Você está na página 1de 213
4 emtostiretvasrumancs vent pasands por éxtrorntio Se error eee ene pe ee ee eer eee res eaes Preocupagdo coin a sua jutiticaiva e legitimagao do que com o fandamento e a legitimidade. Os dirctos huranos transcendem a Se eee) internacional. Entre os temas novos, que ainda desafiam a doutrina eee eee eter eee es Soe cee Cece eer es fundamentais, que nfo valem apenas contra 0s atos de constrigio yer ect a eern es ‘que possam partir de outros membros da sociedade, ete en eee tS ne See cre eae Se re ae pfimeito emiaiscompleto estido que se fazno Brasil sobre o tema. Preven Pre er ace a ISBN 85-7387. jul Direitos Fundamentais : Relacdes Ne Direrros FUNDAMENTAIS £ RELAGOES PRIVADAS LUMENS JURIS www.lumenjuris.com br Eprrones: Joao de Almeida Joao Luis da Silva Almoids Conseisio Eprrontat, Alexandio Freitas Cémara ‘Amilton Bueno de Carvalho ‘Antonio Becker ‘Augusto Zimmermann Eugénio Rosa Feuzi Hassan Choukt Firly Nascimento Filho Flavio Alves Martins Francisco de Assis M. Tavares Geraldo L. M. Prado Gustavo Sénéchal de Goffredo JM. Leoni Lopes de Oliveira Letacio Jansen ‘Manoel Messias Peixinho Marcos Juruena Villela Souto Paulo de Bessa Antunes Salo de Carvalho Rio de Janeiro ‘Salas 201208 ‘ioe Janeio, RI~ CEP 20011-000 ‘elotone (2) 22321059 / 22003006 ‘Sao Paulo Rua Caterina, 95, Conjunto 2 Borie Funda ~Séo Paula, SP ‘CEP 01362030, ‘selon (11) 3864-8578 Conseuio ConsuLtivo ‘Avvaro Mayrink da Costa ‘Aurélio Wander Bastos Cinthia Robert Blida Séguin Gisele Cittadino Humberto Dalla Bemardina de Pinho José dos Santos Carvalho Filho “José Fernando de Castro Farias ‘Jose Ribas Vieira ‘Marcello Ciotola Marcellus Polastri Lima ‘Omar Gama Ben Kauss Sergio Demoro Hamilton Rio Grande do Sul ‘rua Cap. Joe de Over Lia, 160 ‘santo Antonin da Farina ~Paangveicas ep 95500000 reaefon (51 662-7047 Brasil SciN- 0.405 Bloco B Subsola 408 Asa Norte ‘CEP 7847-500 ‘elone (61 310.9850/40-0525 Fee (61) 380.7798, Danis: SARMENTO Procurador da Replica, bestre e Doutor em Diteito Piblice pola UERS Professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ (Graduacdo, Mestiado e ‘Doutorad), da EMERJ e do CES DrretTos FUNDAMENTAIS E RELAGOES PRIVADAS Eprrora Lumen Juns Rio de Janeiro 2004 Cias Dafa ml (CESUMAR- BIBLIOTECA | ReGEOSAZTON: Copyright © 2004 Livraria ¢ Baitora Lumen Juris Lida, Produgio Hditoriai Livraria e Editora Lumen Juris Ltda. ALIVRARIA E EDITORA LUMEN JURIS LTDA. nao se 1esponsabiliza pelas opinides ‘manifestadss nesta obra. E proibida a roproducao total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quento as caracteristicas gréfices efou editoriais. A violaggo de direitos antorais ‘constitni crime (Cédigo Penal, art. 184 e §5, e Lei n* 6.896, de 17/12/1980), sujeitando-so a busca @ apreensio © indenizagoes diversas (Lei n* 9.610/88), ‘Todos os direitos desta edicdo reservados Livraria e Editora Lumen Juris Lida, Impresso no Brasil Printed in Brazil S5.:04 ai “Do cho sabemos que se levantam as searas © as Arvoras, lovantam-se os animais que correm os campos ot. voam por cima deles, levantam-se os homens € a5 suas esperancas. Também do chao pode levantar-se um livto, ‘coma uma espiga de trigo ou uma flor brava. Ou uma ave. (Qu uma bandeira, Enfim, cé estou outra vez a sonhar. Como os homens ‘quem me dirij.” José Saramago junca a alheia vontade, inda que grata, (Cumpras por prépria. Manda no que fazes, ‘Nem de ti mesmo servo. ‘Ninguém te dé o que és. Na ‘Teu intimo destino involunts Cumpre alto. $6 tou filho’ Fernando Pessoa e mude, Agradecimentos Bete livre correspond, com pecmanas alteragies, A minha tese de Doutorado em Direito Puiblico, defendida na UERJ em junho de 2003, perante banca composta pelos Professores Ricardo Lobo Torres (orientadon), Luis Roberto Barroso, Gustavo Tepedino, Clamerson Mer- lin Clave e Ingo Woligeng Sarlet, que me honrou com a aprovagao, com distingdo © louvor e nota 10,00 (dez) © trabalho 86 foi possivel em razéo da contribuigao direta ou indi eta, espiritual ov material, de varias pessoas e entidades. Assim, agradeco, primeiramente, ao Ministério Piblico Federal, instituigéo a ‘que me orgulho de pertencer, e que vem desempenhando um destacado papel na defesa des direitos humanos no pais, por ter me ccncedido licenga para estudos por trés meses, que acabou senco absoluramente necesséria para finalizagéo da redacao da tese. Tenho também uma divida de gratidée com meus colegas da Procuradotia da Reptblica no Rio de Janeito - especialmente Ménica Campos de Ré e Luis Fernando Lessa -, que, com dedicagao e compaténcia, me substituiram durante a minha auséncia, Sou grato ainda a Leticia Amaral de Pinho, minha secretéria ha varios anos, que corn seu zelo, simpatia e discrigao, ver. tomando a minha vida mais féci. ‘Meu orientador, Ricardo Lobo Torres, 6 uma influéncia decisiva em tudo 0 que escreve e penso. £ uma ligao de vida como ele concilia a erudigao com a simplicidade, o tiger académico com a simpatia. Durante meus estudes, foi sempre muito atencioso e gentil, atendendo prontamente, com um sortigo acolhedlor no rosto, a todas az minhas solicitacées, Latis Roberto Barroso, meu Mestre desde o inicio, 6 um exemplo em que busco me inspirar. Dele tomei emprestado os nortes que pautam minha producao intelectual: justiga substantiva, direitos humanos e efetividade da Constituigao. Além disso, nas horas dificeis, sabe ser um amigo generoso. Sou grato, ainda, a Gustavo ‘Tepedino, ‘cujas ligdes de Direito Civil na graduacao da UERJ me encantaram ¢ inspiraram na escolha deste tema, e que me deu valiosos conselhos por casio do exame de qualificagao da tese. As observacées, os elogios generosos © as criticas sempre construtivas feitas por todos eles durante a minha defesa de tese, bem como pelos Professores Clémerson Clave e Ingo Sarlet —expoentes do novo constitucionalismo democrético brasileiro ~, enziqueceram 0 traballo e deram mais sabor a conquista Este estudo deve muito ao trabalho de pesquisa de duas queridas ¢ talentosas amigac, a Procuradora Federal Teresa de Mello, ¢ a ‘estudante da UBRJ Carla Ramos, Com certeza, o mundo juridico ouvind felar muito de ambas, num futuro proximo. Tenho também de agradecer a Editora Lumen Juns, que tem apolado todos os meus projets aval mioos, ¢ 0 fago na pessoa do meu quorido editor Joao Luis. Inestimavel foi o apoio constante dos meus amigos Leonardo Lobo de Almeida, Ricardo Lodi Ribeiro, Paulo Murilo Calazans, Pedro Raposo Lopes, Claudio Pracownic, Flavio Palxao de Moura Jr,, Gustavo Binen- bojm, Samantha Chantal Dobrowolski e Alexandre dos Santos Aragao. ‘Som boas ¢ profundas amizades, a vida nao vale & pana, e eu tenho os melhores amigos do mundo. ‘Meus pais, Paulo César ¢ Maria Teresa, sao responsaveis por tudo que sou e serei, Nenhuma palavra seria suficiente para 0 agrade- cimento que merecem. Também nenhuma palavra conseguiria exprimir a marca indelével que deixou no meu coragao o exemplo de bondade de dignidade representade por minha avo Helgita (36 Dita), falecida durante o meu doutorado. Que saudade! “enho muitas razées para agradecer & Juliana Pinheiro de Toledo Piza, minha eterna amiga, mas a maior delas é por cuidar téo bem do que tenho de mais precioso na vida; meu filho, Jogo Pedro. A vivaci- dade, a inteligancia e a pureza de caréter deste menino iluminado séo ‘a minha maior felicidade e 0 meu maior orgulho. Este trabalho comegou a ser escrito exatamente no inicio do meu namero coin Cintia Nahoum Moraes Jardim, © amor que senti, desde 0 principio, me redimiu e mudou minha vida. Cintia viveu comigo cada iomento na elaboragao desta tese, lendo e relendo, a meu pedido, tudo © que eu ia escrevendo, sempre me apoiando, incentivando @ acalentando © mau coragao. Bla est4 presente em cada linha em cada entrolinha deste trabalho, em cada idéia e em cada detalhe. Por isso, ¢ por muito mais que © papel néo comporta, este estudo é dedicado @ Cintia, com todo 0 meu amer Daniel Sarmento Sumario Nota Previa Prelacio Introducio 1. Generalidades 7 2, Apresentagao e Delimitagao do Tema . 