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ISSNe 2318-0919

posURB PUC-CAMPINAS | Janeiro_abril 2017 14(1)


ISSNe 2318-0919

posURB PUC‑CAMPINAS | janeiro_abril 2017 14(1)


SUMÁRIO |CONTENTS

5 NOTA DO EDITOR | EDITOR’S NOTE | NOTA DEL EDITOR | Maria Cristina da Silva Schicchi

10 ENSAIO VISUAL | VISUAL ESSAY | ENSAYO VISUAL


DIAGRAMAS | DIAGRAMS | DIAGRAMAS | Jorge Mario Jáuregui
ATOS DE HESITAÇÃO – OS CROQUIS DE INVESTIGAÇÃO DO ARQUITETO JORGE MÁRIO JÁUREGUI | ACTS OF HESITATION –
JORGE MÁRIO JÁUREGUI’S INVESTIGATIVE SKETCHES | ACTOS DE INCERTIDUMBRE – LOS CROQUIS DE INVESTIGACIÓN
DEL ARQUITECTO JORGE MÁRIO JÁUREGUI | Valéria Veras

ARTIGO DE PESQUISA | RESEARCH ARTICLE | ARTÍCULO DE INVESTIGACIÓN

45 TRANSFORMAÇÕES E PERMANÊNCIAS: DESAFIOS DA POLÍTICA PÚBLICA NA OPERAÇÃO URBANA BAIRROS DO


TAMANDUATEÍ EM SÃO PAULO | TRANSFORMATION AND PERMANENCE: CHALLENGES OF THE PUBLIC CITY POLITICS
IN TAMANDUATEI NEIGHBORHOOD URBAN OPERATION IN SÃO PAULO | TRANSFORMACIONES Y PERMANENCIAS:
DESAFÍOS DE LA POLÍTICA PÚBLICA EN LA OPERACIÓN URBANA EN BARRIOS DE TAMANDUATEÍ EN SÃO PAULO
| Andréa de Oliveira Tourinho

63 VILA DOS IDOSOS: NOVOS INSUMOS PARA A POLÍTICA HABITACIONAL, NOVOS PARÂMETROS PARA A ARQUITETURA,
NOVAS RESULTANTES URBANAS | VILA DOS IDOSOS: NEWS INPUTS TO HOUSING POLICY, NEWS PARAMETERS TO
ARCHITECTURE, NEW URBAN RESULTANTS | VILA DOS IDOSOS: NUEVOS INSUMOS PARA LA POLÍTICA DE VIVIENDA,
NUEVOS PARÁMETROS PARA LA ARQUITECTURA, NUEVOS RESULTADOS URBANOS | Felipe Anitelli, Marcelo Tramontano

81 RESÍDUOS SÓLIDOS URBANOS, METRÓPOLE E PERIFERIA: A SEGREGAÇÃO SOCIOESPACIAL DOS CATADORES DE


MATERIAL RECICLÁVEL NA COMUNIDADE FREI DAMIÃO, EM PALHOÇA, SANTA CATARINA | URBAN SOLID WASTE,
METROPOLIS AND PERIPHERY: SOCIO-SPATIAL SEGREGATION OF WASTE PICKERS IN THE COMMUNITY FREI DAMIÃO I
N PALHOÇA, SANTA CATARINA | RESIDUOS SÓLIDOS URBANOS, METRÓPOLI Y PERIFERIA: LA SEGREGACIÓN
SOCIO-ESPACIAL DE LOS RECOLECTORES DE MATERIAL RECICLABLE EN LA COMUNIDAD FREI DAMIÃO EN PALHOÇA/
ESTADO DE SANTA CATARINA | Arthur Eduardo Becker Lins

