, parem. Estou quase diabética
com tanto açúcar.
E aquelas listas de vocês. É possível ser mais ridículo?
Mau, você acha que isso aqui é um site de encontros? Yago já disse para vocês
pararem de usar o site oficial da SSC como bate-papo. Fica muito desorganizado. Se
precisarmos enviar uma mensagem séria e urgente e vocês estiverem no meio de uma
dessas conversas irrelevantes, a mensagem irá lá para baixo e ninguém vai ler.
Dê um jeito nisso. Diga para suas convidadas se portarem de acordo.

Sinceramente,

Manu

Mau respondeu alguns minutos depois:

Por que será que a Manu não escreveu “General do Exército da SSC do Brasil”
no final de sua mensagem, como de costume? Oh, espere. Eu sei porquê. Foi porque
eu a destituí desse posto! Eu a coloquei em outro que é irrelevante demais para sequer
ser digno de menção.
Essas duas senhoritas não são minhas convidadas. Elas são novos membros da
SSCB, com títulos muito mais importantes que os seus. Por acaso, uma delas é
exatamente quem irá te substituir.
Quem você pensa que é para dizer o que devo ou não devo fazer?
E se não está gostando do que escrevemos, simplesmente não leia. Ninguém está te
obrigando a fazer isso.
Como agora seu posto não tem importância nenhuma, eventualmente poderei
bloquear o seu login, retirando o seu poder de escrever postagens aqui no site. Afinal,
como você não coordena mais os Saos e não terá nenhuma notícia importante a
reportar, sua presença aqui não é mais relevante.
Se Yago tem algo a dizer, que ele mesmo me escreva. Não preciso receber
informações de segunda mão.

Atenciosamente,

198
Sociedade do Sacrifício

Mau

Líder Absoluto da SSC do Brasil, Imperador da SSC Internacional, Matador


de Deuses

Farah escreveu:

HÁ, HÁ, HÁ!!! BEM FEITO, sua bruxa!!! Quis posar de poderosa e tomou
nos dedos!!
A única ridícula aqui é você, meu bem. Você que não está se portando de acordo.
É melhor que conheça seu lugar.
Então seja uma boa garota, obedeça seu líder e suma daqui.
Vadia.
Hi, hi, hi ;p

Atenciosamente,

Farah,

Vice-líder da SSC do Brasil e Primeira-dama da SSC Internacional

Meu Deus. Mau tinha arranjado um monstro como vice-líder.


Eu não entendia porque ele a tinha convidado, já que ele nunca foi
muito com a cara dela. Ele devia estar mesmo com falta de opções.
Suspeitei que em breve ele iria se arrepender de ter matado Vic, pois Vic
era um anjo perto daquela coisa.
– Farah está com ciúmes, porque Mau já deu em cima de Manu antes,
mas Mau sempre ignora as investidas de Farah – opinou Roshni.
Se Mau continuasse humilhando Manu daquela forma, eu não duvidei
que em pouco tempo ela optasse pela execução. Outra opção era pedir
transferência para a SSC de outro país.
É claro que Mau continuava a puni-la por ela ter recusado o pedido
de ser vice de forma tão grosseira. Mas por quanto tempo mais ele
continuaria a torturá-la? E se ele a impedisse de sair do país somente
para continuar a torturá-la quando desejasse? Provavelmente ele teria
poder para fazer isso. Essa perspectiva me assustou.

199
Wanju Duli

Cada vez mais eu entendia porque Vic tinha optado pela execução:
para ter a chance de morrer com dignidade em vez de passar a vida
inteira sofrendo humilhações de Mau. E cada vez mais eu começava a
achar que havia sido a escolha mais acertada.
No final, a morte não era a pior coisa que poderia acontecer com
uma pessoa. Mau não tinha aprendido nada com a situação de Vic e
continuava a cometer os mesmos erros.
Dessa vez foi Yago que escreveu:

Parabéns, Mau. Você encontrou uma vice-líder que consegue escrever mais
besteiras em uma única postagem do que você faria em dez. Eu jamais imaginaria
que isso fosse possível. Incrível!
Quanto a Dan-Dan, seja muitíssimo bem-vinda. Espero que você tenha uma
excelente estada na SSC do Brasil. Qualquer coisa que precisar, estarei à disposição.
Mau, pare de incomodar Manu. Você já a puniu o suficiente. Agora deixe-a em
paz.
Eu sei que você é o líder e eu não posso mandá-lo fazer nada, mas aceite meus
conselhos como a sugestão de um amigo.
Pense bem no que está fazendo. Sugiro também reconsiderar a decisão de manter
Farah como vice-líder. Em poucos minutos aqui ela já fez a maior bagunça. Então
imagine o que ela poderá fazer mais adiante.

Sinceramente,

Yago

Chefe de Programação da SSC do Brasil

Aparentemente, Yago era o único razoável no meio daquela zona.


Pensando bem, Mau e Farah se mereciam. Era difícil dizer qual era o
pior.
Dan-Dan escreveu:

Muito obrigada pelas boas-vindas, Yago! Você é muito legal. :)

Farah escreveu depois:

200
Sociedade do Sacrifício

Yago, não seja desagradável. Não esqueça que sou a vice-líder e me encontro
acima de você. Portanto, me respeite.
A SSCB sempre foi essa zona? Os subordinados não possuem respeito por seus
superiores? Como foi que Mau permitiu que isso acontecesse?
Mau, eu realmente acho que você precisa começar a executar algumas pessoas.
Manu e Yago, por exemplo, não ajudam em nada. Só atrapalham. É dever do líder
se livrar de um peso morto.
E é dever da vice avisar ao seu superior quando os subordinados estão se portando
como uns escrotos miseráveis <3

Beijinhos, Mau!

Farah

Vice-líde da SSC do Brasil e Primeira-dama da SSC Internacional

A resposta de Mau veio a seguir:

Tem razão, Yago. Preciso me livrar de Farah antes que seja tarde.
Não sei onde eu estava com a cabeça quando a chamei. Eu me vi nela agora e não
gostei da sensação. Seria um pesadelo se eu me tornasse assim. E se ela estiver ao meu
lado, é o que vai acabar acontecendo.
Manu, me desculpe por ter sido tão insensível. Você receberá de volta o seu cargo
como General do Exército da SSCB.
Dan-Dan ocupará o lugar de vice-líder. Farah voltará para a Indonésia hoje à
noite no primeiro voo disponível.

Eu quase bati palmas de aprovação.


Desde quando Mau tinha tanta consideração? Yago estava sendo uma
influência positiva para ele.
Eu não podia acreditar que ele tinha mesmo pedido desculpas para
Manu. Que progresso!
É claro que Farah enviou uma resposta chorosa e furiosa:

Nããããããããããããããooooooooooo!!!!!! :(

201
Wanju Duli

Que merda, Mau! Você sempre coloca como vice a menina que você gosta. Isso
significa que você gosta mais de Dan-Dan do que de mim? Você nem a conhece tão
bem assim!
Dan-Dan, você é meu próximo alvo. Cuidado com o que vai fazer. Se encostar
um dedo no meu Mau, eu juro que farei algo realmente horrível com você.
Mas eu ainda sou a vice-líder da SSC Internacional, não é?
Eu concordo em voltar com uma condição, Mau: que você me acompanhe até o
aeroporto. Quero que você me pegue de táxi em casa e espere o avião comigo no
aeroporto internacional até eu embarcar.
Se não cumprir essas condições, eu vou continuar aqui enchendo seu saco até te
convencer a me aceitar como vice outra vez.

Diante disso, Mau falou:

Você não está em posição de estabelecer nenhuma condição. E como ousa ameaçar
Dan-Dan?
Enfim, eu já cansei dessa conversa. Vamos acabar logo com isso.
Você geralmente me vence pelo cansaço e acabo atendendo todas as suas vontades à
contragosto, só para não continuar ouvindo você grasnar no meu ouvido. Apesar de
você ter 11 anos a mais que eu, você age como se tivesse 11 anos a menos. Eu fico
exausto em ter que te tratar como uma criança mimada. Sempre foi assim.
Infelizmente, você ainda é a líder da SSC Internacional, mas por enquanto. A
continuidade de sua posição dependerá de como você se portar nos próximos dias.
Eu te acompanharei até o aeroporto se você prometer calar a boca. Eu só vou
fazer isso porque eu sei que se eu recusar você vai me infernizar pelas próximas horas.

E isso foi tudo. Nenhuma nova postagem apareceu no site nas horas
seguintes.
Os dois tinham mencionado que iriam até o aeroporto internacional
de São Paulo naquela mesma noite. Então algumas pessoas na internet
estavam propondo procurá-los, mas no final desistiram. Disseram que o
aeroporto de Guarulhos era enorme e a chance de localizá-los era
extremamente baixa, principalmente porque ninguém sabia como eles
eram fisicamente.

202
Sociedade do Sacrifício

No entanto, quando já era bem tarde da noite, uma pessoa clamou tê-
los visto ao acaso no aeroporto. Tirou umas poucas fotos ruins para
provar e relatou o ocorrido numa postagem de seu blog:

E aí pessoal! Tudo bem?


Adivinhem quem eu encontrei hoje enquanto estava aguardando meu voo para
Buenos Aires?
Sabem essa modinha da internet sobre Sacrifícios? Eu acho isso a maior
bobagem. Só sei um pouco sobre porque minha irmã é fanática por esses Sacrifícios e
nunca cala a boca a esse respeito. Então eu já ouvi falar sobre os carinhas mais
famosos, como o Mau e a Manu. Mau é aquele otário burro que só escreve merda
para chamar a atenção.
Seis anos atrás, quando ocorreram aquelas anomalias pelo mundo, os Sacrifícios
foram até capa de jornal. Agora a mídia está cagando pra eles. Não dá mais
audiência. Eles se tornaram apenas mais um fenômeno irrelevante do submundo da
internet. Não sei como ainda tem gente que fica procurando coisas sobre eles. Deve ser
só os hipsters que curtem teorias da conspiração absurdas, só para mostrar que eles
estão acima da opinião geral. Eles se acham muito superiores para aceitar as
explicações científicas “mainstream” sobre os desastres naturais que ocorreram
naquela época. Eles acham que a mídia está “manipulando” todo mundo e os
governos querem manter em sigilo o que os Sacrifícios fazem para salvar o mundo.
Como veem, um monte de bosta.
Continuando, eu estava sentado lendo notícias no meu celular para passar o
tempo, enquanto aguardava ficar mais perto do horário para ir até a sala de
embarque, quando entreouvi duas pessoas tendo uma conversa meio esquisita sobre
Deuses. A garota parecia ser estrangeira, porque tinha sotaque, então supus que ela
devesse ser hindu ou algo assim, para estar falando tão naturalmente sobre Deuses
como se eles fossem reais. Inicialmente, nem relacionei a conversa com Sacrifícios, pois,
apesar do fanatismo da minha irmã, pra mim esse assunto já morreu há muito tempo.
Não é algo tão comum para se comentar em conversas de aeroporto.
Eu tenho algum interesse em mitologia e acho curioso o fenômeno cultural da
religião. Resolvi prestar atenção na conversa, já que eu não estava fazendo nada
importante naquele momento. Eles começaram a usar um monte de termos
desconhecidos e eu não estava entendendo realmente o que eles diziam. Até que eles
usaram certas palavras que soaram familiares aos meus ouvidos, como SSC e Sacrios,

203
Wanju Duli

porque de vez em quando minha irmã menciona esses negócios. E ao notar que a
garota chamava o carinha de Mau, bastou somar dois mais dois.
Na verdade eu ainda não tinha tanta certeza assim se aquele era mesmo o Mau.
Eu poderia estar começando a delirar, de tanto minha irmã encher minha cabeça com
essas merdas, e ver coisas onde elas não existiam. O cérebro prega essas peças: tenta
localizar padrões nas coisas ao nosso redor com base naquilo que já vimos ou
estudamos. Por isso pessoas que estudam coisas como astrologia ou numerologia, por
exemplo, começam a encontrar um monte de coincidências onde talvez elas não
existam. Infelizmente até os cientistas podem ser acometidos por esse mal, bolando
teorias e realizando testes que parecem fazer sentido com base em outras teorias que
aprenderam, quando na verdade o cérebro apenas conectou os padrões de forma
equivocada. Por isso muitas teorias científicas são derrubadas de tempos em tempos
por outras melhores. E por isso a ciência é melhor do que essas religiões e esoterismos:
eles admitem que podem estar errados e tentam consertar, não clamam possuir
verdades absolutas.
Mas, vejam só, eu me empolguei de novo no meu discurso e esqueci do que eu
estava falando. Eu faço isso com frequência. (Se quiserem saber mais da minha
opinião sobre esse assunto, leiam minha postagem chamada: “O Triunfo da Razão
na Idade do Consumo”).
Quando achei que eu estava apenas delirando e que minha mente havia feito uma
associação ridícula, pensei racionalmente e decidi que era altamente improvável a
probabilidade de eu ter encontrado o tal do Mau no aeroporto. Por isso, retomei a
leitura das minhas notícias.
Porém, aquela garota falava muito alto e com uma voz estridente e isso estava me
desconcentrando. Eu tentava ler minhas notícias, mas metade da minha atenção
estava direcionada na voz dela e lembro claramente de tê-la ouvido mencionar sobre as
últimas postagens que eles trocaram no site oficial da SSC do Brasil. Eu sabia que
site era aquele, porque minha irmã não fazia outra coisa além de ler aquela bosta.
Eu não podia acreditar que eu ia fazer aquilo, mas eu precisava checar. Eu
queria tirar aquela dúvida da minha cabeça de uma vez por todas.
Minimizei a página das notícias e abri o site da SSC no celular. Passei os olhos
pelas últimas postagens. E qual não foi a minha surpresa ao descobrir que eles
mencionaram claramente que iriam até o aeroporto internacional naquela mesma
noite?
Até mesmo para um cético como eu, aquelas evidências não poderiam ser mais
claras: aquele rapaz ao meu lado definitivamente era Mau e a moça que conversava

204
Sociedade do Sacrifício

com ele era uma tal de Farah que também postou no site. Eu nunca tinha ouvido
falar nela e não fazia a menor ideia de quem ela fosse, mas devia ser um dos
Sacrifícios estrangeiros.
A garota mencionou algo sobre estar brincando quando ela sugeriu que eles
deveriam executar não sei quem. Depois ela mudou completamente de assunto, disse
que estava com fome e que queria comer no McDonalds antes de embarcar. Mau
aceitou a sugestão e os dois saíram de lá.
Poucos minutos depois, recebi uma ligação da minha mãe, que me avisou que eu
tinha esquecido minha escova de dentes. Eu disse a ela que não havia nenhum
problema, pois eu pretendia passar no supermercado quando chegasse em Buenos
Aires.
Antes de desligar o telefone, tive uma ideia. Pedi para que minha mãe passasse o
telefone para minha irmã.
“Isa, adivinha só quem está aqui no aeroporto. É aquele tal de Mau de quem
você vive falando, sabe? O Mau dos Sacrifícios”, eu disse a ela, curioso para escutar a
reação.
Ela não acreditou imediatamente. Ela nem tinha lido as últimas postagens do
site, porque estava ocupada estudando para uma prova. Então eu a mandei ler e ela
teve um chilique. Não parou de gritar no telefone e disse que me mataria se eu não
tirasse uma foto deles.
Subitamente, eu me arrependi de ter contado a ela, porque eu não tinha nenhuma
intenção de perseguir os dois pelo aeroporto. Eu ainda tinha um tempo sobrando antes
do embarque, mas eu não queria perder esse tempo fazendo isso.
Lembrei que os dois disseram que iam comer no McDonalds. Então eu resolvi
dar uma olhada lá. Se eu não os achasse lá desistiria de procurá-los e depois diria
para a minha irmã que infelizmente os havia perdido de vista.
Porém, eu os localizei assim que cheguei no McDonalds e sentei numa mesa
próxima. Tirei algumas fotos pelo celular discretamente. São essas que eu coloquei na
postagem. Não ficaram muito boas, mas eu não dou a mínima para isso, pois já fiz
muito fazendo o que minha irmã pediu. Ela não disse que as fotos precisavam ser
boas.
Os dois estavam rindo de alguma coisa que eu não entendi o que era, pois de onde
eu estava sentado agora eu não conseguia ouvi-los tão bem quanto antes.
Naquele momento Mau avisou à garota que ia ao banheiro rapidamente e logo
estaria de volta. Aproveitei esse instante para tirar uma foto mais visível dela, que
também postei aqui. Mas eu não tive paciência para esperar o carinha voltar e resolvi

205
Wanju Duli

sair de lá, até porque a garota parecia ter olhado na minha direção por um momento e
podia começar a desconfiar que eu estava tirando fotos dela. Ela é uma garota bonita,
como vocês podem ver, e eu não queria que ela ficasse achando que eu fosse um
pervertido aleatório. Nunca tive essa fama e não pretendo começar a ter só por causa
da retardada da minha irmã.
Quando entrei na sala de embarque fiquei sabendo que meu voo ia atrasar. Por
isso, escrevi essa postagem enquanto não tinha mais nada para fazer.
Espero que gostem da minha postagem de hoje, pois não é todo dia que se
encontra um Sacrifício na rua. Como se isso fosse grande coisa, rs.

Pouco tempo depois de a postagem aparecer, já havia dezenas de


comentários. No outro dia quando acordei e chequei o site, descobri que
a quantidade de comentários já havia chegado a centenas.
O blog daquele cara tinha pouquíssimas visualizações e raramente as
postagens dele tinham algum comentário. Acho que ele não imaginava
que ia virar uma estrela da noite para o dia só por causa daquele
“fenômeno irrelevante do submundo da internet”.
Havia centenas de comentários principalmente porque houve uma
série de polêmicas e muitas pessoas escreveram muitas vezes para
discutir e expor seus pontos de vista.
Embora também houvesse os comentários entusiasmados por causa
das fotos, muita gente também postou para criticar o autor da postagem
e seu declarado desprezo pelos Sacrifícios. O que ele postou sobre
ciência e religião também gerou muita controvérsia e todo mundo fazia
questão de mostrar o que pensava a respeito.
Era fato que o autor do blog estava sendo bombardeado, porque
pouquíssimas pessoas defenderam o ponto de vista dele, já que a maioria
que achou o link daquela postagem no Google era porque estava
procurando coisas sobre Sacrifícios na internet. Pessoas que,
obviamente, eram fãs de Sacrifícios e faziam questão de defendê-los.
Naquela noite, ele escreveu uma segunda postagem, completamente
surpreso:

Eu não fazia a menor ideia de que a minha postagem inocente fosse gerar essa
imensa repercussão. Sério, pessoas, de onde vocês saíram? Como encontraram meu
blog? Caramba!

206
Sociedade do Sacrifício

Esse é meu blog pessoal que apenas poucos amigos leem. Eu não escrevi aquilo
ontem imaginando que centenas de defensores dos Sacrifícios leriam, ou eu teria sido
mais comedido com minhas palavras. A maior parte dos meus amigos não liga para
Sacrifícios ou é neutro em relação a eles, então eu fiz muitas brincadeiras, não para
ofender ninguém.
Eu dou esses esclarecimentos em respeito àqueles que comentaram educadamente
sobre o que escrevi. Quem fez comentários rudes ou apenas me xingou sem mostrar
nenhum argumento, irei ignorar. Inclusive já apaguei alguns comentários que saíram
do limite do tolerável.
Infelizmente não tenho tempo de ler e responder cada comentário porque estou
extremamente ocupado. Eu vim para Buenos Aires para trabalhar e não para passar
as férias. Entendam que eu estou sem tempo para me defender e dar bons argumentos
para explicar meu ponto de vista. Por isso estou pensando em fechar o meu blog pelos
próximos dias e reabri-lo somente quando eu voltar de viagem.
Repito, estou sem tempo agora de explicar o que realmente penso sobre Sacrifícios.
O que vou escrever aqui será um comentário breve, somente para vocês terem uma
noção do que se passa na minha mente.
Eu respeito religiões, tenho alguns amigos religiosos e respeito as crenças deles.
Não sei praticamente nada sobre astrologia, então é melhor eu me abster de dar uma
opinião mais profunda. E sobre os Sacrifícios, eu sei que é verdade que eles treinam
em áreas remotas e não sei direito o que eles fazem, então não posso julgar. Eu não
sei se esses Deuses existem ou se eles podem causar desastres naturais. Os Sacrifícios
dizem ter evidências, mas as mantém em segredo, então como posso saber?
Em suma, eu dei uma série de opiniões ontem sobre assuntos que não conheço a
fundo. Não pensei muito antes de escrever, porque pouquíssimas pessoas leem meu
blog. Só fiquei com vontade de relatar o que aconteceu porque achei que seria divertido.
Minha irmã me disse hoje que o Mau tem o costume de ler coisas que escrevem
sobre ele na internet e ela falou que é possível que ele comente na minha postagem. Isso
jamais se passou pela minha cabeça.
Bem, Mau, se você ou outros Sacrifícios lerem o que escrevi, peço desculpas.
Também me desculpo pelas fotos, embora você deva se lembrar que isso não tenha sido
culpa minha, já que eu apenas atendi o pedido da idiota da minha irmã. Quem devia
estar se desculpando é ela.
Isso é tudo. Espero que ninguém encha essa postagem de comentários imbecis,
senão eu vou ter que fechar o blog por um tempo até a poeira baixar. E não farei isso
porque estou sem argumentos, mas porque eu estou realmente sem tempo! É uma

207
Wanju Duli

agonia sem tamanho ver pessoas dizendo coisas com as quais você não concorda e não
poder se defender. Então por enquanto eu prefiro impedir que se escreva qualquer
coisa.

Fui pega completamente de surpresa com a postagem tão educada do


autor do blog. Eu jurava que ele escreveria uma segunda postagem
xingando todos os imbecis que comentaram merda sobre o que ele
escreveu antes e reforçando ainda mais sua posição anterior.
Mas Mau não fez nenhum comentário no blog do sujeito. E não se
pronunciou sobre aquele assunto em nenhum outro lugar. Pelo menos
não naquele dia.
É óbvio que ele tinha lido aquela postagem. O link dela estava na
maior parte dos fóruns e blogs sobre os Sacrifícios. Ele apenas optou
por não se pronunciar imediatamente.
Mau passava tanto tempo escrevendo bobagem na internet que às
vezes não se passava pela minha cabeça que ele podia estar simplesmente
ocupado. Afinal, ele era o líder das duas maiores sociedades de
Sacrifícios do mundo: a SSC brasileira e a internacional. Embora ele
gostasse de posar de desocupado, devia ser só pose. Caio uma vez disse
que Mau era muito sério no que fazia. E devia ser mesmo.
O dono do blog tinha postado cinco fotos: três dos dois sentados na
mesa do McDonalds e duas apenas com Farah, quando Mau saiu.
Nas três primeiras fotos Mau estava de costas. Na verdade, nenhum
dos dois estava muito visível. Dava para notar pouca coisa. Os dois
tinham cabelos pretos. Mau estava com uma camiseta branca, jeans e
tênis. Farah estava toda elegante, com um vestido bonito e salto alto. Na
mesa havia hambúrgueres, batatas fritas e refrigerantes.
As duas últimas fotos tinham ficado bem melhores. Nelas era
possível ver o quanto Farah era atraente, bem como o autor do blog
mencionou. Ela havia colocado uma maquiagem caprichada, com cores
que ressaltavam a beleza de sua pele bem tratada e ligeiramente morena.
Seus longos cabelos levemente ondulados estavam arrumados num
penteado gracioso, que parecia difícil de fazer.
Eu fiquei completamente apaixonada pelo vestido azul que ela usava.
Nessas últimas fotos eu podia vê-lo melhor. Havia uns bordados de
flores bem discretos e caía muito bem no corpo, ressaltando seus

208
Sociedade do Sacrifício

contornos. O vestido tinha um decote generoso que exaltava os seios


grandes de Farah. Era curto, sendo possível ver com clareza as pernas
bem torneadas. O salto alto somente aumentava o charme do conjunto.
Notei alguns outros detalhes, como o esmalte azul, os brincos, colar e
pulseiras. Em suma, ela havia se produzido pra caramba, obviamente
porque iria sair com o Mau e queria impressioná-lo. Acho que era
praticamente impossível não ficar impressionado.
Porém, foi a quinta foto que gerou uma sensação na internet. O autor
do blog a postou em alta resolução e com um tamanho considerável,
então era possível aproximar e ver os detalhes.
Eu não sei como ele conseguiu aquele ângulo. Foi um momento em
que Farah estava mexendo nos próprios cabelos e seu braço pressionou
ligeiramente um seio contra o outro. Daquele ângulo, os peitos dela
pareciam enormes! De uma forma bonita, harmoniosa. Eles se
projetavam para frente. Eu quase enrubesci olhando para aquela foto,
pois dava para ver tudo. E, mesmo eu sendo uma garota, não conseguia
parar de olhar, porque era muito perfeito.
As minhas quatro amigas também quiseram olhar mais de perto e
aproximaram a foto. Elas também estavam de queixo caído.
– Isso é natural? Ou é silicone? – perguntou Roshni.
– Parece legítimo – disse Mei-Xiu – mas mesmo que seja silicone, é
lindo mesmo assim.
– Ela tem os peitos de uma estrela de filme pornô – comentou Sella,
fascinada – se ela fosse minha amiga próxima, eu iria pedir para apertar
para ver como é.
– Calem a boca! – falei, rindo, embaraçada por aquele monte de
comentários inapropriados.
E se nós meninas já estávamos babando nos peitos dela, imagine os
rapazes na internet. Aquela foto, além de ter ido parar em um monte de
sites, com certeza foi parar no papel de parede do desktop de muita
gente.
– Aquele cachorro! – exclamou Mei-Xiu, achando graça – ele focou
nos peitos dela de propósito e ainda fica posando de inocente no blog
dele.

209
Wanju Duli

Eu nem imaginava qual seria a reação de Farah ao ver as fotos.


Inicialmente pensei que ela se sentiria orgulhosa, já que o mundo todo
havia testemunhado o quanto ela era linda.
No dia seguinte, Mau escreveu uma postagem no site oficial da SSCB:

Já que tantos insistiram para que eu lesse, eu li a postagem do blog daquele sujeito
que foi para Buenos Aires.
Sobre as coisas que ele disse, sejam elas a favor ou contra os Sacrifícios, eu não
dou a mínima. Já cansei de ler textos parecidos e eles já não possuem nenhum efeito
sobre mim.
Nós temos boas razões para não divulgar o que sabemos sobre os Deuses e isso é
tudo. Se quer saber mais a respeito, torne-se membro da Sociedade do Sacrifício, passe
oito anos treinando e se torne um Sacrios. Essa é a única forma de uma pessoa
conquistar o direito de ter acesso a essa informação. Todo Sacrios conhece o motivo de
ela ser sigilosa.
Sobre pessoas que seguem a mim e a outros Sacrios para tentar tirar fotos: sério,
parem com essa estupidez. Se uma foto minha cair na internet, uma que mostre
claramente o meu rosto, isso seria péssimo não somente para meu trabalho como líder,
mas prejudicaria toda a sociedade. Nós nos movemos em sigilo não porque achamos
bonito, mas porque é necessário.
Se eu não puder andar livremente por aí, movendo-me dos acampamentos para as
cidades, sendo reconhecido por onde eu passe, eventualmente a localização dos nossos
esconderijos será revelada e isso vai dar muita merda.
Se tivermos que mover todos os nossos acampamentos e escritórios de lugar, isso irá
nos tomar grana e tempo, duas coisas que não temos.
Então parem de ser ridículos e colaborem. Eu escrevo coisas na internet e às vezes
falo demais, mas eu tenho uma noção do que posso ou não dizer. Às vezes passo um
pouco do limite, porque sou humano e cometo erros. Mas eu não preciso de ajuda para
que esses erros se tornem piores.
Para mim não faz diferença nenhuma se os peitos da Farah apareceram ou não
na internet. Estou mais preocupado com o rosto. Isso não irá prejudicar a SSCB
diretamente, já que ela não está mais conosco, mas vai prejudicar a SSC na Indonésia
e a SSC Internacional. Talvez ela seja até mesmo tirada de sua posição de vice da
divisão internacional por causa desse lixo.
Quem é fã dos Sacrifícios nos admira por quê? É por escrevermos bobagem na
internet ou é porque temos uma missão fundamental que os mantém vivos? Está na

210
Sociedade do Sacrifício

hora de repensar o que é mais importante para vocês: ver nossa cara ou nos apoiar no
que fazemos.
A única maneira de obter permissão de nos ver pessoalmente é se tornando
membro. Tem muito boçal que se torna membro só pra ver os Sacrios e depois pula
fora. Nós estamos começando a adotar medidas mais rigorosas para que isso não
aconteça, como aumentar a dificuldade dos exames de seleção.
Para finalizar, darei informações sobre outros assuntos de importância.
Mei-Xiu aceitou a posição de vice-líder que a ofereci. Ela já é efetivamente a vice
a partir de hoje.
Manu também aceitou seu cargo de volta, ainda que com alguma relutância. Na
verdade, tive que insistir para que ela o aceitasse. Tivemos uma longa conversa. Não
foi uma conversa fácil.
Eu e Manu trabalhamos juntos há muito tempo e eu conheço, mais do que muita
gente, a competência e poder que ela possui. Eu fui um tolo em retirar dela uma
posição que ela conquistou por direito.
Pelo menos a vinda breve de Farah me ajudou a enxergar esse erro que cometi.
Sendo assim, agradeço a Farah, embora ela tivesse intenção clara de atrapalhar muito
mais do que ajudar e a sua ajuda tenha sido apenas circunstancial.

Aparentemente, Farah não possuía mais um login próprio para


escrever no site da SSCB, pois ela não escreveu uma resposta à
mensagem de Mau.
Em vez disso, ela escreveu sua resposta no site da SSC Internacional.
Nós quase não checávamos aquele site, mas pelo jeito isso ia começar a
mudar.
Farah escreveu o seguinte, em inglês:

Estou furiosa!!!!
Eu tô muito puta com esse cretino que colocou fotos minhas na internet.
Mau, você não vai fazer essa merda comigo. Não vai tirar minha posição na
SSCI! Eu já tô triste por terem divulgado uma foto minha tão... pervertida, e você
não precisa tornar meu dia pior me expulsando! :(
Sério, eu tô chorando! Eu me sinto humilhada. Provavelmente você não entende
isso, porque ninguém tirou uma foto do seu pau e divulgou na internet! Então não me
venha com essa de “para mim não faz diferença nenhuma se os peitos da Farah
apareceram ou não na internet”, seu bosta insensível!

211
Wanju Duli

Talvez as coisas funcionem diferente no Brasil, mas no meu país as mulheres


gostam de mostrar seus corpos somente para os maridos. Aquela foto foi postada sem
minha autorização e eu a achei abominável! Se eu quisesse tirar uma foto assim e
divulgar na internet era diferente. Não foi esse o caso, e eu não sei o que eu posso
fazer com aquele filho da puta. Posso processá-lo? Eu não quero me incomodar com
isso. Não tenho tempo pra isso, eu tô meio ocupada salvando o mundo!

Mau escreveu sua resposta, também no site internacional:

Por que você escreveu em inglês se sabe que não posso ler? Tive que colar a sua
mensagem no Google Tradutor. Se eu tiver entendido errado algo que você disse, a
culpa não será minha, mas exclusivamente sua.
Em respeito à sua tristeza, não irei tirá-la de sua posição de vice-líder da SSCI.
Então não se preocupe mais com essa questão. Como a SSCI possui poucas unidades
físicas, o fato de seu rosto ter aparecido na internet não vai gerar muitos danos.
Sobre o que você falou do Brasil, é melhor que retire o que disse imediatamente.
Não ouse criticar meu país, caralho! Não saia dizendo coisas como “no Brasil se faz
isso ou aquilo” quando você não sabe. Isso varia de pessoa para pessoa: algumas não
se importam de mostrar o corpo na internet e outras pessoas se incomodam. Então não
meta no meio as supostas diferenças culturais entre os nossos países nessa questão.
Se isso serve de consolo, eu gostaria de recordá-la que não apareceu nenhuma parte
do seu corpo que não deveria naquela foto, se entende o que quero dizer. Na minha
opinião, a sua integridade está intacta. Na verdade, estou vendo mais elogios sobre
sua foto do que comentários maldosos, então eu sugiro que você tome uma xícara de
chá para se acalmar e esqueça esse assunto, pois você sabe que sensações de internet
são passageiras e com o tempo ninguém mais estará comentando.