3, Discusséo Terminolégica -... 4, Plano de Trabalho PARTE T: PREMISSAS TEORICAS Capitulo I ~ Direitos Fundamantais nos Paradigmas Liberal, Social e Pés-Social e a sua Incidéncia sobre as Relactes Privadas ...... 1. Intyedugao 2.0 Paradigma Liberal 3, 0 Paradigma Social 4, A Globalizagao e o Paradigma Pés-Social 5, Modemidade e Pés-Modemidade no Direito 6. Conclusées Capitulo I — A Constituigao como Norma, a Constituciona- Tizacao e a Personalizacao do Direito Privado 1, Introdugio ‘A Forca Notmativa da Constituicée Os Principios Constitucionais e o Pés-Positivismo (0 Direito Privado em Busca de um Centro: do Codigo Civil & Constituigao 5. Dignidade da Pessoa Humana, Diteito Privado e Constituicio . 6. A Tutela da Personalidade nas Rolagdes Privadas 7. Conelusées Capitulo Ill - A Dimensao Objetiva dos Direitos Fundamentais 1. Introdugao e Conceito 2, Formagao da Teoria 3. Constituigo e Ordem de Valores 4, Bfiedcia Irradiante dos Dircitos Fundamentais 5. Dimensao Objetiva e Deveres de Protegao VW ai al 43. 69 ee 70 8 89 107 322 129 193 133 138 143 154 160 6.Contraponto: Direitos Fundamentais sem Fundamentalismo . 7. Conclusio - Capitulo IV — A Tutela Constitucional da Liberdade e da Autonomia Privada 1 Introdugéo ... 2.Liberdade no "Jardim", Liberdade na “Praga” © as Condigées da Liberdade: Fundamentos Teéricos 4. A Autonomia Privada e suas Limitages 4, A Liberdade no Direito Constitucional norte-americano: vécnicas institucionais, Bra de "Lochner" e a doutrina das liberdades preferenciais 5.A Relatividade das Liberdades Erondmices na Alemanha 6. A Protecdo & Autonomia Privada na Ordem Constitucional Brasiloira Panre I: A Ericacia Horvonrat, ‘Dos Drerros FUNDAMENTAIS Capitulo I - As Teorias sobre a Bficdcia dos Direitos Fundamentais nas Relagdes Privadas e sua Recepgao no Direito Comparado 1. Introdugéo . 2. A Nogagio da Eficécia Gos Diroitos Fundamentals nas Re- lag6es Privadas @ a Doutrina da “State Action’ 3. A Teoria da Bficacia Indireta Mediata dos Direitos Fun- damentais na Bsfera Privada 4.4 Teoria da Eficacia Direta © Imediata dos Direitos Fundamentais na Esfera Privada A Teoria dos Deveres de Protecao e a Eficacia Horizontal dos Direitos Fundamentais 6. Teorias Alternativas 7. Bficdcia Horizontal na Jurisdigao Supranacional dos Di- reitos Humanos 8, Conclusdes . Capitulo Il ~ A Vinculagéo dos Particulares aos Direitos Fundamentais na Constituigao Brasileira: Os Direitos Individuais 1. Introdugao 2.A Eficacia Direta o Imediata dos Direltos Fundamentais nas Relacées Privadas no Direito Brasileiro 470 1m 173 173 177 198 197 2 223 223 226 238 289 262 266 275 ann a7 278 3. A Posigio da Doutrina e da Jurisprudéncia brasileiras, 289 4, Formas de Incidéncia dos Direitos Individuais nas Rela- (c6es Privadas 297 5. Eficacia Horizontal, Desigualdade Fatica e Autonomia Privada: Pardmetros para a Ponderagao de Interesses ... 301 8, Atores Publicos e Atores Privacios: Definigdes 313 7. Dimansées Processuais 4 ses 818 Capitulo II = A Incidéncia dos Direitos Sociais, Politicos Transindividuais nas Relagoes Privadas 7 331 1. Introducao 331 2.4 Bficécia Horizontal dos Direitos Sociais ¢ o Principio da Solidariedade 332 3, Direitos Politicos, Democracia ¢ Relagées Privadas ...... 350 4, A Vineulagao dos Particulares aos Direitos Fundamentais ‘Transindividuais Conchisao ... seein 369 1. Proposigées Objetivas - ‘| 369 2. Encerramento -.. aa reeesat (S78) Bibliografia 381 Nota Prévia ‘As citagdes em lingua estrangeira, constantes do texto, foram tra- duzidas livremente pelo autor, com excegao daquelas em idioma espa- nol, que, na maioria das vezes, foram reproduzidas no original Prefacio © tema dos direitos humanos vom passando por extraordinério enciquocimonte nos dltimos anos, tanto do ponte de vieta ca exten: so quanto sob o aspecto da validede. Ha hoje maior preccupagéo com a sua justificativa @ legitimagao do que com o fundamento @ a lecitimidade. Os direitos humanos transcendem a perspectiva mera- mente nacional para ganhar a dimenséo internacional. Entre os te- mas novos, que ainda desafiam a doutrina ea jurisprudéncia, encon- tra-se oda eficacia horizontal dos direitos ou eficécia contra serceiros (Drittwirkung), como preferem os teéricos alemées, que completa a eficacia erga omnes dos direitas fundamentals, que nao vaiom ape- nas contra os atos de constricéo das liberdades praticados pelo Estado, mas também contra aqueles quo possam partir de outros membros da sociedade E 6 exatamente sobre este tikime aspecto que se desenvolve © livre que Daniel Sarmonto oferece aos leitores, sugestivamente intiula- do de Direitos Fundamentais e Relagdes Privadas 0 primeiro e mais completo estudo quo so fz no Brasil sobre 0 toma. Ali, jovsm autor vem se caracterizendo pela sensibilidade em escolher temas inéditos ou pouco examinads entre nés, come aconteceu com 0 seu anterior trabalho sobre Ponderacao de Interesses na Constituicao Federal, que resulton de dissortagao da mostrado dofendida na Faculdade ce Direito da UERJ, publicado pela Editora Lumen Juris em 2000 Mas limo nao se esgota no exame da aficécia horizontal Analisa 08 direitos fundamentais no paradigma liberal, social © pos-social Dedica capitulos especificos 4 Constituig&o como norma, a cimenséo bjetiva dos direitos fundamentais e @ tutela constitueional da liber- dade e da autonomia privada, Na segunda parte da obra, arrola as teorias sobre a eficdcia dos clitoitos findamontais nas rolagdos privadas o sua rocepgéo ro cireito compared. Estnda, afinal, a vinculagao dos particulares aos direitos individuais, ¢, em capitulo inovador, tom a coragem de investiger es repercussées dos direitos sociais, politicos e transindividaias nas relagoes privadas ~ matéria sobre a qual é escassa a bibliogratia, mesmo no estrangeito, diante da dificuldade de se projetarem para as relagdes horizontais as prestagées positivas tipicas dos direitos soci- als - coneluindo que: fo Brasil, 0s direitos sociais néo trabalhistas também podem, om certas circunsténcias, vincular dirctamonte os particulares. Embora caibs primelramente ao Estado a garantia dos direitos sociais, 2 vinculagéo das entidades privadas encontra apoio no . Principio constitucional da solidariedade, que nao representa ulm a ‘mera proclamagao retérica, mas é dotada de forga juridica e influ- encia a interpretacao de todo a sistema constitucional." O livro que ora se publica nasceu como tese de doutorado defend da no ambito do Programa de Pés-Graduagao em Direito da UERJ, per- ante banea composta por mim, na qualidade de Professor-Orientador, ¢ pelos eminentes Professores Doutores Luis Roberto Barroso (UERJ), Gustavo Tepedino (UERJ), Clemerson Cléve (UFPR) ¢ Ingo Sarlet (PUC- RS), tendo obtico # nova méxima (10), com distingao e louvor. Ricardo Lobo Torres ‘Professor Tuular da Foculdade fe Dietto da UERS Introdugao 1. Coneratidades. 