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Encontro

R E V I S T A Ano 29 - Número 24 - 2013

Revista do Gabinete Português de Leitura de Pernambuco

RTUGUÊS D
PO E
E
ET

LE
GABIN

ITU
RA
2 SUMÁRIO

EDITORIAL

A palavra do Presidente 04
Apresentação
05
ARTIGOS

1. Um só fradique mendes em duas versões portuguesa e angolana.


Amara Cristina de Barros e Silva Botelho 06
2. Ilhas desconhecidas ou: do diálogo retomado. Geração pós-Saramago desembarca no
Brasil.
Sandro Ornellas / Gabriela Fernandes
12
3. Mensagem : a tensão épica na linguagem
Sherry Almeida 20
4. No tabuleiro do mundo: inserções neerlandesas no cenário ultramarino português e um
pouco da história do capitalismo batavo
Rômulo L. X. Nascimento
30
5. Os perfis femininos em o alegre canto da perdiz, de Paulina Chiziane
Amanda Siqueira do Nascimento / Amara Cristina de Barros e Silva Botelho 39
ENSAIOS

50
1. Fernando Pessoa, o tal do “Fingidor”: no palco da dramaturgia contemporânea
Renata Pimentel

54
2. O Cavalo Noturno no Espaço Vivificador e no de Mortificação
José Jacinto dos Santos Filho

RESENHA
R E V I S TA E N C O N T R O S

José Rodrigues Paiva


59
EXPEDIENTE 3

Encontro Conselho Editorial Direitos Autorais


Revista de Lusofonia e Cultura Alexandre Furtado de A. Corrêa É permitida a reprodução
do Gabinete Português de Alfredo Morais Antunes parcial desta revista desde que
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Ano 29 José Rodrigues Paiva A reprodução total depende da
Número 24 - 2013 Maria de Lourdes Hortas autorização da revista.
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José Lopes da Costa Phelippe Rave artigos, ensaios, resenhas
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Diretor Cultural - Projeto e Design gráfico - de Pernambuco, recebendo
George Félix Cabral de Souza Bruno Falcone Stamford contribuições de convidados,
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Rosa Maria C. Martins Alexandre Furtado escritores, pesquisadores
Diretora Social - e demais interessados.
Maria Lencastre M. Cruz Informações Gerais Notoriamente, a Encontro
Vice Diretor Social - Circulação : anual vem, desde o primeiro volume,
Alexandre Souza R. de Melo Tiragem: números buscando estabelecer o diálogo
Diretor de Patrimônio - Número de páginas entre múltiplos saberes, numa
João Jorge Marinho Tempo de existência - perspectiva não somente
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Vice Diretor de Patrimônio - a partir de junho de 1983 literária, mas multidisciplinar.


David F. da Silva
Diretor Editorial -
Alexandre Furtado A. Corrêa
4 A PALAVRA DA PRESIDÊNCIA

C
om o intuito de reunir a comunidade por- tas, alunos, escritores e associados com interesse
tuguesa em Recife, para além das datas comum e entusiasmo pela programação, havendo,
comemorativas e demais festividades, foi ao final, vinho alentejano e um grupo de fado. A
criado no século XIX o Gabinete Português de festa dos 163 anos do GPL reafirmou sua força e
Leitura. Desde então, o GPL afirma-se enquanto vocação em ser um centro de conhecimento, pre-
espaço difusor de cultura, pelas conferências e se- servando as tradições e a relação entre as culturas
minários oferecidos aos membros e à sociedade, ou luso-brasileira.
pelas constantes exposições de fotografias, livros e Além das atividades acima referidas, o Gabinete
pinturas. Mais recentemente, a projeção de filmes Português edita anualmente a Revista Encontro. A
portugueses vem oferecendo ao público recifense revista tem contribuído ultimamente para divulgar
uma atividade cultural de alto nível. O Cineclu- textos literários, estudos sobre narrativas portugue-
be Gabinete exibiu no mês de novembro o docu- sa e brasileira, além de outros assuntos. O presente
mentário José e Pilar, do diretor Miguel Gonçalves volume traz aos leitores um conjunto de artigos e
Mendes, sobre o escritor José Saramago, ganhador ensaios sobre literatura e história.
do Prêmio Nobel da Literatura. Após a projeção, o Finalmente, desejamos a todos uma boa leitu-
diretor do documentário esteve presente para uma ra, aproveitando o momento, para agradecer aos
conversa sobre o escritor e sua obra. autores e a todos que colaboraram para mais uma
Nesse ano, outra alegria para Gabinete, sua edição da revista.
presença na Bienal do Livro de Pernambuco, em
parceria com a UPE – Universidade de Pernam- Atenciosamente
buco e o IAHGP – Instituto Arqueológico Históri- Antônio José Bastos de Almeida
co e Geográfico Pernambucano. No dia reservado Presidente
para a cultura portuguesa, compareceram ao Café Celso Stamford Gaspar
Contexto na Bienal do Livro pesquisadores, artis- Vice-presidente

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APRESENTAÇÃO 5

C
om grande satisfação, o Gabinete Português partir da construção crítica das personagens femi-
de Leitura retoma as atividades editoriais e ninas, a situação da mulher africana. No conto Os
lança mais um volume da Revista Encontro, cavalos noturnos, estruturado de forma labiríntica,
com artigos, ensaios e resenhas. da escritora Teolinda Gersão, aspectos existenciais
Contamos inicialmente com um artigo que tra- de uma mulher cujo marido possui apenas três me-
ta dos romances A correspondência de Fradique ses de vida, serão trazidos ao leitor como reflexão
Mendes, de Eça de Queiroz e Nação Crioula de José sobre a vida e seus sentidos. A personagem, em so-
Eduardo Agualusa, na perspectiva de entender a nho, monta no dorso de um cavalo e resiste ao fim,
construção do sujeito ficcional por autores inseridos ao medo da morte. Ainda, a Encontro conta com
em tempos diferentes. Ainda, a revista traz um tex- uma resenha sobre o livro, Saudade e profetismo
to que reflete, entre outras coisas, as relações entre em Fernando Pessoa, do professor Alfredo Antunes,
a literatura portuguesa no Brasil, sob figura da ilha escrita pelo poeta, crítico e professor de Literatura
desconhecida, elaborada pelo escritor ganhador do Portuguesa José Rodrigues Paiva.
Nobel de Literatura, José Saramago. No âmbito histórico, será abordado a presença
O poema épico Mensagem do poeta Fernando holandesa no cenário ultramarino português, levan-
Pessoa será abordado em estudo que mostrará as do em conta o capitalismo independente dos Países
antíteses e os paradoxos a partir da releitura da his- Baixos, a influência do Império Espanhol e a Con-
tória e do mito. Ainda em Pessoa, será apresentado tra- Reforma.
em ensaio sobre a relação entre a poesia e sua possi- Resta-nos finalmente desejar a todos uma boa
bilidade de encenação, “O Fingidor”, suas personas leitura.
e implicações da dramaturgia contemporânea.
A obra da moçambicana Paulina Chiziane será Alexandre Furtado
analisada - O alegre canto da perdiz – pensando, a Editor
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6 ARTIGO

UM SÓ FRADIQUE
MENDES EM DUAS
VERSÕES PORTUGUESA
E ANGOLANA.
Amara Cristina de Barros e Silva Botelho (UPE/MATA NORTE)

Resumo:

O
objetivo da leitura crítica dos romances A correspondência de Fradique Mendes de Eça de Queiroz
e Nação Crioula de Agualusa é realizar uma abordagem comparativista e intertextual que retrate
à visão da personagem de Eça de Queiroz resgatada por José Eduardo Agualusa, romancista an-
golano. Ambas as narrativas apresentam linguagem, ideologia e cosmovisão de um mesmo sujeito ficcional,
mas elas divergem por se tratar de criações de autores de culturas diferentes. Para realização da análise
proposta, tomaremos por base os conceitos de Literatura Comparada de Brunel, Pichois e Rousseau. Quan-
to à intertextualidade serão seguidos os conceitos de Gerard Genette e Julia Kristeva, dentre outros.

Palavras-chave: Romance. Personagem. Africanidade.


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ARTIGO 7

Introdução Consoante Brunel, Pichois e Rousseau, a Os


estudos comparativos vêm revisar os estudos das
Neste trabalho, pretendemos realizar a aná- influências e das fontes, uma vez que:
lise de duas obras, uma de Agualusa e outra de
Eça de Queiroz, do primeiro, Nação crioula e do As influências propriamente ditas podem ser
segundo A Correspondência de Fradique Mendes. definidas como mecanismo sutil e misterioso pelo
A realização desta tarefa significa debruçarmo-nos qual uma obra contribui para dela fazer nascer
sobre uma mesma personagem, mas apresentada uma outra (o mistério está aliás envolto no senti-
em perspectivas completamente distintas, pois en- do antigo da palavra “influência”).
quanto o escritor angolano cria uma obra de iden-
tidade linguístico cultural crioula, assumindo a Apesar de Bakhtin não ter utilizado o termo
concepção de uma Angola híbrida e desterritoria- intertextualidade, a base dos estudos inter-rela-
lizada, percebida por um português que se sente cionais entre textos diversos está no dialogismo.
africano, Eça de Queiroz defende, recupera e faz Portanto, na esteira de Bakhtin, afirma Julia Kris-
permanecer os traços culturais do país colonizador, teva (1974, p. 64): “Todo texto é absorção e trans-
quando da criação de sua personagem. formação de uma multiplicidade de outros textos”,
Para atingirmos os objetivos propostos, isto é, logo a intertextualidade seria esse trabalho cons-
comparar a produção de Agualusa com a daquele tante de cada texto com relação a outros textos
a quem ele resgata, seguiremos os preceitos teóri- – o imenso e permanente diálogo entre obras que
cos da intertextualidade e da Literatura Compa- constitui a literatura.
rada. De acordo com o modo de a intertextualidade
se realizar, denominamo-la de explícita ou implí-
cita. A intertextualidade é explícita quando o texto
Literatura Comparada e Intertextualidade deixa clara a relação com o texto anterior, isto é, o
texto novo apresenta o velho de modo direto, in-
A intertextualidade e os estudos comparativos tencionalmente expresso; é implícita quando o tex-
são aspectos teóricos indissociáveis, pois se esta- to anterior é absorvido pelo novo de tal modo, que
belecer elos entre uma obra e outra é atitude que não há, na produção nova, a intenção de expli-
comprova o comparativismo, portanto integra o citá-lo, ocorre um certo apagamento da escritura
âmbito da Literatura Comparada, o resgate que primeira na segunda, no dizer de Genette (1982),
se detecta existir entre um texto mais recente de espécie de palimpsesto. Nesse caso, o reconheci-
outro que o antecede, por sua vez, podemos deno- mento do texto mais antigo torna-se inteiramente
minar de intertextualidade, logo só podemos de- dependente das leituras pregressas do leitor, pois
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tectar semelhanças e divergências se realizarmos se dá a fusão do discurso novo com o que é por ele
uma relação comparativa entre as duas obras. evocado. Tal tipo de transtextualidade1 ocorre na

1 - Termo para designar todo e qualquer elemento que põe em relação um texto com o outro, cf. Gérard Genette em
Palimpseste: la littérature au seconde degré. Paris: Éditions du Seuil, 1982.
8 ARTIGO

crítica realizada no interior da escritura romanes- e autárquica. Substitui, porém a designação da


ca, porque os comentários críticos não se fazem última forma de intertextualidade, porque reco-
pelos parâmetros tradicionais, mas integram-se nheceu que o termo autotextualidade, criado ante-
ao discurso literário. riormente por Gérard Genette, guardava a mesma
A esses diferentes índices das relações inter- acepção daquela, no início chamada autárquica.
textuais, isto é, aos índices de transposição de um Segundo Dällenbach (1979, p. 52), a intertex-
texto a outro, Laurent Jenny (1976) chama de in- tualidade geral, diferentemente da restrita, que
tertextualidade implícita ou explícita. Segundo o ocorre quando há o diálogo entre textos do mes-
mesmo autor, as formas explícitas presentificam- mo autor, designa o diálogo entre textos de autores
-se ora tipograficamente, por meio de aspas, itáli- diferentes, já a autotextualidade “circunscreve-se
cos, parênteses, ora por índices semânticos, nome pelo conjunto das relações possíveis de um texto
do autor, título da obra, nome do personagem consigo mesmo.”
que remeta, com clareza, à obra. Já as formas im- Na verdade, as posições dos teóricos, acima ex-
plícitas requerem interpretação e têm esta como pressas, comprovam que os conceitos de influência,
condição necessária, por serem fundadas por uma intertextualidade e Literatura Comparada estão
escritura oblíqua. Nelas o comando da interpreta- intimamente ligados, uma vez que todas as três
ção do intertexto é, na maioria das vezes, exercido designações são inerentes a mesma ideia: relação
pela estratégia de significação própria à escritura. entre textos.
As obras, alicerçadas na dissimulação e na revela- Os estudos comparativos se renovaram a partir
ção, exigem do leitor a descodificação do intertexto dos novos conceitos de Literatura Comparada e de
para explicar-lhe o sentido escondido. Intertextualidade, pois o primeiro se preocupa com
Como se sabe, o diálogo entre textos pode ser o traçado das relações de semelhança e divergên-
interno e externo. No primeiro caso, temos a intra- cias em todos os planos da construção artística e o
textualidade, que ocorre no interior da produção segundo dá conta dos resgates que um texto faz de
de um mesmo escritor e entre uma obra e outra, ou, outros. Neste sentido, o que Agualusa faz em Na-
de modo auto-reflexivo, como metalinguagem, no ção Crioula ao retomar o personagem queroziano,
interior de um mesmo texto. Já a intertextualidade impondo-lhe uma versão cultural nova, permite
externa ocorre no diálogo entre produções de es- com base nas teorias acima expressas, uma leitura
critores diferentes. Cremos que a terminologia ora crítica com base nos conceitos de transposição e
utilizada equivale à usada por Lucien Dällenba- assimilação inerentes à intertextualidade isolite-
ch (1979) em Intertexto e autotexto. Dällenbach, rária e por consequência insere-se nos estudos da
ao teorizar sobre mise en abisma2, distingue três Literatura Comparada.
formas de intertextualidade, as quais são determi- Para Agualusa, em Nação Crioula, a África não
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nadas pela autoria dos textos dialogizantes. Ele tem fronteiras, nem com Portugal, nem com o Bra-
as denomina de intertextualidade geral, restrita sil. Na obra de Agualusa, a África é vista, quase

2 - Termo usado, conforme DÄLLENCACH, Lucien em Intertexto e Auto Texto. IN: Intertextualidade, Revista Poétique,
Coimbra: Almedina, 1979, para designar um enunciado cuja condição de emergência é fixada por duas determinações
mínimas: sua capacidade de reflexão e seu carácter diegético ou metadiegético.
ARTIGO 9

exclusivamente, pelos olhos de Fradique Mendes, tor português e 25 do angolano, havendo também
personagem criada por Eça de Queiroz, no século em ambos um destinatário comum que é Madame
XIX, que é resgatada pelo escritor africano, num de Jouarre, madrinha de Fradique Mendes.
romance epistolar, em que as relações afro-brasi- Apesar do resgate explícito que Agualusa reali-
leiras são definidas principalmente pelo tráfego de za de A correspondência de Fradique Mendes, há
africanos para o Brasil. entre as duas obras, um certo afastamento que re-
Esta temática já se faz notar no título dessa co- sulta das diferentes percepções do continente, da
letânea romanesca constituída por 26 cartas, cujo cultura , da etnia e até da paisagem, pois o perso-
título, segundo José Eduardo Agualusa, Nação nagem de Eça, que tinha em torno de cinquenta
crioula, seria a designação do último navio de co- anos, ao ser solicitado, pelo amigo sobre a pos-
mercialização de africanos, que partiu de Angola sibilidade de escrever acerca da viagem que fez à
para o Brasil. África, laconicamente, responde: “- Para quê?...
Portanto, os acontecimentos narrados ocorrem Não vi nada na África, que os outros não tivessem
ainda no século XIX, época anterior à indepen- já visto.” (QUEIROZ, 1999, p. 104).
dência das colônias portuguesas na África e têm A colocação da personagem eciana denota um
como narrador o personagem criado por Eça de certo desinteresse pela África, bem diferente do
Queiroz, Fradique Mendes, o qual é o remetente que acontece com o Fradique Mendes de Agualusa
de 25 das 26 epistolas que constituem o romance. que, aos oitenta anos, já alquebrado e doente, de-
A única que lhe não pertence tem por remetente monstra uma atenção maior pela realidade das co-
Ana Olímpia, africana por quem Fradique Mendes lônias portuguesas, Brasil e Angola, principalmen-
se apaixona. Os destinatários das cartas do ilus- te, no que respeita ao território angolano. Assim,
tre, português, em Nação Crioula, são: Madame de em carta a Madame de Jouarre, sua madrinha, ao
Jouarre, sua madrinha, o romancista Eça de Quei- chegar em Luanda, descreve sinestesicamente, a
roz e Ana Olímpia. A única carta cujo remetente é cidade como sendo detentora de um odor peculiar:
Ana Olímpia, está dirigida a Eça de Queiroz, cria-
dor de Fradique Mendes, cuja finalidade é relatar Respirei o ar quente e úmido, cheirando a fru-
a morte do homem amado e tecer considerações tas e a cana-de-açúcar, e pouco a pouco comecei
sobre os acontecimentos que os uniu. a perceber um outro odor, mais subtil, melancó-
É interessante atentarmos para o fato de que lico, como o de um corpo em decomposição. É a
há entre Nação Crioula, do escritor angolano e A este cheiro, creio, que todos os viajantes se refe-
Correspondência de Fradique Mendes, do portu- rem quando falam de África. (AGUALUSA, 2001,
guês Eça de Queiroz, uma forte relação intertex- p. 11).
tual, vez que ambos são romances epistolares, que
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têm Fradique Mendes como personagem, emissor O odor de decomposição, não se refere apenas
ou remetente das cartas, que são 16 na obra do au- aos aspectos físicos da cidade, mas diz respeito so-
1 0 ARTIGO

bre tudo à percepção que o personagem de Agua- Olímpia, nas demais cabe a Fradique Mendes o
lusa tem da ideologia daqueles que representam o papel de observador luso que envia a madrinha e a
poder econômico de Luanda, pois ainda na mesma Eça de Queiroz cartas, nas quais transmite a visão
carta à madrinha diz: que tem de Angola e do Brasil. Além de tratar das
questões inerentes ao tráfico de africanos na rota
Já compreendeu, querida madrinha, como fez do Atlântico Sul.
fortuna o senhor Armênio de Carpo? Precisamente: Além de Eça de Queiroz, há outras personalida-
comprando e vendendo a triste humanidade. Ou, des reais que se juntam às criações fictícias, dan-
como ele prefere dizer, ‘contribuindo para o cres- do ao romance um tom de veracidade e realidade,
cimento do Brasil”. Ainda hoje, acredita no que se próprias dos romances históricos. No Brasil, por
comenta em Luanda, continua a trabalhar para o exemplo, José do Patrocínio, abolicionista, junta-
crescimento do Brasil. ‘Os ingleses nunca me hão- mente com o poeta Castro Alves são referenciadas
-de ver de joelhos’, assegurou excitado quando lhe na obra de Agualusa.
perguntei se persistia na colônia o tráfico negreiro. Outra personagem de Nação Crioula, Ana
(AGUALUSA, 2001, p. 13). Olímpia é uma jovem negra filha de um prínci-
pe do Congo, que se casa três vezes. A primeira
Já no que se refere ao espaço, no qual as cartas com um traficante de escravos. Após a morte desse,
são escritas são comuns nos dois textos, as cidades contrai novas núpcias com Carlos Fradique Men-
de Lisboa e de Paris. As demais referências espa- des, ficando mais uma vez viúva e encontrando-se
ciais são: Quinta de Refaldas, em A correspondên- no Brasil, resolve voltar a Angola com a filha e lá
cia do Fradique Mendes criado por Eça de Queiroz, chegando, casa-se pela terceira vez com um amigo
Luanda, Benguela, Novo Redondo, Olinda, Enge- do último marido.
nho Cajaíba, Rio de Janeiro e Quinta de Saragoça, Note-se que ao voltar do Brasil, seus compa-
locais dos quais a personagem de Agualusa envia triotas já não a reconhecem como angolana, pois
suas cartas.. Há, portanto, em A Correspondên- esquecem sua origem e a nomeiam de a brasilei-
cia de Fradique Mendes portuguesa dois países ra. Este fato com certeza é um artifício usado por
dos quais são endereçadas as cartas, enquanto as Agualusa para analisar o ser híbrido e fronteiriço
correspondências da personagem angolana são re- que perdendo a identidade, já não mais se encon-
alizadas, quando a mesma se encontra em Angola, tra, dado que no Brasil é reconhecida como ango-
na França, em Portugal, no Brasil. Quanto à época lana e em Angola é tomada por brasileira. Trata-se,
em que as personagens de Eça de Queiroz e de portanto, de uma perda dos traços identificatórios
Agualusa viveram, evidentemente, que é a mesma, de uma única cultura, de uma só nação e que com-
século XIX. provam exatamente a noção de que Nação crioula,
R E V I S TA E N C O N T R O S

O romance de Agualusa tem início, com a pri- título do livro de Agualusa, não é apenas a desig-
meira carta datada de 1868, enquanto na criação nação do último navio de tráfego negro do Atlânti-
do escritor português, apesar das cartas não se- co Sul, mas a denominação de uma nova nação de
rem datadas, na primeira parte do livro, quando o natureza híbrida, em que seus integrantes já não
amigo e editor se refere à época em que conheceu são portugueses, brasileiros e africanos, mas criou-
Fradique Mendes, registra o ano de 1867. los, ou seja, as três nacionalidades encontram-se
Das 26 cartas que compõem Nação crioula, cultural e etnicamente fundidas.
uma apenas, a última, tem por remetente Ana Assim, podemos concluir que Nação Crioula
ARTIGO 11

resgata o gênero epistolar e a personagem Carlos ria Nazareth Soares Fonseca afirme:
Fradique Mendes de Eça de Queiroz, tornando o Tirada desse contexto a personagem de Eça de
romancista português um dos destinatários das Queiroz adquire, no romance angolano, uma fei-
cartas das personagens Fradique Mendes e Ana ção híbrida, ainda que não tenha sido alterada a
Olímpia. cor de sua pele. O romance de Agualusa, ao exibir
Em Nação Crioula tudo é mestiço, pois o autor um processo de invenção tão válida quanto o tex-
parece ter por objetivo representar o que os ango- to de que se apropria, é também testemunho de
lanos denominam de fronteiras perdidas, tirando outros modos de se registrar o mundo e é com a
partido por se encontrar na fronteira e com isso intenção evidente de brincar com a história e com
constituindo suas personagens como seres que a literatura de feição nacionalista que o roman-
aceitam a condição de culturalmente híbridos. ce coloca-se no limite entre invenção e registro.
É esse hibridismo que corrobora para que Ma- (FONSECA, 2007: p. 1)

Referências Bibliográficas

AGUALUSA, José Eduardo. Nação Crioula. A correspondência secreta de Fradique Mendes. Rio de Janeiro: Gryphos, 2001.
FONSECA, Maria Nazareth Soares. Fradique Mendes nas rotas do Atlântico Negro. Site:www.ich.pucminas.br
FONSECA, Maria Nazareth Soares. Fradique Mendes nas rotas do Atlântico Negro. Site:www.ich.pucminas.br
BERND, Zilá, LOPES, Cícero Galeno. (Org.) Identidades e estéticas compósitas. Canoas: Centro Universitário de Salle, Porto
Alegre, 1999.
BOTELHO, A.C.B. S.O cão e os caluandas: um penetrar na Literatura Angolana. Cadernos FAFIRE. v.3, p.27 - 31, 2004.
DÄLLENBACH, Lucien. Intertexto e autotexto. In: Poétique, n. 27, Coimbra: Almedina, 1979. p. 51-76.
R E V I S TA E N C O N T R O S

GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa. Lisboa: Arcádia, 1979.


