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KOPENAWA, D. & ALBERT, B.

La chute du ciel: paroles d'un chaman


yanomami [A queda do céu: palavras de um xamã yanomami]. Paris: Plon,
2010.

pp. 70-71:
Outras vezes ainda, eu respondia aos apelos das mulheres seres das águas,
que chamamos mãuyoma. São as filhas de Tëpërësiki, o sogro de Omama; as
irmãs da esposa que este pescou nos primeiros tempos. Eu mergulhava, então,
para encontrá-las nas profundezas de um rio. Porém, para minha grande surpresa,
sem me molhar de todo, chegava ao interior de uma grande casa. Tudo nela
estava seco, e via-se aí tão claramente quanto no exterior. O sol que se refletia
sobre a superfície das águas iluminava seu espaço central. Eu permanecia de pé,
imóvel, olhando calmamente tudo ao redor de mim. Numerosas portas davam
para caminhos abertos na floresta. Observava o vai-e-vem das filhas e das noras
de Tëpërësiki que entravam e saíam da casa com suas crianças. Achava-as
verdadeiramente muito bonitas. Embora seu pai me deixasse aterrorizado, eu não
podia me impedir de admirá-las! Contudo, sempre que tentava segui-las,
acordava em um sobressalto. Algumas vezes, bastava mesmo que me virasse para
a porta pela qual tinha entrado para que meu sonho terminasse bem no meio.
Então, lamentava não ter podido ficar na casa dos seres das águas.
No dia seguinte, eu perguntava a meu sogro: “A quem pertence essa casa
sob o rio que vi enquanto dormia? Era tão bela que eu queria poder contemplá-la
mais tempo!” Então, ele me explicava com boa vontade: “Você se voltou para a
casa em que vive o sogro de Omama com seus espíritos-peixe, os espíritos-jacaré
e os espíritos-sucuri. Os xapiri começam a te querer. Mais tarde, quando você for
um adolescente, se quiser adquirir o poder da yãkoana, eu abrirei de verdade seus
caminhos para você.” Esse sonho se repetia frequentemente, pois, quando
menino, eu passava muito tempo a pescar ao longo dos rios. É por isso que os
seres das águas não paravam de capturar minha imagem para me fazer sonhar.
[…]
Os seres desconhecidos que apareciam em meus sonhos de criança eram
espíritos xapiri que me observavam e se interessavam por mim. Nessa época, eu
não sabia ainda. Todas essas imagens vistas em sonho durante minha infância me
inquietavam bastante. Porém, bem mais tarde, quando os velhos me deram de
sorver o poder da yãkoana, compreendi de verdade que eles vinham ao meu
encontro para que eu me tornasse um xamã.

pp. 80-81:
Os seres das águas são excelentes caçadores. É por isso que têm afeição
pelos jovens cujo pensamento está fixado na caça. Eles os consideram como os
verdadeiros habitantes da floresta. Assim, suas irmãs adoram se apossar de sua
imagem para fazê-los tornar-se espíritos. Uma vez capturados desse modo, os
jovens entram em estado de espectro. Eles se põem a correr pela floresta e não
páram de gritar com exaltação: “Aë! Aë! Aë!” É dessa maneira que as mulheres
das águas os atraem para dentro de sua casa. Transformados em seus amantes,
eles permanecem aí por muito tempo. Depois, quando elas enfim os deixam

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retornar à casa deles, estes recobram a consciência e se encontram de súbito
sozinhos, perdidos em uma floresta desconhecida. Eles se dizem então: “Oae!
Minha verdadeira casa é muito longe daqui!”, e daí retornam para junto dos seus.
Os seres das águas são os filhos e os genros, as filhas e as noras de
Tëpërësiki, o sogro de Omama, que lhe trouxe as plantas que cultivamos em
nossos jardins. Eles são os donos da floresta e dos cursos d'água. Assemelham-se
a seres humanos, têm mulheres e crianças, mas vivem no fundo dos rios, onde
são inumeráveis. São excelentes caçadores! Percorrem sem parar as trilhas na
floresta flechando araras, tucanos, papagaios, pássaros hëima si e todos os tipos
de outras caças. Contudo, jamais comem eles mesmos suas presas. Acham que
isso seria assustador, da mesma forma que nós achamos. Em lugar disso, eles as
dão às suas irmãs, que são numerosas e muito bonitas. Esses seres das águas
partilham a casa com seu pai, Tëpërësiki, mas também com os espíritos-enguia
elétrica, -sucuri e -jacaré. Suas redes estão dispostas lado a lado, no seco, assim
como em nossas casas. São eles que os olhos de espectro das pessoas comuns
veem como peixes. Não obstante, suas imagens se tornam também xapiri que os
xamãs fazem dançar.