2. Aprocontagio o Dolimitagdo do Toma. 2. A Diswussio Terminolégica. 4 Pano de Trabalho. 1. Generalidades No séeulo que se inicia, certamente o maior desafio para Humani- dade sord o de reduzir a exclusao social, garantindo concretamente 0 9020 dos direitos fundamentais para toda a populacao merginelizada do. globo. Hoje, © quadio social que se delineia diante dos nosses olhos é desalentador. Campeiam a miséria, a desigualdade e a opressio social, sobretudo nos paises poriféricos. Os ricos estao cada vez mais ricos enquanto engrossa a legiao de excluidos do pacto social, que vivern num, verdadeiro Estado da Natureza, completamente alijados das benesses da civilizagao, Num mundo érfao de utopias, no qual as ideologias foram desmoralizadas pela sua distorcida experimentacao pratica, dlacera-se © tecido social, rasgado pela violéncia material ou simbélica energente das relagSes assimétricas de poder travadas na sociedade. No Brasil, © panorama 6 ainda mais cinzento. Apesar las suas incontaveis riquezes naturais, e de possuir a 11* maior economia do planeta, o pais permanece profundamente injusto, com uma das piores concentragées de renda do mundo. Sequer é possivel falar em crise social, pois os males que alligem nosso povo nao decorrem de desequilibrios agudos e repentinos, mas sao a expresso de uma estrutura social perversa, perenizada ao longo de séculos de histéria, ‘cujas raizes mergulham na propria formagao da Nagao. Por outio lado, a crise do Welfare State, decorrente de ziiltiplos fatores, como a escassez de recursos gorada pela explosdo d= deman- das reprimidas, 0 enfraquecimento dos Poderes Pilblicos em razéo da globalizagéio econémica, a ineficiéncia associada ao gigantismo da maquina burocrética, dentre outros, dramatiza ainda mais este cendrio. A fragilizagao do Estado multiplica os obsticulos para que este possa formular e implementar as politicas publicas necessarias a pro‘egao dos direitos humanos. Ademais, seu enfraquecimento desamarta os poderes 1 Ho mosino sonido, RARROSO, Luis Roberta 0 Direito Consttuclnal «a Estividade de suns norms. 4 ed Run dota: Rene, 200, p08 Dano Sermento soviais privaclos, que, por estarem mais livres, tornam-se um risco ainda mais ameagador para a liberdade e a dignidade dos despossuicos. "Assim, torna-se fundamental articular novas estratégias e aborda~ gens para enfrentamento dos graves problemas de justiga social © opressio que afligem a Humenidade, pois se parece corto que a mao invisivel do mercado ndo basta para assegurar 0 gozo efetivo dos diroitor fundamentals para toda a nopulacdo, como a histériajé provou ‘com elogiiéneia, nao é menos correto que conliar apenas no Estado para © desempenho desta tarefa ndo se afigura solugao viével ou sequer desejavel. De fato, a comprovada inaptidao do iberatismo econdmico para corregao das injustigas socials nao foi adequadamente cortigida pelos mecanismos compensatérios do Welfare State. Além dos seus hotorios e cada vez mais agudos problemas de financiamento, 0 Estado- Providéncia, quando nao é dinamizado por mecanismos de ofetive © intensa participago popular, acaba produzindo como efeito colateral a instituigdo de uma relagao de clientela entre apaticos administredos © © aparetho burocrtico, que mina as prépries beses da cidadania ‘Sem embargo, neste cenario desponta um fator positivo relevante: trate-se do fortalecimento da sociedade civil, em especial em paises come o Brasil, Portugal ¢ Espanha, que atravessaram longos periodos do autoritarismo politica, Esta sociedade civil®, que desperta da letar- 2 Babee a reconstiugio coniemporinga da sosiedade cil, vase o tal de Soyo de COHEN, Joan 2 ARATO, Ante, Sorina Ci y Tora Politica, Tad. Roberto Reyes aceon. Seco: Fondo de Cultura Economia, 200. 3. Fura am andtize deo vaioe« conttaditonoe setidosatribuldss a expresso “sociedado Chil ce longo da hia, vejase RORBIO, Norberto Estado, Gvernoe Sociedade ad. oreo Auretf Nogueira ed. Role anew: Paz e Tena, 1967, p 39-52, No prevento ‘Contos axprensfe¢sinpreqaia no mesmo sentido uiizade por HABERMAS, Jngen, Se aja ebra axtraimos snguinte defiicge- “O tual signifeado da exprossio vciedade chit nao eomncvde com od ‘sociedade burguese. de tadigio bberal que Hagel chagars a temotizar coma ‘items das nacessidades’. to 6, como cstema do trabalho sora «do comteteo de mercadorias numa economia de mercado. Hoje om di Stormo ‘socedade cit no lieul mais 2 economia constiuids staves do dito ria eciigida ata Go trabalho, do capital e dos mereados do bens, como ainda Teentecia na ipeca de Metx ¢ db mismo. O sou nicieo intinconal & formado por seoocingdese erganieagbeslntes, no static e no econbnieas, a8 quai ancora a ‘Etruutee do eomunicaeéo da estera plies aca componentes soeiis do mundo da hia sucleiade ei eompoe-se de mevimentos, arganloqSes ¢ assocagies, 08 quis Captem os esos dos problemas sacs que resgoam nar eefras privadas, condensat fos eos uensmitem, seguir, pare a sola pica pits, O miteo da sociedad cs Teen ami especie do asvecingao que Snatwcionliza os discusos eapazes de soli ‘Shiu preienas uonsformnande-o en guestOesdeintorsso gral nomad de eer pices "Duclto « Domecracia ent facteidade 2 vadade", 1. Tad, Flv de Bono Siebonetcher. Ria de Janeiro: Tempo Brasieto, 199. p. 99) Dinos Pundamentas © Relogdes Pivadas nao 6 a sociedade burguesa, do livre escambo entre sujeitos privados persequindo egoisticamente os seus interesses & margem dos poderes estatais, nos moldes do liberalismo oitecentista. # a ssciedade civil das ONG’s, das associagdes de baitro, dos movimentos socieis, inteqrantes do que tem sido chamado de “torcelro setor", que 3 pitblico ‘mas nao estatal, Estas entidades agem @ partir de uma légice diversa, gue se diferencia da razéo instrumental propria tanto da teenocracia estatal como das forgas econémicas do mercado, Hlas, que agnitinam e canalizam para o sistema politico demandes importantes da populacao, muitas vezes desprozadas pelas instancias representativas tradicionais, converteram-se em personagens importantes na arena de disputa em tomo dos direitos humanes. Revalorize-se, neste quadro, a Idéla de solidariedade ou fraterni- dade, components historicamente menos prestigiado do céle3re trind- mio em que