. Palimpseste: la littérature au seconde degré. Paris: Éditions du Seuil, 1982.
. Introdução ao Arquitexto. Trad. Seixos, Maria Alzira. Lisboa: Veja Universidade, 1986.
JENNY, Laurent. A Estratégia da Forma. In: Poétique. Coimbra, n. 27, p. 05–21, 1979
KRISTEVA, Julia. Introdução à semánalise. São Paulo: Perspectiva, 1974. a
. La revolucion du langage poétique. Paris: Seuil 1974. b.
MADRUGA, Elisalva. Nas trilhas da descoberta. João Pessoa: Editora Universitária, 1998.
PANTOJA, Selma e SARAIVA José Flávio Sombra.(org.) Angola e Brasil: nas rotas do Atlântico Sul. Rio de Janeiro, Bertrand
Brasil, 1999.
12 ARTIGO

ILHAS
DESCONHECIDAS
OU: DO DIÁLOGO
RETOMADO. GERAÇÃO
PÓS-SARAMAGO
DESEMBARCA NO
BRASIL.
Sandro Ornellas 1
Gabriela Fernandes 2

A leitura anunciada [...] pode ser uma tentativa de pôr a velha questão da língua portuguesa, a dividir
irmãos transatlânticos, em novos termos de discussão, quer dizer, de pôr noutros termos o diálogo
interrompido.
R E V I S TA E N C O N T R O S

Jorge Fernandes da Silveira, O Tejo é um rio controverso (p. 66).


ARTIGO 13

1
.“E que ilha desconhecida é essa que que- Queiróz, Florbela Espanca, Fernando Pessoa, So-
res ir à procura? Se eu to pudesse dizer, phia de Mello Breyner Andresen, cada um em sua
então não seria desconhecida”3. época, assim como tantos outros, passaram pelos
E assim, na tentativa de navegar por mares des- leitores brasileiros deixando admiradores e desafe-
conhecidos, portugueses desembarcam novamente tos, passeando por leituras obrigatórias escolares e
no Brasil. O percurso, no entanto, não passa mais meros deleites, como acontece com qualquer gran-
por caravelas, naus e o mar-oceano. Agora, a porta de autor. Assim também, os romancistas e poetas
de entrada se dá através da mídia e de edições. Para do alto modernismo brasileiro – de Jorge Amado
os novos escritores portugueses, o Novo Mundo de e Clarice Lispector a Carlos Drummond e João
hoje é o mercado editorial brasileiro. Mas o que traz Cabral – ainda são muitíssimo lidos e admirados
esses autores para nossos mares é uma intenção di- em terras lusitanas. Jorge Amado, inclusive, aju-
reta de encontrar novas terras ou é, mais uma vez, dou com a publicação no Brasil, entre as décadas
um dito pretexto para chegar às Índias? Em outras de 50 e 70, de vários romancistas do neorrealismo
palavras: os novos escritores portugueses publica- português influenciados por ele, Graciliano Ramos,
dos no Brasil representam um fortalecimento das Rachel de Queirós, dentre outros. Isso sem falar da
relações lusófonas ou são a mera consequência das Bossa Nova, que fez a cabeça dos portugueses, as-
tendências de uma literatura e um mercado edito- sim como Caetano Veloso, Chico Buarque e Maria
rial cada vez mais globalizados? Quais são os me- Bethânia, ainda popularíssimos por lá.
canismos que fazem com que as recentes relações No entanto, um ponto faz com que pensemos
literárias Brasil-Portugal se estreitem? Qual o es- que essa relação – principalmente no que tange ao
paço da literatura portuguesa no mercado editorial caminho de vinda, que se encontrava esmaecido há
brasileiro? algumas décadas – tenha se repotencializado no sé-
Se existe um elo que aproxima as culturas por- culo XXI. E esse ponto justamente se inicia após as
tuguesa e brasileira, sem dúvida que passa pela publicações de José Saramago, especialmente nos
língua. Ela permite, dentre outras coisas, a socia- anos que sucederam 1998, ano do Nobel de Lite-
lização das respectivas literaturas. Se por afinidade ratura para o português. É daqui que partiremos,
cultural ou por mera comodidade editorial (levan- não pretendendo responder todas as demandas que
do-se em conta que sempre existe alguma economia certamente aparecerão, mas propondo mapear a
ao pensarmos em custos com tradução, por exem- ponta do iceberg do cenário editorial brasileiro no
plo), a interlocução entre autores desses dois países que tange aos escritores portugueses contemporâ-
vem acontecendo de formas variadas desde o século neos. De alguma forma, os brasileiros estão “desco-
XIX. Em diferentes momentos, um país influenciou brindo” e sendo “(re)descobertos” pelos recém-che-
o outro com sua arte. Desde o século XVII, com- gados autores portugueses. Discutiremos um pouco
R E V I S TA E N C O N T R O S

partilhamos do afeto de/por Antônio Vieira, que foi como esses escritores ganham prateleiras e leitores
de certa forma filho dos dois solos; Garrett, Eça de no Brasil e quais alguns dos signos que nos fazem

1- Professor de Literatura na Graduação e Pós-Graduação no Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
2- Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura (PPGLitC) no Instituto de Letras da Universidade
Federal da Bahia (UFBA) e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB).
3- Todos os subtítulos foram retirados do livro O conto da ilha desconhecida, de José Saramago (1998).
1 4 ARTIGO

afirmar que esse “desembarque literário” tende a dá, dentre outras coisas, porque o cenário literário
aumentar a cada dia. luso é mais “tenso” e “ácido”, ao contrário da ca-
maradagem que reinaria no Brasil. Apesar de gastar
2.“Gostar é provavelmente a melhor forma de linhas numa comparação cujo real sentido é menos
ter, Ter deve ser a pior maneira de gostar”. o de elogiar autores portugueses contemporâneos e
Em quais outros contornos brasileiros encon- mais o de criticar os autores brasileiros, essa mes-
tramos vestígios portugueses? O maior ensaísta ma matéria apresenta alguns dos novos nomes da
português, Eduardo Lourenço, no artigo Portugal- literatura portuguesa e tenta delinear as tendências
-Brasil: um sonho falso e um único sonhador, expõe e/ou características dessa geração. Tentativa sem
seu ponto de vista a respeito da relação Portugal- êxito, já que a conclusão é muito simples: entre eles
-Brasil, chegando a afirmar que Portugal desapa- há muito pouco em comum. E esse sim é um traço
receu do imaginário brasileiro há quase um século: típico da escrita literária na contemporaneidade.
“No Brasil, Portugal está em todo lado e em lado Por outro lado, esse tipo de comparação críti-
nenhum” (2001, p. 158). Se política e economica- ca já vinha sendo muito comum também do lado
mente os dois países travam relações que no fundo português. A partir da década de 1990, os portu-
são mutuamente indiferentes e desimportantes, nas gueses se depararam com dois fenômenos: a grande
artes nutrem uma ambígua admiração mútua em imigração de brasileiros fugidos da crise econômica
função da história de diálogos anteriormente esbo- para suas terras4 e a crescente influência de certa
çada. Recentemente, também, existiu a sensação política-cultural brasileira5 . No primeiro caso, in-
geral de que as manifestações artísticas brasileiras dicamos o livro organizado por Igor José de Renó
eram mais facilmente recebidas nas terras lusitanas. Machado, Um mar de identidades: a imigração bra-
Essa assertiva, no entanto, vem sendo questionada sileira em Portugal (2006), que desenha um amplo
no novo século. painel das tensões no mercado de trabalho6 e dos
Numa matéria publicada na revista Época, em estereótipos construídos nas últimas décadas com a
2011, intitulada Os donos do português e assina- imigração. No segundo caso, remetemos para uma
da por Luís Antônio Giron e Danilo Venticinque, os declaração do escritor e jornalista português Miguel
autores contemporâneos portugueses são compa- Sousa Tavares em um texto por volta das Comemo-
rados aos brasileiros e a superioridade estética dos rações dos 500 Anos do “Descobrimento” do Brasil.
primeiros é exaltada. Os jornalistas afirmam: “a li- O texto, intitulado Desculpem lá o Cabral, não se
teratura brasileira derrapa, enquanto uma nova ge- ocupa só de maldizer a postura dos brasileiros em
ração de autores portugueses ocupa as prateleiras, relação ao seu ex-colonizador, mas aproveita para
seduz a crítica internacional, arrebanha leitores e criticar a nostalgia e o mito do grande império que
deixa os ficcionistas brasileiros a ver navios” (2011). ainda é cultivada por alguns portugueses. Dentre
R E V I S TA E N C O N T R O S

Nessa mesma matéria os dois jornalistas ainda as- muitas alfinetadas, declarou:
seguram que a maior qualidade dos portugueses se Tal como vejo as coisas, há duas atitudes habi-

4 -Isso é exemplarmente representado no filme Terra estrangeira (1995), de Walter Salles e Daniela Thomas.
5 - Por “uma certa política-cultural brasileira”, referimo-nos à exportação pela indústria cultural de entretenimento brasileira das
telenovelas da Rede Globo e de alguns cantores nacionais, particularmente os da nova música baiana, como Netinho, Daniela
Mercury e Ivete Sangalo, que conseguiram fazer muito sucesso, tanto entre imigrantes brasileiros quanto entre portugueses.
ARTIGO 15

tuais do lado de cá, e ambas são causa de ilusões: desembarcar literário sugerido por esse trabalho. A
uma, é a tal nostalgia imperial, que talvez seja uma começar por António Lobo Antunes, contemporâ-
fatalidade de quem algum dia foi império, e que, neo e “rival” direto de Saramago na predileção dos
na prática se traduz em alguns desejos tidos como leitores; Herberto Helder, com sua poesia hermética
verdades de todos os tempos, tais como a ficção do e obscura; Sophia de Mello Breyner Andresen e sua
“país irmão” ou na presunção de que os brasilei- coletânea de poemas editados por aqui, dentre ou-
ros, só porque falam a mesma língua, hão de gos- tros de grande peso.
tar tanto de nós quanto nós gostamos deles; outra No entanto, são os novíssimos nomes que nos
é uma subserviência institucional perante o Brasil, interessam nesse momento: Inês Pedrosa, o próprio
da parte de alguns “abrasileirados” oficiosos. (TA- Miguel Sousa Tavares, Gonçalo M. Tavares, valter
VARES, 2000) hugo mãe, João Tordo e José Luís Peixoto. Os qua-
tro últimos, mais jovens, porém não menos madu-
Completa Tavares, confirmando de alguma for- ros, são conhecidos como “consagrados de fresco” e
ma a tese de Eduardo Lourenço: “não senti que na- são grandes responsáveis pela nova estética literária
quela fantástica civilização de cidades e praias hou- portuguesa. Todos são publicados no Brasil, alguns
vesse, fosse a que nível fosse, o mais leve vestígio reeditados, sucesso de crítica e de vendas. Autores
da nossa marca” (TAVARES, 2000), ressalvando as que escrevem nos mais diversos gêneros e que ga-
influências portuguesas na arquitetura do nordeste nham admiradores por fazerem parte de um “gru-
brasileiro. po” de escritores que versam sobre os mais diver-
sos temas e que possuem, cada qual à sua maneira,
3.“Um homem foi bater à porta do rei e disse- uma qualidade estética singular. No Poema raro, de
-lhe, Dá-me um barco”. Gonçalo M. Tavares, encontramos um traço dessa
Em meio às mais ou menos fugazes querelas geração e que podemos traduzir por um distancia-
dos artigos de opinião, aquele que se mostrou mais mento irônico com relação ao modo excessivamente
sintomático do que pretendemos apresentar neste intelectualizado, pelo qual, outras gerações lidaram
texto foi o intitulado “Brasil recolonizado”, do es- com o que há de humano na arte:
critor paranaense Miguel Sanches Neto. O texto so-
freu severas críticas na época em que foi publicado, Se o poema raro, não publicado,
em 2005, e nele o escritor se posiciona avesso ao se encontrasse escrito nos lençóis da maca,
que chama de “enchente de escritores” portugueses debaixo das costas do moribundo,
que começaram a aportar por aqui. No texto, San- o intelectual, informado de tal facto,
ches Neto lista nomes importantes dessa “invasão não hesitaria um segundo.
lusa”. Isentamos-nos do tom ácido adotado pelo empurraria o moribundo, se possível ligeiramen-
R E V I S TA E N C O N T R O S

escritor, mas nos valemos da seleção feita por ele te para o lado,
para apresentar os portugueses que dão corpo ao se necessário para o chão,

6 - Talvez a mais famosa tensão tenha sido a relativa aos dentistas brasileiros em Portugal, por volta de 1991, onde não
há formação superior específica em odontologia, dando-se como uma especialização de médicos. A portuguesa APMD, a
Associação Profissional de Médicos Dentistas, reclamou da imigração em massa desses profissionais.
1 6 ARTIGO

e com uma caneta entre os dedos, blicação do romance Equador (2003), livro que vi-
copiaria para o seu caderno preto rou best-seller e chegou a ser indicado como leitura
a preciosidade finalmente descoberta. (TAVA- obrigatória no vestibular de algumas universidades
RES, 2005, p. 147) brasileiras. Depois do grande sucesso de vendas
em terras brasileiras, viagens para divulgação e
Aí talvez se revele um pouco do modo como es- entrevistas, o autor escreve Rio das Flores (2008),
ses escritores articulam sua relação com a escrita romance ambientado em grande parte justamente
literária no “boom” editorial vivido por eles. Sua no Brasil. Nesse livro, Miguel Sousa Tavares tenta
postura se parece mais próxima do público em sua aproximar as realidades políticas de Portugal e do
humanidade do que com a de Mallarmé ao se re- Brasil em períodos ditatoriais de Salazar e Vargas.
ferir à banalização da escrita como um “bibelô de A narrativa conta a saga de uma típica família de
inanidade sonora”. Numa entrevista ao site Saraiva latifundiários do Alentejo que entre os anos de 1915
conteúdo em junho de 2010, Gonçalo M. Tavares e 1945 tenta escapar dos problemas políticos, eco-
diz que a “escrita não é sinônimo de publicação”. nômicos e do subsequente regime totalitário que se
Mas ele possui mais de 20 livros lançados em 10 instalou em Portugal. Sempre dando a seus livros o
anos (ele começou a publicar só em 2002) e, aos 35 ar sintomático de romance histórico, Sousa Tavares
anos, – dentre contos, poesias e romances – causou parece ter conseguido um lugar relativamente sóli-
grande rebuliço no cenário literário português. O do no circuito brasileiro. Além dos dois romances, o
que nos leva a crer o quanto essa sua declaração ao autor também teve publicado no Brasil seu livro de
site tem algo de forte (auto-) ironia. Vemos muitos crônicas, intitulado Não te deixarei morrer David
dos seus livros com lugar garantido nas prateleiras Crocket (2005). Todos por editoras de porte nacio-
das livrarias, não apenas nas brasileiras. Seguindo nal.
os passos de Saramago – que afirmou que Gonça- Talvez resida aí um ponto que tenda a estreitar
lo “não tem o direito de escrever tão bem apenas nossas relações literárias. A aproximação entre os
aos 35 anos: dá vontade de lhe bater!” – o jovem dois países sendo feita de formas tanto históricas
ganhou diversos prêmios e foi muito bem recebido quanto geográficas, já que alguns autores portugue-
e admirado entre leitores de todo o mundo (recen- ses adotam como cenário para suas histórias o solo
temente foi traduzido para o coreano!), inclusive brasileiro. Além de Miguel Sousa Tavares, outro li-
brasileiros nas suas muitas passagens por aqui para vro que possui tais características é A eternidade e
divulgar seus livros e participar de encontros literá- o desejo (2008), de Inês Pedrosa. Nesse romance,
rios. Em suma, diferentemente do intelectual cultor a aproximação se dá por conta da afeição literária
da raridade poética do seu poema, Gonçalo sabe que Clara – personagem principal do livro – tem
que, se “escrita não é sinônimo de publicação”, ela pelo padre Antônio Vieira. Partindo dessa ligação
R E V I S TA E N C O N T R O S

o é também, sobretudo em tempos tão fortemente e contando a história de uma mulher cega, A eter-
determinados pela indústria editorial e cultural. E nidade e o desejo passeia, as ruas de Salvador logo
faz disso seu maior charme. nas primeiras páginas. A edição do livro traz na
Outro nome que é preciso retomar é o do já cita- capa a imagem de uma igreja decorada com as fitas
do Miguel Sousa Tavares, que é colunista de jornal, do Senhor do Bonfim, símbolo da cultura e da in-
comentarista esportivo e publicou textos entre ro- dústria do turismo baiano. Em passagem do livro, a
mances e relatos de viagem. Ficou conhecido – aqui personagem afirma: “Conheço muito mais do Brasil
no Brasil e também em outros lugares – após a pu- do que a felicidade” (2008, p.17). O livro também
ARTIGO 17

discorre sobre a cultura local, a religião e a música produções e conta com mais de 52 milhões de usu-
baiana. Em determinado momento, a viagem pelo ários. Segundo o site, a empresa se descreve como,
Brasil de Vieira chega também ao Maranhão. Não “a companhia líder em criação e distribuição de
por acaso, esses são dois dos estados em que a pre- conteúdos culturais, educativos, de informação e
sença portuguesa ainda é marcante na paisagem entretenimento nos mercados de fala espanhola e
urbana dos centros históricos. Clara, a personagem, portuguesa, graças a sua oferta multicanal de pro-
cita diversas vezes artistas brasileiros como Caeta- dutos de máxima qualidade” (2013). A estratégia
no Veloso, Gilberto Gil e Millôr Fernandes, dentre é simples: por um lado, a Alfaguara ganha espaço
outros, mostrando que a autora portuguesa está no circuito brasileiro não só lançando os portugue-
bastante familiarizada com as produções brasilei- ses, mas também autores latino-americanos como
ras. Mário Vargas Llosa, por outro lado, lança literatura
Assim, por que não dizer que esse livro tem um em língua portuguesa nos países falantes da língua
“quê” de encomenda, um “quê” de “feito sob me- espanhola, como António Lobo Antunes e José Sa-
dida para leitores brasileiros”? Essa sensação pode ramago, que teve há pouco toda sua obra lançada
ficar ainda mais forte se compararmos esse livro numa nova coleção, inclusive sua esposa Pilar assi-
com o primeiro da autora publicado aqui, Fazes- na a tradução de alguns dos livros.
-me falta (2002). O título já anuncia uma sintaxe Além da Alfaguara, a brasileira Cosac Naify al-
pouco utilizada coloquialmente no Brasil e, de algu- cançou sucesso de vendas com a publicação de A
ma forma, o tom usado pela escritora ao longo do máquina de Fazer espanhóis (2011) do português
livro também; tom esse que muda na narrativa de valter hugo mãe, que foi o grande destaque da Fes-
A eternidade e o desejo para algo “muito mais do ta Literária Internacional de Parati – a FLIP – em
Brasil”, como dito acima. 2011, tornando-se o autor queridinho no Brasil por
algum tempo, especialmente após a leitura de uma
4.“A ilha desconhecida é coisa que não existe, carta feita especialmente para a Festa contando a
não passa de uma ideia da tua cabeça”. relação afetiva que cultivava pelo nosso país. O au-
Os exemplos de Gonçalo M. Tavares, Miguel tor encerra a carta dizendo: “Sonhei sempre em vir
Sousa Tavares e Inês Pedrosa apontam para uma ao Brasil e vim várias vezes, faltava vir como escri-
geração de escritores que se mostra extremamente tor, publicado e recebido. Pois aqui estou, a Flip fez
desenvolta quando o assunto é um mercado literá- isso, não esquecerei nunca, sinto que fazem de mim
rio de alcance global. Inês Pedrosa, por exemplo, um homem de ouro, agradeço a todos muito por
pertence hoje ao catálogo da editora espanhola Al- isso.” (2012). Aplaudido de pé, ganhou centenas de
faguara, que vem firmando sua presença em solo leitores (ou fãs?) brasileiros e, com sucesso garanti-
brasileiro com uma série de publicações. Sendo um do, teve logo em seguida, em 2012, seu mais novo
R E V I S TA E N C O N T R O S

dos selos da companhia Prisa – também espanho- livro, O filho de mil homens, lançado pela mesma
la – chegou ao Brasil para suprir o espaço da com- editora, assim como a Editora 34, também publi-
panhia na publicação de livros de ficção. A Prisa cou outros dois romances seus no país.
por sua vez chegou ao Brasil em 2005 e através Nota-se, portanto, que além das editoras for-
da Santillana, outro selo da companhia, comprou temente atuantes no mercado português trazendo
75% da Editora Objetiva, que já atuava no mer- autores portugueses para o Brasil – Alfaguara, Leya
cado editorial brasileiro desde a década de 1990. e Tinta da China – as nacionais também têm mira-
A Prisa está presente em 22 países com diversas do nos “novos”. Gonçalo M. Tavares (2005), Lobo
1 8 ARTIGO

Antunes (2009), valter hugo mãe (2011), José Luís há mais de 10 anos atrás, no momento da entrada
Peixoto e Dulce Cardoso (2012) estão entre os últi- na União Europeia, afirma:
mos convidados da Flip. José Luís inclusive acaba-
ra de lançar seu novo romance, Livro, pela Compa- O paradoxo é que este Portugal de fim de século
nhia das Letras. Tal editora, além de também editar nunca foi tão culturizado como hoje. Não por terem
alguns livros de Gonçalo, é a responsável pela cole- acedido a um saber mais diversificado e comparti-
ção Saramago aqui no Brasil e uma das principais lhado novas gerações de adolescentes – e nesse ca-
investidoras da Festa. pítulo a Democracia trouxe ou está sofrendo uma
O que se quer, portanto, é detectar sintomas de autêntica mutação –, mas porque sob esta subida
que a recente literatura portuguesa contemporânea de conhecimentos pragmáticos, a filosofia que os
vem conquistando o mercado literário brasileiro, subdetermina não comporta, ou escassamente, o
mas que essa aproximação, que nos sugere um es- conhecimento crítico da realidade nacional ou do
treitamento das relações lusófonas, pode também mundo onde vivemos. [...] O comércio desta auto-
ser reflexo de um mercado literário e editorial em -intoxicação da humanidade por si mesma é hoje
vias de globalização. Mesmo com a crise pós-2008 o mais rendoso do planeta. (LOURENÇO, 1999, p.
assolando inapelavelmente a Europa, afirmamos 150-1)
que pelo menos uma parte do seu polo editorial vai
bem, pois enxergou no Brasil um grande mercado Nossa intenção aqui neste texto foi levantar al-
em ascensão7. Gonçalo M. Tavares, com Portugal gumas possibilidades de olhar com olhos brasilei-
afundado em fortíssima crise, lançou pela Leya, em ros para essa literatura portuguesa, recém-saída da
2010, seu último livro, Uma viagem à Índia, simul- presa gráfica. Mesmo que saibamos que muito mais
taneamente em Portugal e no Brasil. O livro é um questionamentos podem ser feitos, ficamos com um
ambicioso poema épico em evidente diálogo com Os trecho retirado do livro A eternidade e o desejo, de
Lusíadas, mas com o reconhecido tom de Gonçalo. Inês Pedrosa, que acreditamos representar bem o
Tudo isso, no entanto, menos nos impede e mais nos espírito com que encerramos nossas linhas: “Lem-
força a concordar com Eduardo Lourenço, que em bras-me que prometi contar-te tudo, esta noite.
outro ensaio, Portugal como destino: dramaturgia Tudo, Sebastião, não sei se alguém consegue con-
cultural portuguesa, a propósito da euforia lusitana tar.” (2008, p.33).
R E V I S TA E N C O N T R O S

7 - Isso não diz respeito apenas às editoras ibéricas. Lembramos que em 2009 a importante editora britânica Penguin Books
se associou à Companhia das Letras para publicar edições da Penguin Classics no Brasil, sendo que essa associação virou
em 2011 a compra de 45% da editora brasileira pela britânica.
ARTIGO 19

Referências Bibliográficas

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TAVARES, Miguel Sousa. Equador. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004.
TAVARES, Miguel Sousa. Desculpem lá o Cabral. Disponível em: http://www.pedromundim.net/Cabral.htm. Acesso em: 08
de abr. de 2012.
20 ARTIGO

MENSAGEM: A TENSÃO
ÉPICA NA LINGUAGEM1

Sherry Almeida2

Resumo:

E
ste estudo aborda estilisticamente o poema épico Mensagem (1934), de Fernando Pessoa para mos-
trar que a ocorrência constante de antíteses e paradoxos ao longo do poema constitui-se como uma
representação linguística da tensão gerada pela releitura da História através do Mito. A análise
desse recurso formal nos permite entender como Pessoa integra a tradição épica, adequando o gênero às
aspirações de seu tempo e à sua visão de mundo.