pp. 98-100:
Todos os seres da floresta possuem suas imagens utupë. São essas imagens
que os xamãs chamam e fazer descer. São elas que fazem sua dança para eles,
tornando-se xapiri. Elas são o verdadeiro centro, o verdadeiro interior dos
animais que nós caçamos. São as imagens a verdadeira caça, não aquilo que nós
comemos. Elas são como uma espécie de fotografias*. Mas só os xamãs podem
vê-las. As pessoas comuns são incapazes disso. Em suas palavras, os Brancos
diriam que os animais da floresta são seus representantes*. Assim, o macaco
gritador iro que se flecha nas árvores é outro que sua imagem Irori, o espírito
macado gritador, que o xamã chama a si. Essas imagens dos animais tornados
xapiri são verdadeiramente muito belas quando fazem para nós suas danças de
apresentação, como os convidados no início de uma festa reahu. Comparados a
elas, os animais da floresta são feios. Eles existem, sem mais. Não fazem senão
imitar suas imagens. Não são senão o alimento dos humanos.
Todavia, quando se diz o nome de um espírito xapiri, não é um só espírito
que se evoca, é uma multidão de imagens semelhantes. Cada nome é único, mas
os xapiri que ele designa são inumeráveis. Eles são como as imagens dos
espelhos que eu vi em um dos hotéis* de vocês. Eu estava sozinho diante deles,
mas, ao mesmo tempo, tinha muitas imagens idênticas. Assim, não há senão um
nome para a imagem do tapir xama tornada espírito, ao passo que os espíritos-
tapir xamari são muito numerosos. O mesmo sucede para todos os xapiri. Pensa-
se que são únicos, mas suas imagens são sempre muito numerosas. Somente seus
nomes não o são. Eles são como eu, em pé diante desses espelhos do hotel.
Parecem únicos, mas suas imagens se justapõem ao longe, sem fim.
Essas imagens da caça que os xamãs fazem dançar não são aquelas dos
animais que caçamos. São as imagens de seus pais, que vieram à existência nos
primeiros tempos. São, como eu disse, as imagens dos ancestrais animais que
chamamos yarori. Há muito tempo, quando a floresta ainda era jovem, nossos
ancestrais, que eram humanos dotados de nomes animais, se metamorfosearam

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em caça. Humanos-pecaris, tornaram-se pecaris. Humanos-cabritos, tornaram-se
cabritos. Humanos-cutias, tornaram-se cutias. São suas peles que se tornaram as
dos pecaris, dos cabritos e das cutias que habitam a floresta. São, portanto, os
ancestrais tornados outros que nós caçamos e que comemos hoje. Por outro lado,
as imagens que fazemos descer e dançar como xapiri são as suas formas de
fantasma. São o seu verdadeiro coração e o seu verdadeiro interior. Assim, esses
ancestrais animais dos primeiros tempos não desapareceram. Eles se tornaram a
caça que habita a floresta; porém, seus espectros continuam a existir. Eles portam
sempre seus nomes de animais, mas agora são seres invisíveis. Eles se
transformaram em xapiri, que são imortais. Assim, mesmo quando a epidemia
xawara tenta queimá-los ou devorá-los, seus espelhos eclodem sempre de novo.
Eles são os verdadeiros velhos. Não podem jamais desaparecer.
Eis a verdade. Nos primeiros tempos, quando os ancestrais animais yarori
se metamorfosearam, suas peles se tornaram caça, e suas imagens, espíritos
xapiri. É por isso que estes consideram sempre os animais como ancestrais, assim
como eles, e é assim que os nomeiam! Mas nós também, nós que comemos da
caça, nós sabemos que se trata de ancestrais humanos tornados animais! São
habitantes da floresta, assim como nós! Eles tomaram a aparência de caça e
vivem na floresta simplesmente porque é aí onde se tornaram outros. Contudo,
nos primeiros tempos, eles eram tão humanos quanto nós. Eles não são
diferentes. Nós nos atribuímos hoje o nome de seres humanos, mas somos
idênticos a eles. É por isso que, aos seus olhos, nós somos sempre deles.

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