se assentou 0 ideario da Revolugdo Francesa (liberté, egalité, fraternité). De fato, se na experiéncia capitalista prevaleceu a protegéo da liberdade, sobretudo na sua dimensdo econémica, alimentando a desigualdace social, ¢ no modelo socialista prestigiou- se mais a igualdade material, com a asfixia das liberdades insividuais «¢ politicas, até agora, no universo juridico-politico, nao se deua devida importancia & solidariecade’. Esta pressupée o reforgo des liames sociais, hoje to esgarcados neste mundo de pessoas “sozinhas na multidao”, e impée uma ética altruista, voltada para o outro. A solida- riedade nao conflita com a liberdade ou com a igualdade, mas rearti- cula estes valores fundamentais sobre bases mals humanas e menos abstratas, colorindo-os com novos € mais cintilantes matizes’. Neste cont.axto, assume especial relevo a discussao om torno da vinculacao dos particulares aos direitos fundamentais. Com efeito, se tais direitos foram concebides, no constitucionalismo liberal burgués, como limi- tagies erigidas ac poder estatal em prol da liberdade dos governados, torna-se evidente que, no mundo contemporaneo, eles devem ampliar seu campo de incidéncia, De fato, como o poder e a opressao sdo capi- | Babee g soldavedace come fandaiante das diceitoe humanos, vile PETES.DARRA MAFriNE2, Gregorio. Curso de Derechos Fundemontalse Teoria Genel, Macrit Universe Garos fi do Madd, 2000, p, 263-282. Na doutaina nacional le consular MORAGS, Masia Galina Bodin de, "O Principio da Soldariedado” In PEISINHO, Manoel [Mezsis: GUERRA lala Franco & NASCIMENTO FILHO, Ply (Orgs). Principe na Constituigio de 1989 Ria do Janse: Ed. Lomon Juris, 200, p. 167-180. 5 Gr PECESBARBA MARTINE2, Gregori. Curso de Derechos Fundamentals: Terie Gonaral ap. et, p. 262 Daniel Samant ares, estando disseminados por toda a parte, os direitos humanos também devem assumir a mesma onipresenga, para proteger 0 homem em todos os quadrantes da sua vida. Enfim, numa sociedade em que, tal como na fazenda dos bichos de George Orwell, “tades s40 iguais, mas alguns sio mais iguais do que os outros”, proteger os “menos” iguais dos “mais” iguais tomow-se uma das principals missées dos direitos fundamentais. Sob esta persbectiva, os direitos humanos deixam de ser vistos como deveres apenas do Estado, na medida que outros atores nao-estatais sao convocados para 0 mesmo palco, chamados as suas responsabilidades para a construgao de uma sociedade mais justa, centrada na dignidade da pessoa humana. E nesta linha que se desenvolve a discusséo sobre @ incidéncia dos direitos fundamentais nas relagées privadas, que pretendemos abordar e discutir ao longo deste trabalho. 2, Apresentagao e Delimitagao do Tema Uma associagéo civil pode impedir © ingresso de novS¥ integrantes que nao professem determinado credo, tendo em vista © pringipio da lberdade de religido? Seria aceitivel que uma empresa privacla demitisso um empregado, por manifestar-se publicamente Contra determinado produto que ela fabrica, considerando a iberdade | constitusional de exprossao? Seria eto que um pai, sem qualever | razan objotiva plausive. doasse vin bem e vin das seus fihos, mas nae) Tealizasse qualquer lberalidade om releggo 20 outro, dianie do. principio da isonomia? Um clube poderia aplicer uma sangdo Uiseiplinar contra um sécio, sem Ihe proporcionar previamenteo direito de defesa, onde om vista a garantia constitucional do contraditério? 4 ‘as ndagagoes formuledas ucima envolvem a incidézcia doe liceitos fundamentais no mbito das relaghes juridico-privadas. As fespostas que intuitivamente emergem des casos propostos Gemonstram que a questo da vinculagéo das pessoas entidades privadas sos dieitos fandamentats & complexe e rica em nuances "A diseusséo doutrindria sobre 0 tema om pauta inicia-se na Alemanha, na década de 50, despertando tanto na comunidade académiea como na jurispruiéncia daquele pais wma intensa polémica ‘Arclevineia da discusedo logo fo zentida em outros quadirantes, onde 2 quostao também aflorou, tendo a teoria da efcacia entre particulares dos direitos fundamentais oe tomnado umn “artigo de exportaga juiaiea Dotoe Pundamentae © Rolagbe Priva made in Germany *, como observou Ingo Von Munché, sendo hoje deba- tida na doutrina e jurisprudéncia de paises como Espanha Portugal, Itélia, Franga, Holanda, Canadé, Africa do Sul, dentre tantes outros. Apesar disso, 0 toma néo despertou ainda, com honrosas excegoes?, uma atengao da nossa doutina constitucional minimamente proporcio- nal & sua televancia pratica e teérica. I no campo do Direi:o Privado que a questéo vem sendo tratada com mais iraquiéneia no pais, pelos autores Giliaulus linha da coustitucionalizacao do Direito GiviP, que, como nao poderia deixar de ser, abordam a tematica a partir da pers- pectiva propria & sua disciplina, que nao é a que se pretende desen- volver aqui. Fala-se em eficécia horizontal dos direitos fundamentais, para sublinhar o fato de que tais direitos nao regulam apenas as relagées verticais de poder que se estabelecom entre Estado ¢ cidadao, mas incidem também sobre relacdes mantidas entre pessoas e entidades nao estatais, que se encontram em posiggo de igualdade formal. ‘Mas, se parece hoje inquestionavel a necessidade de extonséie dos direitos fundamentais & arena das relagées privadas, muito mais polé- mica é a forma e a intensidade desta incidéncia. Neste particular, ‘oportuno recordar que, divorsamente do Estado, que tem de ser juridi- camente limitado, 0 individuo é essencialmenta livre, @ a sua autono: mia, numa ordem democritica, constitui diteito fundamental cons- tutuctonalmente protegida. Néo seria aceitavel sujeitar ¢ cidadéo ao mesmo regime vigente para o Estado, na qualidade de sujelto passivo MUNCH, Ingo von. ~Dritwirkung do Derechos Fundementales en Alemania” In SALVADOR CODERGH, Pablo (O1g}} Associaciones, Derechos Fusdémencales ‘Autonomia Prvada. Maid: Eston Chas, 127. 20 7 Na dowtrina coneticional brasinia, destacamos SARLET, lage Woligang. “Divitos Fandamoniais ¢ Direao Frivado:algumas considerarSes em torno da wrculagao dos particulates a0 dioitos fundamentais”. Inv SARLET Ingo Wolfgang (Osa). A CConsticuido Concrtizaca, Porto Agro: Livia do Advogado, 2000, p. 207-16 GASTRO, Carlos Roberts de Siquara.