Farah respondeu, dessa vez em português:

Sei lá porque postei em inglês. É que eu geralmente escrevo em inglês no site


internacional, então foi automático. Nem reparei.
Obrigada por não retirar minha posição de vice na SSCI.
E peço desculpas sobre o que eu falei do Brasil. Escrevi sem pensar. :/
Eu sei que meus mamilos não apareceram, mas ainda assim eu achei a foto muito
ofensiva! Mostrou demais. Meu decote não mostra tanto. Ele tirou a foto meio de
cima, não sei o que ele fez.

212
Sociedade do Sacrifício

Sei que muitas pessoas estão elogiando a foto, mas muita gente elogia sem o menor
respeito. Estão usando termos que chorei quando li. Estão me chamando de coisas.
Eu não aguento mais ler.
Isso está pegando muito mal para a SSC da Indonésia. Estão dizendo que a líder
(já que agora que você me expulsou voltei a ser a líder) tem peitos de puta. Veja bem,
não tenho nada contra prostitutas. Mas isso é degradante. É óbvio que não dizem isso
de um jeito bom.
Sobre a sua xícara de chá, Mau, enfia no cu!
Você não faz a menor ideia de como eu tô me sentindo. Sim, eu tô fazendo o
maior drama, mas é porque eu tô triste de verdade. Não tô fazendo cena. Hoje vou ter
que tomar remédios pra dormir, pois sem os remédios não vou conseguir.

Mau respondeu logo depois:

Farah, estamos chegando num ponto em que não está legal conversarmos sobre isso
em público.
A partir daqui, vamos conversar privadamente pelo WhatsApp. Já oferecemos
muito entretenimento para os cretinos da internet.
Você é como uma irmã para mim. Você fala muita besteira, faz merdas ainda
piores. Apesar disso, eu não gosto de te ver triste. Estou odiando toda essa situação e
quero te ajudar.
Pode ser assim?

Farah escreveu:

Mau, eu queria estar contigo.


Por que me mandou embora? Eu queria te abraçar agora.

Mau escreveu:

Também queria te abraçar. Eu não aguento te ver chorar.


Esse mundo é uma merda. As pessoas não entendem. Às vezes eu não sei porque
estamos lutando tanto para proteger esse lugar.
As pessoas não acreditam em Deuses porque somente acreditam em si mesmas. Só
têm olhos para si. Elas não entendem que a vida é muito mais que isso. Os olhos só
enxergam uma parte. O todo é maior do que a simples soma de suas partes.

213
Wanju Duli

Farah disse:

Nossa, está até citando Aristóteles? Que profundo! É melhor tomar cuidado,
Mau, ou alguém pode descobrir que você é inteligente :p
Mau, por que você nunca me diz essas palavras queridas pessoalmente?
Tá bom, vamos continuar conversando pelo Whats. Por lá a gente pode dizer
muito mais coisas que jamais diríamos por aqui ;)

Ninguém escreveu nada nos minutos seguintes. Provavelmente eles


prosseguiram aquela conversa pelo WhatsApp e não poderíamos mais ler
nada.
– De repente me sinto mal por ter dito que ela tem os peitos de uma
estrela de filme pornô – observou Sella – mas eu não disse isso para
depreciar. Era para ser um elogio.
– A conversa dos dois foi adorável – comentou Mei-Xiu – mas Mau
deixou claro que só vê Farah como irmã. É uma pena. Eles seriam um
belo casal.
Eu não sabia mais o que pensar de Farah. Depois do que ela escreveu
na SSCB, ela parecia a pior pessoa do mundo. De repente, ela mostrava
outro lado seu.
Então era assim. Nós formávamos uma opinião dos Sacrios somente
pelo que eles escreviam na internet. Eles não eram apenas aquilo. Eram
muito mais.
Um pouco depois, outra pessoa escreveu alguma coisa no site da SSC
Internacional:

Que casal mais gracioso.


Achei tudo muito bonito. Parabéns, crianças. Vocês foram capazes de colocar
lágrimas nos olhos desse velho.
Eu só estava dando uma passada por aqui para checar os avisos. Mas acabei
checando muito mais que isso.
É sempre bom manter-se atualizado sobre a vida pessoal e sexual do líder.

Grato,

214
Sociedade do Sacrifício

Tejas

Uau! Tejas tinha postado. Que aleatório.


– Por que ele escreveu isso? – perguntou Iaboni – que nada a ver.
Elas tinham assistido à palestra dele. Me disseram que foi fantástica.
Eu queria me matar por ter perdido. Pelo menos pude conversar com o
sujeito.
Tejas não era velho! Ele não devia ter muito mais de 40 anos. Por que
ele resolveu escrever aquela porcaria de repente?
A resposta de Mau veio um pouco depois. Curta e grossa:

Quem é você, filho da puta?

E Tejas respondeu:

Filho da puta? Eu? Por que nunca me contou antes que éramos irmãos, Mau?
Por favor, ignore-me. Sou somente um Sacrios curioso e pouco importante que
estava passando aqui por acaso e não resisti em escrever.
Esqueci-me de adicionar minhas credenciais no fim. Então agora o farei.

Com amor,

Tejas

General do Exército da SSC da Índia, Segundo dos Três Tesouros

Mau respondeu:

Ah, um Três Tesouros. Nunca me lembro qual é qual.


Estou meio ocupado aqui. Não tenho tempo para retrucar as suas ofensas
gratuitas. E defender minha mãe nunca esteve entre minhas prioridades.
Pode continuar falando sozinho, se quiser. Eu não vou ler.

Atenciosamente,

Mau

215
Wanju Duli

Líder Absoluto da SSC do Brasil, Imperador da SSC Internacional, Matador


de Deuses

Tejas não respondeu. E o site da SSC Internacional permaneceu


silencioso novamente até o fim do dia.
Pelo jeito, eles iam transformar o site da SSCI numa sala de bate-
papo, da mesma forma que fizeram com o site da SSCB.
Os próximos dias foram tranquilos. Não houve muita polêmica em
nenhum dos sites.
Quando completaram três meses desde que eu havia chegado no
acampamento, senti-me vitoriosa.
Só mais três meses... ainda parecia uma eternidade. Era uma
verdadeira tortura. Eu já não fazia a menor ideia se eu queria ir para a
SSCB no semestre seguinte. Eu poderia simplesmente voltar para casa e
retomar minha vida confortável junto com meus pais e Carla.
Mas uma das maiores diversões da minha vida sempre foi
acompanhar os rumores sobre os Sacrifícios. Seria doloroso manter esse
hobby estando fora de tudo o que acontecia. Eu voltaria a ser somente
mais um dos “imbecis da internet”, como Mau e outros Sacrios
gostavam de dizer.
Para completar, eu continuava a sentir que eu não estava avançando.
Eu estava conseguindo aguentar um pouco mais de tempo meditando,
mas minha mente ainda vagava demais. Eu ainda não havia visualisado
nem mesmo uma sombra de siddhi.
Mas ainda era cedo. Demorava anos para obter uma, na maior parte
dos casos, ou era o que se dizia. Ou pelo menos anos para realmente
dominar um desses poderes.
O pior era que eles não nos diziam nada a respeito de como
usaríamos esses poderes no futuro. O mundo dos Deuses continuava a
ser um mistério e deveria continuar em segredo, para proteger não
somente a Sociedade do Sacrifício, mas a nós mesmos.
Será que eu realmente queria me sacrificar para salvar o mundo?
“Salvar o mundo” parecia um termo muito pomposo. Eu precisava
primeiro ajudar a mim mesma. Ou talvez eu só conseguisse ajudar a mim
mesma quando ajudasse o mundo.

216
Sociedade do Sacrifício

E foi no exato dia em que completei três meses de treino que


apareceu uma nova mensagem no site da SSCB. Mau escreveu
formalmente:

É com pesar que anuncio que o Sacrios Paulo será excomungado da Sociedade do
Sacrifício do Caos do Brasil e executado na próxima manhã, às 6 em ponto no
Acampamento A.
O crime cometido foi a divulgação de informações confidenciais sobre o mundo dos
Deuses para não membros. Contudo, o ato que realmente culminou na sentença foi
levar um não membro ao outro mundo. Isso é expressamente proibido, conforme consta
na Lei.
Todos os Saos e Sacrios devem comparecer obrigatoriamente ao local de execução e
assistir sem desviar os olhos. Os não iniciados estão proibidos de assistir, sob pena de
expulsão irrevogável e vitalícia.

Atenciosamente,

Mau

Líder Absoluto da SSC do Brasil, Imperador da SSC Internacional, Matador


de Deuses

Merda. Eu precisaria conhecer muito bem aquelas leis para saber o


que era proibido fazer.
Como o excomungado era um Sacrios desconhecido, ninguém
reclamou. Se ele havia agido contra a lei precisaria pagar por isso, era a
opinião vigente na internet.
Eu ficava com medo quando eu lia coisas assim. Porque eu sabia que
um dia poderia acontecer comigo.
Será que eu preferia morrer pela mãos dos Deuses ou pela mão de
um Sacrifício? Será que a minha vida valia alguma coisa para aquilo
importar?
Eu queria fazer o que eu precisava fazer. Ou será que eu precisava
fazer o que eu queria fazer?

217
Wanju Duli

A Sociedade do Sacrifício era uma forma de trilhar um caminho


nobre na nossa existência. Não poderia haver algo maior. Ou algo
melhor.
Quando eu ficava em dúvida, era meu corpo gritando. Eram minhas
emoções chorando. Porque eu sabia que, no fundo, qualquer pessoa
preferiria estar em qualquer outro lugar que não fosse lá. Qualquer outro
ambiente menos sofrido.
Ser Sacrifício era pesado. Mas era exatamente esse peso que conferia
a força.
Como será que Jorge e Bianca estavam se saindo? Será que eles
estavam gostando da SSC? Será que pretendiam prosseguir no
treinamento?
A propósito, Mau havia mencionado o “Acampamento A”. Isso só
podia significar que o Acampamento B já estava pronto. Será que Mau já
havia começado a treinar os Saos mais avançados? Era uma pena que eu
não podia me comunicar com Caio para perguntar. Mas, se tudo desse
certo, em mais três meses eu já estaria com ele.
Na Índia havia o acampamento branco e o acampamento laranja. O
que eu estava era o branco, direcionado aos iniciantes. O laranja era para
os Saos mais avançados.
Sella havia mencionado que tinha passado o semestre anterior no
acampamento laranja. Por algum motivo, ela tinha recebido essa
permissão especial.
Será que se eu pedisse eles me deixariam passar meus três meses
restantes no acampamento laranja? Aquele era o acampamento do
deserto. Os boatos diziam que as condições lá eram ainda mais severas
do que onde eu estava. Então, pensando bem... era melhor não pedir
transferência. Se eu já estava tendo um tempo ruim no meio daquela
neve, eu com certeza teria saudades das minhas dificuldades atuais
naquele mundo de areia.
Pelo que eu tinha entendido, Tejas coordenava o acampamento
laranja e treinava os Saos de lá.
Antigamente era Sahana quem coordenava o acampamento branco,
mas atualmente ela estava na Nigéria. Eu não fazia a menor ideia do que
ela estava fazendo lá. Eu só sabia que esse era outro país que possuía
uma forte SSC.

218
Sociedade do Sacrifício

Raghav coordenou o acampamento branco por pouquíssimo tempo.


Ele estava ocupado com outras coisas em Mumbai. Teoricamente, quem
coordenava nosso acampamento atualmente era Sarthak, mas acho que
eu só o tinha visto duas vezes por lá. Uma quando ele veio com Tejas e
outra quando ele chegou e saiu logo depois. Eu só o tinha visto de longe.
Resumindo: eu peguei uma época meio ruim, porque as coisas
estavam meio desorganizadas. Dois Sacrios indianos dividiam a tarefa da
coordenação atualmente: um rapaz e uma moça. Por acaso, eram os dois
que eu tinha visto brigando no primeiro dia por causa dos canos
congelados. Inicialmente pensei que eles eram Saos poucos anos mais
velhos que eu, mas deviam ser quase dez anos mais velhos. As aparências
enganavam.
Ultimamente eu andava meio entediada. Fazer exatamente as mesmas
coisas chatas todos os dias cansava um pouco: cortar vegetais, lavar o
chão, tomar banho de balde tremendo de frio. Não era exatamente a
ideia que eu tinha de uma grande aventura.
Olhei para minhas mãos. Meus dedos estavam cheios de cortes. O
trabalho na nossa cozinha era pesado. Não era como preparar o almoço
em casa. Havia muita gente naquele acampamento. Quando eu olhei da
primeira vez não parecia muito, mas na hora de fazer a comida a gente se
dava conta de quantas bocas havia para alimentar.
Caio havia me alertado nas cartas sobre o tédio. Quando lemos em
livros de aventura sobre os personagens que partem para regiões remotas
para derrotar dragões, parece tudo muito divertido e emocionante. Mas
se aquela história estivesse acontecendo na vida real, seria muito parecida
com a minha. O herói precisa dormir ao relento, colher vegetais,
preparar a comida numa fogueira. O que nunca falam é que ele
certamente deve passar a maior parte do tempo num tédio profundo no
meio do nada. Só pulam para a parte do dragão.
A minha que era a história genuína de uma aventura, pois nela havia
as dificuldades reais de uma jornada. Um dia eu também chegaria na
parte do dragão, que no nosso caso eram os Deuses. Seria um tipo de
dificuldade diferente, mas se eu fosse realmente capaz de enfrentar meu
tédio diário e de fazer sozinha as atividades repetitivas do dia a dia, como
aprender a cuidar da minha subsistência física e mental (através das

219
Wanju Duli

atividades domésticas e das meditações), eu seria capaz de lutar contra


qualquer Deus.
O requisito para se tornar um Sacrios era ter a persistência de fazer
aquilo ao longo de oito anos. O que eles estavam realmente nos dizendo
era: se você tiver a persistência de passar oito anos lavanado o chão em
nome de algo que realmente queira, vamos acreditar em sua seriedade.
Eles queriam disciplina e força de vontade. Foco. Isso era tudo.
Era nessas coisas que eu estava sendo testada. E não na minha
capacidade de desenvolver poderes psíquicos. Pensando bem, os poderes
eram o menos importante. Eu acabaria topando com siddhis
eventualmente no meio da jornada. Eu só precisava continuar nela. Essa
era a parte difícil.
Mas eu continuava entediada. Uma das únicas coisas que me tirava do
tédio era ler o que Mau e os outros Sacrios escreviam regularmente na
internet.
E por que aquilo tirava meu tédio? Porque me motivava. Eu me
recordava dos motivos que me levaram a iniciar o meu treinamento: a
época que eu lia o que Mau escrevia, quando eu era criança. Era
profundamente nostálgico.
Aos poucos os escritos do Mau estavam mudando, porque ele estava
crescendo, aprendendo, se transformando. Era muito legal poder notar
essas transformações através dos anos. E estar na SSC era como estar
participando daquela história que eu lia há tanto tempo na internet.
Eu não era mais uma espectadora distante. E talvez eu enfrentasse
todas as dificuldades que eu teria pela frente somente para fazer parte
daquela história.
Uma semana depois, Farah escreveu algo surpreendente no site da
SSC Internacional:

Mau, eu não acredito!!!!


Por favor, me diga que não é verdade!
Você não pode estar namorando!!!!!! :(
Eu sabia que isso ia acontecer! No instante em que você colocou Dan-Dan como
vice eu já senti um aperto no coração. Eu sabia que essa piranha ia dar um jeito de
colocar as mãos em você!

220
Sociedade do Sacrifício

Arrrrrrrrrrghhhh!! Que raiva! Isso só aconteceu porque eu não estava perto pra te
proteger!
Todas essas vacas que ficam dando gritinhos por você são como cobras, só
aguardando o momento certo para dar o bote e te devorar.
Você que é muito inocente e não sabe dessas coisas. Você é muito novinho. Ainda
não sabe das artimanhas que as mulheres usam. Você cai em todas elas! Menos nas
minhas!! ><
Ah, eu vou chorar...!
Eu queria que seu primeiro beijo fosse comigo. Eu ainda tinha esperanças. Mas
agora, com essa notícia, meu mundo desabou.
Por favor, me diga que ainda não transou com ela! Eu juro que eu vou morrer se
você disser que trepou com aquela perua. Então NÃO, não me diga!! :((
Meu coração está em pedaços.
Dan-Dan, eu te odeio!!!

Mau respondeu:

...
Já acabou?
Eu não preciso dar nenhuma satisfação para você, mas vou dar em consideração
aos nossos anos de amizade (se é que dá pra chamar isso de amizade) apesar de sua
má educação.
Sim, eu e Dan-Dan estamos namorando. Já faz mais ou menos um mês. Você
está meio atrasada. Eu simplesmente não senti a necessidade de anunciar isso na
internet. Quando eu estava no início da adolescência eu tinha a necessidade de
anunciar para o mundo tudo o que eu fazia e escrever dramaticamente sobre isso na
internet. OK, eu ainda faço isso às vezes, mas estou fazendo um pouco menos agora.
Eu sabia que você ia fazer o maior drama. Eis outro motivo para eu não
anunciar. Eu não queria que você a matasse no meu primeiro dia de namoro.
Sobre a questão do primeiro beijo, você também está meio atrasada. Meu primeiro
beijo foi quando eu tinha 15 anos, com a Vic.
Foi em meio a uma luta contra os Deuses particularmente violenta. Você não
estava nessa. Aconteceram umas merdas, a gente se ferrou e pensamos que íamos todos
morrer. Eu tinha me escondido com a Vic e um dos Deuses chegou para nos matar.
Então a gente se beijou. Foi muito rápido. Sem razão, sem pensar. A gente se
beijou e depois atacamos o filho da puta.

221
Wanju Duli

A gente só não morreu porque virou o dia. Eu não vou dar detalhes porque não
posso falar das viradas de dias por aqui. E isso não vem ao caso.
Só pra deixar claro, esse beijo não significou nada. Pelo menos não para Vic. Ela
me disse para eu esquecer e pediu para nunca falarmos sobre aquilo, nem mesmo entre
nós. Nada mudou entre eu e ela depois do beijo.
Parece uma história romântica, mas foi uma história fria. A Vic foi sempre meio
fria e bastante severa sobre a necessidade da distância entre nós dois.
Então, sim, eu menti quando disse outras vezes que nunca tínhamos encostado
um dedo um no outro. Mas foi só isso.
Portanto, meu segundo beijo foi com Dan-Dan. Mas agora eu já parei de contar.
Sobre se eu já transei ou não com ela, isso não é da sua conta.
Se você tentar fazer qualquer coisa contra ela e a ação for consumada, você será
executada.

Farah escreveu:

Eu odiava a Vic, mas não completamente. Isso porque eu já tinha me


conformado que cedo ou tarde vocês acabariam juntos. Eu já tinha me preparado
psicologicamente para isso. Se fosse pra ela, eu não me importava tanto em te perder.
Mas quando você a matou, eu não poderia ter ficado mais feliz. De repente,
minhas esperanças voltaram. Só para essa Dan-Dan aleatória que veio do inferno
acabar com elas logo em seguida!!
Essa menina é tão sem graça e sem sal! Ela só sabe rir e se fingir de boazinha.
Ela sabe que os homens caem como patinhos nessa estratégia.
E honestamente, ela não tem peitos. Essa garota é uma tábua. Não há nada de
bom nela. Ela é só uma chinesa com aparência mediana. Na China está cheio de
meninas parecidas com ela.
Minha mente está sendo assombrada com uma imagem de vocês dois fazendo
sexo!!! Então me diga logo que não aconteceu para eu ficar em paz.
Mas, sinceramente, só de imaginar vocês dois se beijando eu já fico furiosa!!!

Mau disse:

Eu estou me cansando dessa conversa.


Farah, eu não sou o único homem do mundo. Acho que você se esqueceu disso.

222
Sociedade do Sacrifício

Por que não namora seu vice, o Afif, que é louco por você? Não é para isso que
serve um vice?
Eu te coloquei de vice antes mesmo de Dan-Dan. Azar seu que você desperdiçou
sua chance falando merda.

Porém, antes mesmo que Farah escrevesse alguma coisa, Dan-Dan


respondeu:

Mau, isso que você escreveu sobre o vice foi rude. De muitas formas.
Você quer dizer que estava atirando para todos os lados. Primeiro tentou Vic,
depois Manu, depois Farah e acabou me escolhendo porque eu era a única que
sobrava. É isso?
E outra: Farah não faz outra coisa que não seja me xingar desde que começou
essa conversa e você não me defendeu. Não vai me ajudar muito você a matar depois
que eu já estiver morta. Eu gostaria que você me defendesse enquanto estou viva, se
não for pedir muito.

Farah escreveu:

!!!
Não me diga que me colocou como vice porque estava mesmo me visando, Mau?
Você estava a fim de mim??? :o
Então eu ainda posso ter esperanças? Se eu chutar essa chinesa de volta pra
China você namora comigo?
Dan-Dan, vê se cala a boca. Você pode se defender sozinha. Não precisa de um
homem pra isso.
E eu nem gosto do Afif, ele é feio e tem cheiro de cebola. Sei lá, ele é meio fodido
:/

Mau disse:

Ai, meu Deus. Já estou vendo que isso vai acabar mal. E a culpa vai ser sua,
Farah, que iniciou essa conversa imbecil!
Bem, agora que já estamos rolando nessa bosta, vamos até o fim.

223
Wanju Duli

Sim, Dan-Dan, eu estava atirando para todos os lados. Tem alguma coisa de
errado em procurar uma namorada? Isso é crime? É algo sujo? Eu preciso fazer um
celibato de quanto tempo entre cada garota que me diz um não?
Além disso, a sua conta está errada. Antes de convidar Farah eu chamei Sahana
para ser minha vice, mas ela recusou. Portanto, você foi minha quinta opção.
Desculpe.
Eu tento te defender como posso, Dan-Dan. Farah tem a boca tão suja que se eu
tivesse que te defender de cada xingamento dela eu teria que escrever uma Bíblia.
Infelizmente, meu cargo de líder me impede de ter tempo para isso, senão eu escreveria
com o maior prazer, já que é de meu maior interesse defendê-la.
Sobre a sua pergunta, Farah, sim, eu te chamei como vice porque inicialmente eu
tinha intenção de te observar antes de tomar qualquer decisão. Mas não precisei
observar muito. Acho que eu estava louco quando te chamei, ou tenho memória curta.

Afif escreveu:

Vocês podem fazer o favor de não me incluir na conversa? Diferente de vocês,


estou extremamente ocupado no momento e se meu nome não aparecer por aqui será
uma excelente ajuda.
Grato.

Dan-Dan disse:

Mau, tudo que você consegue dizer é “isso vai acabar mal” e continuar escrevendo
bobagem. Se acabar mal a culpa não vai ser de Farah e sim sua. Ela não está te
obrigando a escrever tudo isso que acabei de ler.
Farah, vê se para de criticar o meu país! Você não sabe nada sobre a China. Nós
somos “apenas” a maior economia do mundo. Nós somos “apenas” um dos países
mais importantes do mundo, por várias razões. Se eu fosse escrever todos os fatos
incríveis sobre o meu país eu escreveria uma Bíblia maior do que a que Mau
escreveria para me defender se ele dispusesse de seu precioso tempo para isso.
Eu não tenho nem vontade de apontar todas as coisas idiotas que você escreveu,
Mau. Você não se dá conta do ridículo?

Farah escreveu:

224
Sociedade do Sacrifício

HÁ, HÁ, HÁ, que divertido!!!!


Vou assistir ao vivo o momento em que Dan-Dan irá chutar a bunda do Mau!
Eu não perderia isso por nada!!! ;D
Mau, parabéns! Você é imbatível quando o assunto é emputecer uma garota.
Continue assim! Só mais um pouquinho, você está quase lá!! ^_^
;***

PS: Dan-Dan, o seu país ser a maior economia do mundo não tem nenhuma
relação com o fato de você ser feia! :o

Mau escreveu:

Puta merda.
Tenho a opção de sair correndo e deixar vocês duas discutindo?

Dan-Dan disse:

Isso é tudo que você tem a dizer???


Mau, eu já sabia que você era um cretino, mas eu pensava que você conseguiria
pelo menos tratar bem a sua namorada. Você tratava a Vic diferente, mas agora
ficou claro o motivo: você gostava muito mais dela do que gosta de mim, é claro! Eu
fui uma idiota ao pensar que eu poderia substituí-la. Afinal, eu sou só o segundo beijo
e a quinta opção!!!
Se não gosta de mim o suficiente pra gente ter um namoro decente, diga isso na
minha cara, covarde! Não fique apenas agindo de forma indiferente e me dando
indiretas até eu terminar contigo, já que claramente você não tem colhões o suficiente
pra falar comigo de forma clara!!
Pelo menos um de nós dois precisa ser claro, então eu vou fazer o trabalho sujo:
estou terminando contigo agora!
Fique com a Farah. Vocês dois se merecem!
Imbecil.

Ah, sim, não quero mais ser sua vice. Estou indo embora para Shanghai hoje
mesmo. Vá pedir a líder de outro país como vice/namorada. Ainda tem muitos
outros países para escolher. Divirta-se!

225
Wanju Duli

Mau escreveu:

Dan-Dan, você entendeu tudo errado.


Mas agora... acho que não tem mais volta, não é? Ou se eu pedisse desculpas
ainda teria volta? Eu não sei como isso funciona. Ninguém me deu um livro de
regras. Então eu tenho que descobrir tudo sozinho! Vocês partem do pressuposto de
que eu serei capaz de dizer exatamente o que vocês querem ouvir!
Farah, vai se foder. Você fodeu tudo aqui e deve estar pulando de alegria. Não
ouse rir!

Farah disse:

Não vou rir, Mau. Eu não sou tão má :3


Vou só adivinhar que você está naquela etapa de fim de namoro em que está
fragilizado e sensível e precisa de um ombro amigo.
Quer que eu volte pro Brasil? Precisa do ombro da Farinhaaaaahhh?
Eu já estava ficando preocupada. Pensei que eu teria que levar a Dan-Dan numa
caçada particularmente perigosa contra Deuses e deixá-la morrer acidentalmente. Eu
voltaria toda chorosa, dizendo: “Eu fiz de tuuuuudo para salvá-la! Mas ela pulou, a
perna foi arrancada, depois a cabeça e foi tão triste!” :/
Mas agora não preciso mais fazer isso, hehe.
A propósito, estava pensando que nosso anel de noivado poderia ser de diamante.
O que acha? Eu conheço uma loja ótima! Posso te levar lá. Aí você compra
secretamente exatamente o anel que eu escolher!

Mau disse:

Eu vou viajar para Porto de Galinhas para clarear um pouco a cabeça.


Preciso tirar pelo menos uma semana de férias do meu cargo de líder. Devo deixar
o vice-líder responsável por minhas funções durante esses dias.
Espere. Eu não tenho mais vice.
Manu ainda está irritada comigo. Ela não vai querer ser vice.
Então, resta-me a última opção: Yago.

Farah escreveu:

226
Sociedade do Sacrifício

Nossa, sério?! Achei genial a ideia!


Vou viajar amanhã mesmo para Pernambuco. Me avise quando você for!
Eu jamais perderia a oportunidade de ver o Mau sem camisa na praia ;)

Mau escreveu:

Pensando bem, eu irei para alguma outra praia e não vou te informar o nome.

Yago escreveu:

Muito obrigado, Mau, por emputecer a líder da SSC da China. Agora quem vai
ter que enviar os e-mails se desculpando para mantermos as relações internacionais
intactas serei eu.
E... você quer que eu seja o vice?
Não, obrigado, Mau. Não quero transar com você.

Mau escreveu:

Cala a boca, Yago. Só cuide das coisas por uma semana.

Depois disso, ninguém escreveu nada por um bom tempo.


Até que Tejas disse:

Já terminaram? Que pena! Eu estava gostando tanto...


O namoro de vocês crianças, de ficar contando beijos, é tão gracioso!
Quer que eu te arranje uma lista de líderes da SSC de diferentes países para
possíveis candidatos a vice, Mau?Ou você busca algo novo?
Embora Yago tenha recusado, eu não me importaria de transar com você...
Há, há, há! Estou brincando. Não sou engraçado?

E definitivamente depois disso o silêncio reinou no site oficial da SSC


Internacional até o fim daquele dia.
– Nem deu tempo de eu me surpreender com a notícia de que Mau
está namorando – disse Mei-Xiu – porque agora ele não está mais...

227
Wanju Duli

Houve poucas notícias nos dois sites no mês seguinte. Será que Mau
estava ficando mais reservado sobre o que ele escrevia na internet? Ele
tinha mencionado isso: que estava tentando contar menos coisas.
Eu já estava tão acostumada a ler o que ele escrevia nos últimos seis
anos que deixar de ler seria uma quebra completa na minha rotina. Eu
ficaria completamente perdida. Poderia até ter uma crise existencial.
Mas acho que eu sobreviveria. Provavelmente não seria tão ruim
quanto parecia. Isto é, se um dia ele deixasse mesmo de escrever.
Quando completei quatro meses no acampamento, celebrei mais essa
vitória. Eu ainda não tinha desistido! Eu me sentia orgulhosa.
Nesse mês, finalmente Sarthak apareceu por lá. Eu o via tão
raramente que era difícil acreditar que ele era de fato o nosso
coordenador.
Ele parecia zangado. Chegou com o carro numa velocidade enorme,
derrapando os pneus, e parou subitamente. Quando saiu do carro, jogou
todos os seus pertences num canto e fechou a porta com um chute.
Eu e duas das minhas companheiras de barraca estávamos passando
pelo local quando vimos isso. Nós nos entreolhamos.
– Shhh não diga nada – recomendou Roshni – quando Sarthak está
irritado, é muito perigoso. Ele tem essa fama de fazer umas coisas loucas
quando fica fora do sério.
Putz. Aquilo era meio... sei lá. Será que eu deveria mesmo ficar feliz
porque o coordenador estava presente?
– Vamos lá, Vivaan – Sarthak disse ao Sacrios que o substituía no
momento – passe-me as informações de uma vez. Você é muito lento.
– Claro, claro, senhor – Vivaan estava meio atrapalhado, com um
monte de papéis nas mãos – deixe-me só achar as listas. Você quer que
eu reporte sobre nosso progresso em...
– Pensando bem, prefiro que não reporte nada – concluiu Sarthak –
passe-me apenas as informações mais urgentes. Contudo, faça uma
seleção das partes realmente relevantes dentre suas coisas urgentes, se é
que me entende.
A voz de Sarthak era grave e assustadora. Ele também tinha uma
barba que impunha respeito e era alto. Eu preferia não chegar muito
perto dele.

228
Sociedade do Sacrifício

– Temos novos estudantes estrangeiros! – informou Vivaan,


gaguejando a primeira coisa que veio à sua mente.
– No meio do semestre? – rosnou Sarthak – quem permitiu esse
disparate?
– Forças superiores.
– O quê?!
– Eu não sei!
– Eu odeio essa frase – disse Sarthak – dentre todas as frases que
existem, essa que você pronunciou é a que mais abomino.
– Perdão! Senhor Sarthak, os novos estudantes estão naquela barraca
ali...
– Mande algum iniciante desocupado apresentar a eles o
acampamento. Ei, vocês três! – ele apontou na nossa direção – por que
estão tão desocupadas? Quem lhes deu tempo para toda essa
desocupação?
– Hã... ah... – tentei dizer.
– Por acaso algum Sacrios ordenou-lhes: fiquem desocupadas por um
momento, pois isso ajuda a despertar siddhis? – ele perguntou.
– Não... – respondeu Mei-Xiu, com cuidado.
– Esse lugar está uma bagunça – comentou Sarthak – não posso nem
sair por um momento e toda a disciplina e ordem vão por água abaixo.
Bem, vocês estão com sorte. Agora eu tenho uma atividade para vocês se
entreterem: vão até aquela barraca torta e horrorosa e falem muito bem
do acampamento para os novatos que chegaram.
– Certo – concordei.
– Senhor Sarthak, não quer conhecer os novos estudantes? –
perguntou Vivaan, cautelosamente.
– É claro que não – foi a resposta de Sarthak.
Agora a minha preocupação não era mais quando Sarthak viria nos
visitar novamente e sim quanto tempo ele pretendia ficar lá dessa vez. E
se ele decidisse ficar até o fim dos meus dois meses restantes e colocasse
aquele lugar numa disciplina militar? Eu já estava tendo dificuldade de
me adaptar à situação do jeito que estava.
Ele nem quis saber quem éramos nós três. Provavelmente não fazia a
menor ideia. Eu apostava que se eu dissesse a ele: “Sou brasileira!”,
Sarthak responderia com um sonoro: “E daí?”.