99 A ESCRITA DA HISTÓRIA COMO UM PROCESSO: AS PRÁTICAS HISTORIOGRÁFICAS DE FRANÇOISE CHOAY (1965-1973) |


THE WRITING OF HISTORY AS A PROCESS: THE HISTORIOGRAPHICAL PRACTICES OF FRANÇOISE CHOAY (1965-1973)
| LA ESCRITURA DE LA HISTORIA COMO UN PROCESO: LAS PRÁCTICAS HISTORIOGRÁFICAS DE FRANÇOISE CHOAY
(1965-1973) | Priscilla Alves Peixoto

111 DISCURSOS QUE ESTRUTURAM O PODER SIMBÓLICO NO ESPAÇO EDIFICADO ESCOLAR | DISCOURSES STRUCTURING
SYMBOLIC POWER IN THE BUILT SCHOOL ENVIRONMENT | DISCURSOS QUE ESTRUCTURAN EL PODER SIMBÓLICO EN
EL ESPACIO ESCOLAR EDIFICADO | Silvia Kimo Costa, Milton Ferreira da Silva Junior

137 O PIONEIRISMO DO CENTRO DE PESQUISAS E ESTUDOS URBANÍSTICOS NA IDEALIZAÇÃO E IMPLANTAÇÃO DOS


CONCEITOS DE URBANISMO MODERNOS NO ESTADO DE SÃO PAULO (1957 A 1961) | THE CENTER OF RESEARCH AND
URBAN STUDIES: A PIONEER IN FORMING AND IMPLANTING CONCEPTS OF MODERN URBANISM IN SÃO PAULO (1957 –
1961) | EL CENTRO DE INVESTIGACIÓN Y ESTUDIOS URBANOS : PIONERO EN LA IDEALIZACIÓN Y LA APLICACIÓN DE LOS
CONCEPTOS DE URBANISMO MODERNO EN EL ESTADO DE SÃO PAULO (1957 – 1961)
| Ana Maria Reis de Goes Monteiro, Taiana Car Vidotto

155 O PLANEJAMENTO URBANO PARA ALÉM DA OPOSIÇÃO URBANO-RURAL: PERSPECTIVAS E DESAFIOS PARA
A CONSOLIDAÇÃO NO BRASIL DE SISTEMAS E PRÁTICAS INTEGRADOS DE PLANEJAMENTO TERRITORIAL |
URBAN PLANNING BEYOND THE URBAN-RURAL OPPOSITION: PROSPECTS AND CHALLENGES FOR THE CONSOLIDATION
OF THE TERRITORIAL PLANNING IN BRAZIL | LA PLANIFICACIÓN URBANA MÁS ALLÁ DE LA OPOSICIÓN URBANO-RURAL:
PERSPECTIVAS Y DESAFÍOS PARA LA CONSOLIDACIÓN DE SISTEMAS Y PRÁCTICAS INTEGRADOS DE PLANIFICACIÓN
TERRITORIAL EN BRASIL | Selena Duarte Lage e Lage

169 RESENHA | BOOK REVIEW | RESEÑA


URBANIZAÇÃO E DESASTRES NATURAIS, ABRANGÊNCIA AMÉRICA DO SUL | Leandro Ludwig

O C U L U M E NS A IOS 1 4 ( 1 )
R e v i s t a d o P r ogr am a d e P ós‑ Gr ad u ação em U rbani smo
J a n e i r o‑ A b r il 2 0 1 7
p.1‑172
NOTA DO EDITOR