PALAVRAS-CHAVE: poesia épica. Fernando Pessoa. antíteses. paradoxos.

I. Do gênero épico à épica em Fernando Pessoa


A epopeia pode ser definida, de maneira geral, como um longo poema épico que narra um passado
coletivo, recorrendo ao mito, ao maravilhoso, com a função de reunir um povo ou dizer de sua totalidade.
Segundo Saulo Neiva, uma das funções da epopeia é a de pensar o passado coletivo, buscando sentido para
o presente e ao mesmo tempo revelando perspectivas para o futuro (NEIVA, 2009). Isso significa que o
gênero épico serviu ao longo da evolução humana como lugar de reflexão sobre valores da cultura de vários
povos.
R E V I S TA E N C O N T R O S

1 - Trabalho produzido como requisito de conclusão da disciplina “A épica em língua portuguesa”, ministrada pelo prof. Dr.
Saulo Neiva, no PPGL-UFPE, em 2009.2.
2 - Prof.ª Dr.ª do curso de Letras DLCH/UFRPE
3 - “Contrariamente ao que afirmam alguns críticos, a epopeia é um gênero fundamentalmente problematizador, que joga
com concepções contraditórias para, esclarecendo-as, oferecer um meio de distinguir, dentro do caos de valores, aqueles
que são portadores de um porvir”(tradução livre).
ARTIGO 21

Contrairement à ce qu’affirment certains criti- século XX, recorreu ao gênero épico para expres-
ques, l’épopée est un genre fondamentalement pro- sar-se, criando o poema épico Mensagem. Se na an-
blématique, qui fait jouer des conceptions contrdi- tiguidade, a literatura conferia uma aura profética
toires pour les éclairer toutes et donner un moyen aos poetas – pois, a partir dos feitos heroicos nar-
de distinguer, <<dans le chãos des valeurs>>, cel- rados num poema, instauravam-se expectativas de
les qui sont porteuses d’avernir . (NEIVA, 2009, p. glória no porvir de um povo –, os poetas do século
20). XX, a exemplo do poeta português, demonstram
estar conscientes da missão profética que assu-
Muito já se falou que o século XIX marca o mem ao escolher o gênero épico. Entretanto, para
declínio da epopeia na literatura ocidental. Essa eles, essa missão está associada ao cuidado com a
ideia foi propagada pela crítica durante o século linguagem, ao trabalho estético que caracteriza a
XX, quando a epopeia passou a ser concebida como grande obra literária.
uma forma arcaica e obsoleta diante de outras for- Já no título da obra, percebemos que Pessoa tem
mas poéticas, principalmente, em relação as que a exata noção da necessidade do cuidado com a lin-
integram o gênero lírico. Entretanto, escritores do guagem como portadora de um discurso profético,
século XX demonstraram e muitos do século XXI4 portanto, solene. O poeta constrói a palavra “men-
têm confirmado que essa função problemtizadora, sagem” a partir da expressão latina: Mens agitat
inerente à epopeia, atualiza sua importância na molem, isto é, “A mente move a matéria”, frase da
sociedade, garantindo que ela se torne uma forma história de Eneida, de Virgílio, dita pela persona-
viva e recorrente na literatura contemporânea de gem Anquises quando explica a Enéias o sistema
várias nacionalidades. do Universo. Pessoa não utiliza o sentido original
da frase, que denotava a existência de um princípio
O poeta moderno, portanto, utilizando uma es- universal de onde emanavam todos os seres. Antes,
trutura mítica como forma de representação histó- parece querer mostrar que utilizará, em Mensagem,
rica, funde o referencial histórico com o referencial a mente, a razão, para orientar Portugal e apontar
simbólico, elaborando a matéria épica literaria- a seu povo um sentido para o futuro da nação.
mente. O fato de essa fusão se processar no nível do
real, a partir da adição coletiva de uma aderência II. Mensagem: poema mítico e místico
mítica ao fato histórico, ou literariamente, a partir Mensagem é um poema longo formado por 44
da utilização de uma estrutura mítica particular peças breves. Uma espécie de antologia visionária
para a representação de fatos históricos, não com- cuja estrutura narrativa é dividida em três partes:
promete, de modo algum, a natureza épica (SILVA “Brasão”, “Mar Português” e “O Encoberto”. O as-
& RAMALHO, 2007, p.140). sunto do livro é a história mítica de Portugal; o po-
R E V I S TA E N C O N T R O S

eta entoa um canto de louvor à navegação, ao ideal


Fernando Pessoa é um desses escritores que, no cristão-monárquico e à língua portuguesa, num

4 - Ver NEIVA, 2009, p. 5


22 ARTIGO

momento em que Portugal encontrava-se imerso LUSÍADAS e Mensagem constituem-se os mais co-
no governo autoritário de Salazar, uma nação que nhecidos épicos da língua portuguesa e há, clara
parecia alheia ao progresso e longe de acompanhar e intencionalmente, um diálogo deste com aquele.
o ritmo da Europa. Nesse sentido, é importante ressaltar que, ao
escolher um gênero literário, o autor se coloca em
Salazar não quis que o país evolvesse perpetua- relação aos outros autores de sua época que esco-
mente; quis, ao invés, travando o progresso, fazer a lheram gêneros distintos (e predominantes), ao
nação voltar ao estádio de sociedade rural patriar- mesmo tempo, esse autor se posiciona em relação
cal, fazer reinar a ordem perfeita, que é a do sono, aos artistas da tradição do gênero escolhido. Esta
subtraí-la, em seu cantinho da Europa, ao fluxo da análise tem por finalidade demonstrar uma pecu-
História. (BRÉCHON, 1996). liaridade estilística da obra Mensagem que contri-
bui para que Fernando Pessoa atualize e persona-
Se Salazar queria o retrocesso, apegado a um lize a epopeia, passando a integrar a tradição épica
tradicionalismo conservador, Pessoa aponta para a de que Camões já fazia parte.
esperança, espelhando-se no passado de glória um Segundo Florence Goyet (2009), é possível
futuro para Portugal. O poeta faz uma abordagem identificar nos escritores que, ao longo da história,
mitológica do passado imperial, transformando elegeram o gênero épico como modo de expressão,
personagens históricos em símbolos, arquétipos da duas posturas em relação à tradição que os pre-
condição humana, buscando encontrar um sentido cedem, as quais podem ser representadas em dois
para a antiga grandeza e a decadência existente na paralelos: o paralelo da diferença e o paralelo da
época em que o livro foi escrito. analogia. A épica de Pessoa desenvolve esses dois
Segundo Robert Bréchon, Mensagem é, como o paralelos: ao mesmo tempo em que dialoga com
Fausto e o Livro do Desassossego, obra de quase Os Lusíadas, Mensagem estabelece sua originalida-
toda uma vida. O poema mais antigo é datado de de nas diferenças marcadas em relação a este, tais
julho de 1913, e o mais recente, de 26 de março como a curta extensão e a dicção de um épico hí-
de 1934. brio, isto é, em que há presença de marcas de outro
gênero, no caso, o gênero lírico.
A Mensagem é o único livro que Pessoa compôs, No código do gênero épico, há uma estrutura-
terminou, reviu e corrigiu, e finalmente publicou. ção de ritmo e de sintaxe que leva a uma tensão
Esse livrinho de algumas dezenas de páginas lhe é característica do tom épico. Na sua épica, Pessoa
o mais importante e o mais representativo do gênio efetua a interpretação da História através do mito
singular. Se de toda a sua produção multiforme e da mística. Como consequência, dessa união de
apenas se pudesse guardar uma única obra, seria perspectivas distintas e aparentemente excludentes,
R E V I S TA E N C O N T R O S

com certeza essa, que a posteridade, cumprindo percebe-se a recorrência de antíteses e paradoxos
a profecia do jovem crítico de A Águia em 1912, como base da construção linguística dos poemas.
acabou por reconhecer como um dos dois cumes Apressadamente, poder-se-ia tomar esse traço es-
da poesia portuguesa, sendo o outro Os Lusíadas. tilístico como indício de barroquismo. Contudo,
(BRÉCHON, 1996, p.502). mais coerente com o gênero épico, não arbitraria-
mente escolhido pelo poeta, seria pensarmos que
A comparação com a obra de Camões é uma tais recursos estilísticos atualizam a cada poema
constante, pois sua filiação a ela é inegável. OS essa tensão entre História e Mito. O que inicial-
ARTIGO 23

mente pode ser tomado como contrassenso, pois é da temporalidade mítica para a temporalidade his-
como se o factual histórico fosse “corrigido” pelo tórica; enquanto Vasco da Gama caminha da tem-
maravilhoso. poralidade histórica para a temporalidade mítica.
Começamos a defender a validade da ideia res-
saltando que Mensagem é um poema épico cujo Os Lusíadas, com o centramento do relato na
maravilhoso se faz presente não apenas pelo mito, dimensão real da matéria épica, estruturam-se do
mas pela mística ocultista que conferem um sibolis- plano histórico. O heroi camoniano faz o percurso
mo à visão lançada ao passado coletivo português. da terra (real histórico) para o mar (real maravi-
lhoso). Mensagem, com o relato centrado no plano
Enquanto Camões em Os Lusíadas conseguiu literário, estrutura-se através de contextualização
fazer a síntese entre o mundo pagão e o mundo históricas na estrutura mítica de representação. O
cristão, Pessoa na Mensagem conseguiu ir mais heroi de Pessoa, ao contrário, realiza uma viagem
longe, estabelecendo uma harmonia total, perfeita, contextual da dimensão mítica do mar para a di-
entre o mundo pagão, o mundo cristão e o mundo mensão histórica da terra. (SILVA; RAMALHO,
esotérico, entendendo por mundo esotérico aquele 2007 p. 152)
que vai da teosofia à alquimia e da maçonaria ao
rosacruzianismo, passando por todas as religiões O poeta deseja inscrever o fato heorico de D. Se-
de carácter iniciático e, portanto, secreto. (CI- bastião, irrealizado factualmente, na dimensão do
RURGIÃO,1990, p.6). real histórico. Este é a única personagem da his-
tória de Portugal apresentada no poema que não
Por sua composição orientada pelo simbólico e consumou seu fado, isso implica que o “fato histó-
esotérico, Mensagem transforma o idioma em que rico, que deixou de realizar no passado, terá de ser
foi escrito no heroi epopeico. Mesmo que o poema realizado agora, na ubiquidade mítica do presente
apresente uma espécie de heroi secreto individua- da narrativa” (SILVA e RAMALHO, 2007). Isso só
lizado na figura de Dom Sebastião, a língua portu- é possível pela linguagem, posto que ela permite,
guesa é quem, do início ao fim do poema, está posta ao recontar, reviver o fato passado com a escolha
em situação de tensão. Nesta leitura que ora apre- do gênero épico atualizado pela visão poética pes-
sentamos, focalizaremos a ocorrência de antíteses soana.
e paradoxos em busca dessa tensão épica da lin- Fernando Pessoa, então, assegura seu lugar na
guagem pessoana, estando conscientes de que, pelo tradição atribuindo ao gênero épico a função de
caráter subjetivo da interpretação estilística, nossa “corrigir” a história a partir do mito: o que D. Se-
análise constitui-se como mais uma dentre tantas bastião não fez historicamente fará literariamente.
possíveis ou, mais precisamente, constitui-se como A ideia que aqui desenvolvemos complementa a
R E V I S TA E N C O N T R O S

mais um passo incial de compreensão da obra. exposta por Silva e Ramalho, pois essa passagem
do heroi pessoano só é possível no plano literário,
III. Mensagem: A tensão épica na linguagem portanto, seu lugar é a linguagem. Isso nos permite
Percebemos que Mensagem traça o paralelo da buscar nos recursos de figuração usados pelo poeta
diferença em relação a Os Lusíadas, pois nele, como a confirmação dessa viagem do heroi “Encoberto”,
afirmam Anazildo Vasconcelos da Silva e Christina que é D. Sebastião. Mais precisamente, pode-se
Ramalho (2007), o heroi pecorre o caminho oposto perceber que a tensão dessa “viagem literária” é
ao do heroi camoniano. Dom Sebastião caminha expressa ao longo do poema através do uso cosn-
2 4 ARTIGO

tante das antíteses e paradoxos. são portuguesa e seria no futuro, presumivelmen-


A construção paradoxal é a base da poética te, a via para o Quinto Império. Faz sentido que
pessoana e será aqui compreendida como um dos pensemos assim, pois o poeta se interessou muito
traços distintivos de sua épica. Verificamos que a por entender filosoficamente a natureza do poder e
estruturação linguística do poema Mensagem con- da conquista e fê-lo consciente tanto do panorama
firma essa leitura de correção da história pelo mito, português no passado quanto da situação política a
em outras palavras, os recursos expressivos usados ele contemporânea.
são coerentes com a divisão poética e com a função
de reescritura da história que Pessoa atribuí ao gê- O poder. [Pessoa] Ele refletiu muito sobre sua
nero épico. natureza ou essência, e também refletiu muito so-
Mensagem, já em suas epígrafes, aponta para bre a maneira como o poder é tomado, recebido ou
o papel siginficativo da língua, da linguagem, não dado. Há que notar que, de modo geral, as quali-
apenas como a matéria-prima da composição da dades necessárias para a conquista do poder, seja
obra, mas principalmente como um dos focos de pela intriga, seja pela eloquência, seja, ainda, pela
atenção, espécie de heroi, que é épico por sua re- força das armas, não são apenas diferentes mas
sistência histórica e pela sua filiação ao divino. Isso opostas às necessárias para governar o Estado.
pode ser constatado na frase Beneditus dominus (BRÉCHON, 1996, p.497).
deus noster qui dedit nobis signum, que significa
“Bendito o Senhor nosso Deus, que nos deu o sinal” Contudo, a “Guerra sem guerra” será aqui to-
(que fez dos portugueses o povo escolhido), é a epí- mada como mais um indício de que o poema repre-
grafe do conjunto da obra. Não por acaso, Pessoa senta uma batalha entre palavras para expressar a
traduziu assim: “Bendito seja Deus nosso Senhor, tensão entre História e Mito. A guerra entre pala-
que nos deu o Verbo”. É a consciência de que o ser vras ou o “lutar com palavras” drummondiano é
humano só é pela linguagem e, ao mesmo tempo, é metáfora pertinente para a explicação do fenôme-
a louvação da língua portuguesa como o Verbo di- no linguístico de composição do poema pessoano,
vino, o idioma escolhido para “a mensagem”. “No propositalmente ambíguo: a palavra é ao mesmo
poeta, feito profeta e interlocutor de um povo, o Se- tempo a arma, o instrumento com o qual se luta, e
nhor dá aos portugueses um sinal que os distingue adversário, o oponente a ser vencido, a ser domi-
e os marca também para uma obra sobrehumana e nado.
esotereológica”. (CIRURGIÃO, 1990, p.6). Iniciemos a investigação das contradições ou das
Quanto à epígrafe da primeira parte, “Brasão”, ideias contraditórias dentro de conceitos presentes
Bellum sine bello, “Guerra sem guerra”, trata-se no poema. É possível observar o recurso constan-
de um paradoxo que nos diz da “Guerra sem com- te à bipolarização característica da antítese – que
R E V I S TA E N C O N T R O S

bate”. Pessoa o associa à história de Portugal: ao pretende ao mesmo tempo elucidar, numa perspec-
mesmo tempo em que pode referir a recusa à vio- tiva mais filosófica, contradições da condição e do
lência que estaria ligada ao éthos do povo portu- pensamento humanos, quanto, numa perspectiva
guês – cujo poder conquistado é enobrecido pela estritamente poética, pretende pôr em relevo tais
não-violência; há ainda a possível referência a um contradições. Há também o recurso ao paradoxo,
ideal de conquista espiritual e humana (pela difu- para expressar duas realidades opostas e inconci-
são da cultura portuguesa e não apenas da religião), liáveis simultaneamente. Dos 44 poemas de Men-
que foi no passado um importante vetor da expan- sagem, 19 apresentam o recurso ao contraste de
ARTIGO 25

ideias, desses 19 apresentamos a seguir a análise


de alguns exemplos. Este, que aqui aportou,
Na primeira parte, “Brasão”, todas as perso- Foi por não ser existindo.
nagens apresentadas têm a condição histórica ne- Sem existir nos bastou.
cessária para se tornarem mito. São a história por Por não ter vindo foi vindo
tornar-se mito; adequam-se a essa dupla condição E nos criou.
existencial. Entende-se que o estilo aqui recorra
tanto aos paradoxos quanto às antíteses, pois de- Assim a lenda se escorre
seja expressar a tensão dessa dupla condição, his- A entrar na realidade,
tórica e mítica. Nessa parte, estão concentrados E a fecundá-la decorre.
o maior número de construções contraditórias de Em baixo, a vida, metade
toda obra. Tais como: o paradoxo “futuro do pas- De nada, morre. (PESSOA, p.41).
sado”, do poema inicial “Dos castelos” (PESSOA,
2006, p.37), que concilia precisamente a função do E encontramos nele a expressão do paradoxo
épico de pensar o passado para dar perspectivas máximo da concepção mítica do poema: “O mito
para o futuro de uma nação, no caso Portugal, que é nada que é tudo”, o nada, que é o vazio, é o não-
é tomado no poema metaforicqmente como o “ros- -fato que se opõe ao tudo que é o fato. Para os que
to” da Europa. nele creem, o mito é tudo, é a verdade sobre a ori-
No poema “O das quinas”, encontramos os ver- gem de todas as coisas; para os que não creem, ele
sos “Os Deuses vendem quando dão” e “Compra- é inverdade, o nada. Instaura-se a oposição: o mito
-se a Glória com desgraça” (PESSOA, 2006, p.38), é irrelevante, desimportante, e ao mesmo tempo é
cuja aparente incongruência semântica se desfaz tudo, imprenscindível ao imaginário que dá con-
na interpretação possível do todo do poema: a cer- ta da origem do povo português. Segue-se o para-
teza de que toda conquista tem seu preço e que, doxo “O corpo morto de Deus, / Vivo e desnudo”
para alcançar, a glória é necessário o sofrimento. que remete ao ícone cristão apresenta Jesus Cristo
Essa é, inclusive, uma das ideias que fundamentam morto, embora vivo enquanto símbolo que atualiza
“a mensagem” pessoana ao povo portguês, a qual constantemente a fé cristã: Sua morte assegurou a
será reafirmada no arquifamoso poema “Mar Por- salvação da humanidade e manutenção do cristia-
tuguês”: “Quem quer passar além do bojador tem nismo como religião viva.
de passar além da dor” e “Deus ao mar o abismo e O sentido global do poema “Ulisses” desenvolve
o perigo deu, mas nele é que espelho o céu”. uma definição de mito. A narrativa que é criada,
Mais adiante tem-se um importante poema, que não é real, mas significa uma explicação do
“Ulisses”, que apresenta oposições de sentido em real. O poema refere-se ao heroi lendário da Odis-
R E V I S TA E N C O N T R O S

todas as estrofes. Destacamo-lo integralmente a séia e fundador mítico de Lisboa, onde teria apor-
seguir: tado numa das suas navegações. A não realidade
de Ulisess é determinante para que se possa tomá-
O mito é o nada que é tudo. -lo como mito fundador de Portugal: ele não sendo
O mesmo sol que abre os céus faz Portugal ser. Toda a segunda estrofe traz cons-
É um mito brilhante e mudo – truções paradoxais, quiçá, seja essa a única manei-
O corpo morto de Deus, ra de elucidar o mito. Nela, conclui-se que tudo o
Vivo e desnudo. que é real – que é vivo – sem o maravilhoso, morre.
2 6 ARTIGO

Contudo o que é mito, embora sem uma existência O todo, ou seu nada. (PESSOA, 2006, p.53).
real, vive eternamente. Pois, “para Pessoa, o mito é A antítese expressa o extremismo da ambição
a energia que que se confunde com as origens, Nes- portuguesa, o desejo por conquistar o todo; contu-
se sentido, a vida é menos importante que o mito” do, se o todo não for possível, o português não quer
(TUTKIAN, 2006). nada, pois, para ele, interessa o mar inteiro, e não,
“Se a alma que sente e faz conhecer / Só porque apenas, parte dele.
lembra o que esqueceu” (PESSOA, 2006, p.42) – Percebe-se, dessa forma, que, na primeira par-
esses são versos em que se percebe a condição para te, são lançadas ao leitor, a partir dos paradoxos e
o conhecimento: a lembrança do que se esqueceu, antíteses, as ideias que fundamentam a concepção
ou seja, a reminiscência. Esse paradoxo encontra- pessoana. Como se o poeta apresentasse os motivos
-se no poema “Viriato”, que, para Pessoa, é símbo- para a glória portuguesa no passado: o destemor, a
lo do espírito nacional: a identidade portuguesa e origem mítica, a fé, o nacionalismo, a não-violên-
a independência existem porque existe a reminis- cia, a dedicação e a obstinação que não permite a
cência deste instinto, sentido na alma portuguesa concessão a conquistas menores.
e personificado por Viriato. O que se faz esquecido A segunda parte de Mensagem, “Mar Portu-
na história deve ser lembrado sempre que se deseja guês”, apresenta as principais etapas da expansão
atualizar o espírito nacional. ultramarina que levou Portugul a ocupar lugar de
Nos versos “As nações todas são mistérios. / destaque durante os séculos XV e XVI. Os poemas
Cada uma é todo o mundo a sós.” (PESSOA, 2006, constituem-se como o relato dos descobrimentos
p.43) , do poema “D. Tareja”, põe-se em relevo a que “preenchem a estrutura mítica do mar” (SIL-
oposição entre a solidão do indivíduo e a coletivi- VA & RAMALHO, 2007). Para essa parte do poe-
dade nacional, chamando a atenção para a condi- ma, há uma necessidade descritiva desse novo mar,
ção da nação enquanto totalidade cultural de um que é o novo horizonte de perspectivas. Portanto,
povo singular, um povo“a sós”, pois comparado a predominam as anáforas e as enumerações, decor-
outras nações, Portugal, para o poeta, é único. rentes do caráter mais descritivo. Por esses recursos
O “Silêncio múmuro” (PESSOA, p.45) do po- não serem o objeto de nossa análise, destacamos a
ema “D. Dinis” nos diz do som que de tão íntimo seguir, a título de ilustração, apenas os casos mais
torna-se inaudito, característico do tom esperado representativos de enumerações e anáforas.
para o lírico, gênero o qual o rei trovador D. Dinis O poema “Horizonte” é o melhor exemplo do
desenvolve nas origens da literatura portuguesa. recurso à enumeração:
“Assim vivi, assim morri, a vida” (PESSOA,
p.53), versos do poema “D. Pedro Regente de Por- O mar anterior a nós, teus medos
tugal”. D. Pedro, regente de Portugal, foi fiel ao seu Tinham coral e praias e arvoredos.
R E V I S TA E N C O N T R O S

dever de cumprir seu reinado: a construção do ver- Desvendadas a noite e a cerração,


so traz a ideia de que, por esse dever, viveu e mor- As tormentas passadas e mistério,
reu para todo o resto. No poema seguinte “D. João, Abria em flor o Longe, e o Sul sidério
Infante de Portugal”, veem-se os seguintes versos: ‘Splendia sobre as naus da iniciação.