229
Wanju Duli

Sem escolha, fomos até a barraca dos novatos. Quando entramos lá,
vimos três rapazes.
Um deles chamou minha atenção de imediato: ele era negro, com os
cabelos nos ombros em trancinhas. Ele era muito gato! Tenho certeza de
que minhas duas amigas pensaram a mesma coisa, pois foi para ele que o
olhar delas também se direcionou.
– Hã.... oi! Eu sou Mei-Xiu, de Taiwan. Essas são Roshni, do Nepal,
e Antônia, do Brasil. E vocês, quem são?
– Meu nome é Benjamin, da Nigéria – informou o rapaz negro.
Nigéria! Era lá que Sahana estava. Era melhor eu prestar atenção
nessas coisas.
A Nigéria estava importante ultimamente na Sociedade do Sacrifício.
Então será que aquele rapaz tinha sido mandado para a Índia por
Sahana?
– Sou Rizal, das Filipinas.
Ele tinha os olhos puxados e a pele meio morena. O sorriso dele era
simpático.
Para ser sincera, os três pareciam simpáticos. Achei que não teríamos
dificuldade com eles.
– Caio, do Brasil.
Nossa, que susto! Quando ele disse: “Caio”, eu pensei: “O quê, meu
irmão?”, mas não era ele, é claro. Eu quase ri.
– Meu irmão também se chama Caio – eu disse a ele, em português –
ele é Saos na SSCB.
– Putz, que coincidência – ele sorriu.
Porra, eu queria voltar logo pro Brasil. Se eu tivesse meu irmão e
meus colegas como companhia, provavelmente o treinamento não seria
tão difícil. E seria bem mais divertido.
– Você é o segundo brasileiro a vir para cá – eu disse a ele – eu fui a
primeira.
– Eu não sabia.
Se eu ficasse conversando com o rapaz brasileiro eu ia perder de dar
em cima do nigeriano gato. Bem, nós acabamos conversando todos
juntos.
– Então... por que vieram pra cá? – perguntou Mei-Xiu.

230
Sociedade do Sacrifício

– Sahana falou muito bem da SSC da Índia e fiquei curioso –


respondeu Benjamin.
– Eu vim pela fama dos Sacrifícios indianos – disse Rizal.
– O que foi que ela perguntou? – Caio me perguntou em português.
– Por que vocês vieram para a Índia – eu respondi.
– Bem, diga a ela que eu não sei o que estou fazendo aqui.
Eu ri diante daquela resposta. Isso porque eu entendia
completamente.
Eles queriam mandar mais brasileiros para a Índia, então deviam ter
simplesmente dito a ele: “Vá passar um tempo lá”, mais ou menos como
aconteceu comigo, embora no meu caso eu tenha contatado Sahana
chorando para entrar em qualquer SSC.
– Você teve dificuldade para conseguir vagas? – perguntei.
– Isso. Como adivinhou?
Expliquei a ele minha situação. Mas naquele momento Mei-Xiu e
Roshni já tinham se levantado.
– Tá meio quente aqui, né, meninas? – perguntou Mei-Xiu, se
abanando – vamos pegar um ar lá fora e mostrar o acampamento para os
meninos?
Meio quente? No acampamento de neve? OK.
Acho que era Benjamin que a estava fazendo sentir calor. Algo me
dizia que nosso passeio seria divertido.
Apresentamos a eles os arredores. Na verdade não tinha muito o que
mostrar: cozinha, banheiros, tendas... tudo muito improvisado.
Resolvemos apresentá-los para Sella e Iaboni, que estavam na nossa
barraca. Sella deu um sorriso quando nós a apresentamos. Um sorisso
de: “Oi? Quem são esses? Por que vocês os estão apresentando?”
– Adivinha só – eu disse a Sella – Sarthak está aqui.
– Ah, não – disse Sella, como se aquilo fosse o fim do mundo – o
demônio voltou.
Contamos aos três como Sarthak havia chegado com estilo naquela
manhã e os fizemos morrer de rir.
– Não sei se quero conhecê-lo – disse Rizal – por algum motivo,
acho que vocês não estão exagerando.

231
Wanju Duli

– Sarthak é o único Sacrifício do universo que não lê o que Mau


escreve na internet –– Sella contou aos rapazes – ele diz que Mau é uma
criança e o ignora completamente.
– Mau não se dá conta – comentou Rizal – tudo o que ele sabe fazer
é dar em cima de mulheres mais de dez anos mais velhas que ele.
Eu me lembrei de uma coisa.
– Vocês trouxeram roupas de inverno? – perguntei.
Benjamin e Rizal tinham trazido. Caio fez que não.
– Eu te empresto alguma coisa – ofereceu Rizal.
– Você sabe tricotar? – perguntei a Caio – se quiser, eu posso te
ensinar.
– Pode ser – respondeu Caio.
Alguns minutos depois, fomos chamados para fazer algumas tarefas
de limpeza. Fomos mostrando aos garotos onde ficavam as coisas.
– Primeiro você precisa varrer – expliquei a Caio – e só depois passar
o rodo com o pano de água. Ananya fica furiosa quando passamos a
água sem varrer e sujamos tudo.
Era tão confortável poder falar em português que passei a conversar
mais com Caio do que com os outros dois. Mesmo assim, ele era meio
calado na maior parte do tempo.
Quando alguns dias já tinham se passado, perguntei a ele se tudo
estava em ordem. Ele fez que sim.
– Temos um tempinho livre hoje – lembrei – vou te ensinar a
tricotar.
Eu não fazia nem ideia se ele estava a fim ou não de aprender aquilo.
Como ele não se pronunciou, sentei-me com ele numa tenda.
– Não é tão difícil – expliquei – ou melhor, só é difícil se você quiser
tricotar coisas complicadas. Que tal começar com um cachecol? Faça um
pequeno para treinar. Use uma cor só, para não precisar contar as
carreiras.
Dei a ele duas agulhas grandes e mostrei como fazer as laçadas
iniciais.
– Você parece bom nisso – elogiei, pois ele não teve problemas para
começar – o legal do tricô é que podemos tricotar um pouquinho a cada
dia. Acho que em alguns dias você terminará seu cachecol.
E eu sorri. Ele sorriu de volta.

232
Sociedade do Sacrifício

Ele parecia bem concentrado na tarefa. Que seriedade! Aquilo


supostamente deveria ser divertido.
– Relaxe – eu disse a ele, mostrando a touca que eu estava fazendo –
um dia você pode conseguir fazer uma dessas. Mas quem vai querer usar
um cachecol ou uma touca tricotado sem emoção? É como cozinhar:
enquanto você cozinha deve tentar passar energias positivas para a
comida, pensando com carinho na pessoa que irá comer.
Achei-me meio boba dizendo aquilo, mas tive vontade de dizer.
Achei que era o que ele precisava ouvir naquele momento.
Mas ele não parecia estar ouvindo meus conselhos. No outro dia, me
mostrou o cachecol pronto. Ele me disse que tinha passado a madrugada
toda tricotando.
– Você não pode... precisa dormir – recomendei – senão vai dormir
em todas as meditações e ficar exausto ao longo do dia. Às vezes
precisamos fazer tarefas físicas pesadas, então precisamos guardar
energias.
Achei que eu fosse precisar ensiná-lo a cozinhar também, mas ele já
sabia fazer algumas coisas simples. Ele se dedicava bastante quando era
chamado para trabalhar na cozinha.
– Os novatos estão se esforçando, hã? – comentou Sella, um dia –
Rizal lavou uma montanha de louça praticamente sozinho ontem. E
Benjamin tirou com uma pá toda aquela neve do carro.
– Caio já tricotou três cachecóis – contei – acho que ele ficou viciado
nisso.
– É o tédio – disse Iaboni – você sente vontade de se dedicar
incansavelmente a alguma tarefa para fazer o tédio ir embora.
– Benjamin é tão gostoso! – comentou Mei-Xiu, sonhadora – eu me
pergunto o que ele está fazendo aqui em vez de estar sendo modelo ou
uma estrela de cinema.
– E como eles estão se saindo nas meditações? – perguntou Iaboni,
que não estava acompanhando muito o andamento do treinamento
deles.
– Estão participando de todas – respondeu Sella – mas ainda não
conversei com eles sobre isso.
– Vocês já repararam como Rizal é gentil? – disse Roshni – ele
sempre se oferece para ajudar. Ele nem se importa de perder o período

233
Wanju Duli

de descanso dele para ajudar alguém em alguma tarefa. É difícil de


acreditar que pessoas assim existam.
– Benjamin também é gentil – acrescentou Mei-Xiu – eu acho essa
história de perder o período de descanso para ajudar um pouco
exagerada.
– Caio parece ser meio antissocial – observou Sella – quero dizer, ele
não é mal educado. Está sempre sorridente e ajuda bastante. Mas ele não
fala muito. Quando pergunto alguma coisa ele só diz “sim” ou sorri. E
ele pede desculpas tantas vezes que eu me sinto mal. Sinceramente, é
meio irritante. Eu me sinto uma pessoa horrível, como se eu estivesse
sempre xingando o menino. Mas não é nada disso. Algumas vezes só
estou dando uma informação gentil e ele diz “desculpa”. Cara, isso está
me tirando do sério.
Eu ri. Eu tinha passado mais tempo com Caio para entender o que
estava acontecendo.
– Ele é tímido – eu informei – ele também não fala muito comigo.
Acho que ele tricota tanto só para se ocupar com alguma coisa e não
precisar interagir com as pessoas. Ele vive enfurnado naquela barraca.
– Ah, agora que você mencionou – disse Mei-Xiu – algumas vezes
quando falo com ele ou chego perto dele, Caio fica com o rosto todo
vermelho. Vocês acham que ele pode estar apaixonado por mim?
– Claro que não! – exclamou Sella, achando graça – se for assim, ele
está apaixonado por todo mundo no acampamento, até pelos rapazes.
Ele fica vermelho quando qualquer pessoa fala com ele. Eu acho isso
muito engraçado. Ele não consegue esconder o que está pensando ou
sentindo, porque o sangue sobe para o rosto dele o tempo inteiro. Acho
que ele não consegue controlar.
O tom de pele do Caio era meio moreno, mas claro o suficiente para
ser possível vê-lo corar com clareza. Eu também me sentia meio mal
quando eu dizia alguma coisa e ele corava. Parecia que eu tinha dito algo
errado e isso me deixava desconfortável.
– Ele é fofo – sorriu Mei-Xiu – fico com vontade de caçoar dele. Que
tal se eu fingir dar em cima dele para ver o que acontece? Aposto que ele
vai virar um pimentão.
– Nossa, meninas, como vocês são maldosas – disse Iaboni,
folheando um livro – deixem os rapazes em paz. Não os incomodem.

234
Sociedade do Sacrifício

Eles já devem estar tendo dificuldade suficiente para se adaptar ao novo


lugar sem vocês os perturbando.
– Eu não estou perturbando! – defendeu-se Mei-Xiu – se quer saber,
já ajudei os três várias vezes. Especialmente Benjamin. Ele está sorrindo
bastante para mim ultimamente. Vocês acham que ele pode estar
apaixonado por mim?
– Por que você acha que todos estão apaixonados por você? –
perguntei, rindo – eles vieram aqui para treinar.
Se bem que... Mei-Xiu era bonita. Eu não acharia estranho se um dos
três se apaixonasse por ela.
Quanto a mim... eu me sentia como um espantalho naquele
acampamento. É claro que lá não estávamos muito preocupados com a
questão da beleza. Lá só tinha o fundamental: tínhamos comida,
podíamos fazer o básico da nossa higiene pessoal e isso era tudo.
Eu me sentia como um boneco de neve, com um monte de roupas
quentes. Pelo menos usar toucas escondia o quão feio meu cabelo estava.
Alguns dias depois, encontrei Caio tricotando num canto. Eu quase
me sentia arrependida de tê-lo ensinado a tricotar. Ele não fazia outra
coisa! Aquilo estava começando a me deixar furiosa! Eu estava ficando
com vontade de arrancar aquelas agulhas das mãos dele.
Tomei coragem e fiz isso, só para ver qual seria a reação.
– OK, você já tricotou o bastante por hoje – eu tirei tudo das mãos
dele num puxão – agora vá descansar. Você parece acabado.
Ele ficou sem reação. Acho que ele não esperava que eu fizesse
aquilo.
Ele só ficou olhando para o nada.
– Desculpe – eu devolvi a ele as agulhas e o começo de cachecol que
ele estava fazendo – foi uma brincadeira...
Mas depois eu me arrependi. Ele ficou com uma expressão triste.
Quase fiquei com pena dele. Acho que eu estraguei um pouco o cachecol
com meu puxão repentino. Ofereci-me para arrumar.
– Pode deixar – ele disse – eu mesmo arrumo.
Resolvi me sentar ao lado dele.
– Você está bem? – perguntei – está entediado?
Eu sabia que não era fácil estar no acampamento. Principalmente
quando não se tem ninguém para compartilhar as preocupações. Eu

235
Wanju Duli

tinha minhas quatro amigas, mas Caio não parecia muito próximo de
Rizal e Benjamin, embora eles dormissem na mesma barraca.
– Estou bem – ele disse – um pouquinho entediado, mas isso eu já
esperava.
– Fica melhor depois – respondi, incerta – está gostando das
meditações?
– Eu nunca tinha meditado antes. É difícil.
– Eu sei. Mas também melhora com o tempo.
Eu não sabia o que dizer para animá-lo.
– Por que decidiu se tornar Sacrifício? – perguntei.
– Não sei bem se eu decidi. Eu somente entrei para a SSC porque
parecia a coisa certa a fazer. Eu já ouvia sobre isso há muito tempo.
– Eu também – contei – desde criança eu comecei a ler na internet os
boatos incríveis e fiquei fascinada. Quando eu tinha doze anos decidi que
era isso o que eu queria fazer da vida. Mas agora que estou aqui, me
pergunto todos os dias: “por que diabos escolhi uma coisa tão difícil e
sofrida?”. Mas no fim do dia eu me lembro. E tudo de repente vale a
pena.
– Eu não me arrependi – ele deixou claro – acho maravilhoso. Na
verdade, não me vejo fazendo outra coisa.
– Isso é incrível – eu disse.
Eu também queria adquirir aquela confiança. Eu queria aprender com
ele.
– Isso não significa que seja fácil – ele acrescentou – mas... não
precisa ser fácil. Quando é difícil, eu encaro como uma oportunidade
para eu dar o melhor de mim. Seja fácil ou difícil, todas as etapas podem
ser encaradas como extraordinárias.
– Desculpe... de onde você é? – resolvi perguntar, pois eu não estava
reconhecendo o sotaque.
– Fortaleza.
– Legal. Qual é o seu Sacrifício preferido?
Ele parou para pensar na minha pergunta.
– Nunca pensei nisso – ele concluiu – qual é o seu?
– Raghav – respondi, de imediato – desde criança eu o admiro. Eu
quase caí para trás quando ele foi me pegar no aeroporto quando
cheguei, para me trazer aqui.

236
Sociedade do Sacrifício

– É uma viagem divertida.


– Você achou? Eu achei cansativa como o inferno! – comentei – é
muito demorada!
– Sim, eu parei umas mil vezes para mijar no caminho – ele disse –
Raghav já estava ficando puto comigo.
Naquele momento, Caio enrubesceu quando o olhei. Acho que ele
ficou meio sem graça por ter dito um palavrão. Até parece que eu me
importava com isso. Eu praguejava pra caralho.
– Eu nem imagino Raghav ficando puto – eu ri – ele é normalmente
tão calmo.
– Ele não foi muito calmo comigo – ele disse – mas agora que paro
para pensar, eu diria que o Sacrifício que mais admiro é Vic. Sempre foi
assim. Eu já a admirava bem antes de entrar para a SSC.
– Meu irmão também – falei – mas você certamente sabe o que
aconteceu a ela...?
– Sim.
– Meu irmão assistiu à execução ao vivo. Foi terrível para ele. Acho
que Mau não precisava ter feito aquilo...
– Mau parece fazer muitas coisas desnecessárias aos olhos daqueles
que não o entendem – ele observou – mas espere. Há quanto tempo
você está aqui no acampamento?
– Quatro meses e meio.
– Então como ficou sabendo da execução?
– Meu irmão me ligou. Mau liberou-os por um dia. Mas Caio foi forte
e resolveu que permaneceria na SSCB, apesar de tudo.
– Sim, ele foi forte – ele concordou – era preciso ser forte para ver
algo assim e resistir à tentação de desistir de tudo.
– Você costuma ler bastante o que os Sacrios escrevem nos sites
oficiais?
– Não – respondeu Caio – algumas vezes eu prefiro nem ler.
– Por quê?
– Porque muitos deles escrevem bobagens e eu me canso. Até estou
contente de ter umas férias de internet e não precisar mais ler o que eles
dizem. É um tipo de vício checar aqueles sites com frequência, então
está sendo positivo poder me policiar.

237
Wanju Duli

Pensei em contar para ele que tínhamos acesso à internet


secretamente, mas resolvi não dizer. Ele parecia uma pessoa confiável,
mas se ele não fazia questão de ler os sites, preferi não contar. Afinal,
quanto menos gente soubesse daquilo melhor.
Na semana seguinte, Mau finalmente escreveu alguma coisa. Dessa
vez no site da SSC brasileira:

Eu adoro o mar.
Estou tendo umas férias bem merecidas na praia, com muito surf, água de coco e
garotas bonitas.
Aqui vai algumas fotos.
Yago, espero que esteja cuidando de tudo. Se você ferrar com tudo, vou te obrigar a
vir para a praia comigo da próxima vez, como punição.

Embaixo da postagem havia fotos de alguma praia que eu não sabia


qual era.
Farah postou no site da SSC Internacional:

Você ainda não me contou em que praia está, Mau :(


E você não surfa!!! Por que não para de insistir nisso, para fingir ser legal? Mau,
você já é legal o suficiente exatamente como você é. Não precisa fingir ser outra pessoa.
E, sinceramente, eu gosto mais do Mau verdadeiro do que do falso. Embora todos
os Maus tenham o seu charme :3

Mau não respondeu. Em vez disso, resolveu criar uma conta no


Facebook para encher de fotos da praia. Numa delas havia um vulto
escuro de um homem segurando uma prancha. Na legenda, Mau
escreveu: “eu e minha prancha”.
Farah também criou uma conta no Facebook, só para comentar na
foto. Ela escreveu:

Esse segurando a prancha não é você! É só a foto de um cara aleatório que você
achou na internet!! u_u

Mas Mau parou de postar depois disso.

238
Sociedade do Sacrifício

Enquanto isso, eu estava ansiosa para completar meus cinco meses


no acampamento branco. Quando aconteceu, eu não me contive de
alegria.
Só faltava um mês para eu voltar para o Brasil. Tinha chegado o
momento de comunicar a minha decisão de voltar. Eu precisava avisar
os Sacrios do acampamento, e também contatar Sahana. Eu queria
perguntar ao Yago se eu teria permissão de conseguir transferência.
Eu fiquei muito contente quando fiquei sabendo que Sahana visitaria
nosso acampamento na próxima semana. Eu finalmente iria conhecê-la!
Achei que eu teria que retornar ao Brasil sem nunca tê-la visto. Então
resolvi esperar que ela chegasse.
Sarthak retornou ao acampamento um dia antes de Sahana chegar, só
para fingir que estava lá o tempo todo.
Na frente dela, Sarthak era outra pessoa. Um verdadeiro cavalheiro.
Na frente de todas as outras pessoas ele não fazia o menor esforço para
não ser rabugento. Ouvi dizer que ele não fazia questão de ser gentil
sequer com Raghav, que era o vice.
– Raghav já está acostumado a lidar com ele – Sella me contou.
Foi meio difícil conseguir um horário para conversar com Sahana,
pois muita gente queria falar com ela. Afinal, fazia um tempão desde a
última vez que ela esteve na Índia e principalmente os Sacrios queriam
aproveitar para relatar problemas do acampamento e contar sobre
situações.
Sahana usava uma cadeira de rodas. Quando prestei atenção, notei
que ela não tinha as duas pernas debaixo do vestido que usava.
“Esse é o peso de ser um Sacrifício” pensei, fitando-a com respeito.
Ela certamente havia perdido as pernas lutando contra os Deuses,
assim como muitos outros perderam partes do corpo: Mau, Raghav,
Meera... e talvez alguns outros que eu ainda não vira.
Ela parecia ter mais de 40 anos. Naquele momento, senti vergonha só
de pensar no pedido que Mau fizera para ela ser sua vice. Ele tinha
cortejado uma mulher com pelo menos o dobro da idade dele. Mau não
tinha o menor respeito? Ele não se enxergava? Por ele ser o líder
mundial da SSC certamente devia achar que todas as mulheres babavam
por ele, mas as realmente fanáticas por Mau eram ou as adolescentes que

239
Wanju Duli

um dia pensavam em entrar para a SSC, ou as Saos. Para os demais


Sacrios, Mau devia ser apenas mais um deles.
Sahana sorriu quando me apresentei. Ela era muito simpática. Eu
disse a ela que eu tinha adorado meu período na Índia e que aprendi
muito. Agradeci a oportunidade. Mas agora eu achava que já era hora de
voltar para meu país.
Ela compreendeu completamente e me deu a permissão de usar o
computador para enviar um e-mail para Yago e perguntar sobre a
possibilidade de transferência. Ela me garantiu que, caso eu não
conseguisse a transferência agora, eu seria mais que bem-vinda para
permanecer no acampamento branco no semestre seguinte.
Honestamente, eu estava ansiosa para escapar daquela neve. Não via
a hora. Se eu não conseguisse a transferência, eu tentaria pedir uma
permissão especial a Sahana para ir ao acampamento laranja.
Enviei um e-mail para Yago naquele mesmo dia. Recebi permissão
para checar o computador no dia seguinte, naquele mesmo horário, para
descobrir se já tinha recebido resposta.
Felizmente, Yago me respondeu em algum momento das últimas 24
horas. Ele escreveu:

Olá, Antônia!

Fico contente em receber notícias suas. É ótimo saber que você já conversou com
Sahana.
Vejo que já tomou sua decisão de retornar ao Brasil. Verei o que posso fazer.
Ainda não posso te garantir com certeza se teremos vaga para você para esse próximo
semestre. Nós ainda estamos avaliando as últimas aplicações dos novos candidatos e
houve outros pedidos de transferência, por isso será difícil.
Felizmente, agora temos uma lista de espera. Estamos com um novo
acampamento para os Saos mais avançados e isso liberou mais vagas. Sendo assim,
acho que você pode ficar otimista.
Eu irei te enviar um novo e-mail daqui duas semanas te informando se sua
transferência será possível. Sei que será meio em cima da hora, mas estamos com
muitos afazeres. Mau resolveu tirar férias num dos piores períodos, em que estamos
particularmente ocupados avaliando os novos candidatos.

240
Sociedade do Sacrifício

Teoricamente, ninguém tem permissão de tirar férias na SSC, ou apenas


raramente em casos muito especiais, como ir para casa por alguns dias em caso de
doenças na família. Mas você deve saber que para Mau as regras raramente são as
mesmas que as nossas.
A propósito, você deve ter notado que enviamos mais um brasileiro para a Índia.
Espero que vocês já tenham sido apresentados.
Porém, ele permanecerá por aí bem menos tempo. Ele foi enviado para ficar
somente dois meses e logo estará de volta ao Brasil. Talvez vocês voltem juntos.
Há também um rapaz muito especial que veio da Nigéria. Sugiro que não perca
a oportunidade de conversar com ele. Esse rapaz é uma das razões pelas quais foi
concedida essa permissão de intercâmbio no meio do semestre. Sahana poderia
informar mais detalhes, mas creio que ela deseje manter sigilo sobre isso por enquanto.
Peço que aguarde meu contato dentro de duas semanas. Enquanto isso, aproveite
sua estada.

Sinceramente,

Yago

Chefe de Programação da SSC do Brasil

Eu não imaginava que ainda teria que ficar no suspense por mais duas
semanas.
E depois daquele e-mail, eu faria questão de conversar mais com o
nigeriano. Fiquei muito curiosa. Eu andava conversando bem mais com
o brasileiro e quase esqueci dos outros dois.
Pelo jeito, Caio tinha se saído melhor no teste do que eu se já tinha
garantido sua permissão de retornar ao Brasil.
Mas depois eu conversaria mais com ele. Era hora de procurar
Benjamin.
Eu o localizei perto dos carros com uma pá, removendo a neve que
se acumulara. Geralmente o escalavam para realizar tarefas braçais mais
pesadas, já que ele parecia ser forte. Coitado.
– Oi Benjamin – eu o cumprimentei – tudo certo?
– Sim, estou ótimo – ele sorriu – e você?
– Estou bem.

241
Wanju Duli

E agora? O que eu deveria dizer? Será que não era melhor eu ir direto
ao ponto?
– Eu acabei de receber um e-mail de Yago – expliquei – é o diretor de
computação da SSCB.
– Sim, sei quem é Yago. Todos sabem quem ele é.
Eu sorri. É claro. Todo mundo lia o site da SSCB.
– Eu perguntei a ele sobre minhas possibilidades de transferência
para o Brasil para daqui três semanas.
– Você conseguiu?
– Só vou saber daqui duas semanas! – exclamei, agoniada – a espera é
angustiante.
– Bem, espero que você consiga. Eu também gostaria de fazer um
intercâmbio por lá um dia.
– Legal. Sabe, Yago mencionou você no e-mail.
– Ele mencionou? – perguntou Benjamin, curioso.
– Ele disse que você é um “rapaz muito especial” – eu repeti
exatamente as palavras de Yago, deixando claro que tinham sido ditas
por ele – tem ideia a que ele esteja se referindo?
– Deve ser ao fato de que sou um siddha de nascimento – ele
respondeu, naturalmente.
Eu tive um choque tão grande que dei um passo para trás. Benjamin
riu da minha expressão de surpresa.
Depois disso, eu comecei a rir com ele.
– Há, há! Bela piada. Eu quase caí nela.
– É sério – disse Benjamin.
Eu ainda estava meio desconfiada.
– Mas não era para ser um segredo? – perguntei – por que você me
contaria?
– Nao é bem um segredo – ele explicou – outros já sabem. Por
enquanto, poucas pessoas. Mas já que Yago mencionou isso a você, ele
não deve se importar que você saiba, então eu também não me importo.
Aquilo tudo ainda era fantástico demais. Ainda não tinha caído a
ficha.
Eu estava falando com um siddha de nascimento! Um dos raros.
– Isso significa que agora Mau não é mais o único siddha de
nascimento do mundo – observei – você já o conheceu?

242
Sociedade do Sacrifício

– Sim. Já conversei com ele.


– Como ele é? – perguntei.
Ele pensou um pouco antes de responder. Tirou mais um pouco de
neve das rodas do carro.
– Um cara estranho – foi a resposta – estou surpreso que ainda não o
tenha visto. Você não é brasileira?
Expliquei a ele minha situação: que eu havia sido enviada diretamente
para a Índia para iniciar meu treinamento e eu ainda não o tinha visto.
Mas que estava ansiosa para receber minha transferência e vê-lo dali três
semanas.
– Eu achava que siddhas de nascimento não precisavam passar pelo
treinamento de oito anos – mencionei – pois me disseram que Mau se
tornou Sacrios assim que entrou para a SSC.
– A minha situação e a do Mau são ligeiramente diferentes – explicou
Benjamin – as siddhis dele são mais poderosas, devido a certas razões.
Por isso, ainda irei passar por pelo menos um ou dois anos de
treinamento antes de virar Sacrios.
– Mesmo assim, já será bem menos tempo do que nós teremos que
treinar – observei – isso significa que você se tornará o líder da SSC da
Nigéria no futuro?
– É o que dizem – Benjamin respondeu – mas ainda é muito cedo
para ter certeza. Não basta ser um siddha de nascimento. Ainda
precisarei provar meu valor. É provável que eu consiga o posto de vice-
líder quando eu me tornar Sacrios. Quanto a líder, não sei. O líder atual é
muito forte e tenho o maior respeito por ele. Acho que eu já ficaria
satisfeito com a posição de vice. Mas vamos ver.
Ele falava aquilo como se não fosse nada. Ele não notava o quão
fantástica era aquela situação?
– Talvez você até se torne o vice-líder da SSC Internacional um dia –
comentei – porque, convenhamos, a vice-líder atual de lá não tem nada
de especial...
Benjamin riu do que eu disse.
– Farah é muito forte – ele garantiu – você não faz ideia do quanto.
Ela não está lá por acaso. E ela tem muito mais experiência que eu.
Poder não é a única coisa que é levada em consideração para receber um
cargo dessa importância.

243
Wanju Duli

– Então você já viu os Deuses? – perguntei, impressionada.


– Ainda não. Mas já recebi algumas informações bem importantes,
que Saos normalmente não receberiam.
Aquilo tudo era extraordinário! Eu tinha vontade de voltar correndo
para a barraca e revelar tudo para as minhas amigas.
Mas eu precisava segurar a língua. Embora aquele fato não fosse
exatamente um segredo e as pessoas fossem ficar sabendo cedo ou tarde,
seria bastante inapropriado da minha parte sair espalhando aquela
informação depois de Benjamin ter dito confiar em mim.
Enquanto eu caminhava de volta à região das tendas e barracas,
encontrei Caio tricotando sentado num canto, praticamente no meio da
neve. Resolvi sentar-me ao lado dele, em cima do pano que ele tinha
estendido no chão.
– Não está com frio? – perguntei.
– Não – ele respondeu – quando me falaram desse acampamento
pela primeira vez, achei que seria bem mais frio. Nem é tanto assim.
Será que eu que era friorenta?
– Como vão suas meditações? – perguntei.
– Sonolentas e entediantes. Não consigo entender que graça vocês
veem nelas.
– Nós não fazemos meditações porque elas são engraçadas –
expliquei – e sim para despertar siddhis.
– Há outras formas de encontrar siddhis.
– Eu sei. Mas por aqui eles usam o método da samadhi.
– Um método chato – disse Caio, pegando uma caneca que ele havia
apoiado num suporte de madeira em cima da neve – embora um método
forte. Dizem que as siddhis se tornam muito estáveis por samadhi.
– Você já leu bastante sobre siddhis? – perguntei.
– Não sei quase nada sobre o método indiano – ele respondeu – só
estou dizendo o que ouvi falar.
Também fiquei com vontade de pegar uma bebida quente ao vê-lo
beber. Havia uma garrafa térmica ali perto e perguntei se eu podia pegar
um pouco.
– Vá em frente – ele disse – mas não sei se ainda está quente.

244
Sociedade do Sacrifício

Levantei-me para pegar uma caneca numa das tendas. Enchi minha
caneca com a água da garrafa térmica, por cima do saquinho de chá.
Achei quente o bastante.
– Ouvi dizer que você só veio para ficar dois meses aqui – eu disse –
isso significa que você já fez seus quatro primeiros meses de treinamento
no Brasil?
Ele fez que sim.
– Então você conhece os Sacrios brasileiros? – perguntei.
Ele confirmou novamente.
– Quais?
– Todos.
– Todos?! – perguntei, surpresa.
– Quis dizer os mais famosos – explicou Caio – que escrevem no site
oficial.
– Ah, sim. Você não deve ter recebido permissão para assistir à
execução da Vic já que é iniciante, mas você deve tê-la conhecido.
– Eu a vi de longe uma vez.
– Que sorte – eu falei – nunca cheguei a conhecê-la. Você foi
treinado pela Manu?
– Sim, embora ela tenha sido afastada por um curto período.
– Você acha que o treinamento lá é mais difícil do que aqui?
– Bem mais. Incomparavelmente mais. É o preço que temos que
pagar por não usar meditações, eu acho. Na meditação demora muito
para começar a acontecer alguma coisa, mas dizem que quando acontece
não para mais.
De repente, eu me sentia muito sortuda por ter passado aquele
período na Índia. Aquele meu treinamento de seis meses poderia me
trazer muitas vantagens no futuro.
– Eu gostaria de voltar para o Brasil no segundo semestre –
mencionei – mas não sei se vou conseguir transferência. Estou trocando
e-mails com Yago sobre esse assunto.
– O que ele disse?
– Ele ainda não sabe se terá vaga para mim, então ele vai me enviar
um novo e-mail daqui duas semanas.