A revista Oculum Ensaios começa o ano de 2017 com várias mudanças em sua estrutura
editorial. Mudanças que vieram em duas direções. A primeira, responde a um esforço da
equipe editorial para aproximar ainda mais o leitor da produção científica da área de ar-
quitetura e urbanismo: a Revista passa a ser quadrimestral a partir deste ano. A mudança
na periodicidade permitirá que tenhamos um fluxo maior de artigos publicados por ano e
que possamos melhorar o alinhamento de temas afins publicados em cada número. Mas
isso abre espaço também para a segunda mudança.
Todos os anos a Revista terá um número temático, sobre temas de interesse da
área e estratégicos para as discussões em curso no país, tanto para a comunidade cien-
tífica quanto para o Programa de Pós-Graduação em Urbanismo, ao qual está vinculada
desde 2000. Neste ano, teremos um número especial (n.2 de 2017) denominado “Dossiê
Patrimônio Cultural Ibero-Americano”, que contará com a participação de reconhecidos
pesquisadores da Espanha, de Portugal e de Cuba, como editores associados. Nos pró-
ximos anos, novos temas e pautas serão objetos de números temáticos, com convites a
pesquisadores renomados para compor o quadro de editores associados e a especialistas,
de diversas áreas do conhecimento, para submeterem artigos.
Essas mudanças foram decididas a partir de ampla consulta ao comitê editorial
nacional e internacional da Revista, que prontamente responderam às consultas realiza-
das no último ano, aos quais deixamos aqui nossos agradecimentos pela colaboração com
sugestões de futuras temáticas a serem abordadas e indicação de pesquisadores de várias
áreas para a renovação de nosso comitê de revisores, cujo trabalho é fundamental para
atingirmos a qualidade pretendida para a Revista.
Além de indexada nas bases de dados de Latindex, Redalyc e ROAD, a Revista
passa a contar com o DOI (Digital Object Identifier), ou seja, o sistema de identificação
numérico universal, que permitirá a vinculação direta de seus artigos à plataforma Lattes
do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e várias
outras plataformas internacionais.
Portanto, é com muita satisfação que abrimos este primeiro número de 2017, espe-
rando que todos nos acompanhem neste movimento, mas principalmente que apreciem e
que seja estimulante, como sempre, a leitura dos artigos.

Maria Cristina da Silva Schicchi


Editora-Chefe Oculum Ensaios

Ocul um ens. | Campi nas | 14(1) | 5-9 | Janei ro-Abri l 2017


EDITOR’S NOTE

Oculum Ensaios begins 2017 with numerous changes in its editorial structure following
two main lines. The first corresponds to the editorial team’s effort to bring the reader closer
to the scientific production in architecture and urbanism: from now on, the Journal is is-
sued every four months. This entails a more intense flux of articles and a better alignment
of similar themes in each number, making space for the second change.
There will be a yearly thematic number about strategic and common interest
topics of the area respecting ongoing national debates, both in the scientific community
and in the Post-Graduation Program by which the Journal is bound since 2000. This year,
we will release a special issue (n.2) called “Cultural Ibero-American Patrimony Dossier”
with recognized researchers from Spain, Portugal and Cuba as associated editors. In the
years to come, our thematic numbers will focus on new themes and issues, with reputable
researchers composing the framework of associated editors and specialists from several
knowledge areas submitting articles.
The remodeling was carried out within extensive consultation with both the inter-
national and national editorial committees of the Journal, which readily responded. We
thank them for the collaboration, suggestions of future topics, and for the recommenda-
tion of researchers to renew our committee of reviewers, whose work is fundamental for
reaching the quality intended for the Journal.
Besides being indexed in Latindex, Redalyc, and ROAD, Oculum Ensaios is now
listed in DOI (Digital Object Identifier), the universal identification numeric system.
This connects our articles to Plataforma Lattes of Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) and many other international platforms.
We are therefore pleased to open the first 2017 number hoping you will all joins
us in our new moment and, above all, that you will find the reading as stimulating and
enjoyable as usual.