Porque é do português, pai de amplos mares, Linha severa da longíqua costa –


Querer, poder só isto: Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
O inteiro mar, ou a orla vã desfeita – Em árvores onde o Longe nada tinha;
ARTIGO 27

E, no desembarcar, há aves, flores, «Quem vem poder o que só eu posso,


Onde era só, de longe a abstrata linha. Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?»
O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis E o homem do leme tremeu, e disse:
Movimentos da esp’rança e da vontade, «El-Rei D. João Segundo!»
Buscar na linha fria do horizonte Três vezes do leme as mãos ergueu,
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte – Três vezes ao leme as reprendeu,
Os beijos merecidos da Verdade. (PESSOA,
2006, p. 68) (grifo nosso). E disse no fim de tremer três vezes:
«Aqui ao leme sou mais do que eu:
O poeta mostra o novo mar, agora que foram Sou um povo que quer o mar que é teu;
desvendadas a noite, a cerração, as tormentas pas- E mais que o mostrengo, que me a alma teme
sadas e, com o novo mar, o novo horizonte. As
enumerações em catálogo visam dar conta da tota- E roda nas trevas do fim do mundo,
lidade do que foi descoberto, enfatizando, assim, a Manda a vontade, que me ata ao leme,
grandeza do ato: o que é enumerado são as provas De El-Rei D. João Segundo!» (PESSOA, 2006,
concretas, a “Verdade” da conquista portuguesa. p.70).
Já as anáforas garantem a unidade rítimica den-
tro do código épico. Isso fica claro em “O mons- A repetição da expressão “três vezes”, número
trengo”, momento mais dramático da obra, que é já em si simbólico de união e equilíbrio espiritual
o encontro com o Monstrengo, passagem que se e político, mostra-se como indíce que marca a pas-
constitui como uma intertextualidade com o episó- sagem de turno no diálogo entre D. João Segundo
dio do gigante Adamastor d’Os lusíadas: e o Mostrengo.
As anáforas predominam nessa segunda par-
O mostrengo que está no fim do mar te, entretanto, encontramos o recurso a antíteses
Na noite de breu ergueu-se a voar; em vários poemas. Tais como no poema “Padrão”
À roda da nau voou três vezes, (PESSOA, 2006, p.69): “O esforço é grande e o ho-
Voou três vezes a chiar, mem é pequeno” – a antítese expressa, acentuando
a dificuldade, a necessidade de superação huma-
E disse: «Quem é que ousou entrar na que a empreitada marítma portuguesa exigiu;
Nas minhas cavernas que não desvendo, “Que o mar com fim será grego ou romano:/ O mar
Meus tectos negros do fim do mundo?» sem fim é português.” – as expressões antitéticas
R E V I S TA E N C O N T R O S

E o homem do leme disse, tremendo: “mar com fim” e “mar sem fim” põem em relevo o
feito português, colocando a conquista lusa acima
«El-Rei D. João Segundo!» dos feitos gregos e romanos. O poeta limita, na
«De quem são as velas onde me roço? geográfica e na imaginação, o mar e ilimita a glória
De quem as quilhas que vejo e ouço?» portuguesa.
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
Outros haverão de ter
Três vezes rodou imundo e grosso. O que houvemos de perder.
2 8 ARTIGO

Otros poderão achar adormecido, calado, e só depois retornou para re-


O que, no nosso encontrar, cuperar seu reino e salvar seu povo. Dom Sebstaião
Foi achado, o não achado, estaria, assim como rei Artur, adormecido. Seria a
Seguindo o destino dado. (PESSOA, 2006, voz que fala ao português, mas que se cala se al-
p.71). guém a escuta. O poeta é que deve, por assumir
a escrita do épico, solenemente anunciar a “men-
A sequência de antíteses – ter, perder, achar, sagem” ao povo português: é momento de desper-
não achado – reforça a ideia apresentada no poe- tar! Essa ideia será corroborada no último poema,
ma. Sob o título de “Os colombos”, trata-se do úl- “Nevoerio”, o qual recupera a tensão inicial, agora,
timo poema escrito para Mensagem (cf. TUTKIAN, porém, as antíteses expressem também a dúvida –
2006). Nele, Pessoa mostra que quem fez história a incerteza pelo futuro português:
foram os portugueses, os outros povos descobrido-
res são apenas reflexo daqueles. O destino deu o Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
achamento histórico aos portugueses e a frustração Define com perfil e ser
do não achado a outros povos. Este fulgor baço da terra
Passando adiante a análise, chegamos à terceira Que é Portugal a entristecer –
parte, “O Encoberto”, a qual se constitui como a Brilho sem luz e sem arder
mais fantástica, portanto, a mais simbólica e meta- Como o que o fogo-fátuo encerra.
fórica, pois revela a mística pessoana.
O recurso ao paradoxo, porém, surge em poe- Ninguém sabe que coisa quer.
mas importantes desta parte, como em “O quinto Ninguém conhece que alma tem,
Império”: “Triste de quem vive em casa, / Contente Nem o que é mal nem o que é bem.
com o seu lar,” e “Triste de quem é feliz!” e “Ter por (Que ânsia distante perto chora?)
vida a sepultura.” – Uma das ideias fundamentais é Tudo é incerto e derradeiro.
a “morte em vida”, própria da imperfeição do ho- Tudo é disperso, nada é inteiro.
mem. Triste daquele que não lutar para superá-la. Ó Portugal, hoje és nevoeiro...
Tema que se liga diretamente a ideia de destemor e
necessidade de superação para o alcance da glória, É a hora!
apresentadas na análise da primeira parte.
Vemos antíteses também em “As ilhas afortu- Nota-se o desencanto com o Portugal do pre-
nadas”: sente, uma imagem de decadência. Portugal é o
nevoeiro e, segundo as profecias, é o nevoerio que
Que voz vem no som das ondas marcará o regresso de D. Sebastião5, é, portanto,
R E V I S TA E N C O N T R O S

Que não é a voz do mar? a “Hora”, a hora em que o rei salvador voltará e
É a voz de alguém que nos fala, transformará o passado glorioso em futuro glorio-
Mas que, se escutamos, cala, so, dando finalmente, a Portugal o Quinto Império
Por ter havido escutar ? (PESSOA, 2006, p.88). espiritual. Esse poema expressa a fusão entre mito
e realidade bem como a dúvida e esperança de um
O fragmento faz referência ao ciclo da “Távola porvir que seja distinto do presente e símile do pas-
redonda”, o rei Artur, mortalmente ferido foi leva- sado. Eis o retorno ao primeiro paradoxo de Men-
do à ilha de Avalon, onde, em vez de morrer ficou sagem, primeiro também aqui analisado: “futuro
ARTIGO 29

do passado”. Fecha-se o livro com o retorno a ideia literal ao simbólico. Usa de figuras de linguagem
inicial, que diz o sentido de escrita da obra para (como antíteses, anáforas, etc), dos jogos sintáticos
Fernando Pessoa, bem como atualiza a função da (como os deslocamentos pronominais inusitados)
epopeia de pensar o passado em busca de sentidos bem como recorre a analogias místicas6 para ga-
para o futuro. rantir a permanência dessa tensão ao longo poema.
A análise estilística de alguns paradoxos e antí- Essas “batalhas” configuram-se como provações
teses revelam como se estabelece a tensão épica em heroicas a que são submetidas as palavras para
Mensagem. Pessoa, ciente de que o gênero épico só que consigam representar a tensão da viagem de
é possível pelo esforço da escrita, traz para o cerne Dom Sebastião do plano mítico ao plano histórico,
de sua obra uma espécie de “batalha poética” – do dentro do plano literário do épico: Mensagem. Para

Referências Bibliográficas

BRÉCHON, Robert. Mensagem. In: Estranho estrangeiro: Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal, 1996.
CIRURGIÃO, António. O Olhar Esfíngico da Mensagem de Pessoa. Revista ICALP, v. 22 e 23, Dezembro de 1990 / Março de
1991, p. 74-85.
DERIVE, Jean. Y a-t-il un style épique? In: L’épopée: Unité et diversité d’un genre. Paris: Karthala, 2002.
_____. Qu’est-ce qu’un héros épique? In: L’épopée: Unité et diversité d’un genre. Paris: Karthala, 2002.
GOYET, Florence. L’épopée. In: Vox poética. Disponível em <<http://www.vox-poetica.org>> acesso em 14 de outubro de
2009.
NEIVA, Saulo. Entre obsolencence et réhabilitation: péripéties de l’épopée au XXe siècle. In: NEIVA, Saulo (sous la dir.) Désirs
& débris d’épopée dans la poésie du XXe siècle. Berna: Peter Lang, 2009.
PESSOA, Fernando. Mensagem. Obra Poética I. Organização, introdução e notas: Jane Tutikian. Porto Alegre: L&PM, 2006.
SILVA, A. V.; RAMALHO, C. História da epopéia brasileira: teoria, crítica e percurso. Rio de Janeiro: Garamond, 2007.
R E V I S TA E N C O N T R O S

TUTIKIAN, Jane. Sobre Mensagem. In: PESSOA, Fernando. Mensagem. Obra Poética I. Organização, introdução e notas:
Jane Tutikian. Porto Alegre: L&PM, 2006.

5 - Ver TUTIKIAN, 2006.


6 - Os jogos sintáticos e as analogias místicas, embora não tenham sido aqui analisados, são recursos estilísticos
constantemente utilizados por Fernando Pessoa ao longo da obra e constituem-se como matéria para uma próxima análise.
3 0 ARTIGO

NO TABULEIRO DO
MUNDO: INSERÇÕES
NEERLANDESAS
NO CENÁRIO
ULTRAMARINO
PORTUGUÊS E UM
POUCO DA HISTÓRIA
DO CAPITALISMO
BATAVO R E V I S TA E N C O N T R O S

Rômulo L. X. Nascimento

A
ocupação do Brasil pelos holandeses não foi fortuita. Essa observação, apesar de óbvia para quem
trabalha este tema, não nos exime de uma reflexão acerca do que foram as companhias de comércio
do século XVII. Nos Países Baixos, em particular, o paulatino processo de independência do domínio
espanhol teve como principal conseqüência a criação da Companhia das Índias Orientais (VOC) e, a sua
“irmã mais nova”, a Companhia das Índias Ocidentais (WIC). Temos, de antemão, que a primeira exerceu
grande influência sobre a segunda.
ARTIGO 31

Evidentemente, o grande cenário para essa dis- Por outro lado, o fato de o capitalismo livre-em-
cussão passa pela ascensão do capitalismo e na for- preendedorista ter preponderado nos Países pro-
ma como ele se expressou entre nações protestantes testantes não torna fraco o papel do Estado. Pelo
e católicas. Sobre esse assunto, Hugh Trevor-Ho- contrário, no caso dos Países Baixos, a aparente
per expressou que em lugares como Milão e An- ausência do Estado faz parte de uma ideia que foi
tuérpia, “o capitalismo independente definhou” e encampada por muitos historiadores que não en-
que “os únicos grandes lucros nos negócios eram tendiam que a riqueza de uma sociedade refeletia
os lucros do capitalismo de Estado”. Enfim, para num Estado mais forte e não necessariamente ab-
a Espanha, a situação era a seguinte: “A plutocra- solutista.4 O pensamento da fragilidade do governo
cia genovesa, tolerada como enclave urbano au- nos Países Baixos pode encontrar eco nas rivalida-
togovernado, a fim de ser o financiador estatal do des que sempre existiram entre a plutocracia da
império espanhol, e investindo seus lucros em fun- Província da Holanda e o poder dos Stathouders,
ções, títulos e terras dentro desse império, é típica que controlavam as Províncias do interior e eram
dessa história”.1 Assim, em oposicão ao capitalismo elementos da casa de Orange-Nassau. No entanto,
“independente” dos Países Baixos, a influência do apesar dessas disputas domésticas, os Países Baixos
império espanhol no “capitalismo de Estado” foi nunca deixaram de exercer o seu poder externo no
determinante nos Países da Contra-Reforma.2 Mes- século que ficou conhecido como “o século de ouro”
mo assim, essa dicotomia entre o capitalismo em para a Holanda: o século XVII. Do que concluímos
países da Reforma e da Contra-Reforma não pode que o governo sobreviveu as turbulências provin-
ser tão radical, uma vez que mesmo um teórico da ciais.
república mercantil como Paolo Sarpi, permaneceu As companhias holandesas das Índias Orientais
no seio da Igreja católica. Só que na república de e Ocidentais têm origens numa tendência já veri-
Sarpi, Veneza, a Igreja se via separada do Estado. ficada na Europa Ocidental desde a segunda me-
Ele não era, pois, “a” Igreja desse Estado”, como tade do século XVI. São as chamadas sociedades
concluiu Trevor-Roper3. de capitais, apelidadas pelos ingleses de Joint Stock

1 - TREVOR-ROPER, Hugh. A Crise do Século XVII: Religiao, a Reforma & Mudança Social. – Topbooks: Rio de janeiro, 2007,
p. 73.
2 - O autor tipificou a sociedade espanhola como “feudal”, arcaica, acidentalmente alçada ao poder mundial pela prata
da América”. De uma forma geral, também tipificou Trevor-Hoper a forma de capitalismo espanhola, ou ”dos estados
principescos” como uma regressão econômica e até ironiza ao insinuar que “por volta de 1640, o apoio espanhol podia ser
de pouca valia para qualquer um; mas nessa época as sociedades da Europa da Contra-Reforma estavam estabelecidas:
estabelecidas em declínio econômico”.
3 - TREVOR-ROPER, idem, p.80.
R E V I S TA E N C O N T R O S

4 -O historiador Franand Braudel, apoiado nos estudos de Immanuel Wallerstein, ao considerar que governo e sociedade
fazem parte de um mesmo bloco. Ainda segundoBraudel, no centro de qualquer economia-mundo, a figura do Estado é
tanto mais “temida e venerada”, quanto mais riqueza e dinamismo econômico ele puder trazer para si. Esse foi o caso de
Veneza (século XVI), Holanda (século XVII) e Inglaterra (século XVIII). Ref. BRAUDEL, Civilização Material e Capitalismo, O
Tempo do Mundo, p. 40.
5 - Sobre esse assunto, Braudel reitera a anterioridade das “sociedades de ações” à segunda metade do século XVI
ao afirmar que “ já antes do século XV, os navios do Mediterrâneo são muitas vezes propriedades divididas em ações –
chamadas partes em Veneza, luoghi em Gênova, carrati na maior parte das cidades italianas, quiratz ou carats em Marselha”.
Ref. BRAUDEL, Civilização Material e Capitalismo, Os Jogos das Trocas, p. 388.
32 ARTIGO

Companies (sociedades por ações).5 Na própria In- mão, consideremos que tais sociedades por ações
glaterra, por volta de 1550, formou-se a primeira tinham por prática tomar a seu talante áreas de
sociedade de ações, a Moscovy Companie. Já na comércio muito distantes de suas sedes. No negócio
França, observou Fernand Braudel, a instituição de longa distância, para tomarmos como exemplo
das sociedades de ações apareceu mais lentamen- os Países Baixos, uma das companhias que antece-
te que na Inglaterra e nos Países Baixos. Contu- deu a Companhias das Índias Ocidentais chamava-
do, foi mesmo no século XVII que se consolidaram -se “Companhias para lugares distantes” (Com-
as grandes companhias comerciais, e à sombra de pagnie Van Verre).
uma condição sine qua non, segundo o autor de O A relação entre capitalismo, estado e comércio
Mediterrâneo: a de que “só há crescimento signi- de longa distânncia data desde o século XVI. Nos
ficativo da empresa quando há associação com o países ibéricos, a criação da Carrera de las Indias
Estado – o Estado, a mais colossal das empresas (Espanha) e da Casa da Índia (Portugal) são exem-
modernas que, crescendo sozinho, tem o privilégio plos daquela associação. Contudo, nesses países, a
de fazer crescer as outras”.6 Essa declaração mos- coerção e a fiscalização do Estado tendiam a ser
tra por si só a importância que o Estado, inclusi- enormes, se comparadas aos Países Baixos.8
ve o dos Países Baixos, possuíam no florescimento Antes de entrarmos nas grandes companhias de
de companhias do porte da VOC e da WIC. E foi comércio dos Países Baixos, convém lembrar das
de suas grandes e organizadas companhias de co- companhias inglesas do fim do século XV e inicio
mércio que, ainda segundo Frenand Braudel, “as do XVI. Eram elas a Merchant of the Staple e a
Províncias Unidas e a Inglaterra se serviram para Merchant Adventurers. A primeira congregava ex-
conquistar o mundo”7. portadores de lã e a segunda de tecidos. Mais uma
Uma condição para o sucesso das grandes com- vez, Fernand Braudel chama atenção para o fato
panhias de comércio que concordamos ter sido im- do caráter quase sempre “aventureiro” dos nego-
prescindível: a concessão de privilégios por parte ciantes destas primeiras companhias de comércio
do Estado. Tal concessão caracterizaria as grandes em alusão ao nome desta última companhia aci-
companhias como estados dentro de estados? Essa ma citada.9 Consequentemente, foram fundadas
questão pode ser apenas retórica, mas vale a pena as companhias da Moscóvia (1555), a do Levan-
ser discutida para o caso particular da Companhia te (Levant Company, em 1585). Finalmente, em
das Índias Ocidentais na secção seguinte. De ante- 1599, formou-se a Companhia Inglesa das Índias
R E V I S TA E N C O N T R O S

6 - Idem, p. 391.
7 - Idem, p. 392.
8 - Idem.
9 - Idem, p. 396. No entanto, Braudel considera que a Merchant Adventurers Company era administrada como uma
“corporação”, em que “os membros da companhia são irmãos entre si, e suas mulheres, irmãs. Os irmãos devem ir todos
juntos aos ofícios religiosos, aos enterros. Estão proibidos de se portar mal, de pronunciar palavras grosseiras, de se
embriagar, de tornar-se espetáculo para os outros [...]”. Assim reproduziu o autor parte do estatuto da companhia.
10 - BULUT, Mehmet. The Role of the Ottomans and Dutch in the Commercial Integration between the levant and Atlantic in
the Seventeenth Century. In: Journal of the Economic and Social History of the Orient, Vol. 45, No. 2 (2002), pp. 197-230.
ARTIGO 33

Orientais. sobretudo no Oceano Índico é que influenciará, al-


Apesar de pouco estudada, como aponta o his- guns anos mais tarde, a criação da Companhia das
toriador turco Mehmet Bulut, a presença holandesa Índias Ocidentais (WIC).
no Império Otomano existia desde o século XVI. O No século XVII as possessões portuguesas no
mesmo verificou que “Although formal diploma- Oriente foram seriamente atingidas pela VOC no
tic relations between the Ottoman Empire and the que diz respeito ao comércio lusitano ai enraizado
Dutch Republic were first stablished in 1612, com- desde o século anterior. O avanço de Portugal em
mercial contacts had already been made by travel- direção ao Oriente fez parte de um processo, não
lers and by merchants engaged in Mediterranean necessariamente consciente de expansão, como de-
trade before 1600”10. mostrou Charles Boxer, mas certamente “surgiram
Em prirmeiro plano, os olhos dos países capita- de uma mistura de fatores religiosos, econômicos,
listas emergentes no século XVII estavam voltados estratégicos e políticos, é claro que nem sempre do-
para o Oriente das especiarias, terreno já bem co- sados nas mesmas proporções12”. Também ficou
nhecido pelos países ibéricos, sobretudo Portugal. claro que, segundo o autor, o deslanchar de Portu-
A inserção portuguesa na Ásia eral tal que fez jus à gal na colonização ultramarina se deu sob o clima
afirmação de Charles Boxer de que de paz interna que o seu território experimentou ao
longo de todo o século XV, enquanto os outros paí-
[...] “nada é mais notável do que o modo como ses da Europa Ocidental estavam envolvidos de al-
os portugueses conseguiram assegurar e manter, guma forma com guerras civis internas ou ameaças
por quase todo o século XVI, uma posição domi- estrangeiras. Finalmente, como fator religioso, mas
nante no comércio marítimo do oceano Índico e indubitavelmente, econômico, a conquista de Ceu-
uma parte muito importante no que se fazia a leste ta aos “infiéis” hereges conbinou mais de um fator
do estreito de Malaca”11. para o avanço da coroa portuguesa em território
africano13. É forte a tese, ainda segundo Charles
E foi para esse destino que os Países Baixos Boxer, acerca dos interesses econômicos de Por-
lançaram os seus olhares através. Primeiro, com a tugal na ocupação daquela praça, uma vez que a
Compagnie Van Verre, em fins do século XVI e, no partir dali poderiam estabelecer contatos com o co-
alvorecer do século XVII, com a Companhia das mércio de ouro desde há muito existente nas terras
Índias Orientais (VOC). A atuação desta última do alto Níger e do rio Senegal. Assim, os portgueses
R E V I S TA E N C O N T R O S