245
Wanju Duli

– Que lerdeza – Caio riu – provavelmente amanhã você já terá sua


resposta, porque eu recebi a minha hoje. Eu já garanti a minha volta para
o Brasil.
– Ah, meu caso é diferente – esclareci – eu fui muito mal nas provas
teóricas.
– Aquelas provas teóricas não significam nada. O que importa é a
entrevista.
– Eu também me ferrei na entrevista.
– Quem te entrevistou?
– Yago.
Caio riu outra vez.
– Yago aprova todo mundo – disse Caio – como foi que ele não te
aprovou?
– Não sei. Eu devo ter falado muita bobagem. E foi bem num dos
períodos que Mau inventou de cancelar as vagas. Mas não sei se teve
alguma influência. Só sei que tinham menos vagas esse ano, por causa
dos estudantes estrangeiros.
Caio tomou mais um gole do seu chá. Eu lembrei do meu chá e o
imitei.
– Tricotei tantos cachecóis e eles serão inúteis no Brasil – observou
Caio – é uma pena. Acho que irei dá-los para o pessoal aqui do
acampamento.
– Será um lindo presente de despedida – garanti – você pode escolher
dá-los para as pessoas que mais te ajudaram aqui.
– Estava pensando em simplesmente jogá-los no saco de roupas de
inverno – disse Caio – mas talvez eu faça o que você me sugeriu.
– Por que não tricota outra coisa que não seja cachecóis? – perguntei
– posso te ensinar a fazer toucas e meias. Só sei fazer coisas fáceis
também, mas assim já varia um pouco.
– É mais divertido fazer algo que já sei, pois assim só vou tricotando
sem pensar. Pensei que meu período aqui na Índia seria mortalmente
entediante, já que tenho dificuldade com meditações. Mas graças a você,
aprendi um novo passatempo que me salvou nessas últimas semanas.
Então... obrigado.
Notei que ele ficou vermelho quando me agradeceu. Ele olhou para
mim rapidamente e depois desviou os olhos.

246
Sociedade do Sacrifício

Eu até me sentia meio mal por ele se mostrar tão agradecido por eu
tê-lo ensinado uma coisa tão simples.
– Ah... não foi nada – resolvi dizer – eu não esperava que você fosse
gostar tanto. Fico feliz de ter ajudado.
Depois disso, ficamos em silêncio por um momento. Caio voltou a
tricotar.
– Você sabe guardar um segredo? – perguntei, antes que pudesse me
conter.
Caio me fitou, curioso. Meu coração estava disparado.
Caio tinha lindos olhos castanhos escuros. Eu ainda não tinha
reparado.
– É claro – ele disse.
Por que eu estava tão nervosa? Meu coração estava explodindo no
peito.
– Descobri que Benjamin é um siddha de nascimento.
Resolvi falar tudo de uma vez, antes que eu não conseguisse mais.
Os olhos de Caio se estreitaram. Ele parou de sorrir.
– O quê?
– Eu sei – eu ri – é incrível, não é? Mas é verdade!
– Quem te contou?
– O próprio Benjamin – respondi – mas só porque Yago me deu uma
pista por e-mail.
– Yago – Caio repetiu – ele realmente tem a boca grande.
– Você já sabia disso? – perguntei, surpresa.
– Sim – disse Caio – Benjamin me contou esses dias. Eu fiquei
boquiaberto ao descobrir que havia mais uma pessoa nessa condição. Foi
completamente inesperado.
Eu me senti aliviada. Se Caio já sabia, não foi tão ruim que eu tivesse
mencionado o assunto.
– Mas Benjamin disse que a condição dele e a de Mau são diferentes,
pois as siddhis de Mau são mais fortes – eu disse – por que será?
– O que você acha de Mau? – ele me perguntou, em vez de responder
minha pergunta.
Havia muitas formas diferentes de responder aquilo.
– Leio o que ele escreve na internet desde que eu era criança –
respondi – então ele é como um herói para mim. Ou talvez um anti-

247
Wanju Duli

herói. Ele diz que quer salvar o mundo, mas ele não é o melhor exemplo
de salvador. Ele costuma tratar muito mal as pessoas ao seu redor,
incluindo seus amigos. Ele acha que sabe mais que os outros, que é
melhor que os outros. Ele quer deixar claro que se encontra acima de
todos, mesmo que isso signifique matar alguém que ele ama. Ele diz que
faz o que faz em nome de um bem maior. Ao mesmo tempo, ele diz que
está acima das leis, mas não as muda porque não quer. Eu acho que ele
deseja manter os segredos da SSC e do mundo dos Deuses escondidos
não para proteger o mundo, mas porque ele sabe que aqueles que
conhecem os seus segredos entendem que Mau só estava dando um
monte de desculpas. Somente metade do que ele faz é para ajudar as
pessoas. E ele provavelmente só ajuda as pessoas para ter a desculpa de
ser arrogante na outra metade do tempo.
Quando parei de falar, eu me dei conta de que tinha falado demais.
A verdade é que eu não sabia o que eu realmente achava do Mau. Por
que eu continuava a segui-lo? Por que eu queria ser um Sacrios como
ele?
Talvez porque, apesar de todos esses defeitos, eu ainda o admirasse
de uma forma inexplicável.
Caio apenas me olhava sem dizer nada. Eu não sabia o que ele estava
pensando.
– Eu acho que no fundo eu admiro o Mau exatamente por causa de
todos os defeitos que ele tem – concluí – ele é uma inspiração para mim,
porque ele me mostra que se até mesmo uma pessoa repleta de defeitos e
contradições como ele é capaz de ser um salvador do mundo, eu, que
também estou longe de ser perfeita, também posso ser. Acho que é isso
que todos amam nele: Mau não é santo e não posa de santo. Ele mostra
todos os seus podres na internet, sem vergonha nenhuma. Ele é corajoso
por isso. Ele não quer tentar ser Deus. Ele se orgulha de ser um
humano.
Pronto. Eu tinha terminado meu discurso.
Quando fitei Caio, notei que ele estava me observando com um leve
sorriso. Finalmente, ele disse:
– Obrigado.
– De nada – eu disse – também foi divertido para mim responder sua
pergunta.

248
Sociedade do Sacrifício

– Não, eu quis dizer que estou realmente agradecido por suas


palavras. Pareceu sincero.
Ele colocou a mão no bolso da calça e tirou uma carteira de lá. Ele
jogou alguma coisa na minha direção.
– Essa é minha carteira de identidade – ele informou – divirta-se.
Confusa, olhei o que estava escrito na carteira.
Além da foto dele, havia o nome: Maurício Viegas Lancastre. Nascido
em 22 de março, em Recife. De acordo com o ano de nascimento, ele
tinha 20 anos.
– Seu nome não é Caio? – perguntei, intrigada – e você disse que
tinha nascido em Fortaleza, mas nasceu em Recife...
– Desculpe. Eu menti. As informações da identidade estão corretas.
Meu nome é Maurício, mas poucos me chamam assim.
Senti um frio na espinha. Aquele filho da puta não ia me enganar.
– Yago me contou que o siddha de nascimento da Nigéria viria para
cá, assim como Sahana. Seria uma oportunidade de me encontrar com os
dois. Eu também tinha coisas a tratar com Raghav. Yago também
mencionou que a irmã de um dos Saos estava aqui. Resolvi usar o nome
do seu irmão para ver a sua reação.
– Mau jamais faria uma viagem internacional de avião – eu afirmei –
ele nunca saiu do Brasil e odeia andar de avião.
– No momento estou sem vice-líder, então estou sendo obrigado a
viajar. Estou apenas mentindo no site dizendo que estou de férias na
praia. Achei aquelas fotos na internet. Usei o computador dos Sacrios do
acampamento. Mas se quiser uma prova decisiva, eu posso te dar.
Ele tapou o olho direito com a mão. Quando destapou o olho, ele
estava cego.
– Usei uma siddhi para disfarçar – ele explicou – foi apenas um efeito
estético, pois não tenho poder de curar um olho que foi arrancado por
um Deus.
Nesse momento, algo morreu dentro de mim. Eu estava tremendo de
medo.
Eu o fitava de olhos arregalados. Subitamente, lágrimas caíram.
Meu coração disparava. Era doloroso. Eu não estava sentindo uma
sensação boa. Era insuportável.

249
Wanju Duli

As minhas lágrimas caíam como um rio. Até que eu comecei a chorar


mais forte e soluçar.

250
Sociedade do Sacrifício

Capítulo 4
Ele mantinha um olhar vago e sério e aguardava eu me acalmar com
paciência. Mas quando eu comecei a fazer muito barulho no meu choro
e algumas pessoas que caminhavam no acampamento pararam para nos
observar de longe, ele se preocupou:
– Por favor, não chore tão forte. Estão nos olhando. Não quero
chamar a atenção.
Por algum motivo, ele não queria que os Saos do acampamento
soubessem sua identidade. Por isso, coloquei a mão na boca e tentei me
conter. Respirei fundo duas vezes. Mada cada vez que eu olhava para ele,
eu recomeçava a chorar.
– Desculpe – eu respondi, em meio às lágrimas – eu não pretendia
chorar.
Foi tão espontâneo. Eu nunca pensei antes como eu me sentiria
quando eu o visse ao vivo pela primeira vez.
Eu jamais imaginei que fosse ser assim. Eu me imaginei em meio à
multidão do acampamento no Brasil assistindo-o clamar um discurso de
boas-vidas lá longe, no alto. E se um dia eu trocasse algumas palavras
com ele, certamente seria uma entrevista breve e formal.
Não era para eu ter passado por uma situação assim. Eu não estava
psicologicamente preparada.
Eu também fiquei com medo de ter dito alguma bobagem. É claro
que se eu soubesse antes que era ele, eu teria contido minha língua.
Quando consegui parar de chorar, eu ri levemente, embaraçada com
o drama que eu tinha feito.
– Eu não sei o que dizer – confessei – você já deve estar acostumado
com pessoas chorando quando o veem pela primeira vez.
– Mas você não está me vendo pela primeira vez – ele disse – você já
me conhece há mais de um mês e conversa comigo todo dia.
– Isso tornou o choque ainda maior! – exclamei – você me enganou
direitinho.
– Eu não tinha intenção de te fazer chorar – ele explicou, parecendo
meio preocupado – eu só ocultei minha identidade para fazer uma

251
Wanju Duli

brincadeira, já que a maior parte dos Saos indianos não me conhecem


pessoalmente. Até alguns Sacrios nunca me viram antes. Então achei que
seria fácil vir para cá disfarçado. Eu queria experimentar como seria
passar dois meses num acampamento como iniciante, pois nunca tive
essa experiência, já que me tornei um Sacrios assim que entrei para a
SSC.
– Então você veio para cá somente para experimentar a vida de um
iniciante?
– Não, essa somente foi uma diversão a mais. Como eu disse antes, o
meu objetivo ao vir era conversar pessoalmente com Benjamin, Sahana e
Raghav. Eu tinha uns assuntos urgentes para resolver com os líderes
daqui e estava curiosíssimo para conhecer o novo siddha de nascimento.
– Será que você estaria procurando um novo vice-líder aqui? –
perguntei, antes que pudesse me conter.
Ele ficou vermelho quando perguntei isso. Merda! Ele tinha me
entendido errado.
– Não foi isso o que eu quis dizer! – tentei consertar – eu só me
perguntei se você estava procurando algum Sacrios de confiança para
cuidar das tarefas administrativas.
– Manu provavelmente se tornará a nova vice – ele explicou – e será
algo estritamente profissional. Agora que irei ajudá-la a treinar os Saos
no novo acampamento a partir desse novo início de semestre, ela terá
tempo para suas tarefas como vice.
Eu tinha recebido aquela informação em primeira mão. Que
fantástico!
Foi então que me lembrei com quem estava falando. Eu estava cara a
cara com a pessoa que poderia resolver definitivamente a questão da
minha transferência.
– Sobre minha transferência... – comecei.
– Não se preocupe – ele me interrompeu – garantirei uma vaga para
você.
– Oba!!! – exclamei.
A alegria da minha comemoração de vitória foi tão genuína que ele
sorriu.
O sorriso dele era completamente adorável. Agora eu entendia um
pouco mais porque Farah era tão perdidamente apaixonada por Mau.

252
Sociedade do Sacrifício

Ele não era exatamente bonito, ou pelo menos não possuía um tipo
tradicional de beleza que se destacasse à primeira vista. Mas ele tinha um
charme próprio, que eu não sabia dizer ao certo de onde vinha.
No fundo, eu precisava confessar: só por saber quem ele era, isso já o
tornava extraordinário. Agora eu prestava atenção nos pequenos
encantos do rosto dele exatamente porque eu relacionava aquele rosto a
ele.
Acho que eu me demorei demais olhando para ele, porque ele já
estava começando a corar de novo e desviou o olhar. Mau era muito
tímido na vida real. Isso era inacreditável. Eu já o tinha imaginado sério,
irritado e extrovertido, mas nunca tímido. E para disfarçar a timidez, ele
costumava sorrir bastante. Imaginei que Farah se derretia toda quando
Mau corava, principalmente porque acontecia com frequência.
Era como se ele tivesse criado um personagem completamente
diferente na internet. O Maurício da vida real era simpático, discreto e
sorridente. O Mau da internet era extravagante, furioso, lendário.
Imaginei que se ele realmente quisesse, conseguiria encarnar o Mau
da internet por alguns instantes. Mas seriam somente atuações. Eu já o
conhecia há mais de um mês e podia afirmar isso.
Ou será que todos eles eram o Mau? Talvez nem ele soubesse a
verdade.
– Confesso que eu estava pensando em revelar minha identidade
somente quando voltássemos para o Brasil – ele comentou – mas optei
por não torturá-la mais. Por você ter dito todas aquelas palavras bonitas
a meu respeito, resolvi te dar esse prêmio.
OK, ele conseguia ser convencido na vida real. Isso significava que
ele poderia se transformar no Mau da internet a qualquer momento. Essa
perspectiva era um pouco assustadora, mas também emocionante.
– Obrigada!! – agradeci, sinceramente.
Novamente, minha animação foi tão genuína que ele riu. Acabei
rindo junto.
Mas eu ainda estava nervosa pra caralho. Eu resolvi me levantar para
pegar mais chá, mas quando me levantei notei que minhas pernas
estavam tremendo. Cacete!
– Quer mais chá? – perguntei – vou pegar mais água quente lá dentro.

253
Wanju Duli

Porém, quando fui pegar a garrafa térmica fiz uma coisa muito
estúpida. Dei um chutão na mesa de madeira que as apoiava e tanto a
garrafa térmica quanto as duas canecas deram um salto e aterrissaram na
neve lá longe.
Eu não me lembrava de ter feito uma coisa tão imbecil na minha
vida. Foi tão engraçado que comecei a rir incontrolavelmente.
Mau me acompanhou. Ele estava gargalhando tão alto que se dobrou
e segurou a barriga. Ambos ficamos com lágrimas nos olhos.
Provavelmente rimos tão loucamente e tão alto que muita gente no
acampamento nos escutou.
Agora sim o clima tenso tinha desaparecido completamente e eu
ficaria tranquila.
– Do que vocês estão rindo? – Sella e Roshni estavam passando por
ali e nos ouviram.
Eu relatei a elas com detalhes sobre o meu belíssimo chute no
suporte de madeira e o momento em que tudo foi pelos ares, enquanto
Mau ainda estava secando as lágrimas dos olhos.
– Deve ter sido engraçado – disse Sella – queria ter visto. As risadas
de vocês podiam ser ouvidas do outro lado do acampamento. Sabia que
alguns Sacrios estão meditando agora lá perto da entrada? Eles devem ter
ouvido vocês.
– Porra, que merda! – falei, com alegria.
– Antônia, pare de falar um pouco, por favor – pediu Mau,
escondendo o rosto, que agora não estava vermelho de vergonha e sim
de tanto rir – porque cada coisa que você está dizendo nos últimos
minutos está me fazendo rir.
Bem, se o rei das piadas mais famosas e toscas da internet estava
rindo do que eu dizia, eu devia ser realmente engraçada!
– Podemos nos sentar aqui com vocês um pouco? – perguntou Sella
– eu e Roshni acabamos de lavar pratos e panelas por duas horas
ininterruptas e estamos quebradas.
Elas se sentaram numa parte do pano. Resolvi levantar para resgatar a
garrafa térmica e as duas canecas.
– Quer que eu vá buscar a água quente enquanto você vai pegar mais
duas canecas? – perguntou Roshni – porque eu também aceito um
pouco de chá.

254
Sociedade do Sacrifício

Logo já estávamos de volta. Colocamos um saquinho de chá em cada


caneca e acrescentamos a água.
– O que você tem aí, Caio? – perguntou Sella, curiosa, olhando para o
tricô dele – deixa eu tentar adivinhar: um cachecol!
– O meu melhor até agora – ele informou, orgulhoso – estou me
saindo melhor a cada cachecol que faço.
Eu tinha que traduzir para o inglês tudo o que Mau falava, porque
obviamente ele não sabia porra nenhuma de inglês. Esse era parte do
motivo de ele ser tão calado perto das minhas amigas.
– Você fica tão bonitinho quando está tricotando! – comentou Sella –
tão sério e concentrado.
Quando traduzi isso, aconteceu algo completamente previsível: Mau
ficou vermelho.
– Obrigado – ele disse em inglês uma das poucas palavras que sabia.
Sella riu com o agradecimento. Um pouco depois disso, alguém
chegou correndo até onde estávamos, balançando uma garrafa.
– Então aí estão vocês! – exclamou Mei-Xiu, animadamente – Oba!
Piquenique na neve!
– Não é piquenique – esclareci – só estamos tomando chá.
– Espero que Sarthak não nos encontre aqui – disse Mei-Xiu,
sentando-se conosco – senão ele vai nos xingar e nos mandar fazer
alguma coisa. Aquele cara rabugento! Não gosta de ver ninguém feliz. Eu
acabei de roubar uma garrafa de bebiba alcoólica da mala dele. Ele
trouxe muitas dessas, então acho que ele nem vai notar que peguei uma.
Não faço nem ideia do que seja, porque não sei ler hindi. Mas fiquei com
vontade de provar.
Sem cerimônia, Mei-Xiu pegou a caneca da mão de Roshni, jogou o
conteúdo na neve e colocou o conteúdo da sua garrafa dentro.
– Nossa, que delicadeza – comentou Roshni – claro, Mei, eu te
empresto minha caneca, será um prazer. Obrigada por perguntar.
Ela tomou um longo gole e depois tossiu.
– O gosto disso é muito esquisito e é forte pra caralho – ela
comentou – mas acho que eu gostei! Querem provar?
Eu recusei, porque eu não bebia. Por nenhum motivo especial.
Estava esperando completar dezoito, mas como eu entrei para a SSC
com aquela idade acabei não provando nada. E eu realmente não estava

255
Wanju Duli

a fim de arriscar ficar bêbada e ferrar com minhas últimas semanas por
lá. Eu ainda queria causar uma boa impressão. Afinal, Sahana tinha
pagado minha passagem e se encontrava no acampamento naquele
instante. Eu não queria criar uma situação embaraçosa para mim.
As outras meninas também recusaram a oferta de Mei-Xiu, mas Mau
aceitou.
– Oh? O menino quietinho gosta de álcool? – Mei-Xiu deu um
sorrisinho.
– Eu apenas bebo socialmente – esclareceu Mau.
– Sei – brincou Mei-Xiu.
Ele já ia jogar seu chá na neve quando Mei-Xiu ofereceu a própria
caneca.
– Se for só provar, bebe da minha – ela ofereceu – se gostar e quiser
que eu te sirva, pode usar sua caneca.
Ele resolveu aceitar a oferta e provou um gole da bebida da caneca de
Mei-Xiu.
Mau fez uma careta e devolveu a ela a caneca.
– Muito forte – ele disse.
– Por isso que é bom – ela disse, bebendo aquilo como água.
Quando ela terminou a primeira caneca serviu outra. E mais outra.
– Mei, eu acho que você devia guardar isso – sugeriu Sella – não acho
que seja exatamente permitido se embebedar no acampamento...
– Se Sarthak pode, por que eu não posso? – ela insistiu.
– Porque ele é Sacrios – respondeu Sella – Sacrios podem usar a
internet, beber e tirar férias na praia. Sério, Mau está sendo
insistentemente imbecil sobre suas férias na praia. Ele não para de postar
fotos de homens com pranchas no Facebook e diz que todos são ele,
mas as silhuetas são de pessoas diferentes. Ou Mau está tirando com a
cara de todos com uma piada escrota como essa ou ele é realmente um
otário. Aposto que Farah está certa. Ele nunca deve ter surfado na vida e
fica pagando de poser na internet.
Mau ficou curioso sobre o que Sella disse ao ouvir seu nome duas
vezes. Ele pediu que eu traduzisse, mas eu recusei.
– Por que não quer traduzir? – perguntou Sella – eu falei algo tão
engraçado!

256
Sociedade do Sacrifício

Como as meninas tinham rido do que ela disse, é claro que Mau
ficaria ainda mais curioso.
“Seja o que Deus quiser” pensei, contrariada, e traduzi o mais
fielmente que consegui o que Sella tinha dito.
O sorriso de Mau se alargou quando minha tradução terminou. O
que será que aquilo significava?
– Mau postou essas coisas recentemente, certo? – perguntou Mau –
então como vocês sabem se vocês não têm acesso à internet?
Puta merda! Eu nem me dei conta que ele notaria isso. Em vez de
prestar atenção nas críticas que Sella fez, ele se focou nesse detalhe.
Tive que traduzir a pergunta de Mau.
A “resposta” de Mei-Xiu fez meu estômago subir até a garganta: ela
tirou o celular do bolso da calça e jogou-o na direção de Mau.
– Tem internet – ela informou.
– Mei! – exclamou Sella, chocada – o que você fez?
– Está tudo bem – ela bebeu mais uma caneca – confio no Caio. Ele
é bonzinho. Não vai nos dedurar.
Sella arrancou a caneca da mão de Mei-Xiu.
– Pare de beber! – ela exclamou – você só fez essa coisa estúpida
porque está bêbada!
Mei-Xiu começou a rir loucamente quando Sella disse isso.
“Ela está bêbada mesmo” pensei, temerosa. Aquilo não era bom.
– E mesmo que Caio não conte nada, você não podia ter trazido o
celular aqui fora e mostrado em público – disse Sella – alguém pode ver.
– Você é muito preocupada – queixou-se Mei-Xiu.
Mau começou a analisar o celular, mas não conseguiu mexer direito.
– Em que língua está isso? – ele perguntou, confuso – como se acessa
a internet?
– Eu te mostro – disse Mei-Xiu.
Ela levantou-se e sentou-se ao lado de Mau. Arrancou o celular da
mão dele sem cerimônia, colocou no site da SSCB e entregou a ele outra
vez.
– Aí está – sorriu Mei-Xiu.
Mau analisou.
– Vocês pegaram a senha de Sarthak? – perguntou Mau.

257
Wanju Duli

Eu traduzi o que Mau disse e Mei-Xiu confirmou com a cabeça,


fazendo uma expressão maldosa.
Mau devolveu o celular para Mei-Xiu.
– Também não gosto de Sarthak, então podem zoá-lo à vontade – ele
disse – não dou a mínima.
Isso significava que Mau não ia nos dedurar? Ele, que aceitava passar
a faca no pescoço da mulher que ele amava só por causa de uma regra?
Algumas vezes eu realmente não o entendia.
– Caio, você está tão sexy hoje – Mei-Xiu disse a ele, observando-o
atentamente – você fica tão sexy fazendo tricô.
Mau sequer estava fazendo tricô naquele momento. Eu traduzi para
ele o que Mei-Xiu tinha dito, mas eu também recordei-o que ela estava
bêbada e que ele não precisava levar muito a sério nada que ela dissesse.
Se ele preferisse, nem precisava responder.
– Eu sei, Antônia – ele sorriu, achando graça da minha preocupação
– não se preocupe. Tenho a situação sob controle.
– Pensei que você estivesse a fim do Benjamin – comentou Roshni.
– Quando estou bêbada, eu fico a fim de todo mundo – declarou
Mei-Xiu – é melhor se cuidar, senão posso te pegar também, querida.
Naquele momento, ela caiu pro lado, se jogou em cima de Mau e se
enrolou no pescoço dele. Eu só queria poder fechar os olhos e sair
correndo de lá. Eu não queria nem ver a merda que aquilo ia dar.
Até Mau, que tinha dito “ter a situação sob controle” foi pego de
surpresa pelo ato inesperado de Mei-Xiu. É claro que ela só tinha feito
aquilo para assisti-lo corar, já que Mau não tinha muito controle sobre
isso.
Felizmente, eu não corava com frequência e não era muito
perceptível, até porque minha pele era um pouquinho mais escura do
que a do Mau. Devia ser uma merda mesmo não poder controlar o
sangue que ia para o rosto, mas havia um lado bom naquilo tudo: pelo
menos o sangue não tinha ido para outros lugares.
– Se ela me beijar, eu posso beijá-la? – ele me perguntou – isso é
permitido na cultura dela? Quais são as regras para pegações públicas?
Onde é permitido colocar a mão?
Eu não fazia a menor ideia se Mau estava me perguntando aquilo
ironicamente ou se realmente estava pensando em fazer alguma coisa.

258
Sociedade do Sacrifício

– Se você gostou dela, acho que você pode beijá-la aqui – respondi –
mas suponho que esse seja o limite da pegação em público.
Ele teria mesmo coragem de fazer aquilo? Ele não era tímido? Ou
será que ele iria encarnar o Mau da internet?
Eu não traduzi para as meninas o que Mau perguntou e a minha
resposta, por mais curiosas que elas estivessem.
Para a minha surpresa, enquanto Mei-Xiu estava brincando de agarrá-
lo, Mau tentou beijá-la de verdade! E ele não deu nenhum aviso.
Simplesmente aproximou o rosto e partiu para o ataque.
No entanto, por mais bêbada que estivesse, Mei-Xiu conseguiu recuar
no último segundo e deu um tapa na cara de Mau.
Não foi um tapa de brincadeira. Ela realmente fez aquilo com
vontade e levantou-se, com indignação. Será que, apesar de ter bebido
tanto, a maior parte da falta de controle dela era fingimento?
– Eu estava brincando, idiota! – gritou Mei-Xiu – não era para tentar
me beijar!
Eu estava chocada. Ninguém riu.
– Porra – soltou Sella.
– Mei, não precisava ter feito isso... – disse Roshni, baixinho.
– Você está defendendo ele? – Mei-Xiu perguntou, irritada.
– Você se jogou em cima dele – acrescentou Roshni – ele não tinha
como ter certeza de que era só uma brincadeira.
– Ficou óbvio que era uma brincadeira – insistiu Mei-Xiu.
Mau tentou esconder, mas era óbvio que ele estava chorando. Ou
melhor, ele não estava chorando como um bebê, como eu fiz antes ao
saber quem ele era. Ele apenas deixou escapar algumas lágrimas.
Mei-Xiu notou e a expressão dela subitamente mudou. Acho que ela
sentiu pena dele. Foi até lá.
– Caio, me desculpa – disse Mei-Xiu – não fiz de propósito. Minha
mão se mexeu sozinha. É como um reflexo que tenho para me defender
de tarados na rua. Eu não pretendia te machucar. Acho que bati muito
forte.
Mas ele não respondeu. Não mostrava sinais de que ia desculpá-la. E
ele parecia levemente irritado com a situação.
Aquilo era demais para mim. No dia em que eu soube da identidade
de Mau, eu o vi rir até se dobrar no chão e agora eu o via chorar.

259
Wanju Duli

Eu só tinha uma conclusão: Mau era um homem de mil faces! Ele


tinha múltiplas personalidades e nenhuma era a verdadeira! Ele era ao
mesmo tempo tímido e cara-de-pau, sério e engraçado, risonho e chorão,
calado e falante... em suma, eu estava começando a desistir de tentar
defini-lo. Ele era complexo demais para que isso fosse possível.
Ele era como uma caixinha de surpresas: era difícil dizer qual merda
ele faria a seguir.
E, para piorar ainda mais a situação, naquele instante Sarthak
apareceu na nossa frente e cruzou os braços.
– Então é aqui que está minha garrafa – ele disse, olhando para a
garrafa jogada no chão – qual de vocês fez isso?
Mei-Xiu levantou-se.
– Euzinha – ela respondeu, prontamente.
– E você se orgulha disso? – ele perguntou.
– Há alguma regra contra beber álcool no acampamento?
– Há uma regra implícita contra isso, mas há uma regra explícita
sobre a proibição de roubar.
– Eu não roubei, só peguei emprestado – garantiu Mei-Xiu – se
quiser, te devolvo a metade que sobrou.
Ela abaixou-se, pegou a garrafa e entregou a ele.
– Não tente fazer graça, senhorita... chinesinha.
– Sou taiwanesa – retrucou ela, com irritação – eu vou denunciá-lo
com uma acusação de xenofobia.
Ele suspirou fundo.
– Você é uma intercambista. A SSC da Índia a recebeu de braços
abertos. Você pretende envergonhar a SSC de Taiwan com suas atitudes?
Dessa vez, Mei-Xiu baixou os olhos.
– Perdão... eu agi errado – ela reconheceu – o que vai acontecer
agora?
– Você receberá uma punição com tarefas domésticas adicionais –
disse Sarthak – mas na próxima ocorrência de algo parecido será enviada
de volta a seu país.
Foi muita sorte Sarthak não ver o celular. Se ele tivesse visto, nós
todas seríamos punidas, mas Mei-Xiu seria provavelmente expulsa, não
somente da Índia, mas da SSC.

260
Sociedade do Sacrifício

Sarthak já estava indo embora quando deu uma última olhada para
nosso grupo.
Subitamente, ele deu um salto para trás e arregalou os olhos. Ele fez
uma expressão de pavor tão genuína que eu jurava que ele tinha visto um
fantasma. Até nós nos assustamos com o susto dele.
– Mau!!! – ele exclamou, fora de si – o que diabos você está fazendo
aqui?!
Ah, então era isso. Traduzi para Mau.
– Você ainda não tinha ido falar com o Sarthak? – perguntei a ele, em
português.
– Não – ele respondeu – por que eu faria isso?
E, voltando-se para Sarthak, Mau disse:
– Não posso visitar a SSC da Índia quando desejo?
Eu ia fazendo as traduções.
– Você nunca fez isso antes – disse Sarthak – então por que agora?
– No momento estou sem vice, senão eu o mandaria para viajar no
meu lugar – respondeu Mau – e dessa vez eu fazia questão de vir
pessoalmente por outras razões.
– E por que você veio escondido em vez de visitar formalmente o
acampamento e se apresentar a todos, como seria esperado?
– Porque eu estava a fim.
Aparentemente, esse seria o fim da conversa.
– Contanto que Sahana tenha perrmitido essa sua brincadeira, eu não
me importo – disse Sarthak – faça o que desejar.
– É exatamente o que estou fazendo, seu merda – disse Mau, sem
rodeios.
Fiquei com receio de traduzir essa última parte, mas Mau fez questão
que eu o fizesse.
Sarthak estreitou os olhos numa expressão de desagrado. Mau sorriu.
Eu desconfiei que Sarthak estivesse controlando seus dedos para não
estrangulá-lo.
– Você age como se sua posição de líder fosse irrevogável –
pronunciou Sarthak – mas no dia em que for arrancado de seu posto, e
esse dia não está longe, você não terá nenhum Sacrios disposto a
defendê-lo.

261
Wanju Duli

– Talvez – reconheceu Mau – mas enquanto esse dia não chega irei
abusar de minha posição de poder. E agora eu ordeno que saia da minha
frente, antes que eu relate sua insubordinação para Sahana.
– Seu bostinha...
E Sarthak deu as costas e foi embora antes que eu tivesse a
oportunidade de traduzir. Porém, mesmo sem saber o que ele dissera,
Mau desconfiou que não se tratasse de nenhum elogio e deu o dedo,
mesmo ciente de que Sarthak não o veria.
Nesse ponto, Sella, Mei-Xiu e Roshni já tinham compreendido qual
era a verdadeira identidade de Caio.
Antes mesmo que elas se pronunciassem, eu esclareci a situação em
inglês. Não traduzi para Mau o que eu disse. Eu somente disse a ele que
ia dar uma explicação geral dos motivos de ele ter mentido o nome e
todo o resto.
No final da minha explicação, elas ainda estavam sem fala. Por fim,
Mau usou sua siddhi para revelar o olho cego e elas não tiveram mais
dúvidas.
Se bem que... depois daquela conversa de Mau com Sarthak, não vi
motivo nenhum para restar dúvidas.
Antes que uma delas falasse qualquer coisa, Mei-Xiu levantou-se, saiu
de lá e voltou para nossa barraca. Acho que ela não tinha coragem de
encarar Mau depois do que ela fez.
Para a minha surpresa, Sella levantou-se a seguir, pegou na mão de
Roshni e levou-a consigo. Elas também voltaram para a barraca sem
pronunciar uma palavra.
Elas estavam aterrorizadas. Estavam com medo de Mau.
E agora? Eu deveria voltar com elas? Parecia a decisão mais acertada.
Havia muitas coisas que eu gostaria de perguntar para Mau. A
oportunidade de poder conversar com ele a sós, quanto tempo eu
desejasse, era um sonho se tornando realidade.
No entanto, eu desconfiava que ele não me diria as coisas que eu
realmente queria saber.
– Vá com elas – recomendou-me Mau – amanhã conversamos mais.
Mau provavelmente também não se encontrava em seu melhor
estado de humor para conversar.
Por isso, eu também voltei para a barraca.