Maria Cristina da Silva Schicchi


Editor-in-chief Oculum Ensaios

Ocul um ens. | Campi nas | 14(1) | 5-9 | Janei ro-Abri l 2017


NOTA DEL EDITOR

La revista Oculum Ensaios empieza el año 2017 con varios cambios en su estructura edi-
torial. Cambios que han venido en dos direcciones. La primera, responde a un esfuerzo del
equipo editorial para aproximar aún más el lector de la producción científica del área de
arquitectura y urbanismo: la Revista pasa a ser cuatrimestral a partir de ese año. El cambio
en la periodicidad permitirá un flujo mayor de artículos publicados por año y mejorar el
alineamiento de temas afines publicados en cada número. Pero eso abre espacio también
para el segundo cambio.
Todos los años la Revista tendrá un número temático, sobre temas de interés del
área y estratégicos para las discusiones en curso en el país, tanto para la comunidad cientí-
fica cuanto para el Programa de Pós-Graduação em Urbanismo, al cual está vinculada des-
de 2000. En ese año, tendremos un número especial (n.2 de 2017) denominado “Dossier
Patrimonio Cultural Iberoamericano”, que contará con la participación de reconocidos
investigadores de España, de Portugal y de Cuba, como editores asociados. En los próxi-
mos años, nuevos temas y pautas serán objetos de números temáticos, con invitaciones a
renombrados investigadores para componer el cuadro de editores asociados y a especia-
listas de diversas áreas del conocimiento para enviaren artículos.
Estos cambios fueron decididos a partir de amplia consulta a los comités editoriales
nacional e internacional de la Revista, que pronto contestaron a las consultas realizadas en
el último año, a quienes dejamos aquí nuestros agradecimientos por la colaboración con
sugerencias de futuras temáticas a ser abordadas e indicaciones de investigadores de va-
rias áreas para renovación de nuestro comité de evaluadores, cuyo trabajo es fundamental
para lograrnos la calidad pretendida para la Revista.
Además de indexada en las bases de datos de Latindex, Redalyc y ROAD, la Revista
pasa a contar con el DOI (Digital Object Identifier), es decir, el sistema de identificación
numérico universal, que permitirá la vinculación directa de sus artículos a la plataforma
Lattes del Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) y varia
otras plataformas internacionales.
Por lo tanto, es con placer que abrimos este primero número de 2017, esperando
que todos nos sigan en esa acción, pero principalmente que aprecien y que sea estimulan-
te como siempre la lectura de los artículos.

Maria Cristina da Silva Schicchi


Editora-Chefe Oculum Ensaios

Ocul um ens. | Campi nas | 14(1) | 5-9 | Janei ro-Abri l 2017


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10

Casa Klein, Rio de Janeiro, 2010.


Klein House, Rio de Janeiro, 2010.
Vivienda Klein, Rio de Janeiro, 2010.

O c ulu m e n s . | C a m p i nas | 14(1) | 1 0 -4 3 | Jan eir o-A b r il 2017


DIAGRAMAS

JORGE MARIO JÁUREGUI

La idea de huella está asociada al concepto de diagrama y sugiere relaciones potenciales.

Los diagramas pueden retener múltiples series de huellas y son un aparato acti-
vo. Un diagrama es una especie de taquigrafia gráfica, es una forma de representar. Es
un conjunto de relaciones entre fuerzas, que forman un mapa que formaliza funciones
articulables y constituye una abstracción explicativa. El diagrama permite reorganizar
las jerarquías.

Un diagrama brinda la posibilidad de abrir lo visible a lo articulable.

En el diagrama hay una intensa concentración de información.

Interesan las dos ideas asociadas, según Deleuze (2007), existentes en el concepto
de diagrama: la idea de caos y la idea de germen. La idea de caos-germen implicando un
caos del cual debe salir algo. Lo cual se relaciona con la idea de abismo ordenado.

El diagrama tiene que ver con la potencia de la mano.

Un diagrama para Deleuze es un conjunto de trazos no-significantes.

Para que sirve un diagrama para un arquitecto? Un diagrama es, en la perspectiva que
nos interesa, la huella de lo que existe, pero ya encaminándose para lo que puede venir a exis-
tir. Incluye entonces para un ‘arquitectourbanista’ una tensión entre lo real (inaprensible) y
la potencia lógica ordenadora de que habla Lacan (1960). Potencia lógica ésta, que presupo-
ne una pulsión estética. Hay, por esta razón, desde el inicio, una cierta intención ordenado-
ra que organiza estéticamente, que tiende hacia “lo bello”, signifique esto lo que signifique.