11 - BOXER, Charles. O Império Marítimo Português. - São Paulo: Companhia das Letras. 2002. p. 52
12 - Idem, p. 33.
14 - Tal empreitada levada a cabo pela coroa portuguesa foi lucrativa, haja vista que, só no reinado de dom. Manuel (1496-
1521), os portugueses trouxeram de São Jorge da Mina, anualmente, 170 mil dobras de ouro a cada ano em média. Ref.
BOXER, op. cit. p. 45.
3 4 ARTIGO

promoveram o carreamento desse comércio de ouro que “ leurs succès durable exigeait une organiza-
do Sudão ocidental, que se fazia no interior, para o tion rigoureuse”, como afirmou o historiador Yves
litoral.14 Que fique claro, portanto que a coroa por- Cazaux.16 O mesmo resume o êxito neerlandês no
tuguesa procurava manter o monopólio do comér- Oriente da seguinte forma:
cio de ouro, escravos e especiarias em geral, muito
embora, em alguns casos isolados, a coroa tenha “L’organization néerlandaise, qu’il faut exa-
concedido os direitos de importação de marfim e miner avec attention, n’enlève rien de sés quali-
escravos a alguns indivíduos, mediante, é evidente, té aventureuses et même héroiques à l’entreprise,
o pagamento de licença. mais par le calcul des risques et grâce à des me-
No Índico, o império português consolidou- canismes de compensation, elle évite qu’une série
-se no grosso trato com as cidades suális da cos- de désastres subis ici et là n’entraîne la ruine de
ta oriental da África (Mombaça, Quíloa, Melinde l’ensemble. On reconnaît lê mélange du réalisme et
e Pate) que, segundo Charles Boxer, eram “todas du revê qui caractérise lês Provinces-Unies”.17
possuidoras de alto nível de florescimento cultural
e prosperidade comercial”.15 O estabelecimento dos Evidentemente, a “dose de realismo” holandês
portugueses no Índico situou-se entre as cidades não impediu, no caso da Companhia das Índias
acima citadas e o Timor, passando por importantes Ocidentais, os insucessos que a mesma experientou
entrepostos comerciais como Mascat, Ormuz, Diu, no Brasil. Sobre a VOC, temos que a partir de sua
Bombaim, Goa, Calecute, Ceilão, Meliapor, Nega- criação em 1602, não demorararia muito para que
patão, Pegu, Sião, Malaca, Macau e Ilhas Molucas, algumas das mais importantes possesões portugue-
para não citarmos outros. Ao longo do século XVII, sas caíssem em mãos batavas. Dirigindo a sua teia
quase todo esse território foi alvo da Companhia comercial para Bali, Amboina e Molucas, a VOC
das Índias Orientais. Quando os holandeses parti- ocupou Jacarta (Batávia) em 1621 e em Malaca
ram para tomar o quinhão ibérico na Ásia, já esta- (1640) durante a revolta de Portugal contra a Es-
vam bem conscientes do que iriam encontar. panha. O ano seguinte, 1641, assitiu à instalação
Antes de se “aventurar” no Oriente com uma dos holandeses no Ceilão bem como na costa do
grande companhia de comércio, as experiências Coromandel. Vale salientar que os agentes da VOC
anteriores colhidas pelos neerlandeses mostra- já haviam feito contato com o Japão e, em 1616,
ram aos empreendedores holandeses e zelandeses obtiveram ai algumas concessões de grosso trato.18

15 - Idem, p. 55.
16 - CAZAUX, op. cit., p. 241.
R E V I S TA E N C O N T R O S

17 - Idem, p. 242. O lastro do sucesso da VOC no Oriente foram, entre outrso fatores, a poderosa marinha mercante de que
dispunham os neerlandeses (segundo o autor, “encore une autre statistique globale: aux alentours de 1660, les Provinces-
Unies posséderont lês trois quarts de la flotte de commerce mondiale”), assim como de um arrojado sistema de seguros de
cargas tal ponto de organização que “ dés lê debut de la guerre des Trente Ans, elles parviennent à garantir lês risques de
mer pour une prime de dix por cent em temps de guerre, de huit pour cent em temps de paix, et même moins cher encore,
quand la conjoncture.
18 - Yves Casaux enfatiza os contatos neerlandeses no extremo Oriente com Osaka, Cantão e Formosa, salientando também
que desde 1616 o chá da China já tomava o rumo do entreposto que seria holandês de Batávia.
ARTIGO 35

Tão logo iniciou o século XVII, e a Companhia nistração local que os portugueses instalaram em
das Índias Orientais já empreendiam enfrentamen- termos de fixação de câmaras e delimitações de es-
tos aos portugueses instalados no Índico. Tal qua- paços. Deste modo, temos uma perspectiva de um
dro se estendeu até a assinatura da Paz da Holanda historiador nativo que mergulhou não só em fontes
em 1668. Durante todo esse tempo, já à altura das portuguesas como naquelas referentes à Compa-
lutas entre portugueses e holandeses no Atlântico- nhia das Índias Orientais em arquivos da Holan-
-Sul, formou-se um quadro que levou o historiador da. A chegada dos holandeses nestes espaços, já no
Charles Boxer a considerar como uma verdadei- início do século XVII, desarticula as relações co-
ra guerra mundial à qual já nos referimos na se- mercias de Portugal constituídas com muita persis-
ção anterior. No Oriente, a Companhia das Índias tência pelos prepostos dos reis em início do século
Orientais (VOC) e, no Atlântico-Sul, a Companhia XVI.20
das Índias Ocidentais (WIC). Se foi verdade que a presença neerlandesa no
Um Historiador indiano, Sanjay Subramanyam, Oriente produzia histórias fantásticas na mente
além de seguir os caminhos abertos por Boxer, nos dos contemporâneos, como bem ressaltou Simon
dá bem a medida do conflito luso-neerlandês pelo Schama21 , também não foi menos verdade que as
controle dos entrepostos comerciais do Golfo de questões político-administrativas foram relatadas
Bangala. Aqui, pontos nevrálgicos do comércio do por agentes neerlandeses pertencentes à Compa-
Índico como Negapatão e Paleacate (costa leste da nhia das Índias Orientais neste quadrante. Desse
Índia) foram alcançados pelas companhias de co- modo, o mesmo homem que poderia se deslumbrar
mércio neerlandesas, mas com maior autonomia com as fantasiosas viagens do navio Botencoe bem
dos nativos para negociarem com o invasor. Vale como as aventuras de seus marujos, também se de-
salientar que estas localidades tinham desde há cepcionava com as perdas da Companhia das Ín-
muito, antes mesmo da chegada dos portugueses, dias Ocidentais na América portuguesa.
um comércio constituído bem como um nível de Um caso a ser citado, um ponto de comércio
organização política mais consolidado que o das português no Golfo de Bengala: Negapatão. Este,
tribos tupis do litoral brasileiro.19 por sua vez, localiza-se na costa Leste do subconti-
Subrahmanyam, ao mesmo tempo em que con- nente indiano, quase em frente a ilha do Sri Lanka
sidera o caráter mundial da luta entre portugueses e à poucos quilômetros de Goa, situada na costa
e holandeses, mergulha na especificidade da admi- Oeste do Malabar.

s’améliore. Ces tarifs à Amsterdam sont souvent inférieurs de moitié aux tarifs français correspondents”. Convém lembrar da
importância das companhias inglesa e holandesa na Ásia. Em trabalho acerca das grandes companhias de comércio, os
R E V I S TA E N C O N T R O S

historiadores da economia Ann Carlos e Stephen Nicholas enfatizaram que “if one looks at only a fraction of the transactions,
the invoicing of goods between the factory at batvia (present-day Jakarta, Indonésia) and the head office of the Dutch East
Índia Company, the volume of transactions filled ‘more than 500 fat volumes from the 17th century’. “ Os autores também
observam que este número o volume comercial intra-asiático, nem as transacoes entre feitorias da companhia e mercadores
locais no Oriente Médio, India, Batávia e Japão. Ref. CARLOS, Ann M. , NICHOLAS, Stephen. In: The Business History
Review, Vol.62, No. 3 (1988), pp. 401.
19 - SUBRAMANYAM, Sanjay Guerra e Comércio: A Presença Portuguesa e o Golfo de Bangala (1500-1700). Lisboa:
Edições 70, 1989.
3 6 ARTIGO

Em 1642, atacaram os holandeses, sob o co- Nayakas e holandeses se “congeminaram”, no dizer


mando do Almirante Cornelis Leendertszoon de Subramanyan, para tomar Negapatão aos por-
Blauw, a possessão portuguesa de Negapatão. Aqui, tugueses.
negociam uma recompensa de 50.000 patacas de Por fim, chama a atenção Sanjay Subrah-
resgate. A empresa malogrou em função da resis- manyam para o fato de que em certa medida, a
tência local e a consequência administrativa foi que lição que os portugueses, tal como os holandeses,
os Eleitos (administradores portugueses locais) que não aprenderam, se resumia a isto: poucos seriam
Goa tomasse conta de Negapatão. O que se seguiu os “príncipes pagãos ou mouros” capazes de su-
aqui foi a instalação de uma Câmara Municipal portar, de boa vontade, a imposição de verem uma
para substituir os Eleitos, além de nomeação de um “aldeia indefesa” transformada em povoação forti-
Capitão-mor e o reforço da fortificação. Tal atitude, ficada ...”24. Além de frisar bem que, malgrado o
por parte da Coroa portuguesa, não fora tomada controle neerlandês de Negapatão nas décadas de
doze anos antes com relação a Pernambuco, que 1650 e 1660, haveria sempre, em outras localida-
mesmo após a ocupação de Salvador pelos holan- des próximas, um espaço para os comerciantes pri-
deses (1624-1625) permaneceu mal guarnecido.22 vados portugueses. Afinal de contas, como tivemos
Entretanto, os holandeses na Ásia se beneficia- no Brasil os luso-brasileiros a desempenhar um co-
vam das represálias que sofriam os portugueses dos mércio próprio, houve na Índia os “luso-indianos”
nativos. Narram os holandeses, em depoimento en- a fazerem o mesmo.
contrado por Subrahmanyam nas fontes neerlan- No Ceilão, a prirmeira “visita” neerlandesa deu-
desas, o ataque que sofreu a povoação portuguesa -se já no primeiro ano de existência da VOC. Con-
por parte das forças de Tanjavur, em princípios de ta-nos um arquivista holandês do inicio do século
1632, pelo fato da comunidade mercantil aí instala- passado, o Sr. R. G. Antonisz, que a o primeiro de
da não ter conseguido o suficiente para pagar os tri- sua nação a por os pés no Ceilão foi o Almirante
butos que lhes permitissem fazer o comércio. Aqui Joris van Spilbergen em 1602. O primeiro contato
em Bengala, pelo menos, estavam os portugueses foi bastante positivo, uma vez que
entre uma poderosa estrutura nativa, os Nayaka23 ,
e os holandeses. Situação, aliás, diferente do Brasil, [...] “the kandya king, who was by this time
onde puderam subordinar os ameríndios e impor- heartly tired of the Potuguese, received him in the
-lhes uma política hegemônica. Em dado momento, most friendly manner, and promised him, in return
R E V I S TA E N C O N T R O S

22 - As crônicas de Brito Freyre mostram a dificuldade em se treinar um exército de última hora ante uma invasão holandesa
a Pernambuco. Outro cronista, Gabriel Soares de Souza em 1587, já observara a necessidade de melhor defesa da costa
brasileira. A própria presença francesa no litoral brasileiro até fins do século XV, como observou Capistrano de Abreu, fornece
subsídio a este argumento.
23 - Assinala Sanjay Subrahmanyam o governo do chefe Nayaka, Vijayaraghava, que liderou de 1634 até 1637.
24 - . SUBRAHMANYAM, op. cit. pp. 104.
ARTIGO 37

for assitance against the Portuguese, every facility político-administrativa da VOC no Ceilão foi co-
for trade and for the building of fortresses on the piada, guardada as diferenças de escala, no Brasil.
coast”. Aqui, inicialmente, existia também um Gouverneur
acessorado por um Conselho Político.
Mas a presença efetiva da VOC naquele territó- No organograma da VOC proposto por R. G.
rio se deu mesmo em 1637, no mesmo ano em que Antonisz, os funcionários (servants; ‘dinaer’s em
a WIC, a partrir do Recife, conquistava São Jorge neerlandês) da companhia na administração do
da Mina. A administração só vingaria a apartir de Ceilão dividiam-se em quatro categorias: Política,
1640, restando aos portugueses a ocupação de Co- Naval, Militar (soldados) e Mecânicos. Curiosa-
lombo, que viriam a perder finalmente em 1656.25 mente, nas categorias dos servidores políticos se
Assim como no Brasil, onde um governo civil encontravam os mercadores superiores (opperco-
tendeu a sobrepujar o militar, também no Ceilão, a opman), os mercadores “medianos” (koopman) e
fórmula fora a mesma. Segundo R. G. Antonisz, no os sub-mercadores (ondercoopman).28 Essa junção
Ceilão, a necessidade de se procurar um equilíbrio de funções político-econômicas não nos deve ser
social veio imediatamente após o estabelecimento estranha, dado o caráter eminentemente comercial
de um governo civil.26 No topo da administração do empreendimento. No caso da Companhia das
estava um Governador que era acessorado por um Índias Ocidentais no Brasil, muito embora não te-
Conselho Político (Political Concil), composto por nhamos a nomenclatrura, tal qual havia no Ceilão,
dez dos maiores funcionários da VOC. Em segui- de “mercadores” para algum funcionário ligado
da, abaixo do Governador, vinham os Comann- diretamente à WIC, sabemos que o comércio era
deurs das subregiões de Jafnna e Galé, que tinham controlado pelos conselheiros políticos. Estes deve-
o status de Governadores Provinciais (Provincial riam, em princípio, ser versados também em maté-
Governors). Estes, finalmente, eram acessorados ria de comércio. Ao tratarmos, no curso deste tra-
por conselhos políticos locais, mas subordinados balho, acerca dos “pequenos proveitos” auferidos
ao Conselho Político maior. Os Commandeurs po- pela WIC no Nordeste, teremos a oportunidade de
deiam ter assento no Conselho Político do Ceilão (o perceber a fiscalização do comércio por parte do
conselho maior) e, uma vez estando em Colombo Conselho Político e dos Diretores Delegados.
(centro administrativo), tinham precedência sobre Seja como for, as composições político admi-
os outros conselheiros políticos.27 Esta composição nistrativas, tanto da VOC como da WIC, ainda se
R E V I S TA E N C O N T R O S

25 - ANTONISZ, R. G. The Dutch in Ceylon: Glimpses of their life and times. (Lecture). Ceylon Examiner Press, 1905, p. 03.
26 -Idem, p. 4.
27 - Idem, p. 9.
28 - Para o autor, os servidores politicos poderiam ser equiparados aos funcionários públicos de nossos dias.
38 ARTIGO

situavam em meio a um processo de burocratiza- facilidades, gastos de equipagem etc. O comissário


ção do capitalismo, em que determinadas funções e o capitão eram responsáveis pela execussão do
não estavam plenamente definidas. Concorre talvez empreendimento e, no final da viagem, relatavam
para esse fato a recente formação política dos Paí- aos empresários os acontecimentos. O comissário
ses Baixos. Nesse tocante, observou bem Lodewijk operava registrando os estoques do barco e man-
Hulsman que “a expansão da república neerlande- tendo o livro de registros dos empregados. Ele era
sa exigiu a fundação de organizações cada vez mais o responsável pelo registro das trocas comerciais
complexas, [...] A República, entretanto, tinha enquanto o capitão mantinha o diário de viagem.
pouca experiência em gerenciamento de grandes Esta documentação entrava no aquivo da diretoria,
organizações [...]”. Mais ainda, este autor registra os empresários pagavam a tripulação, vendiam a
a anterioridade do modus operandi da Companhia carga e o barco e retiravam o lucro de seu investi-
das Índias Ocidentais alegando que mento. No final, o balanço das atividades era di-
vulgado entre os acionistas e empresários por meio
[...]“a administração da WIC se baseava no mo- de editais.”29
delo desenvolvido por armadores neerlandeses du-
rante o século XVI. Este modelo era dividido em três Talvez a diferença entre uma companhia des-
partes: os acionistas investiam capital na empresa; te porte para um empreendimento do século XVI
os empresários, muitas vezes acionistas majoritá- diferisse apenas no conteúdo e não na forma. No
rios, equipavam as embarcações e a diretoria for- século XVII, o acúmulo de capital e a capacidade
mada pelos empresários registrava o investimento associativa entre os empreendedores certamente
dos acionistas, os contratos de emprego, aluguel de era maior que nas sociedades do século anterior.

R E V I S TA E N C O N T R O S

29 - HUSMAN, Lodewijk. Guia para o estudo das Atas Diárias do Alto Conselho da Companhia das Índias Ocidentais no
Recife (1635-1654). In: Monumenta Hyginia. Recife, 2005, p.28 (mimeo)
ARTIGO 39

OS PERFIS FEMININOS
EM O ALEGRE CANTO
DA PERDIZ, DE
PAULINA CHIZIANE
Amanda Siqueira do Nascimento (UPE/Mata Norte)
Professora Drª Amara Cristina de Barros e Silva Botelho (UPE/Mata Norte)

Resumo:

P
or meio das leituras da obra ficcional de Paulina Chiziane, é possível notar que a mulher afro-mo-
çambicana possui um lugar não muito privilegiado na sociedade colonizada e patriarcal de Moçam-
bique. Analisando o romance O alegre canto da perdiz, buscaremos entender como essa sociedade
influencia na vida dessas mulheres e, consequentemente, na construção das personagens femininas do
romance. Para tanto, o estudo será embasado por conceitos de gênero, de Veras Soares, ideologia, de Luiz
Fiorin, e discurso e doutrina de Michel Foucault, para uma visão crítica dos fatos narrados, além de outros
autores, como Rita Chaves e Vítor Manuel de Aguiar e Silva.

Palavras chave: Paulina Chiziane. O alegre canto da perdiz. Personagens femininas. Patriarcalismo.
Colonização. Raça. Gênero.

Abstract:
R E V I S TA E N C O N T R O S

Through the readings of fictional work of Paulina Chiziane, it is possible to notice that African-Mozambican
woman has a place not far privileged in the patriarchal and colonized Mozambique. Analyzing the novel O alegre
canto da perdiz, set in that territory, we will seek to understand how this society influences these women’s lives
and thus the construction of the female characters of the novel. Therefore, this study will be based upon concepts
of gender by Veras Soares, ideology by Luiz Fiorin and discourse and dictate by Michel Foucault, for a critical
approach of the facts narrated.
Keywords: Paulina Chiziane. O alegre canto da perdiz. Female Characters. Patriarchy. Colonization. Race.
Gender.
40 ARTIGO

INTRODUÇÃO de igual importância no campo da poesia como No-


Para que possamos adentrar na escrita de Paulina emia de Sousa, Lina Magaia, Clotilde Silva e Lília
Chiziane e analisar os temas abordados na obra O Momplé, sendo a primeira delas bastante relevante
alegre canto da perdiz percebendo a relação desses na introdução do gênero feminino nas letras, assum-
com o contexto social e a construção de suas perso- indo uma voz crítica e politizada na sociedade pós-
nagens femininas, principal foco desse estudo se faz colonial que vivia na efervescência da (re)descoberta
necessária uma compreensão do contexto social em da nacionalidade. Paulina também se envolveu nas
que a obra é escrita. Para tanto, levaremos em con- questões políticas do país, fazendo parte da Frelimo,
sideração o teor social da arte seguindo as ideias de lutava contra o colonialismo e a favor da nacionali-
que esta é influenciada pelo social e ao mesmo tempo dade do seu povo. Entretanto, a sua literatura possui
exerce influências sobre ele. Como teoriza Antonio um engajamento de certa forma velado pela intenção
Candido sobre a arte, de, apenas, expor o modo de vida das mulheres como
a própria autora diz em entrevista,
Depende da ação de fatores do meio, que se
exprimem na obra em graus diversos de sublima- Eu sou uma mulher e falo de mulheres, então eu
ção; e produz sobre os indivíduos um efeito prático, sou feminista? É simplesmente conversa de mulher
modificando a sua conduta e concepção do mundo, para mulher, não é para reivindicar nada, nem exigir
ou reforçando neles o sentimento dos valores sociais. direitos disto ou daquilo, porque as mulheres têm um
(CANDIDO, 1985, p. 20-21). mundo só delas e é isso que eu escrevi, e espero que
isso não traga nenhum tipo de problemas, porque há
Tendo em vista esta importância do social na obra ainda pessoas que não estão habituadas e não con-
de arte literária, é por meio dessa linha de raciocínio seguem ver as coisas com isenção.1
que tomaremos a obra de Paulina Chiziane como uma
forma de descrição do meio em que ela vive, visto Como e porque, então a obra de Chiziane torna-
que as histórias por ela narradas ocorrem em seu país se polêmica se, como a própria diz, não quer exigir
natal, Moçambique. Consideramos também, o fato da nada? Levaremos em conta a afirmação de Abdala Ju-
autora ser mulher e falar de mulheres, tendo bagagem nior (1989, p.38) que diz que:
suficiente para olhar de maneira crítica a situação do A codificação literária, ao tornar o sujeito da enun-
gênero feminino. Sua literatura é conduzida por pre- ciação uma espécie de “radar” sociocultural, leva-o
ceitos reais de cultura, raça, relação de poder entre a trabalhar uma matéria que vai muito além de sua
gêneros e consequências da introdução do pensam- consciência. Caso ele seja um escritor consciente de
ento e ideais da cultura branca europeia em um país seu ofício – como acontece com frequência entre os
africano. escritores de ênfase social-, ele conhecerá a relativi-
R E V I S TA E N C O N T R O S

Chiziane é a única mulher moçambicana a percor- dade de suas “estratégias” discursivas e também as
rer os caminhos da prosa, foi precedida por outras potencialidades das estruturas textuais como elemen-

1- Entrevista disponível em: http://cronopios.com.br/site/critica.asp?id=4882


2 -Entrevista disponível em: http://cronopios.com.br/site/critica.asp?id=4882
ARTIGO 41

tos geradores de significação. dades, espaços, atitudes, poderes a serem distribuídos