262
Sociedade do Sacrifício

Quando retornei, encontrei Mei-Xiu chorando. Enquanto isso, as


outras duas revelavam tudo para Iaboni.
– Isso não pode ser real – disse Mei-Xiu, em meio aos soluços – eu
vou me matar.
– Calma, Mei – eu tranquilizei-a – não se preocupe. Mau não está
zangado com você. Pelo menos não tanto quanto você imagina.
Resolvi sair da barraca e procurar Benjamin. Contei a ele que Mau
tinha me revelado sua identidade e o que havia ocorrido a seguir.
– Parece legítimo – comentou Benjamin – soa como algo que Mau
faria.
– Tem como você conversar com ele e pedir para ele não ficar
irritado com Mei-Xiu? – pedi – ela está devastada. Está sinceramente
arrependida. Não sei mais o que fazer.
– Pode deixar – confirmou Benjamin – eu falo com ele. Posso ajudar
em mais alguma coisa?
– Isso é tudo, obrigada. Você já vai ajudar muito fazendo isso.
E eu voltei para a nossa barraca.
– Eu avisei a vocês para não perturbarem os rapazes – acrescentou
Iaboni – aqui no acampamento nunca é possível saber ao certo com
quem estamos lidando. E agora deu nisso.
– Eu sei que você nos avisou, Iaboni! – exclamou Mei-Xiu, zangada,
afundando a cabeça no travesseiro – você não precisa ser uma vaca a
esse respeito.
– Para completar, você fica provocando Sarthak – acrescentou Iaboni
– sério, Mei: Sarthak? Ele é exatamente a pessoa a evitar perturbar se
você não quer criar problemas por aqui. Ele é o general do
acampamento branco.
– Ele é o general do meu rabo! – disse Mei-Xiu, puta da cara – ele
nunca mostra a cara no acampamento e quando aparece uma ou duas
vezes por semestre quer mandar em tudo. Não dá pra acreditar que
Vivaan fica chupando o pau dele.
– Porque ele é esperto – disse Iaboni – diferente de você.
– Então a melhor maneira de se tornar Sacrios é beijar a bunda de
todo mundo? – perguntou Mei-Xiu – se é assim, esse lugar não é tão
diferente da vida real. Nem sei o que estou fazendo aqui. Eu vim para
salvar o mundo, mas só estou sendo xingada desde que cheguei. Minha

263
Wanju Duli

presença aqui significa: “eu aceito dedicar minha vida e morte por vocês”
e eles respondem com “OK, agora cale a boca, faça tudo o que a gente
mandar e morra em silêncio”.
– Sim, é assim mesmo, Mei – concordou Iaboni – sua descrição foi
bastante precisa. Parece que você acaba de perceber que não estamos
numa colônia de férias. É por isso que são muito poucos aqueles que
aguentam se tornar Sacrios. É preciso ser forte.
– É preciso ser um escravo!
– É preciso ter paciência, perseverança e humildade – disse Iaboni – é
exatamente isso que estamos lutando para desenvolver aqui. Quando
alguém te xingar, tente não levar para o lado pessoal. Os Sacrios passam
por muita pressão o tempo todo. A vida deles está sempre por um fio.
Perto disso, nossa vida que é confortável. Eles querem nos ajudar, mas
também possuem seus próprios problemas para lidar.
– Iaboni, cala a boca por um segundo – disse Mei-Xiu – se defender
os Sacrios outra vez, vou te bater. Não me importo que você esteja certa.
Não é isso que preciso ouvir no momento. Tente ter um pouco de tato
para entender minha situação!
Iaboni resolveu ficar quieta.
– Mau escreveu no site oficial da SSCB – informou Sella, olhando o
celular.
Mei-Xiu saltou da cama no mesmo instante e foi até lá.
– Ele falou de mim? – perguntou Mei-Xiu, com ansiedade – ele me
xingou em público?
– Não é nada disso – falou Sella – leia. Já saiu a tradução.
Eu também me inclinei para ler.

Caros cuzões da internet,

Eu sei que não é da conta de vocês, então eu devia ter direcionado essa postagem
aos membros da SSC. Bem, foda-se. Na prática todo mundo vai ler, então tanto faz.
É com orgulho que venho aqui informar que Manu será oficialmente a nova vice-
líder da SSC a partir de hoje. É com o maior respeito que venho para dar-lhes essa
informação, já que a minha relação e a dela será apenas profissional. E eu juro que
agora estou falando sério. Por favor, não interpretem como piada. Não ousem fazer
brincadeiras sobre isso na internet.

264
Sociedade do Sacrifício

Atenciosamente,

Mau

Líder Absoluto da SSC do Brasil, Imperador da SSC Internacional, Matador


de Deuses

– Isso é tudo? – perguntou Mei-Xiu, sem acreditar – ele ignorou


completamente o que aconteceu hoje, como se não tivesse a menor
importância!
– Bem, nós somos apenas iniciantes – opinei – é óbvio que nossa
existência não tem o menor impacto na vida dele.
Até eu fiquei ligeiramente chateada por ele não escrever sequer uma
sugestão de que havia acontecido algo diferente naquele dia. Isso só me
fazia entender que tudo o que Mau escrevia na internet era só a ponta do
iceberg. Nós apenas pensávamos que o conhecíamos. No fundo, não
sabíamos praticamente nada da vida dele, apesar de tudo.
Enquanto isso, o público geral tinha certeza que Mau estava naquele
momento pegando ondas na praia. Enquanto na verdade ele estava
trabalhando duro nas atividades da sociedade. Agora eu me dava conta
que eu já devia ter sido enganada incontáveis vezes antes. Eu não podia
acreditar cegamente em tudo que Mau escrevia. Ele mesmo já tinha
afirmado que ele era mentiroso pra caralho.
Manu postou no site a seguir:

Mau,

Vamos tentar começar com o pé direito dessa vez. E se você deseja colaborar com
isso, não diga coisas como “não interpretem como piada” e “não façam brincadeiras
com isso”, pois isso é exatamente o que você não deveria dizer para evitar. A sua
“relação profissional” com suas vices já virou piada há muito tempo.
Não é preciso anunciar publicamente cada vez que há uma mudança interna em
nossas posições, já que você as altera com frequência. Assim parece que não somos
sérios. Apenas envie a informação por e-mail para os Sacrios e será suficiente.

265
Wanju Duli

Cordialmente,

Manu

Vice-líder e General do Exército da SSC do Brasil

Em seguida, Mau respondeu:

Manu, eu já sabia que você não iria agradecer educadamente por sua posição,
então acho que já devo ficar satisfeito por você tê-la aceitado.
Nem mesmo as iniciantes me dão uma chance esses dias. Os tempos estão difíceis.

– Ele falou de mim – disse Mei-Xiu.


– Parabéns, Mei, você acaba de se tornar uma estrela – brinquei –
agora uma menção a você estará eternamente registrada nos arquivos do
site oficial da SSCB.
Farah escreveu no site da SSC Internacional:

Mau, quando você se finge de pobre rejeitado pelas mulheres eu sinto vontade de te
bater.
Há centenas ou milhares de mulheres loucamente apaixonadas por você. Eu
inclusa na lista. Se houvesse um fã-clube seu, eu seria presidente.
A culpa é sua que você tem esse fetiche estranho de correr atrás das poucas
mulheres que não estão a fim de você.

Tejas escreveu poucos minutos depois:

Minha querida Farah,

Largue esse homem que não a compreende. Eis aqui um homem que a fará feliz.
Eu entendo sua dor. Quero tomar sua dor como minha e fazer com ela uma
limonada, que parecerá azeda aos seus olhos, mas será doce em meu coração.

Beijos,

266
Sociedade do Sacrifício

Tejas

General do Exército do A.L. da SSC da Índia

Farah escreveu:

Cala a boca, Tejas!


Mau é o único homem para mim :x

E assim a troca de mensagens foi finalizada, nos dois sites.


No dia seguinte, recebi um e-mail de Yago, dentro do prazo que Mau
havia sugerido que eu receberia:

Oi Antônia,

Mau me avisou que já revelou a identidade para você e te deu autorização para a
transferência. Portanto, sua vaga está garantida para o próximo semestre.
Desculpe por não te contar que ele estava aí. Escondi a informação por pedido
dele. Mau está sempre inventando coisas. Ontem mesmo ele anunciou no site que
Manu seria a nova vice sem sequer consultá-la. Sorte que ela aceitou dessa vez.
Em três semanas nos veremos de novo. Então aproveite seus últimos dias aí, pois
embora você esteja ansiosa para voltar ao Brasil, quando retornar você irá lembrar da
Índia com saudades.

Sinceramente,

Yago

Chefe de Programação da SSC do Brasil

Será que eu iria lembrar da Índia com saudades porque o treinamento


no Brasil era mais difícil?
Mas agora eu já não me importava onde era mais fácil ou mais difícil.
Eu não via a hora de ser treinada pela famosa Manu. Estava ansiosa para
conhecê-la.

267
Wanju Duli

Normalmente eu estaria pulando de alegria com a confirmação da


notícia da minha transferência, mas acho que já celebrei o suficiente
quando estava com Mau. E havia acontecido tantas coisas no dia anterior
que eu ainda estava com muitas coisas na cabeça para pensar na minha
viagem para o Brasil.
Rizal foi nos visitar na nossa barraca naquele dia. Ele parecia
apavorado.
– Eu preciso que vocês me confirmem uma coisa – ele disse –
Sarthak acabou de sugerir para mim que estou dividindo a barraca com
dois siddhas de nascimento. Ele falou isso do nada, completamente de
graça. Vocês sabem algo sobre isso? Ou acham que ele estava zombando
de mim?
– Dois? – perguntou Sella, estranhando – pensei que fosse só um.
– Então um deles é mesmo um dos lendários? – ele perguntou,
surpreso – qual deles?
– Os dois – respondi – Benjamin foi descoberto recentemente como
siddha de nascimento. E, isso pode ser meio chocante de ouvir, mas
você está dividindo a barraca com Mau há mais de um mês.
– O quê?! – ele gritou – o que quer dizer com “Mau”? Por acaso você
se refere ao Mau... da internet? O líder?
– Esse mesmo – confirmei, com um sorriso – ele veio para cá
disfarçado para tirar com a nossa cara.
Rizal colocou a mão no peito e ficou com um olhar vago.
– Eu xinguei o Mau pra caramba nessas últimas semanas – ele disse –
na frente dele.
– Calma – eu falei, ao mesmo tempo achando graça – não se
preocupe, ele não vai te expulsar por causa disso. Além do mais, ele
provavelmente não te entendeu. Ele é péssimo em inglês.
– Eu sei falar um pouco de português, já que é um dos idiomas mais
importantes para Sacrifícios – respondeu Rizal, ainda repleto de pavor –
eu conversei em português com ele.
Rizal teve que se sentar um pouco para se acalmar. Enquanto isso, eu
tentava dizer o que me vinha à mente para relaxá-lo. Mas as meninas
ainda estavam surpresas demais ao saber da identidade de Benjamin.
– Rizal... quem é você? – perguntou Roshni.
– Como assim? – ele perguntou, confuso.

268
Sociedade do Sacrifício

– Você apareceu aqui com aqueles dois, então também deve ter uma
identidade secreta – concluiu Roshni – ele está escondendo alguma coisa!
– Não estou! – defendeu-se ele – juro que não estou! Sou apenas um
iniciante comum.
– Duvido! – insistiu Roshni – revele logo sua identidade.
Embora Rizal ainda estivesse apavorado, resolvemos procurar Mau
de uma vez, para termos a nossa conversa. Nós seis saímos da barraca e
o procuramos nos arredores. Mau estava deitado na neve com uma
roupa ridícula.
Ele estava usando uma camiseta de mangas longas da Valesca
Popuzuda, na cor rosa. Tinha colocado no pescoço um dos cachecóis
que havia costurado, também de mesma cor. Ele usava headphones,
obviamente cor-de-rosa. Usava também uma calça verde-limão e botas
laranjas. Para completar, colocou óculos escuros com uma lente de cada
cor: uma roxa e uma azul.
“Óculos escuros na neve. Isso mesmo, Mau. Você está fazendo a
coisa certa!” pensei.
Ah, sim. Esqueci de mencionar a touquinha de inverno com um
pompom em cima.
Quando eu o chamei com cuidado, Mau me interrompeu:
– Não me atrapalhem – ele disse – estou meditando. Saiam daqui.
OK, nós saímos. Rizal aproveitou para escapar de fininho também.
Porém, uma hora depois a internet estava em polvorosa, porque
vazou uma foto dele naqueles trajes, com a seguinte legenda: “Mau na
praia”.
Felizmente não era possível enxergar o rosto dele, já que ele estava de
touca, óculos escuros e com o cachecol cobrindo a boca.
Um pouco depois, Benjamin foi até a nossa barraca nos avisar que
um monte de Sacrios tinham reconhecido Mau quando ele caminhou por
lá com aquelas roupas, por causa da foto da internet.
– Mau me disse que vocês têm um celular – observou Benjamin –
então daqui a pouco ele vai vir tirar satisfações para saber qual de vocês
tirou a foto. Só pra avisar.
Aquele acampamento só tinha fofoqueiros!
Quando Mau chegou, Sella já foi logo se entregando.

269
Wanju Duli

– Fui eu. Euzinha! – ela acrescentou, imitando o que Mei-Xiu tinha


dito antes.
– E você se orgulha disso? – perguntou Mau.
Quando Mau imitou o que Sarthak havia dito e eu traduzi, todas elas
caíram na risada. Aquela brincadeira significava que Mau não estava
realmente zangado. Que alívio!
Por causa da neve, muita gente na internet começou a especular que
era improvável que ele estivesse no Brasil. Mas como Mau nunca tinha
saído do país, já estavam dizendo que o cara da foto certamente não era
ele.
– Pensei que você não tivesse trazido roupas de inverno – eu disse a
ele.
– Rizal me emprestou a touca – esclareceu Mau – estou pensando em
aceitar a sua oferta para aprender a tricotar uma.
Bem quando Mei-Xiu começava a pedir desculpas para Mau
novamente sobre o que tinha acontecido no dia anterior, Vivaan
apareceu na frente da nossa barraca e fez uma reverência exagerada para
Mau. Era engraçado que Mau recebesse reverência enquanto estava
naqueles trajes.
– Senhor Mau! – Vivaan exclamou, profundamente emocionado – é
uma honra finalmente conhecer o senhor pessoalmente! Por favor, se
precisar de qualquer coisa basta me pedir e será arranjado para você. Se
eu soubesse que o senhor estava a caminho eu teria preparado uma
recepção especial!
– Nada disso é necessário – esclareceu Mau, claramente incomodado
com o exagero de Vivaan – Sahana e Raghav foram avisados que eu viria
em sigilo.
– Compreendo – disse Vivaan – eu sinto uma energia poderosíssima
vindo de você. É impressionante! O senhor é extraordinário...!
Mau estava começando a corar. Ele levantou um pouco mais o
cachecol para esconder isso.
– OK, OK, fico lisonjeado – Mau disse – você... já pode voltar.
Com mais uma reverência, sem conseguir conter um largo sorriso de
genuína admiração, Vivaan se retirou.
– Isso acontece com frequência? – resolvi perguntar – pessoas
fazendo reverência para você?

270
Sociedade do Sacrifício

– Elas não precisam me fazer reverência... isso é algo completamene


desnecessário – disse Mau.
– Como eu estava dizendo, Mau... – Mei-Xiu retomou seu discurso,
timidamente – peço sinceras desculpas pelo que fiz ontem. Por tudo: por
ter me agarrado no seu pescoço... aquilo foi tão inapropriado! Pelo tapa,
pelas coisas que eu disse... eu quero que você saiba que eu te respeito e
admiro muito. Eu não pretendia ser tão desrespeitosa daquele jeito.
– Esqueça isso – disse Mau – eu também faltei com o respeito ao
tentar te beijar, então estamos quites.
– Obrigada – disse Mei-Xiu, com um sorriso aliviado por Mau tê-la
desculpado.
– Ah e foi mal pela foto – disse Sella – eu não resisti.
– Você não parece muito arrependida, mas vou deixar passar –
resolveu Mau – pensando bem, acho que vou até confirmar no site que a
foto é minha, para acabar com os boatos de uma vez. Posso usar seu
celular?
Sella emprestou a ele o celular, surpresa. Mau sentou-se conosco,
logou no site oficial da SSCB e começou a escrever uma postagem.
Cacete! Ele ia fazer aquilo na nossa frente.
Ele terminou de escrever e jogou o celular de novo para nós.
E nos debruçamos no aparelho para ler:

Caríssimos bostas

Sim, aquela foto é minha. Não vou contar a ninguém onde comprei a camiseta,
suas bichas. Não insistam.

Até breve, palhaços!

Mau

Líder Absoluto da SSC do Brasil, Imperador da SSC Internacional, Matador


de Deuses, Mestre do Tricô

Eu traduzi para elas o que Mau tinha escrito.


– Ficou legal – disse Sella.

271
Wanju Duli

– Obrigado – disse Mau.


– Mau – resolvi fazer um pedido – será que podemos te perguntar
algumas coisas?
– Claro – ele disse – vá em frente.
– Por que estamos lutando?
Ele ficou ligeiramente surpreso com minha pergunta. Tirou sua
touca, os headphones e os óculos escuros. Baixou o cachecol do rosto.
– Quer começar as conversas sérias de repente? – ele perguntou –
tem certeza?
– Tenho – eu disse.
As meninas também ficaram curiosas. Nós cinco aguardávamos
atentamente que ele começasse a falar.
– Você sabe que eu não posso revelar muitas coisas ainda – ele avisou
– então será uma resposta incompleta.
– Não importa – eu disse.
Ele respirou fundo.
– Nós estamos lutando porque é tudo que podemos fazer –
respondeu Mau – vocês certamente sabem a respeito das vias do
Sacrifício, certo?
Confirmamos com a cabeça.
– O nosso é o Caminho da Mente – explicou Mau – porque nós
acreditamos que o melhor movimento para deter os Deuses é assassiná-
los. Mas não é nada fácil matar um Deus. Sei disso por experiência
própria. Todo Sacrios precisa sentir isso na pele um dia.
Senti um arrepio. Quando ele falava assim, tudo parecia
assustadoramente real.
Um dia eu também sentiria na pele. Tejas me disse que quando esse
dia chegasse eu teria saudades da minha rotina entediante nos
acampamentos. Eu teria saudades de lavar o chão, de cortar cebolas. De
cada uma das coisas. Recordaria desses dias com alegria.
– Também há o Caminho do Corpo – prosseguiu Mau – que é a via
ensinada na Sociedade do Sacrifício da Ordem, a SSO. Lá os membros
recebem treinamento por um ano e quando se tornam Saem realizam o
Sacrifício Sagrado. Há pouquíssimos membros que se tornam Sacriem,
que são aqueles que realizam outro tipo de sacrifício para servir aos

272
Sociedade do Sacrifício

Deuses e também administram o grupo. Mas mesmo esses acabam


cometendo o suicídio ritualístico cedo ou tarde.
Lembrei de Irene. Senti um aperto no coração.
– Vocês por acaso sabem que os Sacriem são nossos inimigos? –
perguntou Mau.
Eu achava que “inimigos” era uma palavra forte.
– Eles só seguem uma via diferente – eu disse – no fundo
defendemos o mesmo objetivo, que é salvar o mundo, certo?
– Não – disse Mau – nem todos os membros da SSO pensam assim.
Há aqueles dispostos a oferecer a vida para aplacar a fúria dos Deuses,
para que assim eles não destruam o mundo. Mas há também aqueles que
acreditam que os Deuses desejam destruir o nosso mundo por razões
superiores. Que isso serviria para um objetivo maior em nome do bem
do universo.
– E isso é verdade? – perguntei.
– Provavelmente sim – disse Mau – antigamente eu questionava isso,
mas atualmente há fortes evidências de que a nossa existência está
causando um desequilíbrio. De fato, se todos morrêssemos, como os
Deuses desejam, haveria muito mais vantagens do que desvantagens para
a harmonia universal.
– Se é assim, há ainda mais razões para eu perguntar: por que estamos
lutando?
– Porque nós cagamos para a harmonia universal – respondeu Mau,
simplesmente – só queremos sobreviver.
Aquela resposta ao mesmo tempo me satisfez e me incomodou.
Havia força nela. Eu a entendia completamente. Mas isso também
significava que nossa luta não era assim tão nobre quanto eu acreditava.
– Vou dar um exemplo – disse Mau – nós, seres humanos, estamos
fodendo com o planeta: com a natureza, com os animais, em suma,
fazemos muita merda. Ainda assim, pouca gente defende como solução
para salvar o mundo que eliminemos a nós mesmos. Porque somos
egoístas. E porque queremos acreditar que também fazemos o bem,
mesmo que isso seja uma mentira.
– Então é como se a SSO fossem os bonzinhos – concluiu Mei-Xiu –
e nós fôssemos os malvados.

273
Wanju Duli

– Depende – disse Mau – bonzinhos e malvados na visão de quem?


Do ponto de vista humano ou do ponto de vista universal? Na visão
humana, nós, da SSC, somos os bonzinhos e os salvadores do mundo.
Os Deuses e os Sacriem são os vilões. A visão se inverte quando
consideramos o quadro completo.
– E por que diabos ninguém nunca nos contou isso antes? –
perguntou Sella, incomodada.
– Isso que eu acabei de contar não é exatamente um segredo – disse
Mau – há debates sobre isso em qualquer fórum imbecil sobre Sacrifícios
na internet. A diferença é que eles se baseiam em boatos e eu estou
confirmando que, sim, os Deuses estão “certos”. Pelo menos do ponto
de vista deles. Eu poderia dizer que, se eu fosse um Deus, eu também
destruiria nosso mundo. Mas não posso dizer isso, porque pode ser que
eu fosse um Deus estúpido. Afinal, se há humanos estúpidos que querem
aniquilar a si mesmos, certamente também há Deuses estúpidos que
querem proteger nosso mundo.
– E por que esses Deuses não se aliam a nós? – perguntou Sella.
– Porque eles são apenas ligeiramente estúpidos e não
monstruosamente estúpidos – explicou Mau – há uma série de vantagens
em fazer parte da herarquia oficial do mundo dos Deuses e se eles nos
defendessem perderiam a posição na hierarquia. Ou seja, eles também
possuem seus egoísmos e interesses, da mesma forma que nós.
– Mas esses Deuses nos ajudam de alguma forma? – perguntou Sella.
– Muito pouco, mas pelo menos não se colocam tanto em nosso
caminho – explicou Mau – eles tentam ser neutros, mas sempre que
tiverem que optar entre um e outro optarão pela visão dos Deuses. Por
isso, eles não são considerados aliados.
– Entendi – disse Sella – tem certeza de que você possui autorização
de nos contar isso?
Mau riu.
– Você pensou antes de fazer essa pergunta?
– Ah, claro, você é o líder, pode dizer o que quiser – concluiu Sella –
mas achei que até mesmo você tivesse que guardar certos segredos.
– Eu guardo porque quero. Porque entendo a importância de
guardar. Mas creio que eu saiba distinguir que tipos de segredos possam
ser prejudicias se revelados. Nós colocamos a regra geral de proibir a

274
Sociedade do Sacrifício

revelação de qualquer coisa sobre os Deuses só por garantia. Eu posso


abrir a boca um pouco mais, se eu desejar.
– Sarthak mencionou que um dia você pode perder seu posto de
líder – comentou Mei-Xiu – isso é verdade?
– Não é impossível, mas eu diria que é improvável – disse Mau – eu
teria que fazer uma merda gigantesca para perder esse posto.
– Como o quê? – perguntou Mei-Xiu – matar um monte de gente?
– Mesmo que eu explodisse uma cidade inteira sem dar satisfações eu
não perderia o posto – explicou Mau – mesmo se matasse dezenas de
Sacrios sem dar explicações também não o perderia.
– Então... o que poderia tirar esse posto de você? – insistiu Mei-Xiu.
– Por certas razões, a SSC só existe porque eu existo – explicou Mau
– sem mim, a luta seria uma causa perdida.
– Mas a SSC já existia há décadas antes de você entrar nela –
observou Iaboni.
– Naquela época, a luta sempre foi uma causa perdida – explicou Mau
– naquele tempo ninguém acreditava que matar um Deus fosse possível.
E quando entrei para a SSCB, muitos duvidavam que mesmo eu seria
capaz de mudar isso. Até que eu dei uma prova decisiva e absoluta, seis
anos atrás, assassinando o primeiro Deus da história da SSC. É o único
Deus morto por nós até hoje.
Isso calou a nossa boca por um minuto. Não achei que Mau estivesse
mentindo. Ele estava sério quando disse aquilo.
– Depois desse dia, o respeito que as pessoas tinham por mim
aumentou muito. Na época, poucos davam crédito para uma criança. Eu
tive que provar a eles que minha presença na SSC era fundamental. Hoje
em dia, poucos duvidam disso. Por isso, muitos estão impressionados
com a descoberta de Benjamin. As pessoas estão colocando altas
expectativas nos siddhas de nascimento e acreditam que ele também
poderá matar um Deus um dia.
– Mas já houve outros siddhas de nascimento e eles não mataram
nenhum Deus – observei – você tem medo que Benjamin o substitua um
dia como líder?
Eu quase me arrependi de ter perguntado isso. Mas Mau não se
ofendeu com minha pergunta.

275
Wanju Duli

– Aqueles que não gostam de mim, como Sarthak e Eric, estão


apostando suas fichas em Benjamin e estão preparados a apoiá-lo como
líder se um dia eu realizar algum ato particularmente polêmico – explicou
Mau – Eric até mesmo disse que voltará a se unir à SSC Internacional se
eu for derrubado do meu posto.
Naquele momento pensei em algo ridículo: “Ben versus Mau”. Eu
apostava nessa piada como a futura sensação da internet.
Mas Benjamin e Mau pareciam se dar muito bem. Eles conversavam
com frequência enquanto tomavam canecas de chá e riam juntos. Eu não
conseguia vê-los como futuros inimigos. Mau não se mostrava hostil em
relação a Benjamin e Benjamin respeitava Mau.
– Como vocês já devem ter notado, para mim as regras funcionam de
forma diferente – disse Mau – atos que causariam a execução da maior
parte dos Sacrios não causariam a queda de sequer um fio de cabelo
meu. Porém, há certos atos intoleráveis que, embora pudessem não
causar minha morte, causariam minha expulsão da SSC. Isso porque
atualmente nenhum membro da SSC tem poder de me matar. Nem
mesmo vários deles juntos.
Eu não achava que Mau estava apenas se gabando. Mas ele disse
“atualmente”. Será que no futuro Benjamin teria poder para matá-lo?
– Se um dia alguém puder me matar se eu fizer merda, talvez eu
comece a me comportar – explicou Mau – até lá, faço o que quero. A
propósito... vocês já ouviram falar no Caminho do Espírito?
– Só rumores esparsos – respondi.
– Lembrem-se desse nome, pois eles podem se tornar grandes no
futuro – recomendou Mau – os membros formam a Sociedade do
Sacrifício do Equilíbrio. Eu já conversei com um Sacribrio um vez. Foi
uma conversa interessante. Acredito que um dia irei encontrar-me com
ele de novo.
– Se um dia você for expulso da SSC, você pensa em entrar para a
SSE? – perguntei.
Mau sorriu.
– Em primeiro lugar, não pretendo ser expulso – ele respondeu – em
segundo lugar, só mantenho contato com esse Sacribrio para me inteirar
do que está acontecendo e não por quaisquer interesses obscuros.
Se ele dizia...

276
Sociedade do Sacrifício

– O que a SSE defende? – perguntou Sella.


– Isso eu não posso contar – respondeu Mau – porque eu estaria
traindo esse amigo.
Certo. Legal saber que Mau tinha princípios.
– Bem, acho que essa conversa deve ficar por aqui – disse Mau –
porque eu tenho afazeres na cozinha agora e vocês precisam tomar conta
de seus próprios afazeres.
– Obrigada por responder minha pergunta de forma tão completa e
atenciosa – eu disse.
– Foi um prazer – sorriu Mau.
E saiu da nossa barraca.
– Então, o que acham dele agora? – perguntei – muito diferente do
Mau da internet?
– Não tanto quanto diziam – disse Sella.
– Ele é surpreendentemente legal – disse Mei-Xiu – achei que seria
mais arrogante e convencido. Jamais pensei que ele aceitaria sentar com
iniciantes para um papo casual ou para explicar qualquer coisa.
– Bem, nós somos os futuros Sacrios – disse Iaboni – somos as
pessoas que poderão defendê-lo se um dia ele for ameaçado de expulsão.
– Não acho que ele tenha sido gentil por causa disso – disse Roshni –
ele só estava a fim de conversar.
No dia seguinte, Sahana foi embora do acampamento. Sarthak
aproveitou a oportunidade para expulsar Mau de lá.
Sarthak fez apenas uma intimação. Ele “sugeriu” que Mau passasse
suas últimas duas semanas no acampamento laranja. Claro que Mau
poderia ter recusado, mas acontece que ele achou a sugestão excelente.
Seria a oportunidade perfeita para se livrar de Sarthak e os dois sairiam
ganhando.
Afinal, como Sarthak era o general daquele acampamento, mesmo
que raramente estivesse lá, ele tinha alguma autoridade. Mau poderia ter
permanecido lá apenas para implicar, mas ele concluiu que não valeria a
pena.
Por isso, ele combinou com Raghav e dois dias depois ele apareceu
para pegá-lo.

277
Wanju Duli

Mau começou a se despedir de todos. As meninas ficaram surpresas


que ele fosse embora tão cedo e ficaram tristes. Mau pareceu contente ao
constatar que elas lamentavam genuinamente sua partida.
Nesse momento, Mau fez uma coisa muito bonitinha. Ao todo ele
tinha tricotado quatro cachecóis, além do que ele estava usando. Por
isso, ele deu um para cada uma delas. Ter um cachecol tricotado pelo
Mau seria algo único.
Ele apertou a mão de todas elas, mas quando chegou a vez de Mei-
Xiu, ela o abraçou. Foi um abraço breve e leve, mas isso já foi suficiente
para fazer Mau corar.
– Queria ver você vermelho uma última vez – explicou Mei-Xiu.
Mau sorriu, meio sem jeito. E disse para mim:
– Você pode vir junto por um momento, Antônia? Gostaria que você
falasse com Raghav.
Surpresa, eu o acompanhei. Aproveitei e o vi se despedir de Benjamin
e Rizal. A despedida entre Mau e Benjamin foi alegre e respeitosa. Já
Rizal ainda parecia um pouco apavorado, mas também se despediu com
simpatia.
Quando vi Raghav novamente, depois de tanto tempo, levei um
susto.
A metade direita do rosto de Raghav estava queimada e ele estava
sem uma orelha. Lembrei de uma conversa que tive com ele uma vez,
sobre eu não reparar que faltavam dedos em suas mãos. Mas o rosto eu
não pude deixar de notar.
Tentei disfarçar minha surpresa.
– Oi, Antônia, há quanto tempo – Raghav sorriu quando me viu –
vejo que já conheceu Mau. Finalmente ele realizou sua primeira viagem
para o exterior, depois de todas as nossas insistências. Quem diria. É
uma honra que ele tenha escolhido nosso país para isso.
– OK, Raghav, vá direto ao ponto – Mau interrompeu-o – já que
estamos com pouco tempo.
– Está bem – Raghav concordou – no caminho conversaremos sobre
como foram suas experiências, Antônia. Agora eu queria te perguntar se
você não gostaria de seguir viagem conosco hoje.
– Para o acampamento laranja? – perguntei.