“Apticagao dos Dsites Puncmentats be Relazoos Privadas”. In: PEREIRA, Annie Celso Alvos © MELLO, Celzo RD. Alboquerque (Oxy) Estudos om Homenagem 2 Carfax Alberto Droit. Ro da ltsiza Renews, 003, 9.227 246; MENDES, Gitmar Foreia, "Dueitor Pundamontaie: Elioicia da Gascaties Constitucionais naz HolacSor Prvadar Andie da Jurisprudéncia da, Corte CConstitucenal Aleman Diexos Runéamentaie@Contole de Constituciralidads Sao Paulo: Coiso Bastos Rar, 1998, p. 207-226; BRANCO, Paulo Gustav Gon. “Aspoctos {2 Teoria Geral dos Dretos Furdamentas”, Ine MENDES, Gimar Fores, COBLHO, Iocincio Martues & BRANCO, Panlo Gustavo Gonet. Hermensutica Cantitucional & Direnos Sundamoneais Bras: Braiha Jide, 200, p. 169-180, 8 Na coutrina comsica aster, ven so om oxpecal TEPEDINO, Gustave. “Disitos Huma oe otacies Pave” In Tomas da Lia Cha Teo de Janets Reno. WH. 372 Danio! Sermento dos direitos fundamantais, diante da liberdade constitucionalmente estrutada pelo primeiro, que se presenta como corolério inafastével dda sua digniclade come pessoa humane, em oposicao ao caréter intrinsecamente imitado do segundo. # importante nao esquecer que, ‘como pontuot Robert Alexy, "(la relacién Bstado / ciudadano es una Telaciin entre un titular de derecho fundamental y un 20 titular de Gorecho fundamental. En cambio, la relacsén cludadano / ciudadano es tina relacion entre ttulares de cerchos funkamencates®. Portanto, cumpre nao incorter no desvio de, sob o prevexto de estonder plenamente a aplicagao dos ditetos fundamentals ao ambito privado, acabarse asfixiando a autonamie individual, criando uma atmosfera totalitéria, quase orwielliana, na qual a multiplicagao eo infinito de deveres constinucionais reduzira a bem pouco @ liberdade humana. Destarte, so 6 corto que of direitos fundamentais se iradiam para as relagées privadas, nao é menos certo que a aplicagao destes Gieitos no campo néo estatal roveste-se de uma série de ospocifcidactest®, que tam de ser davidamente consideradas. ‘Assim, 0 objetivo do nosso estuda seré o de dissocar tais espe- ciffcidados, buscando apreciar, 4 hz da orem constitucional vigente, as com os aportes pertinentes do Diteito Comparado, a forma ¢ a intonsidado da vinculagao das entidades privades ‘20s direitos fundamentais. Abordaremos, desta forma, os fandementos, condicées © limites para esta incidéncia, buscando extrair do nosso sistema constitucional os standards adequados para resolver @ ponderacdo entre tais direitos e © prinoipio da autonomia privada, que tem beico constitucional na eltvsula da dignidade da pessoa humana, no direito a Iiberdade inscrito no caput © no inciso It do art. 5 da Let Maior © no principio da live iniciativa, acolhido no art. 170 do texto fandamental ‘Sem embargo, ¢ preciso demarcar com maior preciso os limites da nossa empreitada, Em paises como Alemanhe e Bspanha, nos quais o monopélio da jurisdigao constitueional pertence a um Tribunal Const tucionel, a controvérsia sobre a eficicia horizontal dos direitos fundamentais ficou fortomonto ascociada a quostées processuais. Na- queles Estados, discute-se a possibilidade e es limites de interposicao de queixa constitucional (Alemanha) ou recurse de ampsto (Espanha) ALEK, Rotest. Tori de foe Derechos Pundamentales. ad. Hmnesto Garson Vakiés 0 CL CANOTILHO, Jose Joaquim Gomes, Disto Consskuconal e Teana da Gonsutugso. Dieitoe Fundamentats@ elects Pivades para as respectivas cortes constitucionais, em hipéteses de violagio de direitos fundamentais por entidacies privadas, bem como a relagao que se estabelece entte a jurisdicéo ordinéria e a justica constitucional estes cages. A discussao substantiva acaba ge justapondo e se con- Tundindo com a processual, o que exacerba as dificuldades do tema, que niesmo sem esta dimonsio ja téo tormentoso. No nosso estudo, nao pretendemos nos dedicar, sendo de forma incidental e superficial, & andlise de quesi6es processuzis relacionadas & eficacia des direitos bumanos nas relacées particulares, até porque a existéncia do controle Gifuso de constitucionalidade no pais evita que surjam maiores difi- culdades no que se refere & possibilidade de tutela processual de tais, direitos quando ofendides por personagens nao-estatais. Por outto lado, a incidéncia das normas constitucionais no Direito Privado suscita uma série de questdes relevantes, que nés nao preten- demos abordar. Discussées camo a relativa A possibilidade de mudanca do registro civil do transexual, & legitimidade da prisao civil do deposi- trio infil, ow a validade da uniao civil de pessoas do mesmo sexo, vam sendo proficuamente debatidas pela doutrina mais sintonizeda com 0 movimento de constitucionalizagao do Direita Privado. Estes temas, no entanto, fogem ao objeto do nosso estudo, porque nos casas mencio- nados 0 Estado figura num dos pélos da relagao juridica Je direito fundamental. Encontra-se em jogo, portanto, a tradicional eficacia vertical dos direitos fundamentais!!, Nossa atencéo, no presente tra- balho, estaré focada naquelas situacdes em que o pretenso sujeito passivo do diseito fundamental 6 um particular, uma entidade privada. ‘Também nao pretendemos abordar a questao da eficécia dos direitos fundazaentais no Direito Internacional Privado, que envolve a iscussAo sobre o principio da orcem publica, como limite a aplicagao, pelos juizes brasilelics, de normas intemacionais contrarias aos direitos fundamentais'2, Nesta questa, o que se visualiza é a vincula- (¢40 do Judieiério, como poder estatal, aos direitos fundamentais, raz0 pela qual se trata de hipétese que envolve a tradicional eficéc.a vertical dos direitos fundamentais, 11 No mssmo sentido, SARLET, Ingo Welgang, ape, p. 102 12 Vojase, sobre esta questio, ARAUUJD, Nata do, “Ditto Internacional Priva Diites Fundamentais: Una petspetiva secu atgumentava do peicipo da ordom publica In: BINENBOWM, Gustavo (Coord) Revista do Delo da Associacso das Procuradres do ‘Novo Estado do io de Jeneia ¥. Xl, Duetes Pundawentais. Ro de Jorei: Lumen Suns, 2008, p. 0838, Daniel Sarmento Ademais, ha direitos provistos na Constituigao brasileira que foram evidentemente concebidos para ser exercidos em face de particulazes, como os direitos trabalhistas previstos no art, 7 da Let Maior, ou 0 direito de resposta, instituido no art. 6%, inciso V, do texto magno. Da mesma forma, bd diteitos fundamentais que, pela sua propria naturoza, s6 podem ser exescitados ent face do Estado, como a ‘garantia contra extradicao do nacional e os direitos constitucionais do ‘psesp. Também nao nos ccuparemes, neste trabalho, destes eases. Enfim, nossa intencao é a de construlr uma teoria para a eficdcia dos direitos fandamentais nas relagées privadas no dizeito brasileiro, ‘tema quo nos parece essencial num pais to injusto e desigual. Nossa empreitada situa-se no ambito da dogmética constitucional, mes pre~ tendemos incursionar na dogmatica despindo-nos de dogmatismos. Guia-nos a idéia de fazer ciéneia — @ sem dogmatica nao ha ciéncia mas nao uma ciéncia "pura", no modelo da Escola de Viena, descompro- miesada com valores e com os problemas do mundo, ¢ sim um ciéncta transformadora, que, abdicando de qualquer pretensao de neutralidade axiologica, se assuma como ferramonta para emancipagao social! 