A autora remexe as profundezas do feminino ex- entre homens e mulheres. O conjunto dessas classifi-
ercendo a função de observadora atenta da relação da cações é formado como moralidade que orienta nosso
mulher com o meio social, com as questões de raça, comportamento, estabelecendo o que é considerado
identidade, nacionalidade, e com a relação do poder certo e errado, mas não apenas isso, também funciona
masculino em detrimento do feminino, “dando às per- como um mecanismo de poder, hierarquizando as
sonagens um caráter mais nítido do que a observação pessoas e legitimando desigualdades.
da realidade costuma sugerir, levando-as, ademais, Essa ordenação da sociedade, por sua vez, ocorre
através de situações mais decisivas e significativas por intermédio de uma ideologia dominante. Fiorin
do que costuma ocorrer na vida” (CANDIDO, 1976, (2007) afirma que a ideologia é uma visão de mundo
p.35). Pondo em questão, por meio da exposição clara de uma camada da sociedade, isto é, a maneira como
e objetiva dos fatos, valores tradicionais ainda culti- uma classe ordena, justifica e explica a realidade. Em
vados na atualidade, muito embora ultrapassados. uma sociedade patriarcal a ideologia predominante é,
A obra da autora é inspirada na oralidade, forma sem dúvida, a do gênero masculino que se apropria do
como eram contadas as histórias africanas tradiciona- discurso para impor suas concepções doutrinárias na
lmente, ou seja, nas “Nkariganas em volta da lareira, sociedade. Segundo Foucault (1970, p.23),
que os nossos avós contam-nos”2 . Chiziane chega a
se considerar apenas uma contadora de histórias, pret- a doutrina liga os indivíduos a certos tipos de
erindo o status de romancista. Sua narrativa não perde enunciação e lhes proíbe, consequentemente, todos os
o foco do território afro-moçambicano, descrevendo outros; mas ela se serve, em contrapartida, de certos
por meio de signos poéticos a história desse lugar e a tipos de enunciação para ligar indivíduos entre si e
influência exercida por essa história na vida das per- diferenciá-los, por isso mesmo, de todos os outros.
sonagens.
Nesse caso, a doutrina funciona como um me-
1.GÊNERO, IDEOLOGIA E DISCURSO canismo de poder que afirma as desigualdades entre
homens e mulheres, já que confere a possibilidade de
Na sociedade moçambicana uma parcela consid- enunciação de uns em detrimento de outros.
erável das mulheres, principalmente dos territórios do No território colonizado, o negro, independente do
sul, não possuem escolaridade nem tão pouco apren- gênero, é marcado pela cor e pela cultura primitiva
deram a ler. Para essas mulheres expor suas próprias aos olhos eurocêntricos, que possui a ideologia veicu-
visões de mundo não se faz importante em uma so- lada por um complexo discurso opressor e excludente.
ciedade em que o discurso masculino é dominante, Mas, é a mulher que, além da cor da pele, traz no sexo
podemos entender essa diferença nos embasando pela o estigma de inferior diante dessa sociedade domi-
R E V I S TA E N C O N T R O S

definição de gênero de Ferreira Albenaiz (2009, p. 84) nada pelos homens e, sobretudo, pelo colonizador
o qual afirma que gênero é: europeu, tendo sua voz duplamente calada por essa
Uma das principais e primeiras formas de ordenar sociedade colonial e patriarcal. No romance, porém, o
o pensamento humano. As classificações culturais de discurso da mulher negra se faz dominante revelando
gênero são fortes porque ordenam a natureza, a socie- um lado da história que ainda não foi dada a devida
dade, as instituições e os modos de ser das pessoas de importância:
uma forma que parece envolver toda a vida humana.
Ele ordena nossa forma de pensar delimitando quali- -Pronto, já que me pedem termino. Os homens in-
42 ARTIGO

vadiram o nosso mundo – dizia ela -, roubaram-nos 2.A ESTRUTURA DO ROMANCE E A CON-
o fogo e o milho, e colocaram-nos num lugar de sub- STRUÇÃO DA NARRATIVA EM O ALEGRE
missão. Enganaram-nos com aquela linguagem de CANTO DA PERDIZ
amor e de paixão, mas usurparam o poder que era
nosso. (CHIZIANE, 2008, p. 22). 2.1 A narrativa e o tempo

É nele que a mulher legitima sua fala, relatando Narrado sob a perspectiva de um narrador de onis-
e desabafando sobre imposições que ultrapassam o ciência seletiva múltipla, a obra é um intercalado de
território do simples enunciado, desembocando em vozes que constroem a diegese do romance, como teo-
fatores vitais: riza Friedman (1967, p.9):

No mundo onde o homem manda os filhos são de a estória vem diretamente das mentes dos perso-
um só. A família tem peso de chumbo, tecido por la- nagens à medida que lá deixa suas marcas. Como re-
ços do mesmo sangue. Mas é um reino de lágrimas sultado, a tendência é quase inteiramente na direção
e de sofrimento. Com violência, os homens mantêm da cena, tanto dentro da mente quanto externamente,
as mulheres fiéis à paulada. A violência é produto do no discurso e na ação; e a sumarização narrativa, se
patriarcado, porque os homens roubaram o poder às aparece de alguma forma, é fornecida de modo dis-
mulheres. (CHIZIANE, 2008, p. 272). creto pelo autor, por meio da direção da cena.
A narrativa é iniciada in media res, isto é, “o
Saber que o romance foi escrito por uma mulher e começo do discurso corresponde a um momento já
que o mesmo revela a condição da mulher em Moçam- adiantado da diegese, obrigando tal técnica, como é
bique, através da voz das personagens femininas, nos óbvio, a narrar depois no discurso o que acontecera
faz perceber o desdobramento do enunciado da autora antes na diegese”. (AGUIAR E SILVA, 2009, p. 751).
nessa sociedade, através da construção do discurso de A obra tem como ponto de partida a história de uma
suas personagens. Neste sentido, Bakhtine afirma que: louca que surgiu em um povoado, e através do discur-
so aparentemente sem nexo de um louco, aos poucos
Todo produto da linguagem do homem, do simples se vai descobrindo aspectos de sua identidade, bem
enunciado a uma complexa obra literária, em todos como os motivos que a fizeram chegar naquele local
os momentos essenciais, é determinado não pela no estado de consciência em que estava. Tal motiva-
vivência subjetiva do falante, mas pela situação so- ção será revelada apenas em um momento mais avan-
cial em que se dá a enunciação (BAKHTINE apud çado da diegese num ponto máximo da narrativa em
CARBONI, 2005 p. 131). que será explicitada toda a história da louca Maria das
Dores relacionando-a com a história das outras per-
R E V I S TA E N C O N T R O S

Consideramos que o discurso de cada uma das sonagens. Segundo Aguiar e Silva (2009, p. 752), a
personagens revela a situação social em que vivem, narrativa in media res,
relatando sentimentos em relação ao que lhes são im-
postos por costumes definidos pela doutrina opressora [...] obriga o romancista a narrar posteriormente
do homem e do colonizador. As vozes do feminino são os antecedentes diegéticos dos episódios e das situa-
lamentos condicionados pelas poucas possibilidades ções que figuram na abertura do romance. Quer dizer,
de escolha que vitimam essas mulheres conduzindo- em relação à temporalidade do segmento diegético
as a um destino cruel e desumano. primeiramente narrado, o romancista institui uma
ARTIGO 43

temporalidade segunda, dando assim lugar a uma - Delfina teimosa, vais mesmo casar? Já imagin-
anacrônia. No caso do início in media res, a sintag- aste a dor que me colocas no peito? No quarto que
mática do discurso é reabsorvida pela primeira nar- deixas vazio? Na cadeira livre da tua presença? Que
rativa, que continua a desenvolver-se após aquela farei com o teu prato, teu copo, teu pente, teu espe-
interrupção. lho? Que farei de uma casa vazia sem o teu sorriso?
José começa a entender aquela mulher derrotada,
Sendo assim, podemos notar que, por vezes, a nar- que se anula, que se renega. Que não acredita na
rativa se utiliza da analepse, isto é, um recurso que própria existência, e nem se defende, e que se entrega
permite esclarecer o leitor sobre os antecedentes de à autoeliminação como um cordeiro na fogueira da
uma determinada situação. Em O alegre canto da imolação. Assustada como um rato com a emergência
perdiz, este recurso é utilizado por meio das lem- daquele casamento. Não era a raça que rejeitava, mas
branças das personagens, “o discurso, abruptamente, a dor antiga que a magoava. Estava possuída pelos
passa a narrar acontecimentos diegéticos diferentes fantasmas dos homens do mar e tentava eliminar, com
dos que vinha a narrar, entrecruzam-se vectores di- tinta vermelha, as marcas de uma raça. (CHIZIANE,
versos da intriga, associam-se e confundem-se tem- 2008 p.98).
poralidades distintas.” (AGUIAR E SILVA, 2009 p.
754). No trecho a seguir podemos notar claramente 2.2 A temática e o espaço
este recurso:
Na caracterização do espaço se faz presente el-
- De onde vens, condenado? ementos tanto naturais que reconstroem a paisagem
- Eu? do território da província da Zambézia, no Centro-
Na mente de José recordações da paisagem da in- norte moçambicano, quanto culturais, que revelam as
fância, com o canto das perdizes saudando o aman- características ideológicas de seu povo. Rita Chaves
hecer. Saudades do toque das marimbas ao luar, (2006, p. 271) afirma que:
imitando o canto das cotovias. Ah, minha terra, meu
monte, braços da minha mãe! (CHIZIANE, 2008, p. Além de inúmeros espaços interiores e exteriores,
68). psicológicos e físicos, impõem-se decisivamente, na
construção da ficção moçambicana, a figuração de
Tais lembranças, resgatadas em analepses, por sua três espaços englobantes: a cidade, o subúrbio e o
vez, permitem classificar o tempo do romance como campo. Quer individualmente, quer conjuntamente,
predominantemente psicológico, já que se configura trata-se de dimensões cuja representação transporta
“imerso no labirinto mental de cada um, apenas crono- uma enorme carga simbólica e informacional tanto
metrado pelas sensações, ideias, pensamentos, pelas como lugar de convivência quanto lugar de conflito.
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vivências, em suma, que, como sabemos não tem


idade: pertence à experiência mais corriqueira, repeti- Levando em consideração que o espaço cultural
da diariamente” (MOISÉS, 1986, p. 121). O tempo em questão retrata uma sociedade onde problemas so-
se faz presente, futuro e passado na reflexão e senti- bre raça e gênero estão em constante diálogo, visto ser
mentos dos personagens sobre suas vidas e destinos, um território colonizado e patriarcal, tais implicaturas
artifício usado no romance como comprova o trecho mostram ser o combustível principal para os conflitos
que segue: vividos pelas personagens do romance. Como afirma
a citação a seguir:
4 4 ARTIGO

Lembra-se de tudo, da terra e do mundo. Onde a Viemos em passos silenciosos dos fugitivos, em passos
cultura dita normas sobre homens e mulheres. Onde agressivos de conquistadores. Nascemos diferentes
o dinheiro vale mais que a vida. Onde o mulato vale vezes com diferentes formas. Morremos várias vezes,
mais que o negro e o branco vale mais que todos eles. silenciosamente, como os montes na corrosão dos
Onde a cor e o sexo determinam o estatuto de um ser ventos. (Chiziane, 2008, p. 24).
humano. Onde o amor é abstração poética e a vida
se tece em malhas de ódio. (CHIZIANE, 2008, p. 27). É, portanto, a mulher dessa região moçambicana
que tem por inclinação natural a criação de uma nova
Na sociedade em que o colono e o homem ditam as raça e por consequente, um novo mundo onde a mis-
leis, a mulher negra é sujeita a admitir e reconhecer-se cigenação irá amenizar o sofrimento do negro. Como
inferior e limitada, tornando-se um ser sem escolhas a autora já evidencia na escolha da epígrafe que cita
e completamente sujeita às vontades do homem. Em Dya Kasembe: “Entre as pernas da mulher, correm os
entrevista a Manuela de Sousa (2006), Chiziane é ar- caminhos do mundo”, o que atribui a elas um renova-
guida sobre a questão da repressão das mulheres e um do sentido de poder, pois é do ventre da nativa que
fato interessante é observado na resposta da escritora: surgirá uma nova raça.
O negro nativo tem sua cultura abafada pelos colo-
Uma mulher além de cozinhar e lavar, para ser- nizadores, vê-se sempre à margem dos acontecimen-
vir uma refeição ao marido tem que fazer de joelhos. tos de suas vidas, não tendo escolhas diante do branco
Quando o marido a chama, ela não pode responder colonizador. Como podemos ver no trecho a seguir:
de pé. Tem que largar tudo que está a fazer, chegar di-
ante do marido e dizer ― estou aqui. Há pouco tempo E tu, Delfina, escolhes o caminho do sofrimento.
um jornalista denunciou um professor de Gaza. Nas Vais casar com um preto, parir mais pretos e mais
aulas, quando fazia perguntas, os rapazes respon- desgraças. Com tantos brancos que te querem bem.
diam de pé, mas obrigava as meninas a responderem Não custa nada eliminar a tua raça para ganhar a
de joelhos. Quando as alunas iam ao quadro, tinham liberdade. Temos que resistir, Delfina, temos que re-
que caminhar de joelhos e só quando lá chegavam sistir. Temos que nos submeter à vida que nos impõem,
é que se punham de pé. O professor foi criticado e acreditar no Deus deles, esse ser invisível e sem for-
prometeu mudar, mas para a comunidade, ele estava ma concreta. (CHIZIANE, 2008, p. 101).
a agir corretamente.3
A raça negra se vê em constante conflito, de um
O alegre canto da perdiz é um romance em que as lado a sua cultura, o seu sangue, sua identidade e do
questões de gênero e raça, bem como o espaço natu- outro, a possibilidade de viver decentemente, mas não
ral, se entrelaçam na construção de sua temática. O humanamente, dado que para isso teriam que negar a
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romance aborda o feminino em uma leitura complexa própria cultura e se entregar a uma cultura que renega
do corpo da mulher e da crença que “a Zambézia é os valores de seus ancestrais, tonando-se um assimi-
o centro do cosmos, que tem nos Montes Namuli o lado5.
ventre do mundo”4. E se levarmos em conta que “as identidades são
Afirma ainda a romancista: estruturadas por meio de valores sociais e culturais,
Temos o sangue dos franceses, brasileiros, in- baseados nas classificações que orientam nossas
dianos de Goa, Damão e Diu, desterrados nos pal- ações” (SOARES, 2009, p.180), a mistura das raças
mares da Zambézia. Viemos da nobreza e da pobreza. seria, portanto, uma forma concreta de assimilação de
ARTIGO 45

valores culturais e identitários. Dessa forma, o mes- p.273) quando esta afirma que no romance moçambi-
tiço significa a melhoria de uma cultura desvalorizada cano “quase todas as personagens oscilam entre a in-
por preceitos racistas e preconceituosos, já que ele te- dividualização e a socialização”, para as analisarmos
ria na cor da pele a materialização de uma nova iden- consideraremos as suas atitudes, suas ações, o drama
tidade cultural, podendo assim, ser mais bem aceito protagonizado por elas, as falas realizadas e o nome
na sociedade. carregado.
O corpo também se mostra como canal de vitima- Serafina é a mulher que dá origem a essa geração e,
ção da mulher, quando é por meio dele que ela experi- por ter vivido no inicio da colonização, experimentou
menta situações conflitantes entre o desejo genuíno e mais intensamente o que o colonizador fazia com a
sua impossibilidade de escolha. A mulher está sujeita sua terra, a sua cultura e com a vida dos nativos. Vi-
a situações que a diminuem ainda mais, uma vez que veu momentos de aflição e perda, quando via sendo
aqui ela não tem posse nem do próprio corpo quando: retirado do seu convívio seus filhos homens para es-
cravidão. “Serafina absorveu a vida inteira as injúrias
O casamento prematuro, de mistura com a prosti- nos gritos dos marinheiros que acabaram semeadas
tuição infantil, cruza-se com conflitos conjugais e de na consciência. Na arena da consciência luta contra
gerações, surgindo como fenômenos que sustentam ti próprio numa batalha sem vitória.” (CHIZIANE,
jogos de interesses de progenitores preocupados ape- 2008, p. 92). E diante disso, passa a temer o homem
nas com a sua ascensão social ou com o pagamento branco e a entender que, apenas se juntando a eles em
de dívidas a credores poderosos. (NIGOMANE apud detrimento da própria identidade, irá conseguir que
CHIZIANE, 2008, p. 340). sua vida tome rumos mais felizes.
Ela se entrega à bebida e usa o próprio corpo para
Como podemos observar, a posse de si e, por conseguir o que quer, mostra-se ainda mais determi-
consequente, a posse de seus destinos é completa- nada ou, quem sabe, enlouquecida, quando entrega a
mente negada às mulheres representadas no romance, sua própria filha Delfina ao homem branco em troca
através das personagens. de azeite, vinho e bacalhau, signos de uma boa vida
e marcas da cultura portuguesa, iniciando uma onda
2.3. A construção da personagem feminina em de acontecimentos dolorosos e revoltantes. É dela que
O alegre canto da perdiz vem o desejo primeiro da miscigenação e que influ-
encia tanto a mente quanto a vida da sua filha e neta.
Serafina, Delfina e Maria das Dores retratam três Delfina, por sua vez, é uma mulher “inteligente,
gerações entre o período colonial e pós-colonial, cujo bela e agressiva. Supera todos os obstáculos e supera-
percurso canaliza um diálogo constante entre raça, se a si mesma, se o obstáculo for ela própria” (CHIZ-
gênero e identidade, uma vez que esses são fatores IANE, 2008, p. 92). Mas vê a sua vida tomar rumos
R E V I S TA E N C O N T R O S

primordiais que guiam seus destinos. nunca antes imaginados por ela, porém, determinados
Seguindo o raciocínio de Rita Chaves (2006, por sua condição de mulher e negra em uma terra es-

3 - Disponível em: http://cafezambeze3.multiply.com/journal/item/1233?&show_interstitial=1&u=%2Fjournal%2Fitem.


4 - NIGOMANI, Nataniel. Posfácio. IN: CHIZIANE, Paulina. O alegre canto da perdiz, 2008, p. 341.
5 - Denominação dada aos negros que aderem à cultura do português.
4 6 ARTIGO

cravizada. Tinha o sonho de estudar e tornar-se pro- valorização e aceitação de si como uma mulher bem-
fessora e assim mudar de vida, mas não foi bem isso sucedida. Assim,
que a condição de negra e bela a possibilitou. Teve Não, não era ela a culpada de tudo. Foi gerada
seu corpo entregue aos brancos em troca de dinheiro no berço de um tormento. Aprendeu a vida na moral
e por isso, todos os caminhos foram-lhes fechados por das ruas. Produz alimento nas minas do sexo. [...]
aqueles que poderiam lhe ajudar, isto é, os guardiões Delfina dos contrastes, dos conflitos, das confusões e
da boa moral. contradições.(CHIZIANE, 2008, p. 166)
Revoltada com o rumo que sua vida tomou, rev-
elou-se uma mulher sem escrúpulos, que enfeitiçava Assim como sua mãe, Maria das Dores experi-
brancos e destruía famílias, que levava virgens para mentou a dores de ser uma mulher vitimada pelo sexo,
o caminho da perdição e que entregou sua filha a um pela cor e pela pobreza. Filha do preto José dos Mon-
feiticeiro em troca da fortuna e da vida fácil que sem- tes, foi a primogênita de Delfina, amada e bem quista
pre almejou. Quando se viu perdida e abandonada por pelos pais até o momento em que a ambição de sua
todos, procurou achar as respostas para seu sofrimen- mãe começou a mudar o rumo de suas vidas.
to e encontrou culpados: Com a partida do seu pai negro, Maria das Dores
ganhou um pai branco, que também a amou e que
Por culpa da minha mãe que me fez preta e me lhe deu uma irmã mulata, tirando-a do posto de filha
educou a aceitar a tirania como destino de pobres e querida e a colocou no de empregada; não por si, pois
a olhar com desprezo minha própria raça. Por culpa a amava, mas por sua mãe que cobiçava o status de
do Simba, meu amante e teu marido, que me alimen- mãe da nova geração. Maria das Dores logo conheceu
tou de feitiços e fantasias destrutivas. Por culpa da o sofrimento e esse parece transparecer pelo próprio
natureza que me deu beleza sobre todas as mulheres. nome que carrega. Com os delírios crescentes da mãe
Por culpa do José, pobre preto, que me alimentava ficou sem o pai branco e sozinha para cuidar da casa
de farinha e peixe seco, enquanto eu, Delfina, queria e dos irmãos, já que a mãe só se preocupava com a
bacalhau e azeitonas. A culpa é do Soares, que me própria beleza e o dinheiro. Até que chegou o dia em
elevou aos céus e me largou no ar. A culpa foi minha, que foi entregue ao feiticeiro e amante de sua mãe,
por ter desejado ser o que jamais poderia ser. (CHIZ- Siba, como pagamento de uma dívida, comprovando
IANE, 2008, p. 44). a previsão do avô: “Até parece que o teu destino será
caminhar pelos vales, pelas montanhas, pela terra in-
No desabafo de Delfina é possível ver que ela não teira para embalar as dores, oh, pequenina! Esta mãe
teve escolhas, embora quisesse mudar de vida por louca um dia hipotecará a tua vida e te arrastará por
meio dos estudos, não pôde, porque seu pai não quis caminhos de dor, ah, Maria das Dores!” (CHIZIANE,
se tornar um assimilado do sistema colonial, o que a 2008, p. 155).
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fez guiar seus sonhos por caminhos sinuosos, sendo Maria das Dores conheceu a dor de ser casada e
vítima e vitimando outras mulheres na busca pela de dividir o marido com outras mulheres, conheceu
ARTIGO 47

a dor provocada pela a pobreza e pela fome e a ago-


nia e destruição do álcool e da suruma 6, usados para 2.4. A linguagem poética
amenizar o sofrimento. Mas foi a perda dos seus fil- Paulina Chiziane em seu romance concede um es-
hos quando tentava fugir do marido, que a marcou tão paço para suas personagens relatarem suas experiên-
profundamente que a levou à loucura, fazendo com cias de vidas repletas de indagações e emoções em
que ela se perdesse no espaço e no tempo do esqueci- uma sociedade marcada por injustiças. E é justamente
mento: no âmbito das emoções que localizamos uma escrita
rica em figuras de linguagem, que provocam, desper-
A imagem do marido é a fórmula de amargura, tam e enaltecem os sentimentos mais profundos, e
não quer recordá-la. A mãe é a fórmula de amargura, que, por sua vez, concedem leveza ao texto que fala
nem quer revivê-la. A família era uma constelação de de assuntos nem sempre agradáveis.
pretos, brancos, mulatos à mistura, baseada em hier- A autora faz uso constante da linguagem poética
arquias e falsas grandezas. Por isso fugiu de tudo e e, embora a use para relatar uma realidade, essa se
aprendeu os segredos da solidão. A sorrir a brisa. A revela subjetiva a partir do momento que a linguagem
conversar com o vento e a beijar as estrelas. (CHIZ- ultrapassa o simples narrar objetivo e se mescla com
IANE, 2008, p. 27). os sentimentos e emoções, como se pode notar:

A última, mas não menos importante, é a Jacinta, O ser humano despe-se das suas roupas, mas nun-
mulata e bela, tesouro há muito almejado por sua ca se despe dos seus atos. As imagens amargas estão
avó e mãe, símbolo da liberdade e da evolução da gravadas nas córneas como tatuagens.
cor negra. Possui o dilema de não saber o seu lugar, Sobre o vermelho do peito e o negro da noite José
não é negra nem branca, é mulata e não se sente bem dos Montes uiva o seu delírio. Suportei longas mar-
quista em nenhum desses extremos “diante dos pre- chas. O assobio das serpentes. Segui a senda penosa
tos chamavam-lhe branca. E não queriam brincar com num tapete de espinhos. Na busca de Deus, talvez, ele
ela. Falavam mal da mãe e diziam nomes feios. Di- olha para o céu. (CHIZIANE, 2008, p.189).
ante dos brancos chamavam-lhe preta.” (CHIZIANE,
2008, p. 247). Comparando-se às outras personagens, Outra forma de linguagem que se insinua no texto
seu sofrimento é diminuto, teve uma infância feliz na de Chiziane é a da oralidade que possui o “caráter re-
companhia dos pais e dos seus irmãos, a sua maior frescante e pitoresco das situações e dos dramas do
dor foi a separação de Maria das Dores, que cuidava cotidiano” (CHAVES, 2006, p. 270). É a linguagem
dela como se fosse uma boneca, filha de uma criança. que reflete a influência da tradição oral africana e que
Conseguiu estudar e casar-se, uma vida perfeita aos concede ritmo e melodia à escrita, tal como em:
olhos da mãe e da avó, e tudo isso por não ser negra
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pura como era sua irmã Maria, confirmando a crença O mar estava demasiado fresco quando o alca-
de que o mundo pertence à nova raça. nçou. Descalçou-se. Lançou o corpo às ondas, na

6 - Suruma: Cannabis Sativa.