Los dibujos no son por eso ni sobrios, ni depurados, ni despojados. E incluyen una
cierta dispersión.

Se verifica en ellos un placer de abstraer. Abstraer para libertarse, para salir del
enriedo, de las determinaciones de lo existente.

O cul um ens. | Campi nas | 14(1) | 10-43 | Janei ro-Abri l 2017


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12 DIAGRAMAS | J o r g e M ar io Jáu r egu i

Las manos tienen que estar vacías para no ponerle obstáculos al influjo que le
es comunicado. Deben estar prontas para el más pequeño impulso, así como para el
más violento.

Los diagramas son soporte de efluvios, y por eso implican saber someterse, saltar,
levantarse.
Diagramas son los trazos complejos de las huellas de una práctica.
De lo múltiple sale la idea; abertura en varias direcciones...
papel mediador, de comunión y de suspensión...
apuntando para un orden dinámico...

REFERÊNCIAS
DELEUZE, G. Pintura, el concepto de diagrama. Buenos Aires: Cactus, 2007.  

LACAN, J. A la mémoire d’Ernest Jones: Sur sa théorie du symbolisme, écrits. La Psychanalyse, n.5.


p.1-20, 1960.

JORGE MARIO JÁUREGUI | Escritório Atelier Metropolitano | R. Goitacazes 120, Glória, 22211-190,
Rio de Janeiro, RJ, Brasil | E-mail: <jorge@jauregui.arq.br>.

O c ulu m e n s . | C a m p i nas | 14(1) | 10-43 | Jan eir o- A b r il 2017


DIAGRAMS

JORGE MARIO JÁUREGUI

Impressions are bound up with the concept of diagram, suggesting potential relations.

Diagrams might retain multiple series of impressions and constitute active


apparatuses. A diagram is a series of graphic tachygraphy, a mode of representation. It is
a collection of relations among forces, resulting in a map that formalizes articulable func-
tions, and constitutes an explanatory abstraction. It allows a reorganization of hierarchies.

A diagram offers the possibility of opening the visible to articulation.

There is an intense concentration of information in the diagram.

According to Deleuze (2007), two ideas linked with the concept of diagram are of
special interest: chaos and germ. Chaos-germ implies a chaos from which something shall
emerge, relating to the idea of “ordered abyss”.

Diagram relates with “hand potency”.

In Deleuze’s perspective, a diagram is a group of non-signifying traits.

Of what use is a diagram for an architect? In the perspective that interests us, a
diagram is a mark of what exists that, however, heads into what might come to existence.
For an urbanist, therefore, it includes a tension between the (intangible) reality and the
“ordering logic power” that Lacan (1960) speaks about. The logic power, in its turn, pre-
supposes an aesthetic drive. In this way, there is, since the beginning, an “ordering” inten-
tion which organizes aesthetically, tending to the ‘Beautiful’, with its meanings related to
the precise context.

It follows that drawings are not sober, depurate or divested. What’s more, they
include a certain dispersion.

We find a pleasure to abstract within them. Abstracting for liberating oneself, exit-
ing scripts and determinations.

O cul um ens. | Campi nas | 14(1) | 10-43 | Janei ro-Abri l 2017


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14 DIAGRAMAS | J o r g e M ar io Jáu r egu i

Hands have to be empty so as not to put obstacles to the influx they are commu-
nicated. They should be ready to the smallest impulse, as well as to the most violent one.

Diagrams support flows, implying in allowing submission, leaps and rises.


Diagrams are the complex traits of a practice’s impressions.
The idea rises from the multiple; opening in several directions…
Mediating role, sharing, suspension…
Pointing to a dynamic order…

REFERÊNCIAS
DELEUZE, G. Pintura, el concepto de diagrama. Buenos Aires: Cactus, 2007.  