3. A Discuss4o Terminolégica ‘A questo concemente a incidéncia dos direitos fundamentais nas velag6es privadas recebeu na doutrina diversas designagdes, como "eficécia entre terceiros” (Drittwirkung), oficécia extema e eficécia horizontal dos direitos fundamentals, ou ainda eficdcia dos direitos fun damentais frente a particulares. Ha também quem evite o termo “efica~ cia", @ opte pela denominagio de “valide2" dos direites fundamentais nas relagdes entre particulares's, ou entéo prefira a expresso “vincule- 0" dos particulares, ou das entidades privadas, aos direitos funda- mentais!S, Embora esta discusso nao nos pareca to essencial, regis- 13 Mateo, om suma, do que CLEVE, Clémotson Merlin defini como “dogma consti ‘onal emancipate’, em feseiac ensio iutulado “A Teoria Constiucinal eo Dito ‘Alernativo: Pia uma dogandica covetielonal emancipate: Une Vida Ddicads 20 Dirator Homenagem a Caro Henrique de Carvalho. Sto Paulo: Ed RT. 1985, p. 0-59 1M Esta a designogio pefeida por PECES-BARDA MARTINEZ, Gregori Curso de Derechos Pundamontales, op. cp 638 16 Preforen exta egeinig VIEIRA DE ANDRADE, José Corl. Or Dileoe Fundomentais, ‘ns Gonstituigo Portaguesa de 1976. Coimbra: Liana Amedina, 1980 p. 2706 SARLET, Ingo Wolkjnyg, “Ducts Fundamantaise Direta Privado.-", op. p 114 Diteitos Rundamentai @ RelagbesPrvadas traremos sinteticamente, a seguir, a polémica existente a propdsito destas diversas designacées travada na doutrina, Na Alemanha, © uso consagrou a expresso “eficécia entre terceiros dos direitos fundamentais” (Drittwirkung der Gruadrechte), pelo que consta!® cunhada por Ipsen em obra publicada en 1954\7, Esta denominacae é passivei de critica, pois s6 © apego a ultiapassada teoria liberal dos direitos fundamentais, que os limitava as relagtes ‘entre cidade o Eotado, justifioa que se concelsa o pai tivulas Como um “terceiro” em relagao a tais direitos. © mesma pode ser dito apropésito da expressao “eficacia externa” dos diseites fundamentais, que parte da premissa de que os cidacdos esto, em principio, exchuides do pélo assivo das relagées juridicas referentes aos direitos fundamentais, sendo extemnos a elas, 0 que néo parece correto a luz da teoria constitucional contemporanea. Outra expressao que se tomou usual no panorama germénico € 8 da eficécia “horizontal” dos direitos fundamentais (Horizontalwirkung), empregada, dentre outros, por Robert Alexy, Saladin, J.P Maller e H. Bethge. Como jé foi dito acima, esta dasignagéo objetiva exprimir a ircunstancia de que os direitos fundamentais nao se aplicam apenas 49 relagées verticais de poder, mantidas pelo Estado com seus cida- aos, incidindo também sobre as relagdes entre particulates, situados numa posi¢do de hipotética igualdade juridica, Sem embargo, a deno- minagSo em questo é criticada por diversos autores, que destacam que na maioria dos casos de invocacso de direitos fundamentais na estera privada, a igualdade ou horizontalidade da relagao & ficticia, ols 0 que de fato se desenha é uma relagdo assimétrica, entre uma arte mais forte e outra etm posigdo de manifesta inferioridade fatical® Por outro lado, Gregério Peces-Barba Martinez, no seu influente Curso de Derechos Funcamentales!®, questiona © emprego do terme “eficacia", usado pela maioria da doutrina que trata da nossa questo, Para ele, a eficécia relaciona-se & questo processual concerrente 203 meios de tutela dos direitos fundamentais. O jusfilésofo 2spanhol prefere falar de “validez” das normas de direitos fundamentais nas (Ci. BILBAO BILL, Juan Maria. La Rania de los Derchos Fundamentles fence & Parcculares. Madr: Geno do Esiios Costitueionlos, 197, 271 17 IBSEN Jom. Handbuch der Theodie und Praxis der Grandiccht, © Wh asud JULIO SIRADA, Alene. La Eficacia de ls Derechos Pundamneales ere Pardclsen Bogota Universidad Esacrnado de Colaubia, 200, p90 18 CL SARLET,Diotos Rundamentaise Dielto Puvad op. cit. 14 19 Op.ck, p.cte-e19, relagées particulars, pois, na sua Stioa, 6 a velidez,e néo a eticéca, Gue'se lige ao probleme substantive Ge extens40 daqueles dices & estora privada®, ' Sa no conioxto anglo-saxdo, tornau-se corrente @ expresséo + prwvetizagdo dos dtltos humanow', para tater da questéo da sua ineidéncia no ambito dae relagdesprivades ‘Mas, como disse Shaltespeate,"O que si os nomes? O que cham mosite rove, com vue none, io teria igual portume?™, Seguinde © ba, nao daremos maior importéncia A discussao tezminologica em nosso ensaio, pois somos da opine de que oéale bom poucoimpota fo estudo de qualquor contioversia,judiea op nfo. Assim, lize temos de forma indistinta algumas das denominagses acima referidas to longo do nosso trabalho, mestto reconhecendo « procedéncia de Gortaserticas que lhes foram enderecades. 4. Plano de Trabalho |A discussao a propésite da eficacia dos direitos fundamentais nas relagées privadas pode ser situada em um contexto mais amplo, no qual se desenvolvem os debates sobre o sentido @ as dimensdes dos direitos humands no mundo contempordneo. Nossa tematica envolve também a acesa controvérsia, dle forte colorido idaolégico, sobre os limites da autonomia privada num Estado que, embora capitalists, deve nortear-se, por imperative constitucional, para a construgao de ‘uma sociedade mais justa e igualitéria. Ela se insere, por outro lado, na discusséo concemente ao papel da ordem constitucional na conformacéo do Direite Privado, A abordagem da questao proposta nao terA como fugir destes temas to dificeis, que, no entanto, pela sua profundidade e extenséo, nao podorio ser analisados de modo oxaustivo. 3B Bina shen ng Wags Si, at ate de es a no ai do conoversin, Do fata, pa dana basa prevelecs« ia, suentade pore tomovJose feng da va Lats Rebnto ato, do qos «ets opote a ptiio ti poa pare prin e fee juidees, Rese setido, iia suo wo plo Stoaniv « ao no ease derannte Go gv smn, ese Marines, SARLET Inge Walang. Dice Fundarmtets © Dueito Pivado. op ct, p15). 21 au eapionto € oqlcntomonte emregeda por CLAFEAR,Aodivr, a eta male comet sbye econ lara na nga talada Huan Rigs nth Prot Spore Oxo Cheon os, 193 2 Palo Suita so Aol, Ca, do Romo Jali Ditoitos Rundamtie Relogdes rivadas Nosso estudo sera dividido em duas partes: na primeira, somposta [Por quatro capitulos, abordaremos as premissas © Os pressupostos tebricos para a discussao sobre a incidéncia dos direitos funamentais nas relagées privadas; e, na segunda, integrada por trés capitulos, Gesenvolveremos nosso tema principal, verificando suas oplicacdes priticas, no Direito Comparado e no Brasil No primeiro capitulo da teso, tentaremos sitar a discussdo sobre cticécia dus diveitos fundamentals nas relagoes privadas dentro do contexto mais amplo, das transformagées do Estado e da sociedade ao longo da histéria moderna e contemporanea. Pretendemos dissecar 03 modelos liberal e social dos direitos humanos, e discutir a emergéncia de um possivel paradigma pés-social destes diroitos, relacionando tais ‘nogdes com a controvérsia em torno da incidéncia dos direitas fund: ‘mentais nas relagées privadas. Ademais, ser4 apresentada a discuss8o relativa ao advento da pés-modernidade no Direito, e analisedos seus ossiveis impactos sobre a tooria da eficdcia horizontal dos direitos fundamentais. O pano de fundo do capitulo sera a evolucao ca dicoto- ‘mia piblico/privado, ao longo do tempo, com suas implicagéss para a concepeao de direitos humanos socialmente vigente, Em seguida, no capitulo segundo, nosso objetive é apreciar os Processos de constitucionalizacao e de personalizagio do Diteito Pri- vado. Tentaremos mostrar, em primeiro lugar, a importancia do reco- nhecimento da