4 8 ARTIGO

olímpica corrida para as profundezas do fim. Sentiu rememoraram e relatam suas existências, tendo como
que a morte era fria. Líquida. Tinha sabor a sal e pano de fundo o espaço físico e cultural da Zambézia,
à fluidez das ondas. Para aumentar a sua desgra- em Moçambique.
ça, o mar varre-o, vomita-o para longe, despreza-o. Percebemos como a ideologia do branco e do
(CHIZIANE, 2008, p.189) homem domina as doutrinas e cria situações de con-
flitos em relação àqueles que não compartilham da
E é aqui, que nos deparamos também com “a lin- mesma ideia. O discurso dominante do homem e do
guagem da tradição ritualizada, quer pelas canções colonizador, no entanto, perde espaço no romance
populares, quer pela voz implacável dos mais velhos.” quando encontramos nele relatos de vida tanto da
(CHAVES, 2006, p.270) rica do imaginário e do con- mulher quanto do negro. São os excluídos que são o
hecimento populares, como vemos na voz do curan- foco principal da escrita de Chiziane, revelando-se
deiro Moyo: importante na construção da narrativa.
A narrativa é tecida por uma linguagem poética
-O deserto está dentro de cada um. Nesta terra não que bebe na fonte da oralidade e da linguagem ritual-
há deserto, tudo é verde e tudo ri. Deserto é o con- izada, inerentes à cultura africana. E é construída por
traste entre a riqueza da Zambézia e a pobreza do meio de vozes que intercalam emoções e sentimentos
povo. Deserto será a Zambézia depois da pilhagem provindos da experiência de ser oprimido e injustiça-
colonial e da devastação florestal pelos predadores do pelas práticas sociais. É por meio dessas vozes e
universais que parasitarão todas as árvores, ma- sentimentos que Paulina Chiziane provoca no leitor a
deiras e mariscos que são teus para te trazerem em reflexão sobre a vida do negro e, principalmente, da
seguida o catecismo sobre o maneio ambiental e a mulher no território moçambicano.
doutrina contra os perigos da desflorestação. (CHIZ- Sendo assim, a construção das personagens femi-
IANE, 2008, p. 191). ninas no romance O alegre canto da perdiz, parte da
ideia da negra nativa do território de Moçambique,
CONSIDERAÇÕES FINAIS mais especificamente da província Zambézia, con-
O romance, O alegre canto da perdiz, revela em siderando as influências da ideologia do colonizador
sua diegese a vida de personagens marcadas por pre- e do sistema patriarcal na definição tanto do caráter de
ceitos excludentes de gênero e raça. Tais personagens cada uma delas, quanto de seus destinos.
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ARTIGO 49

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50 ENSAIO

FERNANDO PESSOA, O
TAL DO “FINGIDOR”:
NO PALCO DA
DRAMATURGIA
CONTEMPORÂNEA
por Renata Pimentel1

“Nunca conheci quem tivesse levado porrada.


Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
R E V I S TA E N C O N T R O S

Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,


Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
ENSAIO 51

Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes e cosmovisões divergentes entre eles, e entre eles
- na vida...” e o próprio Pessoa), o poeta engendra a liberda-
de necessária para atingir o mais elevado grau de

P
rincipiemos pela transcrição desse trecho do ficcionalização de si, fazendo-se outros até na no-
Poema em Linha Reta, de Álvaro de Campos, minação e podendo matar a esses outros de si. Por
ou seria de Fernando Pessoa? Ou dos dois? exemplo, seu “mestre” Alberto Caeiro morre em
Quem, porventura, conheça com menos profun- 1915, em decorrência de tuberculose (moléstia que
didade o trabalho poético deste Pessoa, por certo já traz em si forte conotação literária3).
não ignorará de todo o nome de seu criador e das Poderíamos fazer eco com o dito popular de que
tantas criaturas em que se multiplicou. A heteroní- “toda vida vale um conto”, mas há vidas que, mais
mia pessoana é fenômeno dos mais difundidos e es- que isso, valem a proliferação em tantas outras vi-
tudados por especialistas de toda sorte. Aqui não se das, para além do próprio período cronológico exis-
pretende afundar mais os olhos nessa questão, mas tencial e se desdobram, efetivamente, em tantos se-
sim espiar pelo viés, também já ele bem conheci- res que se convertem em realidade literária. Assim,
do, das relações entre biografia e ficção, como uma sem dúvida, ocorre com Pessoa e com cada um dos
chave fundamental de acesso ao universo literário outros de si que criou.
e mecanismo essencial – aqui defendemos – de pro- Como então atestar os limites precisos e as re-
liferação da série literária. lações exatas entre biográfico-real vivido e biográ-
A professora e pesquisadora Eneida Maria de fico-real ficcional/inventado? Ficam-nos as tênues
Souza, das mais profícuas e perspicazes, dedicou- fronteiras e o literário alça status de espaço legíti-
-se a ensaios vários no campo da crítica biográfica2 mo da vida. Como vaticinou Oscar Wilde: “A vida
e, entre eles, dedicou um em especial a Pessoa. A imita a arte”. Assim, na lista vasta em que prolifera
luz que Eneida nos empresta vem de um recorte Pessoa: Alberto Caeiro; Álvaro de Campos; Bernar-
sob o tema da morte: do Soares e tantos tantos, entre eles um tal Ricardo
Reis, que – ao existir como ser de invenção real,
[...] Fernando Pessoa inaugurou uma poética com vida e obra, pode - na criação de um certo
original, elegendo a morte do autor como José Saramago (O Ano da Morte de Ricardo Reis,
princípio básico, multiplicando-se em h e t e r ô - 1984) - sobreviver a seu criador Fernando Pessoa
nimos, e reiterando a perda do sujeito nomeio de e entregar-se à tutela de tecido existencial urdida
outras vozes, por meio da criação de diversas ins- por outro.
tâncias discursivas. (2011: 81). Agora, ao se constituir personagem de Sarama-
go, Ricardo Reis retorna do Brasil, em 1936, e pas-
Assim, desdobrando-se em tantos outros, com sa este último ano de vida em Lisboa, chegando a
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requintes de criar-lhes biografias, mapas astroló- visitar o túmulo de seu “antigo criador”. Os eventos
gicos e personalidades (inclusive estilos literários transcorrem um ano após a morte de Pessoa (que

1 - Doutora em Teoria Literária pela UFPE e Professora Adjunta de Literatura da UFRPE.


2 - Conferir: SOUZA, E. M. Janelas Indiscretas: ensaios de crítica biográfica. Belo Horizonte: UFMG, 2011.
3 - Lembremos os estudos de Susan Sontag relacionando doenças e suas metáforas no espaço literário (conferir de Sontag:
A Doença e suas metáforas e a Aids e suas metáforas).
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acontece em 30 de novembro de 1935, segundo O Fingidor, cuja estreia em 1999 rendeu ao autor
obituário em decorrência de crise hepática), até o prêmio Shell (e depois, em 2003, pelo Programa
que Ricardo se “reencontre” com Fernando, ao Nacional Biblioteca da Escola teve edições distri-
morrer por “decreto” ficcional de Saramago. Este buídas pelo Governo Federal para 475 mil alunos
romancista torna-se cúmplice de Fernando Pessoa da rede pública de ensino).
na criação de Ricardo Reis e, ainda, cúmplice de Quem é, pois, o “tal fingidor” a que alude o dra-
Reis, ao aderir à “rebeldia” do heterônimo e com- maturgo se não o próprio Pessoa, expressão retira-
pactuar com a sobrevivência de um ano além do da dos seus próprios famosos versos!
período cronológico existencial de seu antigo cria- Na esteira da dramaturgia é farta a lista de tex-
dor (Pessoa), tornando-se o “novo criador” do po- tos/espetáculos em que a biografia é tema central,
eta Ricardo Reis e engendrando seu último ano de sobretudo no contexto da chamada dramaturgia
vida. contemporânea, talvez convertendo esse enlace
Nesta série literária em que proliferam as cria- “vida/ ficção e teatro” num dos traços peculiares
ções de mortes do próprio Pessoa e de suas cria- e recorrentes da encenação em nosso contexto de
turas heterônimas, Eneida Souza traz à baila o século XXI. Sobre isso especula o pesquisador Au-
romance do italiano Antonio Tabucchi, Os três úl- gusto Rodrigues:
timos dias de Fernando Pessoa – um delírio (1994).
Aqui, o que se tem é uma breve narrativa sobre os Na transformação do conjunto biográfico em
dias finais de Pessoa no Hospital de São Luís dos teatro, algo fundamental é acrescentado à imagem
Franceses, em Lisboa, por consequência da crise pública que ficou e foi transformada para/ pela
hepática que o levaria a óbito e das visitas que re- posteridade. [...] O criador, no caso de artistas,
cebe de seus mais notórios heterônimos (Alberto passa à condição de ser criado nas mãos de outro
Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Bernardo criador. A biografia teatral é mais uma versão da
Soares e Antônio Mora). história, e a sutil diferença é que o espectador está
Eis que chegamos ao ponto fundamental que diante de uma personagem e não de um ser de car-
nos trouxe ao palco, ou melhor, a este breve texto. ne e osso. O interessante nessa recriação drama-
Retomemos os versos do Poema em Linha Reta, ci- túrgica é exatamente lidar com mitos da indústria
tados inicialmente. O “retrato” que advém da voz cultural. (2010: 57).
lírica, numa leitura imediata - mas suficiente ao
nosso propósito, é o “testemunho” de um eu líri- Na peça de Yazbek, Pessoa se traveste em mais
co que se confessa sujeito “perdedor, não-nobre”, uma criação de si mesmo, batizada de Jorge Ma-
criatura “reles, vil e até parasita”. Volto à mesma deira, que é apenas um disfarce do poeta para
questão: seria esse sujeito Campos ou Pessoa? empregar-se como datilógrafo de um pesquisa-
R E V I S TA E N C O N T R O S

O trecho do poema está incorporado ao texto dor especialista na obra, justamente, de Fernando
dramatúrgico do paulista Samir Yazbek intitulado Pessoa. O “professor José Américo” está a redigir
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Palestra a ser proferida sobre a obra daquele que nalização de Pessoa e seus heterônimos, um ver-
considera ser o “gênio da poesia modernista portu- dadeiro exercício de metaliteratura dramática, em
guesa”. Pessoa, em dificuldades financeiras (traço que a personagem Pessoa transita disfarçada de
conhecido de sua trajetória biográfica – real(?)), Jorge Madeira (e dialoga com seus heterônimos) a
aceita travestir-se de homem simples (que afir- discutir o cenário da crítica literária, o fazer poéti-
ma ao professor contratante não gostar sequer de co, as máscaras todas sob as quais se escondem as
poesia) para ser datilógrafo do texto crítico sobre notabilizações referendadas pelo universo da Aca-
a obra do tal poeta Pessoa. Seria a união entre a demia, as fraquezas/inseguranças e fragilidades
necessidade financeira e a curiosidade/vaidade do que humanizam o artista e, em mais uma morte
Pessoa-personagem de Yazbek que levaria o poeta sua, no palco, a proliferação do mito Pessoa e do
a engendrar tal disfarce? que de mais concreto ele legou: seus escritos.
O fato é que Fernando Pessoa, no espaço da Assim, fazem eco as palavras de Eneida de Sou-
peça, também já enfrenta estado precário de saúde za, após decorridos tantos anos da morte de Fer-
e convive em diversos encontros com seus heterô- nando Pessoa: “o que permanece são a imortalida-
nimos (Caeiro, Campos e Reis), além de com sua de de uma obra e a transfiguração imaginária do
irmã Henriqueta, com a governanta do professor poeta, que se multiplica em personagem na pele
Américo, chamada Amália (com quem Jorge Ma- de outros autores e de textos distintos.” (2011 p.
deira/Fernando Pessoa terá envolvimento afetivo) 87). Ou seja, mais um elo na proliferação da série
e, ainda, com um jovem poeta e entusiasta da obra literária em que “O Fingidor” Pessoa enseja novas
de Pessoa (o sobrinho de Amália, Miguel) e com e constantes revisitações a sua(s) persona(s) e dá
Afonso Camargo (editor da Revista Presença, que mote, mais do que a especulações tolas sobre factu-
publicou boa parte da obra de Pessoa). alidades biográficas, à permanência da verdade
Trata-se de, mais que outro exemplar da ficcio- poética.

Referências Bibliográficas
R E V I S TA E N C O N T R O S

RODRIGUES, Augusto. “Ser todos os seres: teatro e biografia na dramaturgia brasileira contemporânea”, in: GOMES, André
Luís. Leio teatro. São Paulo: Horizonte, 2010.
SARAMAGO, José. O Ano da Morte de Ricardo Reis. São Paulo: Cia das Letras, 1988.
SONTAG, Susan. A Aids e suas metáforas. São Paulo: Cia das Letras, 2007.
SONTAG, Susan. A Doença e suas metáforas. São Paulo: Graal, 1984.
SOUZA, E. M. Janelas Indiscretas: ensaios de crítica biográfica. Belo Horizonte: UFMG, 2011.
TABUCCHI, Antonio. Os três últimos dias de Fernando Pessoa – um delírio. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
YAZBEK, Samir. “O Fingidor” in: O Teatro de Samir Yazbek. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006.
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O CAVALO NOTURNO
NO ESPAÇO
VIVIFICADOR E NO DE
MORTIFICAÇÃO
José Jacinto dos Santos Filho1

O
s espaços nas narrativas literárias nos convidam a habitá-los e neles descansar nossos olhos, tendo
esses espaços como os lugares de nossos virtuosos sonhos de felicidade. Os lugares da literatura
nos são íntimos, passamos a percebê-los nas imagens que nos fazem sair do chão e encontrá-los na
morte das palavras. Lugares que se percebem a partir das fissuras das palavras-imagens despertadas na
imaginação do leitor. Teolinda Gersão (2007), em seu conto Cavalos Noturnos, conduz-nos a esses espaços
por intermédio de uma personagem que experiencia momentos de alegria e momentos de angustiante dor
em virtude da perda de seu companheiro. Uma personagem que transita entre dois espaços antagônicos
o da vida e o da morte. Este, disfórico, que passaremos a chamar de mortificação; e aquele, eufórico, que
chamaremos de vivificador (SANTOS FILHO, 2009). Assim, é a partir desta ideia de espaço que procura-
remos analisar o conto de Gersão.
O conto trata do drama de uma mulher que viaja com seu companheiro a Nova Iorque a procura de tra-
tamento para uma doença que ele adquiriu e, lá chegando, descobrem que só o restam três meses de vida.
A narrativa nos revela a expectativa e a ansiedade de quem não quer perder a quem se ama pela morte. É
uma história banal, mas desenvolvida com muita maestria. O conto é estruturado de forma labiríntica, con-
duzindo o leitor a um lugar imaginário vivido pela personagem para participar das venturas e frustrações
R E V I S TA E N C O N T R O S

de uma mulher angustiada pela presença da morte.


A história começa com a personagem que sonha montada num dorso de um cavalo, em noite escura e

1 - Doutorando em Educação pela UFPE; mestre em Teoria da Literatura (UFPE); e professor da UPE/Campus Mata Norte e
da Faculdade de Ciências Humanas de Olinda (FACHO).
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num lugar desconhecido. Nada lhe servia de refe- Psiquê, quando acende a luz da lamparina, de-
rência numa paisagem noturna a cavalgar por um seja se sentir segura de conhecer o seu amado que
não-lugar, pois nele não existia qualquer identifica- deverá ser revelado diante de seus olhos. Tudo que
ção de pertencimento. Na garupa do corcel, mal se ela quer é ver a quem ama. A escuridão acorda
lembrava de seu nome, mas o nome de seu compa- nossos monstros, ou nos revela a profundidade de
nheiro mantinha-se lúcido, como também lhe era nossos porões. Tememos a descida ao porão, pois
vivo o fato da morte dele. nele encontramos nossos medos. E o medo da per-
A protagonista se sustenta na crina do cavalo sonagem é da morte de seu amor, ou ainda mais do
mítico e com ele galopa na escuridão. O cavalo é desconhecido, da ausência, do abandono de Eros.
uma figura mítica que transita nos espaço da vida e Está no porão, o que nos indica Bachelard (2003),
da morte. Segundo Chevalier e Gheerbrant (2003), a presença dos seres mais temerosos, mais misterio-
o cavalo é associado às trevas do mundo ctoniano sos de nosso inconsciente, e nele só há trevas, como
que tanto pode surgir das entranhas da terra como também o cavalo de Hades, sobre o qual a protago-
das profundezas abissais do mar. Mas também, de nista poderá estar galopando.
acordo com a psicanálise junguiana, ele simboli- No fragmento do conto citado acima, ela é con-
za o inconsciente ou a psique não-humana. Esse vidada a ir repousar num lugar desconhecido, nada
animal ctônico também se eleva à luz, ele é noite familiar, isso é mais um motivo para deixá-la em
anunciando dia, tendo assim uma função positiva pânico, numa sensação de clausura que a mortifica,
daquilo aparentemente negativo. pois é um espaço de mortificação, que a deixa im-
O sonho da protagonista montada no dorso do potente. Ela procura um espelho, isto é, busca “a
cavalo, numa visão junguiana, revela-se como a verdade, a sinceridade, o conteúdo do coração e da
manifestação do seu inconsciente. O desejo de se consciência” pelo reflexo, como dizem Chevalier e
safar do espaço desconhecido e temeroso, porque Gheerbrant (2003, p. 393). No entanto, ela se de-
é espaço de mortificação. Este que se caracteriza para com uma cortina rasgada num canto. O que
pelo aprisionamento da persona à vida, marcando- vela ou revela uma cortina? Esta serve de separa-
-a pela ausência de quem ela tanto gostaria que es- ção do conhecimento que poderá estar oculto ou
tivesse ao seu lado. Tal espaço não lhe dá certeza de ainda não revelado. Mas, para a protagonista, não
nada e as lembranças assediam-lhe dolorosamente deixa de ser possível ver o outro lado da verdade
a distância do outro. Leiamos a passagem do conto pelo rasgo da cortina – solidão, dor, ansiedade.
abaixo: O espaço de mortificação age como instância de
coerção sobre a protagonista que se sente emocio-
Não vou conseguir apagar a luz, pensei, por- nalmente fragilizada, tensa. Ela se sente comprimi-
que me sentia entrar em pânico, no escuro. Como da, não em razão do espaço em si, mas em virtude
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na noite em que foste operado em Nova Iorque e de seu estado de ansiedade. O espaço revela-lhe o
não me deixaram ficar ao pé de ti, mandaram- que de fato ocorre em sua intimidade naquele ins-
-me ir dormir num lar de enfermeiras, em frente ao tante de expectativas. Vejamos o fragmento abaixo:
hospital. Um quarto limpo e vazio como uma cela.
Reparei que nem sequer tinha um espelho, e que [...] De cada vez que apagava a luz entrava
havia na casa de banho uma cortina de plástico em pânico como se o tecto, as paredes, o edifício
transparente, rasgada num dos lados. (GERSÃO, desabassem sobre mim. Não conseguia respirar e
2007, p. 7). sentei-me na única cadeira. Era muito incómoda,
56 ENSAIO

de espaldar direito. Pouco depois, senti-me exaus- gua do outro a distancia do espaço dele, que era
ta. (GERSÃO, 2007, p. 7-8). também o seu. Tuan (1983, p. 155) declara que
“a ausência da pessoa certa, as coisas e os lugares
O espaço não está aquém de nossos pés, ele está rapidamente perdem significação [...]”. Os espaços
na relação que mantemos com o mundo. Somos não são vazios, eles são cheios de coisas que são
mundo e, portanto, localizamo-nos cosmicamente pontos de apoio ou referenciais. Dialogamos com o
em tudo. O outro é também lugar porque perce- espaço e suas coisas. Tuan (1983, p. 156) compre-
bemos nele nossas referências – cor, cheiro, sabor, ende que “os lugares íntimos são tantos quantos as
pele. Os sentidos nos fazem chegar ao outro e o ocasiões em que as pessoas verdadeiramente esta-
outro a nós. Merleau-Ponty (2006, p. 328) diz que belecem contato”. Assim, quando nos recordamos
“o espaço não é o ambiente (real ou lógico) em que de um lugar o imaginamos cheio com tudo aquilo
as coisas se dispõem, mas o meio pelo qual a po- que nos é familiar.
sição das coisas se torna possível”. A protagonista A protagonista a todo instante exorta o tempo.
do referido conto se localiza no outro, tem no seu Pede-lhe pausa, não o quer ver passar e a distan-
companheiro sua pátria, pois esta lhe representa “o ciar de seu amado. Vejamos os fragmentos:
centro do mundo”, como expressa Tuan (1983, p.
165). Ela localiza nele o “centro”, não como um Acordei de repente e acendi a luz. Eram duas e
ponto específico na terra, mas como o lugar de suas um quarto da manhã. (GERSÃO, 2007, p. 7)
afeições. É na intimidade com o outro que isso se [...] Deixei-me ficar quieta, de olhos fechados, à
fortalece e cria significações. Esse espaço é mítico, espera que fosse manhã. Com medo de cair final-
pois é nesse espaço que se define o “paraíso” das mente no sono à hora errada e deixar passar o mo-
experiências íntimas. Observemos o trecho: mento em que acordasses. (GERSÃO, 2007, p. 8)
São três e vinte e cinco agora. Se apagar a luz
E agora, que língua falas, penso, em que língua poderei carregar no botão do relógio e ver as horas
deverei falar contigo para que me ouças, para que no mostrador iluminado. Mas não posso apagar a
me respondas – agora que não há palavras possí- luz. Estarei no fundo do um poço, se apagar a luz.
veis a não ser as que giram na minha cabeça e me Sem nenhuma saída. Lá em cima, onde poderia ver
enlouquecem – agora que também eu estou morta a luz do amanhecer, puseram uma tábua. Ou uma
e te procuro. (GERSÃO, 2007, p. 8). pedra. (GERSÃO, 2007, p. 8)
São quatro horas. Da manhã ou da noite, tanto
Como se observa, a protagonista se vê desloca- faz. Vejo o ponteiro dos minutos recortar-se, a pre-
da, fora de lugar, “estrangeira” mediante a ausên- to, no mostrador.
cia de seu companheiro. No espaço de mortificação, Um minuto depois de perder-te, penso. Um mi-
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ela se vê morta, pois ele representava o “centro”, nuto depois de perder-te. (GERSÃO, 2007, p. 11)
mas não mais o identifica, não há mais referência. Até que o outro médico nos disse, em Nova Ior-
A língua também lhe serve de referência, porque, que: Três meses de vida. No máximo três meses.
para Merleau-Ponty (2002, p. 24), ela “contém o (GERSÃO, 2007, p. 13)
germe de todas as significações possíveis”. A perso-
nagem não mais percebe significação nas palavras No espaço de mortificação, o tempo é prenúncio
que seu amado pronuncia. Ela não o localiza na de morte, assim a protagonista se encontra a querê-
sua “pátria”. Essa perda de significações da lín- -lo retardar, para que este não lhe traga o anúncio
ENSAIO 57