278
Sociedade do Sacrifício

– Mau decidiu que deixará para visitar o acampamento laranja em


outra oportunidade – explicou Raghav – porque ele prefere chegar pelo
menos uma semana mais cedo no Brasil para colocar as coisas em
ordem.
– Não quero visitar o acampamento laranja porque Tejas o administra
– explicou Mau – e embora Sarthak seja mais insuportável que ele, não
estou disposto a trocar seis por meia dúzia.
– Ou isso – sorriu Raghav – fica meio difícil para mim levar Mau
agora e depois vir buscá-la daqui duas semanas. Então facilitaria bastante
se você pudesse vir conosco hoje. Não tem problema que você não
complete os seis meses. Você pode arrumar as suas coisas em uma hora?
– Claro – respondi, surpresa.
Voltei para nossa barraca e dei a notícia para as garotas.
– Puxa, que pena – disse Sella, tristemente – achei que você ia poder
ficar para assistir à cerimônia da minha iniciação de Saos.
– E você só leu um capítulo do livro que te emprestei... – acrescentou
Mei-Xiu.
Na verdade ela o havia traduzido para mim, já que não entendi
praticamente nada.
– Não se preocupe, Mei – eu disse a ela – ironicamente, embora eu
esteja na Índia, aprendi mais chinês do que hindi por causa das suas
lições. Me ajudaram muito.
Eu me despedi delas e de muitas outras pessoas que conheci no
acampamento. Tive que correr para arrumar minhas coisas. Inclusive
quase esqueci no varal as minhas roupas que estavam secando. Elas não
ficavam secas nunca de qualquer forma, com aquela umidade.
Cheguei dez minutos atrasada do horário que combinamos. Mau e
Raghav já estavam me esperando perto do carro. Mau também já estava
com as malas prontas.
Dessa vez seria uma viagem muito mais curta. Raghav nos levaria
para o aeroporto na cidade grande mais próxima e de lá pegaríamos um
avião para Délhi. De Délhi seguiríamos para a África do Sul e depois
para São Paulo.
Fomos conversando no carro.
– Provavelmente essa foi a experiência mais incrível da minha vida –
eu disse a Raghav – olhando para trás agora, passou tão rápido. Mas

279
Wanju Duli

quando eu estava lá, parecia que não ia terminar nunca. Eu adorei estar
lá, mas claro que tive momentos difíceis.
– Fico contente que você tenha conseguido permanecer até o fim do
semestre – disse Raghav – Sahana também ficou feliz.
Eu estava com muita vontade de perguntar sobre a ferida no rosto
dele, mas eu sabia que aquilo tinha a ver com os Deuses. Então resolvi
ficar calada.
Enquanto isso, Mau escutava nossa conversa sem fazer nenhum
comentário, já que eu não estava traduzindo para o português.
Raghav pegou o avião conosco para Délhi. E no aeroporto de Délhi
nos despedimos.
Foi uma pena que eu tenha ficado tão pouco tempo com Raghav
dessa vez. Queria poder conversar mais.
Pelo menos pude informar com alegria que li todo o livro que ele me
emprestou e que até tinha estudado um pouquinho de hindi. Consegui
falar uma frase simples com uma pronúncia horrível e o fiz sorrir.
Quando eu e Mau já estávamos sozinhos no aeroporto e acabamos de
despachar as malas, ele me perguntou se eu queria comer alguma coisa.
Nós jantamos num restaurante de comida indiana do aeroporto. Eu
queria experimentar uma última vez a comida local antes de irmos
embora.
Depois de passar mais de cinco meses comendo a comida do
acampamento, sempre simples, em pouca quantidade e com o mesmo
gosto, a comida daquele restaurante me pareceu o manjar dos Deuses.
– Seu visto está quase expirando, não é? – comentou Mau, enquanto
comíamos – então você não poderia completar os seis meses no
acampamento de qualquer forma.
Eu tinha esquecido que a viagem até o acampamento levou vários
dias. Então ainda bem que voltei com Mau.
Eu dormi em boa parte do trajeto da viagem de Délhi até
Johannesburgo, já que viajamos à noite. Quando chegamos em
Johannesburgo ainda tivemos que aguardar algumas horas até pegarmos
o próximo avião. Eu estava entediada e cansada. E eu já estava ficando
com fome outra vez. Acho que perdi a última refeição no avião enquanto
estava dormindo.

280
Sociedade do Sacrifício

Eu quase não tinha conversado com Mau desde que saímos da Índia.
Pensei em propor que fizéssemos um lanche no aeroporto enquanto
aguardávamos o nosso avião, mas eu comecei a ficar enjoada e com dor
de cabeça.
Era só o que faltava. Em todo meu tempo na Índia só tive no
máximo algumas diarreias e resfriados leves. E agora que eu estava quase
chegando em casa ia ficar doente.
Sorte que eu tinha uns remédios na minha bolsa. Mau comprou uma
garrafa d’água para mim e eu me sentei por um momento.
– Você está bem? – ele me perguntou.
– Mais ou menos – respondi – estou meio enjoada.
– Com licença – ele disse – posso?
Ele colocou a mão na minha testa e fechou os olhos. O que ele estava
fazendo?
Subitamente, senti como se um ar fresco e renovado tocasse meu
rosto. Uma sensação maravilhosa percorreu todo meu corpo. Cada parte
dele.
Fechei os olhos também. Eu queria que aquela sensação incrível não
terminasse nunca mais. Porém, ela só durou breves segundos. Quando
eu abri os olhos de novo, tudo já tinha terminado.
Ué? Não havia nem sinal do mal estar que eu tinha sentido antes.
Nada de dor de cabeça ou enjoo. Eu fitei Mau surpresa.
– Isso foi uma siddhi? – perguntei.
Ele confirmou com a cabeça.
– Você pode curar as pessoas?
Eu estava impressionada.
– Somente coisas leves – explicou Mau – não é uma siddhi que eu
desenvolvi muito. E ela nem sempre funciona.
– Sua siddhi é incrível! – eu sorri – muito obrigada! Graças a você,
poderei curtir o restinho da nossa viagem.
Mau sorriu também e baixou os olhos.
Ficamos um tempo sem dizer nada. Até que eu perguntei:
– Você é feliz sendo Sacrifício? Eu sei que você não exatamente
escolheu isso. Acabou se tornando um por causa dos seus poderes.
– Sim, adoro ser Sacrifício – Mau respondeu imediatamente – apesar
de todas as dores, de todas as coisas horríveis. E no fundo eu escolhi ser

281
Wanju Duli

Sacrifício. É uma escolha da qual não me arrependo. Volta e meia me


pego pensando como teria sido minha vida se eu tivesse escolhido outro
caminho. Mas cada vez mais eu concluo que eu não queria ser nenhuma
outra coisa.
Quando embarcamos para nossa última viagem, eu me sentia
renovada. Sentei-me ao lado de Mau. Volta e meia eu o via fitando as
nuvens na janela. Eu me perguntava o que ele poderia estar pensando.
Lá pelas tantas, ele pegou as agulhas que lhe dei e começou a tricotar.
Pensei que ele tivesse deixado para trás esse passatempo, lá na Índia.
Então eu resolvi tricotar com ele. Aproveitei para mostrar como se fazia
uma touca.
– Parece difícil – comentou Mau – assim que eu terminar esse
cachecol, tentarei fazer uma.
Ele pegou alguma coisa em sua mala de mão. Era seu cachecol cor-
de-rosa, que ele tinha usado em seus últimos dias no acampamento.
– Esse é o último que fiz – disse Mau – é meu melhor até agora. É
para você.
Ele me entregou o cachecol. Eu fiquei confusa.
– Não posso aceitar – eu disse – esse é seu. E como você mesmo
disse, não vamos precisar deles no Brasil...
– Eu dei um cachecol para cada uma de suas amigas, então não faria
sentido você não ter um, sendo que você foi a pessoa que mais me
ajudou.
– Mas não estamos exatamente nos despedindo...
– Nós estamos – disse Mau – porque estaremos em acampamentos
diferentes, em outros estados. Vou treinar os Saos avançados. Você vai
treinar com Manuela.
Eu tinha me esquecido desse detalhe.
– Manuela é o nome verdadeiro da Manu? – perguntei.
– Sim – ele confirmou – assim como o nome de Vic era Victória e o
meu é Maurício. Bastante óbvio, não?
Como uma coisa evidente como aquela jamais tinha se passado pela
minha cabeça?
– Você conhece meu irmão? – lembrei de perguntar.
– Só falei com ele poucas vezes – respondeu Mau – ele é um sujeito
interessante. Ele sempre se assusta quando apareço de repente. Às vezes

282
Sociedade do Sacrifício

brinco com isso e, quando visito o acampamento, caminho


discretamente por trás dele só para assustá-lo.
Parecia engraçado. Eu queria ver isso.
– Ele já vai treinar com você no acampamento para Saos avançados?
– perguntei.
– Ainda não tenho certeza. Como ele já completou metade do
treinamento, é possível que sim. Além do mais, há bem mais Saos
iniciantes do que avançados, portanto os alunos de Manu sempre serão
em maior quantidade. Por isso, tenho que aproveitar para treinar todos
os Saos mais adiantados que eu puder, para aliviá-la um pouco.
Eu ainda não era nem mesmo Saos. Mas se eu aguentasse mais seis
meses de treinamento, receberia minha iniciação.
Eu mal podia esperar.
É claro que eu me encontrava num estado de empolgação e
confiança, já que no momento eu estava comendo coisas gostosas no
avião. Quando eu estivesse num acampamento outra vez, estaria
chorando para voltar para casa.
Mas eu precisava ser forte.
Quando finalmente chegamos em São Paulo, eu me sentia quebrada.
Para a minha completa surpresa, Yago estava nos esperando no
aeroporto. Eu o reconheci.
Os dois se cumprimentaram com um abraço entusiasmado e tapinhas
nas costas. Parecia que não se viam há um século.
Yago também me cumprimentou com alegria.
– Aí está você, Antônia – Yago sorriu – eu sinto como se tivesse
mandado meu filho para longe pela primeira vez. Estava morto de
preocupação.
– Por que você estaria preocupado comigo? – perguntou Mau – você
sabe que sei me virar.
– Não estava preocupado que acontecesse algo com você e sim com
os outros que o encontrassem – justificou Yago – e se você matasse
Sarthak?
– Eu consegui resistir a essa tentação – respondeu Mau.
Mau voltaria para seu escritório em São Paulo e passaria uma ou duas
semanas lá antes de seguir para o novo acampamento. Quando Yago me
contou que me levaria de lá até o acampamento dos iniciantes, eu dei um

283
Wanju Duli

suspiro de cansaço. Eu tinha acabado de retornar de uma viagem de


avião de 30 horas e já teria que pegar um novo voo.
– Não se preocupe – Yago tranquilizou-me – você não precisa passar
essas próximas duas semanas treinando. Use-as para conhecer as pessoas
e o local. Assim você já estará adaptada quando o treino de verdade
começar.
Pensei no lado bom: eu ainda teria duas semanas para ficar com meu
irmão antes de ele se mudar para o novo acampamento. Eu teria muitas
histórias divertidas para contar a ele.
Despedi-me de Mau. Foi uma despedida bem rápida. Algo do tipo:
“Daqui a quatro anos nos veremos de novo”, pois seria mais ou menos
assim que aconteceria.
Eu e Yago pegamos um voo até Manaus, que eu descobri ser uma
cidade muito charmosa. Isso não significava que o acampamento ficasse
no Amazonas, já que de lá poderíamos seguir de carro para outros
estados.
De qualquer forma, eu já tinha ouvido falar que mudaram a
localização daquele acampamento pelo menos duas vezes. Por isso os
rumores da internet eram meio contraditórios.
Yago me levou de carro, assim como Raghav tinha feito. E, como
procedimento padrão, fui vendada numa parte do caminho.
Eu não aguentava mais viajar. Depois que eu chegasse no
acampamento, eu não ia querer fazer mais nenhum tipo de intercâmbio,
pois estava farta, seja de viagens de carro ou de avião. Acho que eu
entendia um pouco como Mau se sentia.
Quando Yago tirou a venda dos meus olhos, vi a mim mesma num
lugar no meio do nada, como eu esperava. Havia areia, grama, umas
poucas árvores esparsas, pedras.
“Pelas barbas do profeta, em que merda de lugar eu estou?”. Não se
parecia com nada. Era só... uma merda. Não era exatamente esse o
glorioso lugar que eu tinha imaginado. Pensei em algo secreto e
magnífico, não uma paisagem feia e comum.
Sinceramente, fiquei profundamente desapontada. O Amazonas
possuía lugares fenomenais, de tirar o fôlego de qualquer um, e eles
tinham escolhido o mais modesto de todos.

284
Sociedade do Sacrifício

No entanto, esse acampamento era muito maior do que o da Índia.


Havia infinitas barraquinhas no horizonte. Um bando de gente sem mais
nada pra fazer, a não ser passar dificuldades voluntariamente para lutar
contra Deuses que queriam nos destruir pelo bem do universo. Sendo
que eles eram muito mais fortes e sábios que nós, e não tínhamos a
menor chance. Provavelmente fazíamos aquilo só porque éramos maus
perdedores. E masoquistas.
Mas, que seja! Como Mau tinha dito uma vez, agora que já estávamos
rolando nessa bosta, era melhor ir até o fim. E eu provavelmente não
teria nada melhor para fazer da minha vida, de qualquer forma. Se um
dia eu decidisse me casar e ter filhos, eu provavelmente me casaria com
algum Sacrios que morreria na guerra logo em seguida e meu filho
também seria no futuro um matador de Deuses. Eu não o veria se tornar
um porque eu já teria morrido na guerra. Pareciam bons planos de vida.
Algumas vezes eu pensava... se os Deuses eram assim tão poderosos,
por que ainda não tinham nos matado?
Eu estava tão distraída pensando nessas porcarias que nem vi quando
meu irmão chegou.
– Tônia! Achei que você só chegaria daqui duas semanas!
Ele me abraçou. Cara... aquele era mesmo meu irmão?
Ele estava todo bronzeado do Sol, muito mais magro e até
ligeiramente musculoso. Com a barba por fazer. Parecia um selvagem
malucão.
Ah, droga... será que eu estaria daquele jeito dali quatro anos? Preferi
não pensar.
– Você tá muito engraçado – eu disse.
– Bem, vou deixá-los conversar – avisou Yago – eu já vou indo.
Yago cumprimentou Caio e se despediu de mim. Ele provavelmente
voltaria para São Paulo.
– Vem deixar suas coisas na minha barraca – disse Caio – vou te
mostrar um lugar incrível.
Ele me pegou pela mão e me levou até a barraca dele.
– Não vou ficar na sua barraca – eu disse – você provavelmente já
divide ela com outros rapazes. Devo ficar numa barraca de garotas.
– Eu sei, só ponha suas coisas aí. Depois você decide onde vai ficar.
Venha comigo.

285
Wanju Duli

A gente subiu por uma trilha. Lá em cima estava ficando mais bonito:
com mais árvores e pedras.
Até que chegamos num lugar que me deixou deslumbrada: havia uma
belíssima cascata, com suas águas despencando gloriosamente nas pedras
lá embaixo, onde havia um laguinho.
– Uau! – exclamei, maravilhada – acho que com um lugar assim, terei
forças para aguentar tudo.
– Eu penso o mesmo – disse Caio – venho aqui com frequência
quando preciso organizar meus pensamentos ou simplesmente relaxar de
tudo. Mas eu recomendo que não tome banho naquele lago lá embaixo,
porque volta e meia alguns caras ou moças vêm até aqui, todo mundo
pelado, e é uma putaria.
– Obrigada por me avisar – eu sorri – pelo jeito o pessoal se diverte
bastante.
Caio colocou a mão em concha e sussurrou no meu ouvido:
– Eu trepei com uma garota aqui uma vez.
Eu ri.
– Só os dois, certo? – perguntei, para me certificar.
– Sim, só a gente. Ainda sou muito conservador. Não curto participar
dessas surubas.
– O que Manu acha dessas bagunças de vocês? – perguntei.
– Ela ignora completamente – disse Caio – quero dizer, ela sabe que
acontecem, mas não liga. Ela só exige que a gente seja espartano no
treinamento. No resto do pouco tempo livre que temos, ela permite que
a gente viva.
– Nossa, como ela é gentil – caçoei.
– O pessoal em geral não gosta muito dela, porque Manu é muito
certinha. Mas suponho que alguém precise ser rigoroso por aqui, senão a
coisa não andaria. É principalmente por causa dela que somos a SSC
mais poderosa do mundo. E, é claro, também por causa de Mau.
Eu estava me mordendo de vontade para falar sobre Mau.
– Eu estava pensando, você é mesmo azarada, hein, Tônia – ele
comentou – quando estava prestes a conhecer Mau, não conseguiu sua
vaga e teve que ir lá para a Índia. Agora quando finalmente conseguiu se
transferir, Mau vai estar lá no outro acampamento. Por isso ele não virá

286
Sociedade do Sacrifício

dar o discurso de abertura no próximo semestre. Talvez você só o


conheça daqui quatro anos!
– Não acho que eu seja tão azarada – comentei – eu já conheci Mau.
– Onde? – Caio perguntou, surpreso – vi que foi Yago que a trouxe
pra cá.
– Mau foi para a Índia para conhecer um siddha de nascimento.
– Um o quê?
– Você não conhece esse termo? – perguntei, intrigada – significa
alguém que já nasceu com poderes sobrenaturais, como Mau.
– Ah, você quer dizer um mago nato – disse Caio – eu já ouvi falar
nesses termos indianos, mas nós não os usamos por aqui. Nós dizemos
simplesmente “magias”.
– Que seja. Há um iniciante nigeriano que descobriram ser um mago
nato. Sahana estava na Nigéria e o trouxe para a Índia. Mau aproveitou e
viajou para falar com os dois.
– Agora você está toda internacional e sabe de todos os babados –
comentou Caio – não se esqueça que estou sem internet há quatro anos.
Nem os Sacrios aqui do acampamento usam internet. Só raramente. Nós
só ficamos sabendo das novidades a cada novo semestre, quando um
iniciante nos conta, ou quando Yago visita o acapamento. Só naquele dia
que Mau nos mandou para casa que eu chequei o site oficial. Fora isso,
eu não faço a menor ideia do que está acontecendo no mundo. Só ouço
boatos.
– Quer parar de me interromper? – perguntei, incomodada – você
não está surpreso em saber que existe outro... mago nato?
– Um pouco – disse Caio – imaginei que outro desses sujeitos fosse
aparecer qualquer hora. Estou mais surpreso com o fato de Mau ter ido
para a Índia.
– Ele foi para lá exatamente porque a existência de outro mago nato é
importante! – exclamei – pode ser até que esse cara substitua Mau no
poder um dia, como líder mundial.
– Quê?!
Aquela era a reação que eu queria.
Contei a ele as coisas mais importantes que aconteceram no
acampamento desde que cheguei, focando nos acontecimentos dos
últimos dias. Também contei as fofocas que tinham rolado no site da

287
Wanju Duli

SSC do Brasil e no site da SSC Internacional. Principalmente o troca-


troca de vice-líderes.
– Então agora você é, tipo, uma amiga íntima do Mau – brincou Caio
– ganhou até um cachecol tricotado por ele.
– Ele só estava sendo gentil – eu disse – e ele lembrou de você, viu?
Até usou seu nome.
– Achei que Mau sequer lembrasse quem eu era – disse Caio.
– Pelo jeito você é bem marcante.
Resolvemos voltar para o acampamento, porque em breve Caio teria
uma tarefa. Eu também precisaria encontrar uma barraca para ficar.
Enquanto caminhávamos no meio das tendas e barracas, uma garota
correu na minha direção.
– Tônia!!!
Ela me abraçou. Eu... eu chorei!
– Bianca!
Eu nem sei porque chorei, já que faziam apenas seis meses desde a
última vez que nos vimos. Teria sido mais lógico eu chorar quando me
encontrei com Caio. Mas as emoções nem sempre seguem a razão.
Por exemplo: eu não tinha planos de fazer aquele drama na frente de
Mau quando ele revelou sua identidade. Foi totalmente constrangedor.
Mas simplesmente aconteceu!
Bianca também estava um pouco mais magra e com os cabelos bem
descuidados. Usava roupas simples, diferente das roupas arrumadas que
ela usava para ir ao colégio.
– Senti saudades – eu disse – onde está Jorge?
– Ele... voltou para casa.
Aquilo foi inesperado.
– Por quê? – perguntei.
– Por causa de Vic...
Então ele tinha retornado bem no início do semestre. Lembro que
aquilo aconteceu quando eu recém tinha chegado no acampamento.
– Ele não viu a execução, claro, mas ficou completamente chocado
mesmo assim – explicou Bianca – houve uma comoção no
acampamento inteiro naquele dia. Muita gente chorando. Foi horrível.
Muita gente amava a Vic.

288
Sociedade do Sacrifício

Eu não vivenciei aquilo. Agora eu me dava conta o quão mais forte


aquele acontecimento foi para os Sacrifícios brasileiros.
– E eu vi no site que teve outra execução depois – lembrei.
– Sim, no mesmo semestre – confirmou Bianca – mas aquela foi mais
bem aceita. Acho que depois da execução da Vic, qualquer execução que
acontecer daqui pra frente não terá o mesmo impacto.
– A não ser que Mau execute alguém importante, como Manu ou
Yago...
– Vira essa boca pra lá – reclamou Bianca – não quero nem pensar.
Mesmo assim, acho que o impacto só superaria esse se o próprio Mau
fosse executado...
– Não vai acontecer – garanti – o próprio Mau disse que nenhum
Sacrios possui poder para matá-lo. Ele só morreria se aceitasse por
vontade própria.
E eu contei a ela toda a história da minha viagem que eu tinha
contado para Caio antes.
Era engraçado como o mundo dava voltas. Antes era Jorge que
idolatrava Mau. Mas ele saiu da SSC por causa de algo que ele fez. E
Caio, que sempre admirou Vic, ainda estava lá. Pensando bem, a própria
Carla, que também gostava de Mau, tinha ido embora.
Talvez não fosse bom admirar Mau tanto assim, ou quando ele fazia
uma merda muito grande o desapontamento era maior. Quanto a mim,
eu já estava acostumada a enxergar Mau como uma pessoa contraditória,
então quando aqueles absurdos aconteciam talvez o impacto sobre mim
fosse menor. Porque no fundo eu sabia que o Mau poderia ser capaz de
fazer qualquer coisa. No começo essa ideia assusta, mas quando nos
acostumamos com ela, não parece mais tão terrível.
Quando optei por entrar na SSC também fiz uma escolha consciente
de desafiar minhas visões de mundo. Talvez até mesmo minhas visões
sobre o bem e o mal.
Eu tinha doze anos quando ocorreu aquela ameaça de fim de mundo.
Muita gente levou a sério. Achamos que o mundo fosse mesmo acabar.
Minha família, meus amigos.
Só que não acabou. Mas naquele dia eu me dei conta que eu não
queria me encontrar novamente diante da morte sem nenhuma

289
Wanju Duli

preparação. Eu queria ser capaz de me defender. Se eu não pudesse


salvar meu corpo, eu queria salvar pelo menos minha mente.
Eu não queria mais viver por qualquer coisa. Eu queria que minha
vida tivesse algum valor.
Acho que o mundo só não acabou porque Mau matou um Deus. Foi
bem nessa época. Eu me lembrava.
Caio me disse que a sensação que teve ao vir para aquele
acampamento pela primeira vez era a de que havia alcançado o sentido
da vida. E eu finalmente estava lá.
Eu tinha começado minha jornada. No fundo, eu a iniciei aos meus
doze anos, embora eu ainda não soubesse disso na época. Aquele
prenúncio de fim de mundo foi como uma iniciação para mim.
E logo eu também descobriria como o meu período na Índia tinha
me ensinado muitas coisas. Mais do que eu imaginava.
– Esse Sarthak... – Bianca comentou, quando terminei de contar a
história – ele é um treinador de merda. Manu é muito melhor.
– Bem, não é preciso se esforçar muito para ser melhor que ele –
observei.
– Mesmo assim, é emocionante você ter conhecido os Três Tesouros
ao vivo! – ela exclamou, maravilhada – esse era seu sonho, não é?
Pensando bem... sim! Aquele era meu sonho. Principalmente
conhecer Raghav. Por isso acabei contatando a SSC da Índia. Apesar de
eu não saber muito sobre eles na época, aquela SSC era a que mais me
chamava a atenção, exatamente por causa de Raghav.
Felizmente não me desapontei com Raghav, embora os outros dois
Tesouros fossem umas porcarias. Pelo que Tejas escrevia na internet, ele
não parecia ser um extraordinário general tampouco. Se é que eu podia
julgá-lo por isso. Quando falei com ele ao vivo, ele também me pareceu
bastante suspeito.
Acabei ficando na barraca de Bianca. Ela me apresentou às outras
duas garotas que dividiam a barraca com ela: Sabrina e Elisa, duas
iniciantes que entraram com Bianca.
Elas ficaram completamente fascinadas com as histórias que contei.
Eu adorava quando eu tinha uma boa audiência, que soltava exclamações
impressionadas nos momentos certos.

290
Sociedade do Sacrifício

– Que sorte – disse Sabrina – você ainda vai ter duas semanas de
férias. Vai fazer o que nesse período?
– Bem, eu vou ajudar nas tarefas domésticas, é claro, e durante o
treinamento... amanhã vou querer assistir.
Eu queria testemunhar o que Manu sabia fazer.
Ela era bem como Carla a descreveu: parecia uma amazona. Acordei
cedo com as meninas para assistir ao treinamento e lá estava ela:
imponente e respeitável.
Manu usava uma longa trança negra. Tinha a pele morena: parte dela
naturalmente e outra parte bronzeada pelo Sol. Ela era alta e de
constituição forte, como uma lutadora. Movia-se com agilidade e graça.
Ela tinha voz grave e sensual. Para completar, ela falava gritando, mas
sua voz já era naturalmente assustadora sem isso.
Os iniciantes ficavam apavorados com ela, com medo de cometer
algum erro e serem xingados. Ela via e ouvia qualquer coisa que
acontecia. “Devem ser siddhis” pensei, imediatamente. Eu lembrava de
ter lido no livro que Meera me emprestou sobre siddhis com esses
poderes.
O treino diário durava longas horas. Uma parte de manhã cedo e
outra durante a tarde. Eu fiquei cansada só de assistir. Ela dava aulas de
artes marciais misturadas com ensino de magia. Eu não entendi muito
bem que diabos era aquilo. Bem, muitas artes marciais orientais tinham
relação com religiões.
Era preciso ter bom preparo físico para acompanhar. Depois de fazer
tantos serviços na Índia, eu achava que estaria em boa forma. Porém, eu
me enganei.
Nas minhas duas semanas de férias eu só ia para os treinamentos para
assistir. Também aproveitei aquele período para ler uns livros sobre a
magia da SSC do Brasil. Eram dois livros escritos pela Manu.
Na minha primeira semana de treinamento efetivo, eu fiquei
quebrada. Eu tinha me despedido de Caio, que partiria num ônibus junto
com outros Saos para o novo acampamento. Eu me perguntava se o
treinamento de Mau seria mais difícil ou mais fácil que aquele.
Só sei que depois do meu primeiro mês sendo massacrada pelas
garras de Manu, eu já estava morrendo de saudades da Índia e sonhando
em voltar para casa.

291
Wanju Duli

Meus dedos cortados de cortar vegetais na Índia não eram nada perto
do estado do meu corpo com os treinamentos dela. Eu estava com os
joelhos ralados e cheia de outros ferimentos pelo corpo. Até que eu torci
o braço, recebi atendimento médico e fui dispensada dos treinos por um
curto período.
Eu já estava pensando “que sorte!”, mas me encheram de outras
atividades menos importantes e monótonas que eu poderia realizar sem
comprometer minha recuperação. Dessa forma, eu estava torcendo para
que meu braço ficasse bom logo e eu pudesse voltar a treinar
normalmente.
Manu era muito organizada. Tudo naquele acampamento funcionava.
A novidade daquele ano era a presença de estudantes estrangeiros, já
que aquele tinha sido o primeiro ano em que Mau liberou isso.
Para mim, isso não seria exatamente uma novidade. Mas imaginei que
fosse divertido da mesma forma. Era legal saber os motivos de o pessoal
ter vindo.
E a maior parte dos motivos tinha nome: Manu ou Mau. A maioria
tinha vindo por causa de um dos dois. Ou geralmente os dois.
Pensando bem, os iniciantes estrangeiros presentes no acampamento
deviam ser muito inteligentes, pois o teste de admissão estava mais difícil
e a concorrência mais alta.
Além do grande número de estudantes latino-americanos, como
colombianos e argentinos, também havia um ou outro de países
variados. Esses que não eram nativos de países de língua portuguesa ou
espanhola deviam ser verdadeiros gênios para fazer todo o teste e
entrevista em português e receber aprovação.
Quando meu braço se curou e eu retomei os treinos, percebi que eu
estava muito atrasada em relação aos outros. Comecei a desanimar e
minha autoestima foi lá para baixo. Eu estava perdendo completamente
a motivação para treinar. Acordar a cada dia era um sacrifício.
Talvez eu não tivesse jeito para fazer aquilo. Eu não tinha talento
para meditação e nem para exercícios físicos. No máximo, eu era boa em
limpar coisas, mas, como Yago disse uma vez, eles não aprovavam
pessoas para trabalharem como empregados para eles, já que cada um
devia cuidar de suas próprias necessidadeds e ainda ajudar o grupo.

292
Sociedade do Sacrifício

– Calma, vai ficar melhor – Bianca me dizia – no começo é assim


mesmo. Comigo também foi assim.
Ela me falava coisas do tipo o tempo todo. Mas nunca ficava melhor.
Apesar de ter Bianca e as outras duas meninas da barraca para
conversar, eu me sentia sozinha naquele lugar. Talvez mais solitária do
que quando estive na Índia.
Afinal, eu não tinha a internet agora para me distrair. E Caio tinha ido
para o outro acampamento. Se bem que, agora que Mau estava ocupado
treinando os Saos avançados, ele provavelmente teria pouco tempo para
escrever bobagem na internet.
Será que Caio estava se divertindo mais que eu naquele momento?
Por alguma razão, suspeitei que o treinamento que Mau desse seria mais
divertido.
Os dias estavam se tornando insuportáveis: o tédio, o calor, o
trabalho duro. Eu não ia aguentar. Mas eu também sentia uma dor no
coração cada vez que eu pensava em ir embora.
Eu tinha chegado tão longe. Eu só precisava aguentar mais alguns
meses para receber minha iniciação e me tornar Saos. Mas será que
quando eu me tornasse Saos as coisas não piorariam ainda mais?
E como Saos eu teria que oferecer uma parte do corpo se eu
desejasse me retirar da SSC. Como iniciante, eu ainda tinha a chance de
sair sem perder nenhuma parte de mim. Eu imaginava que aquela regra
existia para que somente os sérios se tornassem Saos.
No acampamento, eu era testada a cada minuto. Aquelas
oportunidades de sair eram o que dificultava tudo. Se eu não tivesse a
opção de sair seria muito mais fácil. Aqueles pensamentos não me
atormentariam. Às vezes eu preferia não ter a liberdade, não possuir a
escolha: que eles me prendessem na SSC e não me deixassem sair nunca
mais. Assim eu conseguiria somente olhar para frente.
Mas as regras dos Saos entregarem uma parte do corpo e os Sacrios
serem executados não era a estratégia de proibição que eles usavam? E
aquilo me angustiava.
Num dia acordei meia hora mais cedo, subi a trilha e me sentei na
grama lá em cima, observando a cascata.
Fechei os olhos e ouvi o som da água caindo. Fazia dois meses desde
que eu conversei com Caio naquele lugar. Ali eu contei a ele as grandes

293
Wanju Duli

aventuras do meu primeiro semestre. Caio também me contou um


pouco do que ele viveu nos últimos anos. Coisas que ele não relatou nas
cartas ou por telefone.
Eu tinha realizado o meu sonho. Não foi fácil. Passei por muita coisa
para chegar lá.
Eu não queria jogar tudo fora.
Chorei. Porque era difícil sair, mas também era difícil ficar. Eu me
encontrava diante do abismo do qual Mau falou um dia. Eu tinha medo
de cair lá embaixo e me machucar. Medo de não poder retornar. Mas
voltar também seria doloroso. Eu perderia toda a vida que eu poderia ter
tido.
Seria uma vida de aventuras. Uma vida sofrida. Valia a pena pagar
esse preço? E se eu cruzasse o abismo... haveria um grande prêmio ou
somente arrependimento? Quem sabe meu maior prêmio fosse morrer
nas mãos dos Deuses. Morrer sabendo que eu havia dado o melhor de
mim para lutar por algo que eu acreditava.
Mas será que eu realmente acreditava naquilo? Quem sabe eu não
quisesse lutar. Os Deuses podiam estar certos. Eles não podiam
simplesmente vencer? Por que eu precisava me esforçar tanto?
Ninguém mais poderia me ajudar. A não ser uma única pessoa.
Os Saos não sabiam de nada, mas Manu sabia. Eu precisava de
respostas. Ou pelo menos de conselhos fortes. Manu possuía uma
determinação de ferro. Eu queria que ela me contasse o segredo.
Requisitei uma audiência com Manu. Demorou muito para ela
arranjar um tempo para conversar comigo, até que ela marcou um dia.
Eu estava aterrorizada. Conversar com Manu era muito mais
assustador do que falar com Mau. Ela era toda séria e braba. Eu tinha
medo que ela dissesse algo que me devastasse.
Porém, foi com coragem que pedi aquela conversa. A maioria não
conseguiria falar com ela frente a frente e a sós. Só por minha ousadia eu
já devia me considerar vitoriosa.
Nós nos sentamos juntas uma noite num local afastado, à luz de uma
fogueira. O céu coberto de estrelas estava magnífico. Aquela noite era
importante e mágica.
Suspirei fundo. Eu devia começar a falar, já que fui eu que pedi
aquela conversa.