forca normativa da Constituigdo, e da eficdcia juridica dos seus principios, no contexto do pés-positiviemo juridico. Estabele- ceremos uma relagao entre tais fendmenos e a constitucionalizacao do Direito Privado, mostranda como, ao longo do tempo, o Cédigo Civil foi Geixando de representar o centro gravitacional da ordem privada, sendo substituide pela Constituigao. Apreciaremos as conseqiiéncias deste processo, ligadas a despatrimonializagao e & personalizacao do Diceito Privaclo, para defender que hoje este elevou a pessoa humana a0 seu valor primordial, tutelando de modo mais intenso os valores existenciais, em detrimento dos diteitos patrimoniais sobre os quais se fundavam os cédigos do passado. No terceiro capitulo, pretendemos analisar a dimensao objetiva dos direitos fundamentais. Nosso escopo seré 0 de suscitar a discussao sobre este tema, que se liga & comproensao da Constituicao como uma ordem de valores centrada na dignidade da pessoa humana, adotada pala Corte Constitucional aloma e por outros tibunais constitucionais europeus. Tentaremos analisar algumas conseqiiéneias da dimenséo objetiva, em especial as teorias da eficdcia irradiante dos direitos fundamentais © dos deveres de protege, desenvolvidas pelo tribunal germanico, apreciando a sua pertinéncia em relagao ao diteito brasileiro. Passaremos, no quarto capitulo, 20 estudo da protegio consti- ‘tucional da liberdade e da autonomia privada na ordem constitucional brasileira. Veremos como se articulam, no Estado Democratico de Di- reito, a autonomia pUblica do cidadao, voltada soberania popular, com @ auitonomia privada, ligada ao goz0 das liberdades individuais, € ccmo ambas dependem de condigdes materiais de liberdade, sem as quais se tomam garantias ficticias. Dissecaremos a autonomia privada, na sua dimenséo existencial, ligaca & autodeterminagao pessoal, © na sua dimenséo econdmico-patrimonial, associada a liberdade negocial. A autonomia privada ser aprosentada como um corolério do principio da dignidade da pessoa humana, j4 que sem um minimo de liberdade individual nao hé dignidade, mas veremos como a protegéo conforida a dimensao existencial desta autonomis 6 muito mais intensa do que a ofertada as suas projegées econdmicas. Analisaremos também a possi- bilidade de estabelecimento de limites e restrigdes a esta autonomia, em razao da necessidade de promocao de outros interesses constitu cionais acolhides num Estado Democrético de Direito. Com esse capi tulo, encerramos a primeira parte do estudo. No primeiro capitulo da segunda parte, delinearemos as principais teorias sobre a eficdcia dos direitos humanos nas relagdes privadas © verificaremos a sua recepeao no Direito Comparado, Discutiremos as tees que negam esta eficicia, como a doutrina da state action nos Estados Unidos, com 0 objetivo de refuté-las e mostrar sua incompa- tibilidade com 0 Direito contemporaneo. Analisaremos, em seguida, a tootia da eficacia horizontal indireta ou mediata dos direitos funda~ mentais, e a da eficacia direta ou imedist, assim como a doutrina dos deveres de protecéo, desenvolvidas pela doutrina germanica e dis- cutidas em varios outros paises, apontando suas conseqiiéncias e im- actos sobre questées como a autonomia privada dos particulares © a elagao entie o Judiciario © o Legislative na concretizagao da Cons- tituigdo. Serdo abordadas, ainda, outras teorias alternatives sobre a matéria, como as sustentadas por Schwabe e Robert Alexy. Ao longo do capitulo, veremos o tratamento dado ao tema em paises como Alemanha, Espanha, Portugal, Italia, Estados Unidos, Canada, Africa do Sul e Argentina, Ademais, pretendemos analisar a questio da eficacia horizontal no émbito da jurisdicgo internacional dos direitos humanos, voltando nossa atengao para a experiéncia da Corte Duees Fundamontas Rolagées Prvada Européia de Dizeitos Humanos na matéria, ¢ também para 0 incipiente tratamento dado a questao pela nossa Corte Interamericana Jé no segundo capitulo da segunda parte, tentaremos esbogar os lineamentos de uma teoria sobre a eficacia horizontal dos diaeitos fun- damentais na ordem juridica brasileira. Para isto, teremos de analisar as premissas axiologicas da Constituicao de 1988 e & concepedo sobre dixeitos fundamentais subjacente & nossa ordem constitucior.al. Nossa intengio é de hosquejar o2 paramotce para a vinoulagao doz parti- culates aos direitos fundamentais na ordem juridica brasileira, e, para isso, tentacemos estabelecer alguns critérios para a ponderagao entie tais direitos ¢ a autonomia privada, Além disto, examinaremos também algumas questées processuais ligadas ao nosso tema, em especial @ ppossibilidade de utilizagao de remédlios constitucionais contra ofensas ‘a dizeitos fundamentais perpetradas por particuleres. Neste capitulo, abordaremos questdes gerais dos direitos fundamentais, focando com tais atengéo os diteites individuais, sem entrar na discussac em torno da vinculagéo dos particulares aos direitos sociais, politicos e difusos, tomas que suscitam questoes diferenciadas. Estas questées serdo expostas ¢ exeminadas mais detidemente no terceito capitulo, onde a nossa intengao é penetrar num terreno novo, sobre 0 qual a doutrina nacional e estrangeira so praticamente si- lentes: @ eficdcia horizontal dos dirsitos sociais nao trabalhistas, dos direitos politicas e das direitos transindividuais, de 3* geracdo. Em relacao aos primeiros, vamos tentar delinear em que casos e em que modicla direitos sociais como a salide, a moradia @ a educagio, podem: influenciar a deciséo de contiovérsias envolvendo atores privados. ‘Também pretendemos verificar se 6 possivel, e em que medida, extrait, a partir dos direitos politicos constitucionalmente previstos, ditetrizes para a democratizagio de espacos privados, como as empresas, as asacciagées 0 a familia. © aborciaremos, ao fim, a vinculagao dos parti- cculates a diteitos fandamentais transindividuais, como 0 meioambiente ‘ecologicamente presorvado e o patriménio historico, artistico @ cultural, ‘Ao final da obra, ser apresentada uma concluséo, cnde preten- demos sintetizar as idéias centrais expostas ao longo do wabalho e tocor, a guisa de encerramento, algumas observagées finals, ‘Tentaremos, ao longo do trabalho, enriquecer a exposicéo com a ahordagem de casos praticos jé examinados pela jurispruciéncia hacional e estrangeira, com o objetivo de aproximar os debates tedricos da realidade viva, Sem embargo, nosso estuco propée-se a assumir uma postura critica, no sentido de iclentificar falhas e fragilidades nas construgées jutisprudenciais existentes sobre a matéria, e sugerir novos caminhos a serem trilhados, Finalmente, cumpre ndo olvidar que cada um dos iniimeros direi- tos fundamentais consagrados no vasto e generoso elenco contico na Carta de 1988 apresenta peculisridades que podem ter influéncia na sua incidéncia sobre as relagées privadas. Todavia, seria impossivel nos limites deste trabalho, empreender uma analise sobre a eficacia horizontal de cada um destes direitos tundamentals. Nossu ubjetivo ¢ mais restrito, pois 0 que pretendemos é gizar os contornos de uma teoria goral sobre a eficdcia dos direitos fundamentais nas relagdes privadas & luz. da Constituicao de 1988. Parte I PREMISSAS TEORICAS Capitulo I Os Direitos Fundamentais nos Paradigmes Liberal, Social e Pés-Social e a sua Incidéncia sobre as Relagées Privadas 4. Introduce, 2. 