da morte de seu amado. O tempo está ligado ao Eu pensava, concentrada, em Nova Iorque. Lá
movimento dos seres e estes querem a todo custo as ruas têm números e são geométricas, paralelas e
eternizá-lo como se pudesse, ao fazê-lo, também perpendiculares. Eu não poderia por isso perder-te
eternizar sua existência. Mas o tempo do homem nem perder-me. (...) (GERSÃO, 2007, p. 9)
é finito, o que é oposto ao tempo das divindades,
que é infinito. A personagem galopa o cavalo no- Neste fragmento, a experiência da personagem
turno (cavalo de Plutão ou de Hades) na tentativa com o espaço que a circunda parte do registro do
de retardar seu movimento ao nefasto destino. Esta que está em sua intimidade. O espaço preciso não
é sua tentativa interior de fugir a esse tempo de lhe deixa cair em labirintos. Não há o desconhecido.
morte. Chevalier e Gheerbrant (2003, p. 877) de- Ela consegue perceber a ordenação espacial da ci-
claram que “sair do tempo é sair completamente da dade, sentindo-se segura pela sequência numérica
ordem cósmica, para entrar em uma outra ordem, das ruas por onde transita. A geometria do lugar a
um outro universo.” Na garupa do cavalo notur- permite deslocar-se de um ponto a outro sem medo
no, ela tenta subverter a ordem natural do ciclo da de errar o trajeto. Este é um lugar estável. Nova
vida, tentando manter-se acordada para não o ver Iorque é então símbolo de equilíbrio para ela e para
passar. Como se, ao se deslocar na montaria ctô- seu companheiro, onde eles encontrariam sem dú-
nica para outro tempo, pudesse ter o controle dele. vida o que buscavam. É, pois, um lugar de poder,
O cavalo é um psicopompo que serve de médium onde poderá provê-los em suas necessidades.
para poder transportá-la a luz. Mas Nova Iorque perde a sua virtude a partir
O vir à luz é poder vislumbrar o espaço vivifi- do momento em que é reconhecida sua fragilidade.
cador, onde nele está à ordenação do caos expe- Observemos o trecho:
rienciado pela protagonista. Com a luminosidade
do espaço vivificador, as trevas não obscurecerão Mas a América afinal não resolvia os problemas
seu trajeto; ela não terá nada a temer e a vida não dos outros, nem sequer os seus, verificámos. Um
fenecerá. O amor que nutre pelo companheiro não dia, em Nova Iorque, as torres gémeas ruíram. O
se apagará, pois essa luz é símbolo de eternidade, impossível, o impensável acontece. Mesmo em Nova
de vida, felicidade e salvação da morte. Iorque. (GERSÃO, 2007, p. 10)
No conto, a protagonista faz referência à ideia
de inferno tida por seu companheiro. Ele achava Com se nota, o espaço em Nova Iorque passa en-
os aeroportos e aviões lugares infernais, pois estes tão a ser um espaço de mortificação, onde a morte
não eram permanentes, ou melhor, não são pesso- se anuncia. Gera-se o caos na existência da perso-
ais. Tais espaços não lhe propiciariam o conforto, o nagem que não mais encontra significação no am-
aconchego que assim encontrara em seu lar. Nada biente da cidade; tudo sai da ordem, da aparente
R E V I S TA E N C O N T R O S

é familiar. Todas as coisas que os enchem não lhe harmonia propositada pela geometria do lugar. O
proporcionam afeição. É este um espaço de mor- imponderável acontece em sua vida ao ver as torres
tificação que não o satisfaz intimamente, é vazio. ruírem, estas que representavam a tentativa pri-
Estes lugares, para ele, são abissais. mordial do homem de acesso à morada dos deuses
Os lugares vivificadores são harmônicos, propi- – a Babel. Sua ruína simboliza o fracasso, a perda,
ciam estabilidade, tudo está dentro da ordem, pois a negação da eternidade na terra. A personagem vê
tudo é constituído de significativa referência. Veja- em Nova Iorque seu objeto de desejo ser lançado
mos o seguinte fragmento do conto: nas profundezas do desconhecido, onde até mes-
5 8 ENSAIO

mo a língua que lhes era comum, não mais se dá da morte de seu companheiro, nada mais lhe repre-
a entender. As torres passam a simbolizar, a partir sentam. Elas não são mais moradas felizes, tran-
da sua queda, a confusão, a dispersão de seus so- quilas e estáveis. Ela não mais se encontra nelas, ou
nhos de felicidade que ela alimentava junto a seu seja, o lugar passa a espaço sem qualquer elemento
companheiro. Elas agora são marcas de catástrofe. que lhe sirva de referência.
Nova Iorque agora é labiríntica: Por mais uma vez a protagonista galopa o cava-
lo, este que simboliza vida, energia. No entanto, ela
As ruas de Nova Iorque perdem o norte e ba- se vê conduzida pelo cavalo do pesadelo:
ralham-se. A quarenta e sete é antes da trinta e
cinco. A oitenta e três é antes da vinte e quatro. A morte pode vir ter comigo como um cavalo
Nenhuma conta mais dará certo. A não ser a do nocturno e levar-me, no seu dorso. Mas não cava-
médico. Pega num papel de receita e escreve: Três los de pesadelo, e não da morte, que me arrastam.
meses. No máximo. Vai-se embora e é louro. Ou é Nightmares. Night-mares. Cavalos nocturnos cor-
louco. Tanto faz. Falou connosco em inglês. (GER- rendo, sem sair do lugar. Deixando-me outra vez
SÃO, 2007, p. 13). na margem da vigília. (GERSÃO, 2007, p. 11).

Mas não só Nova Iorque é labiríntica, como O outro significa para ela a motivação para
também passa a ser Lisboa: viver, mas, já sem ele, ela deseja a morte. Deseja
habitar o submundo de Hades guiada por um dos
Depois disso, também Lisboa ruiu. Nunca mais seus cavalos. O pesadelo da distância do outro a
encontrarei os lugares antigos e perco-me nas ruas, faz amargar a dor da separação de seu amado. O
que agora são outras, e mudam de nome quando lugar sucumbe ao terremoto, à catástrofe, ao nau-
calha. (GERSÃO, 2007, p. 13). frágio de sua condição emocional. O Cavalo notur-
no a conduz as trevas de si mesma, ao abandono
A perda de referência do lugar é um reflexo da de si. Ela vê seu amado engolido pela terra, isto é,
condição emocional da protagonista. Ver-se o rom- ele é parte daquilo que a mantém viva. Ela deseja
pimento do fio de Ariadne, que a mantinha segura montar o cavalo e, dentro de instantes, dele cair.
no lugar onde se encontrava e se perde no interior Cair nos braços de Tânatos. Mas sua consciência
de si mesma pela ausência do outro. Ela agora se vê a mantém presa ao cavalo que a faz conhecer as
presa na teia de seu estado afetivo comprometido trevas e perceber que do caos de si mesma há o
pela falta do outro. As duas cidades mantinham-se retorno da luz. Nada é finito. Tudo está sempre de
significativamente positivas para ela, mas, diante volta ao princípio.
R E V I S TA E N C O N T R O S

Referências Bibliográficas

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores,
números). 18.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
______ A prosa do mundo. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
GERSÃO, Teolinda. Cavalos Nocturnos. In: A mulher eu prendeu a chuva e outras histórias. Lisboa: Sextante Editora, 2007.
RESENHA 59

APRESENTANDO
ALFREDO ANTUNES E
O SEU LIVRO
SAUDADE E
PROFETISMO EM
FERNANDO PESSOA(*)
José Rodrigues de Paiva

M
esmo antes de o conhecer pessoalmente, eu já quase conhecia Alfredo Antunes, não exatamente
“de vista e de chapéu” – como diria Machado de Assis –, porque ainda nunca o havia visto (nem
ele usava chapéu), mas porque ouvira falar a seu respeito por palavras de um antigo aluno meu,
a propósito do seu muito saber sobre Fernando Pessoa e da sua grande paixão pela obra do poeta dos
heterônimos. O estudante, que hoje já não sei quem é, conhecia este pessoano graças às atividades aca-
dêmicas que ambos praticavam – um docente, outro discente – na Universidade Católica de Pernambuco.
O aluno estudava Letras na UFPE e Filosofia na Católica, e, um dia, a propósito das minhas aulas sobre
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Pessoa na disciplina de Literatura Portuguesa, falou-me de Antunes com grande entusiasmo por causa do
entusiasmo do mestre filósofo especialista no conhecimento da Saudade, que então acabara de regressar
de Portugal, trazendo, da Universidade Católica Portuguesa – Campus de Braga –, um diploma de Doutor

(*) Texto lido pelo autor na sessão de lançamento da segunda edição do livro Saudade e profetismo em Fernando Pessoa,
de Alfredo Antunes, realizada no Gabinete Português de Leitura de Pernambuco em 30 de novembro de 2012.
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em Filosofia, lavrado em latim (que ainda é a lín- se eu não estiver enganado seu ex-aluno na mesma
gua utilizada para dizer ou registrar as coisas que Universidade) que fomos apresentados um ao ou-
devem ser eternas), por aquela muito severa Uni- tro. Quis depois a roda da vida que Alfredo trocasse
versidade lhe fora conferido graças à elaboração de a Católica pela Universidade Federal de Pernam-
uma tese doutoral filosófica sobre a Saudade como buco e assim viemos a ser colegas de trabalho na
categoria antropológica, metafísica e existencial, e mesma instituição, embora ele em Filosofia e eu em
as suas marcas profundas na obra poética de Fer- Letras.
nando Pessoa. Essa tese era exatamente o livro de Começava a delinear-se, ali, a oportunidade
que hoje se está lançando (finalmente) a segunda futura de virmos a realizar juntos algumas boas
edição e que se chama Saudade e profetismo em aventuras intelectuais, quase sempre tendo Fer-
Fernando Pessoa. nando Pessoa – mas não só – como o grande mo-
Nunca mais vi, nem sei que destino tomou o tivo para tal. Este Gabinete Português de Leitura
estudante que com tanta admiração me falava a foi também uma importante encruzilhada favore-
respeito do seu mestre pessoano de quem me dizia cedora desses encontros. Em 1983 – andava eu por
que era absolutamente necessário que eu o conhe- aqui como Diretor Cultural –, criamos a Revista
cesse, e que agora está aqui ao meu lado dando-me Encontro e Alfredo Antunes integrou o seu Conse-
a honra – como se eu a merecesse – de falar a seu lho Editorial. Dois anos depois – 1985 – Antunes
respeito e a respeito do seu livro, que é obra fun- apresentou ao Gabinete um projeto de atividades
damental para o estudo da chamada Filosofia da para celebração do cinquentenário da morte de
Saudade, da Filosofia Portuguesa e da obra de Pes- Fernando Pessoa. Era um projeto grandioso para
soa, particularmente quando vista ou lida por esse as nossas possibilidades, com atividades previstas
ângulo: o das implicações filosófico-existenciais e o para o ano inteiro, desde abril até dezembro e que
da tão lusitana temática da Saudade. envolveu as principais instituições culturais e uni-
Quiseram os fados, os deuses ou o destino – o versitárias pernambucanas. A ambição do projeto
que vem a ser tudo o mesmo – que, tempos depois e o volume de trabalho a realizar na sua execução
de ouvir as referências entusiasmadas do meu an- não nos inibiram, e tudo foi levado a bom termo,
tigo aluno eu viesse a conhecer (inicialmente só de com a realização de conferências, mesas-redondas,
vista e sem chapéu, que não usava) Mestre Alfredo exposições, publicações e a produção de um audio-
Antunes. E digo Mestre não no sentido acadêmico visual intitulado Fernando Pessoa na Palavra e no
(porque ele tem grau mais alto do que esse), mas Tempo cujo texto e seleção de imagens ficaram a
na acepção da alta sabedoria que o caracteriza, não cargo de Antunes, ficando a reprodução fotográfica
lhe faltando, nesse aspecto, os discípulos entre os e a trilha musical sob a responsabilidade de Alfre-
quais me incluo. E aqui está um certo absurdo nes- do Xavier Pinto Coelho Afonso, então vice-cônsul
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ta situação na qual me encontro, que é a de um de Portugal. Era uma tarefa alimentada a paixão,
discípulo estar a apresentar o Mestre. Mas, como representando para nós, o trabalho realizado ao
dizia, passei então, a certa altura e num tempo que longo de muitas noites, em Pouso Alegre, a casa
já está muito distante, a identificar a pessoa de An- de campo de Xavier Pinto Coelho, em Monjope,
tunes, sempre presente às atividades promovidas momentos de grande prazer intelectual. Instantes
pelas instituições portuguesas sediadas no Recife. – agora que o tempo é passado – proustianamente
Penso que foi por intermédio de João Virgílio Ra- privilegiados.
mos André, seu colega na Universidade Católica (e Em 1988, comemorando o centenário de nasci-
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mento de Pessoa, repetimos, não com tão vasto pro- cal, grande conhecedor de todas as suas variantes,
jeto, o entusiasmo do estudo e celebração da obra da sua história, dos seus intérpretes, da sua instru-
pessoana no Recife, e, em congresso internacional mentação. Não me admiraria nada, se, de repente,
realizado em Lisboa, tive o prazer de partilhar com o ouvíssemos aqui cantar o fado, de Coimbra ou
Alfredo as atividades do encontro científico e a se- de Lisboa, fado corrido ou menor, o fado triste ou
renidade do convívio familiar. Alfredo Antunes es- em alegre desgarrada. E, quem sabe, acompanhar
tava residindo em Lisboa, por um ano, com a famí- o seu canto à guitarra ou à viola que são os instru-
lia, realizando projeto de pós-doutoramento. mentos fadistas. O fado, como a Poesia, é coisa de
Falei há instantes em trabalho alimentado a paixão. Alfredo Antunes tem as suas. Indiquei três,
paixão. Gostaria de dizer (e é quase uma revelação, e, se mais há, é coisa que aqui não vem ao caso...
embora não uma inconfidência) que, em Alfredo Não se deve ser indiscreto em coisas destas, mas
Antunes, em cuja personalidade intelectual vejo ainda revelo mais uma: a da pintura portuguesa,
alguns traços dionisíacos ao lado de alguns outros sobretudo a que alude ao fado. Perguntem-lhe so-
apolíneos, ou como em Ricardo Reis, uma mescla bre Malhoa ou Columbano e ele dará uma aula.
de estoico e de epicurista, três grandes paixões que Tentei, até aqui, mas insuficientemente, traçar
entre si se conjugam muito bem: a primeira, já se um perfil humano e intelectual do pessoano Al-
sabe, a obra de Fernando Pessoa; a segunda, a de fredo Antunes. Não é coisa que se possa fazer em
António Vieira, particularmente a sermonística, e cinco minutos (como ele me disse no seu e-mail/
a terceira, a música nacional portuguesa, o fado, convite/intimação), sobretudo quando, além da
que desde há um ano é patrimônio imaterial da pessoa, se deve falar de obra tão profundamente
humanidade reconhecido pela UNESCO. A poesia complexa como é este seu livro, que, a propósito de
de Pessoa, particularmente a do ortônimo, é inten- Pessoa, a paixão maior, trata da Saudade e do Pro-
samente musical, quer quando toma a música por fetismo. Esta tese de Antunes é também coisa de
tema, quer no ritmo dos seus poemas do Cancio- paixão. Só isso explica que o autor tenha passado
neiro, quer nos extratos sonoros dos seus poemas “a pente fino” toda a obra do poeta dos heterôni-
paúlicos ou pós-simbolistas os quais trazem em si mos publicada até à época da escritura do seu livro.
intensas reverberações musicais. Não seria, portan- Nele, Pessoa, como à primeira vista pode parecer,
to, o poeta, indiferente ao fado, quer como gêne- não é um tema único, mas o resultado, expresso
ro musical, quer como destino a cumprir. Vieira, na sua obra literária, de um certo tipo de saudade,
a quem Pessoa chamou de “Imperador da língua algo muito mais complexo do que a pura nostalgia
portuguesa”, era uma das grandes e preferidas re- provocada pela ausência, pela perda, pela separa-
ferências da escrita vernácula de Pessoa, emocio- ção, pela impossibilidade de estar com... Trata-se
nando-o, “até às lágrimas”, a leitura de alguns dos de uma incompletude essencial, da consciência da
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seus sermões. Sobre o fado, a mais portuguesa das falta absoluta de plenitude. Trata-se de algo indi-
músicas produzidas em Portugal, escreveu Alfredo zível e intraduzível, que só essa palavra única em
Antunes um livro inteiro, para o qual tive a hon- todas as línguas do mundo, saudade, significa, mas,
rosa oportunidade de escrever um prefácio. Disse- ainda assim, porventura de modo incompleto. Tra-
-o ali, naquele texto, e repito-o agora, que, com ta-se, particularmente no caso português, de um
relação ao fado, Antunes não é um mero ouvinte atavismo transmitido por séculos e séculos de gera-
ou simples apreciador, mesmo que dos maiores e ções e que vem, certamente, da mistura de sangues
mais atentos: é um especialista nesse gênero musi- vários e de várias formas de sentimentalidade e de
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relações com a vida e com o mundo. Dizem que, no platônica compreensão e sentimento da reminis-
nosso caso, o que herdamos dos celtas terá muito a cência. A saudade de Sião não comoveu apenas ao
ver com isso. Alfredo Antunes pesquisa essa origem Camões das redondilhas de “Sôbolos rios”. A “Sau-
do sentimento que, tal como fado (música) se defi- dade do futuro” há de compreender-se como uma
ne como um sentimento português. Dedica toda a “Saudade profética” e Alfredo Antunes o explica.
primeira parte desta sua obra à identificação dessa Daí, o messiânico desejo de um “Quinto Império”,
origem, vendo-a, não só entre portugueses como já pensado ou teorizado, muito anteriormente ao
no espaço luso-galego, não só como uma forma de tempo de Pessoa, por António Vieira, e antes deste,
sentir, mas, em representação literária e filosófica, vislumbrado na teologia medieval. Claro que, com
como maneira de expressão lírica (desde a poesia relação a Pessoa, toda esta problemática nos leva a
trovadoresca) e como forma de pensar, sentindo o pensar imediatamente em Mensagem, título que já
mundo. Fernando Pessoa tem sobre isso um verso é em si profético, não obstante tratar-se de um po-
famoso: “O que em mim sente está pensando”. Fe- ema que é também (em parte) histórico. Mensagem
nomenologicamente, a Filosofia Portuguesa é uma é, no conjunto da obra de Pessoa, esse poema-sín-
filosofia do sentimento e por causa da incompletude tese que reúne as grandezas passadas da História
da vida ou do mundo, desde Dom Duarte e do seu pátria, os símbolos e mitos erguidos desse passado
Leal Conselheiro, fala-se numa Filosofia da Sau- histórico incomum, a incompletude cinzenta de um
dade, base remota e medieval dos que defendem a presente nostálgico e sem horizonte que se visse e o
tese da existência de uma Filosofia Portuguesa. É desejo de renascer, que é preciso acordar pela pro-
uma Filosofia da Saudade, é uma “saudade pen- fecia, num corpo, num país ou num povo que se
sante”. Assim demonstra o autor da tese. vai fazendo moribundo, que agoniza no meio do
Presente na nossa poesia desde as cantigas de nevoeiro:
amor e as de amigo, esse sentimento pensante Nem rei nem lei, nem paz nem guerra.
nunca abandonou o nosso lirismo e nem mesmo a Define com perfil e ser
nossa camoniana epopéia. Natural, portanto, que Este fulgor baço da terra
se manifestasse, também, em Fernando Pessoa, o Que é Portugal a entristecer –
poeta da saudade das coisas que não foram, do que Brilho sem luz e sem arder,
poderia ter sido mas não foi, dos cais de onde se Como o que fogo-fátuo encerra.
está sempre a partir e que são todos “uma sauda-
de de pedra”. E é isto que, na segunda parte do Ninguém sabe que coisa quere.
seu livro, intitulada “Fernando Pessoa e a saudade Ninguém conhece que alma tem,
manifestada”, Alfredo Antunes demonstra aos seus Nem o que é mal nem o que é bem.
leitores, descortinando quais sejam “As nascentes (Que ânsia distante perto chora?)
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da saudade pessoana”: desde uma infância históri- Tudo é incerto e derradeiro.


ca e biográfica, emoldurada por uma “velha casa”, Tudo é disperso, nada é inteiro.
tendo por cenário as “paisagens familiares” e a Ó Portugal, hoje és nevoeiro...
simbolização de tudo isso, alçado, até mais do que
ao simbólico, ao metafísico, à indizível ou incom- É a Hora!
preensível (para os que têm os pés demasiadamente Sendo, embora, a temática fundamental de
no chão) “saudade do futuro”. Passa por aí, claro Mensagem, a Saudade e o Profetismo são, em Fer-
está, uma concepção agostiniana de tempo e uma nando Pessoa, sentimentos, princípios ou propos-
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tas que se encontram disseminados por toda a sua escândalo que é a sua maneira de alcançar alguns
poética ortônima e heterônima. Passando, como dias de fama valendo-se da obra ou da pessoa de
disse, “a pente fino” toda a obra então publicada quem a tem para a eternidade, mesmo que essa
de Pessoa, Alfredo Antunes demonstra à saciedade eternidade seja só a de enquanto durar a do nosso
e com clareza a importância e onipresença desses planeta girante, a da nossa língua, ou a da tabuleta
sentimentos, princípios ou propostas no conjunto da “Tabacaria”. Num tempo de crise como a que
da obra do Poeta. Para finalizar, digo que a ree- está a ser sofrida por Portugal e pela Europa, poe-
dição deste livro de Antunes já tardava demasia- mas como a Mensagem de Pessoa e livros como este
damente. É de estudos sérios como este, de sólida de Alfredo Antunes são cada vez mais necessários.
base filosófica, de rigorosos padrões científicos e É preciso resistir ao nevoeiro do presente, iluminá-
metodológicos observados e aplicados que a obra -lo com as luzes da Saudade, transformar essas lu-
de Pessoa – como a de qualquer grande autor – é zes num clarão de Império. É preciso acreditar que
merecedora e não de aligeirados textos nos quais, “há a Hora”, que D. Sebastião regressará das Ilhas
possíveis autores de ocasião, procuram a notorie- Afortunadas e que a “madrugada irreal do Quinto
dade pela exposição do folclórico ou do pequenino Império” voltará a doirar “as margens do Tejo”.
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