294
Sociedade do Sacrifício

– Estou com algumas dificuldades – comecei, com os olhos baixos –


o treinamento está difícil. Minha motivação está baixa.
– Você é aquela que ficou por um semestre na Índia, correto? –
perguntou Manu – Yago me falou de você. Suas notas no teste não
foram boas.
Aquilo não pegaria bem para mim. Se minhas notas não foram boas e
eu tive dificuldade de conseguir aquela vaga, era porque eu não estava
preparada para entrar e naturalmente enfrentaria dificuldades. E lá estava
eu reclamando que estava difícil. Que coisa, não?
– Sim... – respondi – achei que meu semestre lá fora me ajudaria aqui.
Mas todos já estão muito avançados e me sinto deixada para trás.
– Você está pensando em abandonar o treinamento e sair da SSCB?
Eu fiz que sim.
– Sabia que somente 10% dos iniciantes recebem a iniciação como
Saos?
Isso significava que de cada dez pessoas que entravam somente uma
conseguia aguentar permanecer por um ano. Aquelas estatísticas eram
assustadoras. Eu não me sentia boa o suficiente para estar entre os 10%.
– Mas metade deles saem logo no primeiro mês – explicou Manu –
então você já passou por uma das etapas mais desafiadoras de
eliminação. Agora você só precisa aprender a lidar com suas emoções.
– O problema é que eu não tenho certeza se quero fazer isso –
confessei – além de não saber se quero, tenho dúvidas se lutar é a coisa
certa a fazer.
– Como é o seu nome mesmo?
– Antônia.
– Antônia, ninguém aqui tem certeza de nada – disse Manu – eu
mesma não tenho nenhuma certeza. Não sei se lutar contra os Deuses é
a melhor solução, mas por enquanto é uma das únicas opções que está
ao nosso alcance. Uma das melhores, de acordo com nossa filosofia.
– Não sei se eu concordo com a filosofia da SSC.
– Por isso nós requisitamos que todos os candidatos, antes de
enviarem suas fichas de admissão, leiam a nossa proposta com atenção e
estejam completamente cientes em que estão se metendo.
Eu me senti um pouco intimidada com o tom dela ao dizer isso. Não
senti uma sensação legal.

295
Wanju Duli

Ela estava certa, é claro. Ela devia receber um bando de idiotas, todo
semestre, que só entraram lá porque liam as bobagens que Mau escrevia
na internet e acharam legal. Ela já devia estar cansada de lidar com
pessoas assim. Como eu.
– Eu li com atenção... – respondi, com cuidado – mas muitas coisas
não estão claras. No fundo sabemos muito pouco sobre os Deuses e
pelo que lutamos. Nós entramos aqui com uma venda cobrindo nossos
olhos... não apenas literalmente. Essa venda só é completamente
removida quando nos tornamos Sacrios. Não é um pouco injusto sermos
expostos à verdade somente quando já realizamos nosso voto perpétuo?
E se ao descobrir a verdade não concordarmos, seremos executados.
– As nossas regras são essas – disse Manu, em mesmo tom – aqueles
que consideram injusto não devem se inscrever.
Mais uma vez, ela tinha razão. Não era mais a hora de eu reclamar
daquilo.
– Há uma razão para a maior parte das regras. Muitas delas não
envolvem somente a lógica e sim forças espirituais. Por exemplo, quando
um Saos entrega um braço ou uma perna para nós caso se retire do
grupo, ele estará pagando o preço dos seus estudos gratuitos durante o
primeiro ano. É um pagamento energético. Por que você acha que os
membros da SSO realizam o Sacrifício Sagrado?
Naquele momento eu calei a boca e senti um arrepio.
Não eram apenas regras arbitrárias ou punitivas. Elas não existiam
nem mesmo para pressionar o candidato e testar sua determinação.
Quando Mau executou Vic, usou o corpo e o espírito dela para
alguma coisa naquele ritual macabro. Era algo que eu não compreendia.
Tinha alguma coisa a ver com aplacar a fúria dos Deuses? Ou com gerar
uma energia forte para atacá-los, como uma maldição?
Será que Mau tinha usado o corpo de Vic como se ela fosse um
boneco de voodoo para atacar um Deus? Será que as execuções
possuíam esse propósito? Eu lembrava de ter lido uma frase num livro
escrito pela Manu que sugeria aquilo...
Minha cabeça começou a girar. Estávamos lidando com forças
poderosas que eu ainda não entendia completamente. E eu descobri que
queria entender. Eu desejava descobrir os segredos.
“Todos os homens têm, por natureza, o desejo de conhecer”

296
Sociedade do Sacrifício

Por que os Deuses queriam destruir nosso mundo? Seria para roubar
toda aquela energia das mortes para um propósito maior? Nós seríamos
cordeiros de sacrifício? E qual era esse projeto grandioso que eles
queriam realizar?
Eu desejava perguntar tudo isso. Mas eu não podia. Manu jamais me
responderia.
E, afinal, onde estavam os Deuses? Será que eles estavam mais perto
do que eu imaginava?
– Me desculpe, Antônia, mas eu não posso te ajudar – disse Manu –
eu simplesmente não tenho tempo e energia para levantar o ânimo de
cada iniciante e Saos desse lugar, o tempo todo. São muitos aqui que
estão desmotivados, cansados e com dúvidas. A sugestão que eu
geralmente dou é para que ignorem todas essas questões e sigam em
frente com o treinamento. Com o tempo as respostas virão.
Eu não achava que ignorar era a melhor solução, mas pelo jeito não
havia uma solução ideal para esse problema. Era preciso ser prático:
fechar os olhos e engolir o remédio ruim.
Manu já fazia muito nos treinando dia e noite e resolvendo os
problemas técnicos e conflitos que surgiam no acampamento. Era muito
estresse.
Perto das dificuldades que ela enfrentava diariamente, as minhas eram
quase insignificantes. Eu devia me mirar no exemplo dela e apenas
prosseguir.
Como eu continuava quieta, Manu continuou falando.
– Serei sincera com você: as coisas não ficam melhores conforme o
treinamento avança. Ficam piores. Os Saos possuem mais
responsabilidades, em todos os sentidos. Eu não estou aqui para passar a
mão na sua cabeça e dizer que tudo vai ficar bem, que eu vou te ajudar e
que você pode contar comigo. Ninguém vai te ajudar, Antônia. Os seus
amigos aqui passam por dificuldades semelhantes e cada um de vocês
deve ser capaz de construir uma fortitude mental para vencê-las. Um
amigo pode aconselhar, mas ele não é capaz de entrar na sua mente e
mudar seus pensamentos. Essa é uma jornada solitária.
Aquilo era duro de escutar.
– Por isso, não crie ilusões na sua cabeça de que no futuro as coisas
serão fáceis. Espere pelo pior – ela prosseguiu – nós precisamos de

297
Wanju Duli

membros fortes que saibam esperar pelo pior, pois nas lutas contra os
Deuses sempre quando achamos que já vimos uma situação abominável,
ela sempre pode se tornar inconcebível. A mente humana não é capaz de
imaginar os terrores das armas dos Deuses. É preciso construir um
corpo e uma mente que sejam uma fortaleza. Eles serão os escudos para
proteger o seu espírito.
– Eu sei que fica mais difícil quando nos tornamos Sacrios – eu disse
– em compensação, Sacrios podem passar períodos nas cidades, podem
usar a internet e não precisam enfrentar a rotina intensa de treinos dos
acampamentos...
– Ah, então você quer se tornar Sacrios para escapar dos treinos e
usar a internet? – zombou Manu – isso é insignificante. Você já pode
fazer isso e muito mais com a vida que você tinha antes. Então por que
não voltar para ela?
– Porque ser Sacrios é especial. É maravilhoso saber que estamos
vivendo por algo maior... mesmo que eu não saiba direito o que é esse
algo.
– As pessoas lá fora só admiram os Sacrifícios por causa de uma ideia
da psicologia social chamada justificação de esforço – explicou Manu –
elas sabem que exige um esforço fenomenal se tornar Sacrios. Por isso o
status dos Sacrifícios é tão alto. Você provavelmente só quer se tornar
Sacrios para provar para alguém ou para si mesma que consegue fazer
algo difícil. Isso não é o bastante.
Eu calei a boca. Será que eu era assim tão superficial?
– Nós não nos chamamos Sacrifício por acaso – esclareceu ela – você
poderia ter apenas uma vida normal, distrair a sua mente com qualquer
coisa enquanto vive e no final perder o corpo. Sem nem mesmo saber
que existe um espírito dentro de você. Nós, Sacrifícios, despertamos o
potencial desse espírito através do estímulo do corpo e da mente. E, uma
vez que o espírito quebra a casca do ovo e escapa para o mundo, os
Deuses te enxergam pela primeira vez. Nesse momento, não há mais
retorno.
Eu estava ficando com medo. Eu não queria ouvir mais.
Imaginei meu espírito quebrando a casca do ovo dentro de mim e um
Deus poderosíssimo em algum lugar voltando um olhar faminto na
minha direção, com uma vontade irresistível de me aniquilar.

298
Sociedade do Sacrifício

– Romper a casca do ovo significa despertar uma siddhi? – perguntei.


– Não. Significa receber nossa iniciação de Sacrios. É um ritual muito
especial, que apresenta seu espírito formalmente ao mundo dos Deuses.
Por isso é necessário que o membro seja executado caso nos abandone.
Já no ritual de Saos o membro bebe uma poção que abre os campos
energéticos do corpo para o desenvolvimento de siddhis.
“Os chakras” pensei, lembrando do que li num livro na Índia.
– Só estou te dando essas explicações porque você clamou não
termos sido claros – disse Manu – e eu te asseguro que no futuro mais
explicações virão. No momento certo de suas iniciações.
Uma vez vi dois Sacrios conversando na Índia. Eles usavam tantos
termos estranhos, provavelmente referentes a magias e segredos que
receberíamos depois, que eu não entendi praticamente nada da conversa.
– Ser Sacrios é diferente de qualquer coisa que você imagina agora –
disse Manu – é começar a lidar com uma parte dentro de você que antes
pensava ser inexistente. Se hoje você sente uma sensação de vazio, é
porque ainda não encontrou essa parte. O espírito é aquilo que te
conecta com todas as energias do universo. É o que os Deuses querem
arrancar de você. O espírito é sua espada. Seu corpo e sua mente são
seus escudos. Não importa se os Deuses arrancam pedaços dos seus
escudos, contanto que seu espírito permaneça intacto.
Era por isso que os Sacrios não se importavam em perder partes do
corpo. Eles aceitavam sacrificá-las naturalmente, como se não fosse
absolutamente nada, pois havia algo muito mais importante para
proteger.
– Como a mente pode ficar em pedaços? – perguntei.
– Os Deuses são ardilosos – explicou Manu – eles possuem
estratégias para confundir e despedaçar a mente humana, pois conhecem
algumas das fraquezas do nosso coração. Por isso é preciso desenvolver
uma mente forte para lutar contra eles. Uma mente que não ceda diante
dos caprichos dos Deuses. Eles vão te oferecer tesouros. Vão te oferecer
paraísos após a morte. Jamais caia nessas armadilhas.
– Os Três Tesouros – pronunciei – eu os conheci. Mas não tive
coragem de perguntar sobre eles.
– Os Três Tesouros enganaram os Deuses – explicou Manu – foi
uma jogada muito bem bolada. Foi uma ideia de Tejas. Eles foram juntos

299
Wanju Duli

e obtiveram poderes psíquicos de presente. Você já deve ter aprendido


que há diferentes formas de receber magias.
– Sim – respondi – é possível receber siddhis por samadhi, como
fazem na Índia. Por auto-disciplina, como fazemos aqui. Por
encantamentos, como fazem na China. Com ervas, como fazem na
Indonésia. E também por nascimento...
– Há outra maneira – disse Manu – um Deus pode te dar uma siddhi.
Uma completa. Você nem mesmo precisa desenvolvê-la para dominá-la.
Ela já vem pronta, como num pacote de presente vindo dos céus. Mas é
evidente que nenhum Deus nos dá esses presentes, já que não é do
interesse deles. Mas é possível roubá-los deles, como os Três Tesouros
fizeram.
Que fácil! Em vez de perder tanto tempo treinando duro, seja
meditações ou artes marciais, eu poderia simplesmente roubar uma
siddhi prontinha. Isso certamente me pouparia muitos árduos anos de
treinamento.
– Mas não pense que é simples – ela alertou – é preciso ser
mentalmente forte. Como os indianos treinam muito o aspecto mental,
eles são capazes de realizar truques como esses. Mas mesmo para eles é
difícil. Raghav perdeu os dedos por causa disso, já que a folha colhida
por ele estava afiada como uma navalha. Em compensação, recebeu
poderes extraordinários. Esses poderes agora nos ajudam na luta.
Mas... por que Manu estava me contando todas essas coisas?
No começo ela ficou irritada comigo. Depois, acho que ela resolveu
tentar me motivar com todas essas histórias fantásticas.
– Às vezes não importa que sua motivação seja tola – concluiu Manu
– Tejas, por exemplo, se inscreveu para a SSC completamente por
acidente, porque achava que o anúncio da SSC, que defendia o caminho
da morte dos Deuses, era o anúncio de uma festa em homenagem à
Deusa Kali. A lenda conta que ele foi pintado de azul e com muitos
colares para realizar o teste. E hoje em dia ele é um dos Sacrifícios mais
fortes.
OK, acho que se uma pessoa como Tejas tinha conseguido se tornar
Sacrios eu também conseguiria.
Manu levantou-se.

300
Sociedade do Sacrifício

– Está tarde – ela disse – não sei se essa conversa te ajudou ou te


atrapalhou, mas isso não é o mais importante. Só estou preocupada em
te apresentar os fatos. Não quero te iludir com mentiras. Analise os fatos
e decida por si mesma. Se decidir sair, não irei me opor. Outros
melhores que você não aguentaram. E se alguém como você sair, não
será uma perda tão grande.
Ai...! Era legal que ela fosse sincera, mas não precisava ser tanto...
– Obrigada por tudo – eu disse – irei refletir sobre tudo isso.
Manu apagou a fogueira. A escuridão reinou. Guiei-me pelas luzes lá
longe e retornei para o acampamento.
Entrei na barraca.
– Como foi a conversa com Manu? – perguntou Bianca, curiosa.
– Bastante frutífera – respondi.
– O que isso quer dizer?
– Significa que ainda precisarei plantar os frutos das informações que
recebi e ver o que acontece – expliquei.
Bianca riu do que eu falei.
– A Índia te deixou misteriosa, com todas essas metáforas – falou
Bianca – Manu sabe ser uma vadia quando ela realmente quer, mas eu a
adoro. Talvez eu a admire exatamente por isso. Há momentos em que
precisamos ouvir palavras duras e nos acostumarmos com elas, para não
ter a ilusão de que a vida é um travesseiro de plumas.
E particularmente a vida como Sacrifício estava longe de ser um
travesseiro.
Eu senti saudades do meu saco de dormir do acampamento branco.
Ali no acampamento do Brasil eu sentia meu corpo dolorido ao acordar
quase todos os dias. Eu raramente dormia bem e quando mosquitos
entravam dentro da barraca era um pesadelo.
Porém, no dia seguinte eu acordei renovada. A dor no meu corpo
não parou. Eu apenas optei por não prestar tanta atenção nela. Ela não
importava.
Meu eu verdadeiro era meu espírito. Não era meu corpo. Não era
nem mesmo a minha mente. Será que era aquilo que eles queriam dizer?
Ou o significado real era muito mais profundo?

301
Wanju Duli

– O espírito não é exatamente seu “eu” – explicou Sabrina, no dia


seguinte – ele é uma ponte que te liga aos Deuses. Assim como o corpo
e a mente são pontes que te ligam ao espírito.
– Desculpe, ainda não li esses livros de metafísica – eu disse –
parecem bem chatos.
Sabrina era toda inteligente e sempre sabia significados de conceitos.
Enquanto isso, Elisa era mais fã da parte física e dos treinos de Manu.
– Não leia – me sugeriu Elisa – são apenas teorias e nomes bonitos.
Você vai entender tudo quando sentir na prática, não importa de que
nome chamem.
– Mas entender os conceitos pode ajudar e inspirar a prática –
justificou Sabrina.
– Você precisa das duas coisas – disse Bianca, por fim, para encerrar
o assunto – dos conceitos e dos treinos.
– Eu estava pensando – observei – se o espírito é a ponte que me liga
aos Deuses, significa que sou Deus?
– Não é isso que significa – disse Sabrina – pois uma gota d’água não
é o oceano.
– Ela não tem potencial de ser?
– Você não riria de um grão de areia que quer se tornar um deserto?
– perguntou Sabrina.
– No mínimo eu o respeitaria pela ousadia – eu ri.
– Parem com essas conversas estranhas – disse Elisa – é embaraçoso.
Mas a SSC não era exatamente isso? Como Yago me disse uma vez,
os Deuses nos viam como formigas. E tínhamos a petulância de tentar
derrotá-los.
Numa ocasião em que Manu teve que deixar o acampamento por
uma semana por causa de algo urgente que surgiu, Yago ficou
responsável. Num daqueles dias os Saos resolveram organizar um
torneio de poderes sobrenaturais. Desconfiei que fosse dar merda.
– Cuidado, pessoal... – avisou Yago, sempre digitando no seu
computador – depois quem vai se foder sou eu.
– Ah, fala sério, Yago – disse Bianca – você é o Sacrios mais legal.
Não seja tão quadrado. Você não vai nos impedir de fazer o torneio, né?
– Não, mas só porque eu sei que há médicos no acampamento –
disse Yago – senão eu proibiria.

302
Sociedade do Sacrifício

Bianca se debruçou no ombro dele.


– Podemos dar uma espiada no site oficial? – ela pediu.
– Acho que uma olhadinha rápida não vai fazer mal – disse Yago.
Nossa, como Yago era gente boa. Camarada pra caramba.
É claro que Mau tinha escrito algumas coisas naqueles últimos dois
meses e meio. Essa era uma das postagens mais recentes:

Treinar Saos é chato pra caralho. Manu, agora entendo sua dor. Como você faz
para treinar esse bando de mulas? Admiro sua paciência.
Estou tentando vários métodos e nenhum parece dar certo. Primeiro eu tentei
organizar uma sala de aula. Sabe, eu era o professor e tinha um quadro-negro. Os
alunos se sentavam no chão logo adiante e tinham uns cadernos fodidos. Eu dei a eles
umas folhas com umas merdas erradas que imprimi, que eu usava para rascunho, e
mandei que eles usassem o verso.
Porém, no primeiro dia de aula os cornos não conseguiam prestar atenção em mim
porque estavam entretidos com as folhas. Eu imprimi nelas umas letras de música do
Justin Bieber. Não foi um acidente, é claro, já que eu admiro o artista. Um dos
estudantes também achou uma folha com uma foto de um dos membros do One
Direction sem roupa. Eu expliquei que ele não estava realmente sem roupa, que
Liam Payne tinha feito uma brincadeira com os fãs. Mas aqueles cuzões querem ouvir
minhas explicações? É claro que não.
Enfim, o primeiro dia foi uma bosta e não serviu nem como introdução. No
segundo dia um dos alunos implicou porque eu estava me referindo a eles como “suas
bichas”. Eu disse a eles que iria chamá-los como eu quisesse e quem não estivesse
satisfeito com isso poderia decepar o braço, deixar na minha mesa e sair da SSC. Só
quando eu disse isso que os miseráveis se calaram.
No terceiro dia tentei ensinar algumas magias simples, como chamar relâmpagos
ou soltar bolas de fogo pelas mãos, mas eles não eram sequer capazes de começar.
Manu, o que você andou ensinando a eles? Eu preciso de um relatório sobre o que eles
aprenderam até aqui, ou ensinarei coisas muito básicas ou avançadas demais.
Depois desse dia, eles ficavam olhando para mim com cara de apavorados e não
abriam a boca na sala de aula. Eu me pergunto se os palhaços ficaram com medo
dessa coisinha de nada que fiz. Se já estão com medo de mim, imagine só como vão se
cagar na frente dos Deuses.
Eles não entendem que as magias mais fortes não são aquelas com apelo visual.
Essas só servem para chamar a atenção de pessoas facilmente impressionáveis. As

303
Wanju Duli

magias mais poderosas não destroem o corpo e sim a mente. E as mais


extraordinárias, tocam o espírito. Mas fazê-los entender isso será um longo caminho.
Eles ainda pensam que manipular o ar e o calor para gerar fogo é grande coisa.
Manipular a mente é muito mais complexo e terrível.
Resumindo, o método da sala de aula foi uma palhaçada, porque ninguém
colaborou. Eu também às vezes não consigo explicar a teoria sobre as magias que
faço. Eu simplesmente sei fazer e pronto! Sei lá de onde saiu isso, do meu cu!
Resolvi mandar que eles jogassem suas magias uns nos outros, mas um estudante
quase perdeu um dedo, então mudei o método. Eu mandei que cada um costurasse um
boneco de algodão e o fortalecesse com a própria energia. E os outros deveriam atacar
esse boneco. Os danos foram menores, mas não inexistentes. Um dos estudantes
consegiu atacar a mente de outro com esse método. Esse estudante em particular me
chamou muito a atenção. Pelo menos para isso serviu: para que eu pudesse encontrá-
lo.
Ainda estou tentando achar novas soluções para implementar métodos de ensino,
então venha me visitar no nosso acampamento para dar sugestões, Manu, senão eu
vou enlouquecer.

Enlouquecidamente,

Mau

Líder Absoluto e General do Acampamento B da SSC do Brasil, Imperador da


SSC Internacional, Matador de Deuses (dá trabalho escrever todos esses títulos. É
difícil ser foda)

Nossa, o treinamento de Mau parecia tão divertido! Embora meio


perigoso.
Eu queria estar lá.
Manu tinha escrito como resposta:

Mau, não mate seus alunos. Já estou indo aí. Me espere. Não faça nada perigoso!
Algumas vezes você não se dá conta do quão forte você é. Parece que se esquece.
Suas “magias simples” não são simples de aprender para alguém que nunca teve
contato com magia antes.

304
Sociedade do Sacrifício

Eu sugiro que você comece a trabalhar na escrita de um grimório ou um livro-


texto para aulas enquanto eu estou a caminho. Tenho mais sugestões. Conversaremos
quando eu chegar aí.

Cordialmente,

Manu

General do Exército do Acampamento A da SSC do Brasil

– Viu só, Yago? – disse Bianca – se Mau está promovendo torneios


no acampamento dele, também podemos fazer torneios aqui.
– Manu não parece aprovar – disse Yago.
Farah escreveu no site da SSC Internacional:

Suas aulas parecem tão legais, Mau! Queria estar aí para assistir e mandar
bilhetinhos secretos de amor para meu professor, junto com uma maçã deliciosa e
vermelha. ;)

Tejas respondeu:

Você é bem-vinda para assistir às minhas aulas no Acampamento Laranja, doce


Farah. Aqui é bem mais divertido, nós fazemos competições de piadas, de jogar
laranjas e de equilibrar pratos no nariz.

Farah disse:

É mesmo, Tejas? Aqui na Indonésia nós cozinhamos bastante, mexemos com


química, alquimia e com umas ervinhas :3

Tejas escreveu:

Eu te amo.

Farah respondeu:

305
Wanju Duli

Bom saber, mas eu não te amo. Foi mal :/

Tejas disse:

Tudo bem. Quando você me conhecer vai mudar de ideia.

E a conversa terminou aí.


Enquanto isso, no nosso acampamento os torneios se iniciavam.
Sinceramente, aquilo nem foi perto de ser perigoso. A maior parte
dos Saos iniciantes ainda não tinha desenvolvido nenhuma siddhi, então
muitos apenas partiram para a pancadaria.
OK, também não se pode dizer que foi completamente inofensivo.
Houve alguns arranhões feios e até um pé torcido. Não deixou de ser um
dia divertido. Enquanto dois lutavam, havia torcidas para os dois lados.
Eu não lutei, é claro. Só assisti. Bianca lutou com Elisa e foi bem
interessante. As duas saíram daquela luta cheias de terra e com os cabelos
tão arrepiados que pareciam ter tomado um choque elétrico.
Quando Manu voltou para o nosso acampamento, ela parecia mais
estressada que o normal. Aquilo era ruim para nós, pois significava que
ela descontaria a raiva na gente, pegando pesado nos treinos.
Foi somente quando Manu retornou que eu entendi como meu
treinamento na Índia havia me ajudado.
Até então, eu me via como uma estudante atrasada, que tinha iniciado
os treinamentos fisicamente exaustivos de Manu somente a partir do
segundo semestre. Eu estava tendo que correr para acompanhar os
outros. De que tinha me servido dedicar horas e horas em meditações
sonolentas no acampamento branco? Aquilo não tinha ajudado no meu
preparo físico e provavelmente em nenhuma outra coisa.
Foi isso o que pensei a princípio. Mas eu estava completamente
enganada.
Manu anunciou mudanças súbitas em nosso sistema de treino assim
que chegou.
– Mau está sendo extremamente rigoroso com seus alunos no
Acampamento B – disse Manu – e eu não consegui persuadi-lo para que
baixasse seu nível de exigência. Ele não tem paciência de esperar que

306
Sociedade do Sacrifício

seus alunos atinjam o nível que ele deseja. Mau exige excelência de todos.
Sendo assim, terei que exigir o mesmo de vocês.
Cacete. O que ela queria dizer com isso?
– A partir de agora, aumentaremos nosso ritmo de treino, senão
quando vocês forem para o Acampamento B não serão capazes de
acompanhar o ritmo de Mau. Eu irei repassar uma técnica diferente para
estudantes de cada semestre, então ouçam com atenção.
Para os iniciantes do segundo semestre como eu, Manu ensinou uma
técnica de controle de energia parecida com uma meditação de pé ou
uma posição de Yoga. Seria uma técnica de tai chi ou algo que ela
inventou?
De qualquer forma, eu apenas segui as instruções. Eu estava
morrendo de calor e ficar ali de pé sem me mover, debaixo do Sol forte,
era custoso.
Acho que o Sol estava tão forte que comecei a alucinar. Eu estava
acostumada a meditar num clima frio no acampamento branco, então a
energia daquele lugar era completamente diferente. Usei a mesma
intensidade mental que eu usava no clima frio, aumentando o ritmo de
minha respiração. Era uma técnica de pranayama. Mas uma técnica para
ser usada no inverno.
Eu forcei demais. Senti uma pressão intensa na testa. Era um tipo de
dor, mas também era bom. Aquela sensação começou a percorrer meu
corpo inteiro.
De repente, eu senti que era o Sol. Senti que eu estava invocando
toda aquela luz e calor para dentro de mim.
Subitamente, senti como se meu corpo estivesse queimando. Mas não
era doloroso. Não era assustador. Era apenas maravilhoso.
Nunca senti algo assim antes. Era como se eu e o Sol fôssemos um.
De repente, eu não sentia mais calor. Não sentia mais meu corpo. Até
minha mente foi embora. Eu não era mais capaz de pensar.
Eu não sentia mais nada. Não sabia onde estava ou quanto tempo se
passou.
Apenas desejei permanecer naquele êxtase magnífico até o fim dos
meus dias.

307
Wanju Duli

Eu não precisaria mais de relógio para contar as horas. Um segundo


poderia se arrastar numa eternidade. E cem anos poderiam se passar
num só minuto.
Mas eu não era a senhora do tempo. Era a senhora do calor que
supera o tempo e o espaço.
Só que no fundo eu não era coisa nenhuma, pois não havia nada que
fosse eu.
Eu estava tão profundamente concentrada e embebida naquela
sensação, que meus sentidos físicos foram desativados. Eu não sentia
mais nada. Não escutava. Não via.
Quando comecei a ouvir um som fraco ao longe, achei que não fosse
nada. Ignorei-o.
Será que estavam me chamando? Por que não paravam de me
chamar? As pessoas não entendiam que eu estava sentindo algo incrível e
queria continuar exatamente daquele jeito?
Eu não queria mais saber das outras pessoas. Só queria sentir aquela
massagem emocionante no meu coração. Parecia que minha respiração
havia cessado e que meu coração não batia mais. Meu coração estava
mergulhado no lago do meu sangue. Num lago de fogo vermelho e
quente.
E continuavam a me chamar lá fora. Aquele som baixinho e distante
começou a me incomodar. Estava me desconcentrando. Eu fiquei
irritada.
Quando me desconcentrei, comecei a retornar. Aos poucos eu
começava a sentir outra vez a sensação do meu corpo. Meu coração
retomava suas batidas, lentamente. Eu respirava num ritmo calmo.
Os sentidos físicos foram retornando. Até que eu ouvi com clareza o
que diziam. Ou melhor, o que gritavam:
– ANTÔNIA, ACORDA!!!!!!
Por que tanto desespero? Meus instrutores de meditação me
ensinaram que não é assim que se tira alguém de um transe místico.
Aquilo era meio rude.
No entanto, quando fui capaz de olhar o que estava acontecendo ao
meu redor, eu acordei completamente.

308
Sociedade do Sacrifício

O acampamento inteiro estava um caos: barracas pegando fogo,


pessoas gritando. Alguns até estavam caídos no chão ensanguentados.
Para meu horror, alguns que estavam caídos tinham parado de se mexer.
Meu corpo inteiro gelou. Eu comecei a tremer.
Diante de mim estava Manu, barrando a chegada da luz e do calor,
como se me protegesse.
– Fui eu que fiz isso...? – perguntei, com voz fraca.
– É claro que não – ela disse, num tom como se aquela ideia fosse
ridícula – vamos, beba isso rápido!
Ela me entregou um vidrinho com uma poção e eu bebi tudo. Senti
aquela energia forte que me circundava me deixar pouco a pouco.
Infelizmente, cada vez mais que aquela energia confortável me deixava,
mais apavorada eu ficava.
Eu me ajoelhei de pavor e não consegui mais levantar.
– Vamos, saia daí! – gritou Manu – você é o alvo dele!
– O quê? – perguntei, confusa.
– Yago! – Manu berrou – o que diabos está fazendo?!
Yago havia criado uma barreira de energia para proteger alguns
estudantes.
– Não posso sair! – ele respondeu com dificuldade, tentando manter
a barreira – não está vendo?
– Esqueça os estudantes! – Manu berrou loucamente – senão vamos
todos morrer! Não dá mais tempo de salvá-los!
As lágrimas caíam do meu rosto como água. Yago rompeu a barreira
e os estudantes foram carbonizados por uma rajada de fogo que cortou o
ar. Yago escapou por pouco.
– Puta que pariu! – gritou Yago, que parecia ter ferido a mão – Manu,
chame Mau!!!
– Não consigo chamá-lo, porra!! – ela exclamou.
Naquele instante, Manu transformou-se numa sombra gigantesca. A
forma negra atacou o monstro gigante feito de fogo.
Yago correu na minha direção e segurou na minha mão:
– Vou entrar no seu corpo por um momento – ele me avisou – para
apagar a chama que você acendeu.
Quando aquilo aconteceu, senti que desmaiei. Quando voltei a mim,
Mau havia surgido no acampamento.