0 Paradigma Liberal. 3. 0 Paradigma Social. 4. Globalizagéo ¢ 0 Paradigma Pés-Social (2). 5. Modemidade @ Pés- Modernidade no Direto. 1. Introdugao A questao concernente & oxtonsao dos direitos fundamentals sobre as relacdes privadas apresenta profundas conexdes com a forma pela qual encaramos o Estado, a sociedade e os direitos humanos, O objeto do nosso estudio nao pode ser analisado de forma isolada, pois se insere num contexto mais amplo, que envolve as cosmovisées vigentes em cada época. Neste sentido, torna-se conveniente examinar nosso tema a luz dos paradiginas do Direito, pois estes, como registrou Habermas, “abrem perspectivas de interpretacdo nas quais 6 possivel relerir os prircipios do Estado de diteito a0 contexto da sociedade como um todo"? Discute-se, na epistemologia cientifica moderna, o papel dos para- digmas na construgao do saker, Thomas Khun, autor de uma obra muito influente sobre a matéria?, sustentou que todas as cléncies so desenvolvem no interior de paradigmas, que constituem suas pre- missas e demarcam 0 campo do debate da comunidade ciontifica. Um paradigma, como ressalton José Eduardo Soares Faria, “(..) implica ‘uma teoria bésica, uma tradicdo cientifica e algumas aplicagées exem: plares, que so aceitas pelos cientistas ao ponto de suspenderem 0 es- forgo critico de discussao de seus pressupostos e de suas possiveis 2B Divo e Domeocrocia. Mp. et, p- 181 Press, 1062 ima etiea eo idealist uricco". I FARIA, Jose Eduardo Soares (Org A Case do Die. ‘o.em una Sociedade om hlanes. Hirai Es. Unvwersidae de Basis, 1988, 9. 21 anol Sormeonto alternativas substitutivas"?®, Em certos momentos, quando um paradigma deixa de responder as necessidades daquela comunidade, ou de corresponder as suas erengas, hé uma crise que pode resolver-se numa mudanga de paradigma, acarretando uma revolugdo cientifica Os paradigmas, segundo a concepgao de Khun, sao reciprocamente incomensuraveis, vale dizer: néo ha um ponto extetno pelo qual se possa valorar qual paradigma 6 melhor do que o outro. Paradigmas Gifbrentes, sob este prisma, s40 incompativels, e nao ha possibilidade de comunicagao interparadiomatica Esta tesa, muito do agrado dos autores ligados ao pas-modernis: mo, é eriticada por outros pensadores, que nao concordam com a idéia de que a evolucie da ciéncia so dé através de grandes rupturas ou “saltos quanticos”. As mudangas s4o muilas vezes graduais, e mesmo has raras ocasiées em que ocorrem verdadeiras revolugées cientificas, subsistem intactos certos aspectos do conhiecimento acumulados no pasado, sob a égide de outros paradigmas. ‘ais observagses propedéuticas fazem-se necessérias para explici- tar nossa posig#e em relacdo ao préprio titulo deste capitulo. Quando aludimos aos paradigmas jusfundamentais liberal, social e pés-social, nao estamos predicando a existéncia de uma completa ruptura entre estes diferentes modelos, Bles constituem, na verdade, exteriorizagées no mundo juridico de mundividéncias distintas, mas estas ndo decorre- ram, em regra, de rupturas revolucionarias, e sim de evolugées gradua listas, que nao tiveram 0 mesmo ritmo ou a mesma intensidade em todos os lugares. Por razées didaticas, quando tratarmos destes paradigmas destacaremos alguns dos sous aspectos nucleares, fazendo alastragao de ‘outros daclos periféricos @ “le fragmentos do paradigma anterior que subsistiram intactos na nova ordom, ‘Irata-se de uma simplificagso, que nao deve obscurncer o fato de que a realidade social ¢ multiforme © assume as mais variadas conformagées, razio pela qual jamais cabera com perfeigéo na moldura de qualquer modelo tedrico fechado, Feitas estas observagées, cumpre lembrar que os direitos funda- mentais nao constituem entidades etéreas, metafisicas, que sobre~ pairam 0 mundo real, Pelo contratio, séo realidades histéricas?”, que resultam de lutas ¢ batalhas travadas no tempo, em prol da afirmacao Kal BY Desnrroly el Conseiminto Cention Conjocurae y Refotasiones. Tad. W Mingues. Buenos tes: Pails, 1907 27 GL BOSHIO, Monat, A Bre dos Dirsiox Tad, Carlos Neleon Coun. Rio de Janeiro: a, Campus, 1992, p05, Dioitos Fundamentals ¢ Relais Paiva da dignidade humana, Como afirmou Hannah Arendt, en oélebre assagem sempre citada, “os ditoitos humanos no sao um dado mas um construido”’3, & natural, portanto, que as mutagées politicas, sociais e culturais que se desenrolam na sociedade molden a forma com que estes direitos so encarados. Assim, € possivel dividir a trajetéria histérica dos direitos fundamentais na Modernidade em duas grandes feses, que corresponciem, reeipiocamente, ao Estado Liberal e a0 Estadu Suvial Cada um destes modelos apresenta caracteristicas basicas que tem enorme relevo para a definigao da incidéncia, ou nao, dos direitos humanos nas relagées privadas. Atualmente, fala-se ja no esyotamento do modelo do Estado Social, ¢ na emergéncia de um novo paradigma, que poderiamos chamar de pés-social. Embora nos parega que se trata de um modelo em construgao, cujos contornos ainda ndo astao bem definides, jA 6 possivel, correndo certos riscos em razdo da falta de Aistanciamento histérico, fotografar algumas das suas caracteristicas mais marcantes, ¢ anslisar seu impacto sobre a nossa tematica. or outro laca, cumpre reconhecer, antes que nos acusem de etno- centrismo, que a narrativa que se vai iniciar busca refletir um process que se dasencadeou no mundo acidental, em especial na Europa e nos Estados Unidos. De fato, nao ha como negar que a histéria dos direitos humanos retzata, antes de tudo, © percurse de uma idéia que brotou 59 desenvolveu na civilizacao ocidental, Estes diteilos so a tradugao. normativa de determinada cosmovisao que, em sua esséncia, remonta, a filosofia lluminista, Diante disso, alguns criticos contestam 0 carter universal dos direitos humanos, advogando a tese de que a imposicao destes direitos em civilizacées diferontes, que nao pattilham da tadligdo cultural do Ocidente, constituiria uma violencia a autodeter- minagao dos povos, uma forma insidiosa de imperialismo e tm sintoma da soberba ocidental 28 Paro uma andlio do pensameata de Hanna Atendt no que se roere aos dlelos -mumancs,vja-se o portato trabalo de LAFER, Colo. A Raconstrugco dos Dictor Flumanos Sao Paulos Companhia das Letras, 1988. 29 HUNTINGTON, Sane! na polomicn obra O Choque do Giizagtes. "tad. M. H.C Cctea, Rio de Janet Ee, Objet, 1997, afema que, com final do murdo bipolar © & ‘tora do capitallemo sobre 0 eocalsmo, os pracpals conites que « Humanidads nites doravante serdo entre civlizacoes difeentes, Para as cirlizagoes nao Sordentas, que néo vivencioram & experiencia nina, o= cieitos fundamen

Você também pode gostar