309
Wanju Duli

Manu diminuiu de tamanho, voltou ao normal e caiu no chão. O


monstro gigante feito de fogo também diminuiu, assumindo uma forma
humana.
Ele sentou-se no topo de uma grande pedra. Usava uma calça e uma
blusa em tom amarelo-queimado e botas negras. Tinha longos cabelos
negros e a pele escura fortemente bronzeada pelo Sol. Ele também usava
muitas joias douradas.
– Você demorou para aparecer, Mau – disse o homem, com uma voz
melodiosa – eu matei quase todos os seus estudantes. Como você
permitiu que isso acontecesse, salvador do mundo?
– Cale-se, Sol – pronunciou Mau, com desprezo – eu estava do outro
lado do país. Considerando as circunstâncias, chegar em dois minutos foi
rápido.
– Somente de sua perspectiva – retrucou Sol – pois da minha
perspectiva, um milésimo de segundo seria esperar muito.
– Por que fez essa merda? – perguntou Mau, em tom ríspido – pensei
que tínhamos um acordo.
– O acordo continua em vigor enquanto as duas partes cumprem
seus termos – explicou Sol – e eu senti uma quebra aqui. Aquela garota
me evocou. Ela mostrou uma porção de espírito para mim. Senti-me
tentado a olhar mais de perto. Pensei que você dava aos seus Saos
aquelas bebidas... que tiravam o cheiro de espírito, para que eu não
conseguisse rastreá-los.
Mau suspirou fundo ao olhar para mim.
– Ela é iniciante – ele explicou – só ia receber a iniciação daqui alguns
meses. Ela treinou na Índia por seis meses e deve ter aprendido algumas
técnicas avançadas, que combinadas com as nossas geraram esse cacete.
Sol bateu palmas.
– E você não conseguiu prever que isso pudesse acontecer – disse Sol
– eu posso ser um Deus, mas é difícil até mesmo para mim quando sinto
o cheiro do espírito dos humanos. Principalmente um fresquinho como
esse.
– Você é nojento – disse Mau – agora que já esclareci que foi
somente um engano e não uma provocação, você já pode sair. Se você se
retirar agora, não guardarei rancores por essa porcaria que você fez e irei
ignorar completamente.

310
Sociedade do Sacrifício

Sol saltou da pedra de onde estava sentado. Ele atravessou o


acampamento até onde Mau estava. No caminho passou por alguns
estudantes feridos no chão, que se arrastaram apavorados para sair do
caminho do Deus.
Mau e Sol estavam frente a frente agora, a pouco mais de um metro
de distância. Sol deu um largo sorriso.
– O que eu ganho com isso?
– O quê? – perguntou Mau.
– O que eu ganho se eu sair agora, com o rabo entre as pernas, como
se estivesse com medo de você? – perguntou Sol.
Mau deu um riso desagradável.
– Você só pode estar brincando – disse Mau – você já ganhou o seu
prêmio, fazendo essa bagunça por praticamente nada. Já se divertiu.
– Eu não me divirto tirando a vida de Saos que sequer despertaram
seus espíritos – disse Sol – eu só saio daqui se puder provar uma parte
do espírito daquela menina. Afinal, a culpa é dela. Quem me provocou
precisará pagar.
– Filho da puta – disse Mau.
Entendi rapidamente o que estava acontecendo. Embora eu não
fosse capaz de entender todas as nuances envolvidas, eu entendi que a
culpa era realmente minha. Eu tinha atingido um estado alterado de
meditação que o havia atraído para nós. Então ele só iria embora se eu
pagasse um preço pela evocação.
Se naquela época eu fosse capaz de sentir a intensidade da energia
emanada pelos Deuses, eu jamais teria chegado perto dele. Eu apenas ia
permanecer no chão, coberta de terror. Mas eu ainda não sabia de nada.
Por isso, sem estar ciente do perigo que eu corria, como uma criança
que se joga no fogo estupidamente, sem pensar nas consequências, eu
fiquei de pé. Afastei-me de Manu e dei alguns passos adiante na direção
do Deus.
Meu coração batia acelerado. Mas eu precisava ser forte.
Tomada por uma coragem que eu não sabia que possuía, eu disse a
ele:
– Eu aceito pagar o preço pelo erro que cometi. Seja ele qual for.
– Idiota! – gritou Manu – saia daí!
Sol gargalhou com o que eu disse.

311
Wanju Duli

– Essa iniciante é mais corajosa do que qualquer um desses Saos que


rastejam no chão – observou Sol – e mais forte também. Será um prazer
pegar uma parte sua. Você deveria se sentir honrada.
Sol caminhou na minha direção, mas Manu colocou-se diante de
mim.
– Pare – ordenou Manu – ela não sabe o que está fazendo. Não vou
permitir que ela pague um preço que sequer sabe qual é. E não foi culpa
dela. Ela não o evocou de propósito.
– Então a culpa foi da instrutora dela, que não a orientou
apropriadamente sobre a forma de controlar seus poderes – disse Sol –
nesse caso, estarei satisfeito em tomar para mim uma porção sua, Manu.
Sol se moveu com a velocidade de um raio. Eu mal vi quando ele se
mexeu.
No segundo seguinte, Manu estava sangrando no chão. Sol já tinha
voltado ao seu lugar e segurava o braço direito de Manu.
Sol devorou o braço aos bocados, até restarem somente os ossos, que
ele chupou e girou nos dedos.
– Eu poderia usar os ossos para decorar minha sala – disse Sol – mas
acho que irei dá-los para meu cachorrinho Mau, como prêmio por estar
tão bonzinho até agora. Parabéns por não atacar seu tio. Eu sei que foi
difícil resistir, minha criança...
Ele jogou os ossos aos pés de Mau.
– Seu animal – rosnou Mau – sabia que essa sua brincadeira escrota
pode gerar mais uma guerra?
– Eu não tenho medo das suas guerras, fedelho – disse Sol – na
verdade eu me divirto com elas. É muito monótono ser um Deus
quando você não pode brincar um pouco de usar seus poderes de
destruição. De qualquer forma, ultimamente ando animado, porque
estou fodendo sua mãe.
Mau revirou os olhos.
– Já terminou? – perguntou Mau – vai ficar quanto tempo aí parado
falando merda?
– Até você resolver me atacar – disse Sol – agora que casei com sua
mãe, sou tecnicamente seu padrasto. E se tudo der certo, com base na
última transa que tivemos, em breve você ganhará um irmãozinho. Mas
será um irmãozinho de sangue azul, muito mais poderoso que você.

312
Sociedade do Sacrifício

– Espera – disse Mau – isso é sério? Você casou com minha mãe?
– Mau, chega de bater papo, caralho! – Yago gritou – Manu está
sangrando, porra! Os Saos precisam de atendimento médico! Chuta esse
filho da puta daqui.
Sol se teletransportou para a frente de Yago. Deu outro largo sorriso.
– Minha presença aqui o incomoda? – perguntou Sol – posso saber
por quê?
Yago empalideceu. Mas se conteve.
– Você já conseguiu o que queria – disse Yago – agora nos deixe em
paz.
– Não é você quem dita as regras, seu pedaço de lixo. E essa suposta
paz de vocês é uma ilusão. Vocês somente terão paz completa quando
entregarem a nós seus espíritos.
Sol chutou um monte de terra no rosto de Yago, que tossiu. Sol
limpou as botas, deu meia volta e voltou-se para Mau outra vez.
– Como eu estava dizendo, sim, eu casei com sua mãe. Peço minhas
sinceras desculpas por não tê-lo convidado para a festa de casamento.
Sua mãe é uma rainha na cama. Não sei o que ela tinha na cabeça
quando decidiu se deitar com aquele humano sujo.
– Meu pai morreu na guerra com honra – disse Mau – e agora você se
cala e se retira.
– Já pensou na proposta que fizemos? – perguntou Sol – sobre você
se casar com Terra? Se você se casar com ela, nós pouparemos o seu
planeta.
Mau riu.
– Duvido – Mau disse.
– Sua mãe quer que você se case com ela, para que seus descendentes
tenham sangue de Deuses – explicou Sol – se você se casar com uma
humana, seus filhos serão fracos.
– Como se eu desse a mínima para essa merda – disse Mau.
– Se seus filhos forem Deuses, vocês poderão nos vencer na guerra
um dia – explicou Sol.
– E por que vocês nos dariam essa chance? – perguntou Mau.
– Sua mãe ainda te ama, embora você não acredite – disse Sol – ela
quer o melhor para você, independente das consequências. E o amor não
se explica. Por exemplo, eu me casei com ela mesmo sabendo que com

313
Wanju Duli

isso eu me tornaria o padrasto de um merdinha traidor metade humano


como você.
– Traidor? – perguntou Mau – eu sempre fui abertamente a favor dos
humanos. Então eu traí o quê?
– Você cuspiu na metade nobre do seu sangue. Isso é ofensivo. E,
para completar, assassinou um dos nossos. Apesar disso, iremos
esquecer de todo seu passado vergonhoso se você casar com Terra.
– Puta merda – disse Mau – esse cara não se cala. Bem, pode
continuar falando enquanto curo Manu.
Mau caminhou até onde Manu estava e usou um de seus poderes de
cura no braço dela.
– Isso não será o suficiente – concluiu Mau – precisamos enviá-la
para Sahana. Mas podemos não chegar a tempo...
Manu estava perdendo uma quantidade inacreditável de sangue.
Sol caminhou até lá e pisou no resto de braço dela. Manu gritou.
– Eu troco – disse Sol – curarei sua vice-líder aqui e agora se você me
prometer que irá se casar com Terra. Mas você terá que cumprir sua
promessa, ou haverá consequências inimagináveis.
– Esqueça – disse Mau – não vou fazer essa merda. Agora, saia.
– Mau! – gritou Yago – se você deixar Manu morrer, eu requisitarei
minha excomunhão da SSC.
A expressão de Mau se alterou.
– Eu sempre soube que você gostava de Manu, Yago – disse Mau –
mas morrer por ela? Aí está um verdadeiro herói. Eu não sabia que tolos
assim ainda existissem na SSC. Pensei que éramos Sacrifícios só de
nome.
– Você vai arriscar se teletransportar para a Índia com Manu assim? –
perguntou Yago.
– Eu nunca me teletransportei para tão longe – disse Mau – não sei se
consigo.
– Cacete – disse Yago.
– Se eu me casar com uma Deusa, os Sacrifícios vão ficar putos! –
exclamou Mau – você não entende isso, Yago? Podem pensar que estou
indo para o outro lado... que irei me aliar aos Deuses. Posso ser expulso
da SSC.
– Então seja expulso! – gritou Yago – mas salve Manu!

314
Sociedade do Sacrifício

– Seu egoísta de merda! – berrou Mau – sem um semi-Deus como


líder, a SSC não tem chance de vencer. Eu conheço a mente dos Deuses!
Eu matei um Deus! Somente eu posso liderá-los.
– Agora nós temos Benjamin – disse Yago – caso aconteça o pior,
ainda teremos chances.
– Caralho! – gritou Mau – certo, Sol, cure Manu. Eu me caso com
Terra.
– Mesmo? – Sol sorriu – já podemos marcar a data de casamento? Eu
te aviso pelo Facebook.
– Eu estou cercado por imbecis – disse Mau – cure Manu e depois
conversamos, seu saco de bosta frita!
– OK, OK... – Sol foi até ela – não precisa se exaltar, menino.
Sol segurou no braço de Manu e a curou imediatamente.
– Aí está – disse Sol – está salva. Infelizmente não posso devolver seu
braço, porque eu comi.
– Filho da mãe – disse Manu, levantando-se.
– Eu mando os convites de casamento por e-mail – comentou Sol,
empolgado – vocês querem ser convidados para a festa também? Manu
e... sempre esqueço o nome do moço do computador.
– Yago.
– Isso, Yago!
– Cara, sem querer ser chato – disse Yago – mas há muita gente
sangrando aqui no acampamento por sua causa e precisamos cuidar
deles. Vocês podem discutir isso outra hora?
– Se continuar falando nesse tom, não vou te convidar para a festa –
ameaçou Sol.
– Foda-se! – exclamou Yago.
– Não vou convidá-lo – Sol disse para Mau, apontando para Yago.
– Não tem problema – disse Mau – eu envio um doce de lembrança
para ele.
– Minha mãe cozinha uns doces maravilhosos – sorriu Sol – você se
lembra daqueles doces de morango que ela fez?
– Sim, estavam ótimos – disse Mau.
Mau fez um sinal para Yago se acalmar. Mau devia ter as coisas sob
controle.

315
Wanju Duli

– Eu vou te dar um bolo do mundo dos Deuses para você trazer para
cá, depois da festa – disse Sol – se os seus Sacrios comerem apenas um
pedaço, eles poderão despertar siddhis. Eu me lembro que vocês gostam
bastante das nossas siddhis.
– Nós adoramos – garantiu Mau.
– No nosso mundo nós as chamamos de “dons” – disse Sol.
– Eu sei como vocês as chamam – disse Mau – eu sei até o idioma de
vocês. Na verdade, o idioma dos Deuses é o único que conheço além do
português. Minha mãe me ensinou.
– E seus filhos também o aprenderão – garantiu Sol – bem, agora que
estamos em bons termos, voltarei para meu mundo. Aguarde meu
contato em breve.
– Mal posso esperar – disse Mau.
Sol deu um giro, fez uma reverência e desapareceu.
Finalmente, nós conseguimos respirar. Eu me levantei
imediatamente, para poder ajudar um dos Saos caídos no chão.
– Droga, muita gente se machucou – disse Yago, preocupado –
incluindo nossos médicos. Mau, por que você...?
– Se eu o mantivesse falando, ele sairia daqui sem matar mais
ninguém – explicou Mau – eu conheço Sol. Eu o conheço mais do que
eu desejaria. Quando ele fica zangado, mata todo mundo. Ele iria limpar
esse lugar se eu o atacasse. Pensei em o atacar umas três vezes, mas me
contive. Se eu o fizesse, nenhum de nós sairia daqui vivo. Talvez nem
mesmo eu.
Enquanto Yago contatava os médicos e ajudava os feridos,
conversava com Mau.
– Ele já tinha falado dessa proposta de casamento antes? – perguntou
Yago.
– Muitas vezes – disse Mau – sempre achei ridícula. Esse casamento
não garante nada. Não consigo confiar na palavra desse infeliz.
– Mas ele cumpriu com sua palavra hoje – disse Yago – curou Manu
e foi embora.
– Mau – eu o chamei.
Mau e Yago se viraram.
– Você é um Deus? – perguntei, confusa.

316
Sociedade do Sacrifício

– Um semi-Deus, se você ouviu direito a história – respondeu Mau –


muitos Sacrios já sabiam disso. Mas eu tento manter em sigilo sempre
que possível. Embora esse fato pese para que as pessoas confiem em
meu poder, costuma ter um impacto negativo saber que tenho o mesmo
sangue daqueles que pretendemos matar.
Era uma situação realmente delicada. O tal casamento também.
– Alguns acreditam que por causa disso posso trair a SSC a qualquer
momento – explicou Mau – mas isso é algo que não tenho a menor
intenção de fazer.
– Por quê? – perguntei – o que você ganha defendendo os humanos?
Você não ganharia muito mais se casando com uma Deusa e vivendo
com eles?
– Acho difícil explicar isso – disse Mau – eu gosto dos humanos e me
orgulho do sangue do meu pai. Peço que aceite essa explicação por
enquanto.
Eu aceitava. Até porque eu não pretendia ficar ali sentada
conversando. Eu precisava encontrar Bianca e as outras meninas.
Após caminhar por todo o acampamento, pelos corpos e pelas
barracas cheias de fumaça, eu estava com lágrimas nos olhos. Pensei o
pior.
Até que encontrei minhas três amigas bem escondidas num lugar
mais afastado. Eu abracei Bianca. Abracei também Sabrina e Elisa.
– O que era aquilo? – perguntou Bianca, em lágrimas – aquele
monstro de fogo que desceu dos céus? Eu fiquei apavorada!
– O Deus do Sol – respondi.
Contei a elas toda a história. Mas contei resumidamente, pois
precisávamos retornar para ajudar os feridos. Ainda havia muitos.
Muita gente morreu. Mais da metade dos estudantes morreram na
hora. Alguns morreram depois e vários deles ficaram feridos.
Apesar de Sol ter curado Manu, ela ainda estava com uma febre
insistente. Ela pediu permissão para ficar em repouso por algumas
semanas, pois sua energia mágica também tinha sido drenada por causa
daquele ataque.
Algumas vezes eu me esquecia disso. Eu só vi o dano do lado de fora
que o Deus causou. Não notei o dano na mente ou no espírito.

317
Wanju Duli

Como o Acampamento A havia sido quase completamente destruído


e a maior parte dos alunos estavam mortos, Mau resolveu que levaria
todos os alunos restantes para o Acampamento B e os treinaria.
– Mau, acho que não é hora de pensar em treinamento – recomendou
Yago – suspenda-o por um período.
– Posso saber por quê? – perguntou Mau.
– Porque você vai se casar com a Deusa e a guerra vai acabar –
respondeu Yago – então por que continuar a treinar?
– Como você é ingênuo, Yago – disse Mau – não caia no jogo de Sol.
É exatamente isso que ele quer: que todos os Saos e Sacrios do mundo
parem de se preparar para a guerra com a confiança nessa promessa
incerta de casamento. Será muito simples que os Deuses nos peguem
desprevenidos assim.
– Tem razão – disse Yago – mas eu peço que você faça ao menos
uma pausa de uma semana até organizarmos tudo. É muita gente para
transportar para o novo acampamento. São muitas coisas para resolver.
E você precisará comunicar a SSC Internacional sobre o que aconteceu
hoje.
– Eu sei.
– E mesmo que você ache irrelevante, peço que organize um
cerimonial em homenagem a todos os estudantes que morreram hoje em
vez de simplesmente ignorá-los...
Mau ficou quieto. E concordou com um aceno de cabeça.
Eram mesmo muitas coisas para organizar: funerais, cartas para as
famílias... pensando bem, eu não via como eles conseguiriam organizar
tantas coias assim em apenas uma semana.
– Posso ajudar em alguma coisa? – resolvi perguntar.
– Sim – disse Mau – não medite nas próximas semanas. Em poucos
dias você receberá sua iniciação de Saos, para protegê-la de um novo
ataque como esse.
Eu baixei os olhos.
– A culpa não foi sua – Mau garantiu-me – e sim nossa que não a
orientamos adequadamente. Eu, que estive com você no acampamento
branco e conhecia sua situação, devia ter avisado Manu. Sendo assim, a
culpa recai muito mais sobre mim do que sobre ela. Manu estava apenas
sendo uma extraordinária treinadora, como sempre foi.

318
Sociedade do Sacrifício

Ainda havia algo que me preocupava.


– Há outros Deuses na SSC além de você? – perguntei.
– Não, eu sou o único – Mau garantiu – e eu sou um semi-Deus e
não um Deus.
– Quem são seus pais?
Eu não sabia se ele ia aceitar responder perguntas pessoais como essa,
mas não custava tentar.
– Meu pai era membro da SSC e morreu na guerra contra os Deuses
– explicou Mau – ele me levava para os treinos desde que eu era
pequeno. Embora eu tenha entrado na SSC só depois, eu me considero
membro desde essa época. Eu vi muitas coisas. Já a minha mãe, é apenas
a rainha do universo.
– Uau – eu deixei escapar – “só” isso?
Não entendi direito o que ele quis dizer com isso. Será que a
reverência que Sol fez no final tinha alguma relação?
De qualquer forma, o fato de Mau ser semi-Deus explicava muita
coisa.
Nós fomos levados para o Acampamento B no dia seguinte. Lá eu
recebi minha iniciação de Saos, numa cerimônia completamente simples
e improvisada.
Não era assim que eu imaginava meu grande dia. Mas eles precisavam
me dar logo aquela merda de poção e ninguém estava no clima de
organizar uma festa alegre em minha homenagem depois do que tinha
acontecido.
O novo acampamento ficava num lugar meio deserto e árido, cheio
de areia. Imaginei que as condições de vida seriam mais complicadas para
nós nesse novo lugar.
Mas nós ainda teríamos alguns dias de folga do treinamento antes de
tudo recomeçar. Por enquanto, estávamos lá apenas realizando os
serviços domésticos básicos necessários à nossa sobrevivência, como
cozinhar e limpar.
Fechei os olhos por um momento, refletindo sobre toda aquela
loucura que eu havia vivenciado nos últimos dias.
Nem tive tempo para pensar se eu queria voltar para casa. Agora eu já
era Saos. E eu havia despertado uma porção do meu espírito, o que

319
Wanju Duli

significava que na prática eu tinha um status de Saos avançado com


siddhis.
Mas... eu não tinha siddhis. Ou será que eu tinha e ainda não sabia?
Soubemos que Mau daria um aviso oficial no site da SSC
Internacional sobre o ocorrido. Por isso, metade do pessoal no
acampamento se debruçou no computador de Yago para ler, incluindo
meu irmão.
Caio ficou muito preocupado comigo. Contei a ele que foi por minha
causa que aquilo tudo aconteceu.
– Eu jamais imaginei que você fosse ver um Deus antes de mim –
comentou Caio.
– Essa foi uma das experiências mais desagradáveis da minha vida –
garanti.
Ainda mais depois de ver tanta gente morta. Eu somente não chorei
mais porque fiquei num choque profundo. Acho que minha mente criou
uma espécie de barreira para o que eu estava vivenciando ao meu redor e
parou de se preocupar, senão eu desabaria. Como um corpo que desmaia
como defesa quando há muita dor física ou emocional para suportar.
Manu havia perdido um braço por mim! Como eu poderia agradecê-
la o suficiente? Eu ainda não havia reunido coragem para agradecê-la,
pois inicialmente pensei que ela poderia estar furiosa comigo. Mas assim
que ela retornasse ao acampamento, eu iria procurá-la.
Mau escreveu o seguinte no site da SSC Internacional:

A respeito do terrível incidente ocorrido no Acampamento A, eu lamento


profundamente. Minhas mais sinceras condolências às famílias dos falecidos. Eles
eram Saos muito promissores. Fico honrado que eles tenham dado suas vidas em nome
da causa que defendemos.

Sahana postou a seguir:

Mau, fiquei sabendo que você tentou me contatar. Sinto muito por não responder
o chamado que me enviaram. Eu não estou mais na Índia no momento. Creio ter sido
esse o motivo de ter havido a falha na comunicação. Por favor, se precisarem de mim,
lembrem-se que permanecerei em Burma por um período.
Sinto muito pela perda sofrida pela SSCB.

320
Sociedade do Sacrifício

Sinceramente,

Sahana

Líder da SSC da Índia

A seguir, Sarthak escreveu:

Finalmente está mostrando suas garras, Mau. Aposto que você tinha um acordo
com esse Deus do Sol e acabou de barganhar com ele.

Certamente,

Sarthak

General do Exército do Acampamento Branco da SSC da Índia

Mau colocou sua resposta imediatamente:

Deixa de ser burro, animal. Eu precisaria ser muito estúpido para mandar
explodir meu próprio acampamento.

Sarthak respondeu:

Como você não se cansa de demonstrar toda vez que escreve na internet, estupidez
é o que não lhe falta.

Mau disse:

Fiquei com preguiça de colar no Google Tradutor o que você escreveu, então irei
apenas ignorá-lo. Tenha mais respeito pelos mortos, cacete.

Um desconhecido enviou a próxima mensagem:

Oi filho!

321
Wanju Duli

Tentei te enviar um e-mail para te avisar sobre a data do casamento, mas ele
retornou. Presumo que você tenha alterado seu endereço de e-mail desde a última vez
que nos falamos. Por que não me avisou, queridão?
O casamento está marcado para daqui uma semana, no próximo sábado. Ele
ocorrerá em Mundes, o Mundo dos Deuses. Espero que não se importe que o
realizemos na Igreja da nossa religião. É uma Igreja muito respeitada em nosso
mundo, em que cultuamos a nós mesmos.
Peço que não vista seus trajes horríveis de costume, mas vá bem vestido. De
qualquer forma, iremos te vestir aqui mesmo com um monte de plumas coloridas,
conforme o costume. O noivo deve fazer a corte da noiva no caminho do altar, girando
ao redor dela enquanto agita seu rabo emplumado.
Sugiro que não se atrase, ou iremos explodir o seu planeta. Isso não é uma
ameaça, é claro. É que Terra está muito animada com o casamento e prefere que você
chegue cedo para que a maquiagem dela não estrague.
Sobre seus convidados, peço que não traga muitos idiotas. Somente os idiotas
bonitos, porque tudo aqui é muito chique e requintado. Sua noiva estará linda, sua
mãe estará linda e eu estarei um arraso. Sendo assim, se esforce para causar uma boa
impressão.

Um abraço do seu querido padrasto,

Sol

PS: Traga refrigerantes, pois adoro aquela Sukita que bebemos juntos uma vez

Sarthak escreveu:

Vejam só que traidor, se casando com os Deuses.


Tsc, tsc...
Mau, eu realmente gostaria de acreditar que isso é uma piada ruim. Porém,
conforme a experiência mostra, quanto mais imbecil for o acontecimento, maior a
probabilidade de ser verdadeiro no seu caso.
Sendo assim, te desejo um feliz casamento e uma feliz demissão do seu cargo de
líder da SSC Internacional.
Iremos iniciar as votações para eleger o novo líder no próximo sábado.

322
Sociedade do Sacrifício

Farah escreveu:

MAU, VOCÊ VAI SE CASAR?!!!


E não é comigo? Só pode haver um engano!
T________________T
Eu não me importo que você seja amigo dos Deuses e beba Sukita com eles, mas
você NÃO PODE se casar com um deles!! E eu, como fico?
Sarthak, cala essa boca e vai tomar no cu! Se Mau perder seu cargo de líder, eu,
como vice, me torno a nova líder mundial. Isso não é óbvio?
Se você contesta esse fato, pode lutar comigo a qualquer momento :p

Um novo desconhecido postou:

Oi, Mau

Aqui é sua noiva. Eu não te conheço, mas eu já me apaixonei. Gosto da forma


com que você desafia Sarthak, porque eu o repudio.
Ele e outras duas bestas roubaram meus tesouros. Então, como prova de amor, eu
gostaria de requisitar como presente de casamento que você recupere meus três tesouros
roubados das mãos daqueles ladrões sujos.
Apesar do meu amor, não irei aceitar me casar se eu não receber meus tesouros de
volta até sábado.

Com amor,

Terra

Farah escreveu:

Que perua!!! ;x
O Mau é meu, ouviu, putinha?
Galinha safada, égua depravada!
Cachoooooorraaaaa!!!!

Mau escreveu:

323
Wanju Duli

Yago!!!
Você já não tinha expulsado esses Deuses filhos da puta?
Você não era um “hacker exepcional”? Então bloqueie os dois desse site
imediatamente!
É melhor que os tire agora antes que eles façam merda.

Nós fitamos Yago. Ele suspirou fundo.


E o vimos digitar a próxima mensagem:

Eu já os tinha bloqueado há muito tempo. Eles só passaram pelas minhas


barreiras por intervenção divina. Nesse caso, há pouca coisa que posso fazer.

Tejas foi o próximo a escrever:

Um casamento!!! Que romântico!


Adoro ir a festas. Posso ir nessa?
Posso, papai? Posso? Posso?

Sol respondeu:

Quem é esse imbecil?


Ah, sim! Um dos desgraçados que roubaram os tesouros de Terra.
Seja bem-vindo à nossa festa, Tejas. Já consigo até vislumbrar nós dois dançando
juntos animadamente no grande salão ao som das músicas de Mau.
Eu encarregarei Mau da trilha sonora do casamento. Ele tem um excelente gosto
musical.

Yago desistiu de continuar olhando as mensagens e fechou o


computador. Todos nós protestamos.
– Mais essa agora – disse Yago – se Mau quiser prosseguir mesmo
com esse casamento, terá que lutar com Sarthak. Acho que ele não tem
muita escolha. Me sinto um pouco culpado.
Eu achava pouco provável que a luta entre humanos e Deuses fosse
terminar naquele casamento. Ao contrário, eu suspeitava que no
próximo sábado Mau faria alguma merda que despertaria ainda mais a

324
Sociedade do Sacrifício

fúria dos Deuses e assim novos desastres voltariam a ocorrer na Terra,


depois de quase sete anos de relativa paz.
– Suponho que Mau estará um pouco ocupado essa semana lutando
contra os Três Tesouros e arrumando os preparativos para o casamento
– observou Yago – portanto, irei treiná-los na ausência dele e de Manu.
Se a situação ficar feia, é melhor que vocês estejam preparados. Pois em
tempos de crise não são apenas os Sacrios que lutam. Se acontecer algo
realmente terrível, também teremos que contatar a SSE.
Lembrei que Mau havia mencionado sobre a sociedade que seguia a
via do espírito. Eu ainda não sabia muito sobre eles. Será que eles eram
assim tão fortes?
Pelo menos eu já havia me tornado Saos e atingido meu primeiro
estado alterado. Mau havia me proibido de meditar por um tempo, mas
eu só tinha uma semana para aprender a estabilizar os meus novos
poderes, que eu ainda nem mesmo sabia quais eram.
Eu senti que topei com alguma siddhi na minha mente naquele dia
que atraí Sol. Eu me perguntava se seria capaz de reencontrá-la.
No final do dia, Yago veio conversar comigo.
– Sol enviou uma mensagem para você pelo meu e-mail – ele me
avisou.
Curiosa, li o e-mail de Sol:

Caro Yago (a-há! Agora lembrei seu nome!), eu tenho um recado para aquela
menina que acidentalmente me evocou. Como sabe, eu tenho poderes especiais e sei que
você está perto dela e tem um computador. Então apenas mostre a ela o que escrevi.

Cara menina,

Não sei o seu nome e não tenho vontade de usar meus poderes para descobrir.
Eu gostaria de te convidar para o casamento. No fundo, foi por sua causa que
tive a oportunidade de forçar Mau a aceitar se casar com Terra, então eu queria te
recompensar.
Mas a sua recompensa será mais do que um convite para nossa festa. Eu tenho
uma proposta.
Não irei falar dela por aqui, porque sei que Yago vai ler. Sendo assim, chegue um
pouco mais cedo na festa para conversarmos.

325
Wanju Duli

Não se preocupe, ninguém vai te machucar.

Gentilmente,

Sol

Yago me alertou.
– Não caia nessa conversa – disse Yago – os Deuses podem te
oferecer qualquer coisa: riqueza, poder, fama, até vida eterna.
– Então... por que eu não aceitaria? – perguntei a ele.
– Você mesma precisa encontrar essa resposta – Yago deu um sorriso
gentil – eu sugiro que em vez de treinar você use essa semana para
pensar naquilo que você acha que realmente importa na sua vida.
Eu caminhei por um tempo sozinha no acampamento, fitando o
horizonte. O Sol vermelho começava a se pôr.
O que eu mais valorizava na minha vida?
Família? Amigos? SSC? Lealdade? Paz? Amor? Justiça? Felicidade?
Liberdade? Verdade...?
Eu havia sido tentada por muitas coisas durante aqueles longos meses
de treinamento. Mas eu não voltei atrás. Até que finalmente consegui me
tornar Saos.
Eu jamais permitiria que um Deus arruinasse meu esforço.
Poderia parecer um esforço pequeno e insignificante aos olhos dos
outros. Mas para mim era importante. E só por isso eu insistiria em lutar
por aquilo que eu acreditava.
Os Deuses eram mais fortes. Eram mais sábios. Eles estavam certos.
Mas eu não era uma Deusa. Eu era humana. Aprendi a viver de um
jeito. Não era uma maneira perfeita de viver. Mas era especial o bastante,
porque pessoas especiais me ensinaram.
Meus pais. Meus irmãos. Meus amigos. Meus mestres.
Mau era semi-Deus e optou viver como humano. Devia haver algo de
muito importante na nossa vida. Algo que superava a supremacia divina.
Pensei em Irene. Foi então que me lembrei de uma coisa essencial.
– É claro...! Como não me dei conta?
Eu já sabia o que precisava fazer.

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Sociedade do Sacrifício

FIM DO LIVRO 1

(CONTINUA NO LIVRO 2)

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