LACAN, J. A la mémoire d’Ernest Jones: Sur sa théorie du symbolisme, écrits. La Psychanalyse, n.5.


p.1-20, 1960.

JORGE MARIO JÁUREGUI | Escritório Atelier Metropolitano | R. Goitacazes 120, Glória, 22211-190,
Rio de Janeiro, RJ, Brasil | E-mail: <jorge@jauregui.arq.br>.

O c ulu m e n s . | C a m p i nas | 14(1) | 10-43 | Jan eir o- A b r il 2017


DIAGRAMAS

JORGE MARIO JÁUREGUI

A ideia de impressão está associada ao conceito de diagrama e sugere relações potenciais.

Os diagramas podem reter múltiplas séries de impressões e são um aparelho ativo.


Um diagrama é uma espécie de taquigrafia gráfica, é uma forma de representar. É um
conjunto de relações entre forças, que forma um mapa que formaliza funções articuláveis
e constitui uma abstração explicativa. O diagrama permite reorganizar as hierarquias.

Um diagrama oferece a possibilidade de abrir o visível ao articulável.

No diagrama há uma intensa concentração de informação.

Interessam as duas ideias associadas, segundo Deleuze (2007), existentes no con-


ceito de diagrama: a ideia de caos e a ideia de germe. A ideia de caos-germe implicando
um caos do qual deve sair algo. Que se relaciona com a ideia de ‘abismo ordenado’.

O diagrama tem a ver com a ‘potência da mão’.

Um diagrama para Deleuze é um conjunto de traços não-significantes.

Para que serve um diagrama para um arquiteto? Um diagrama é, na perspectiva


que nos interessa, a marca do que existe, porém já encaminhando-se para o que pode
vir a existir. Inclui então, para um ‘arquiteto-urbanista’ uma tensão entre o real (ina-
preensível) e a ‘potência lógica ordenadora’ de que fala Lacan (1960). Potência lógica
esta que pressupõe uma pulsão estética. Há, desta forma, desde o início, uma certa
intenção “ordenadora” que organiza esteticamente, que tende ao ‘belo’, significando
isto o que signifique.

Os desenhos não são, por isso, sóbrios, nem depurados, nem despojados. E in-
cluem uma certa dispersão.

Neles se verifica um prazer de abstrair. Abstrair para libertar-se, para sair do enredo,
das determinações do existente.

O cul um ens. | Campi nas | 14(1) | 10-43 | Janei ro-Abri l 2017


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16 DIAGRAMAS | J o r g e M ar io Jáu r egu i

As mãos têm que estar vazias para não colocar obstáculos ao influxo que lhe é co-
municado. Devem estar prontas para o menor impulso, assim como para o mais violento.

Os diagramas são suporte de eflúvios, e por isso implicam saber submeter-se, pular,
levantar-se.
Diagramas são os traços complexos das impressões de uma prática.
Do múltiplo surge a ideia; abertura em várias direções...
papel mediador, de comunhão e de suspensão...
apontando para uma ordem dinâmica…

REFERÊNCIAS
DELEUZE, G. Pintura, el concepto de diagrama. Buenos Aires: Cactus, 2007.  

LACAN, J. A la mémoire d’Ernest Jones: Sur sa théorie du symbolisme, écrits. La Psychanalyse, n.5.


p.1-20, 1960.

JORGE MARIO JÁUREGUI | Escritório Atelier Metropolitano | R. Goitacazes 120, Glória, 22211-190,
Rio de Janeiro, RJ, Brasil | E-mail: <jorge@jauregui.arq.br>.

O c ulu m e n s . | C a m p i nas | 14(1) | 10-43 | Jan eir o- A b r il 2017


ATOS DE HESITAÇÃO – OS CROQUIS DE INVESTIGAÇÃO
DO ARQUITETO JORGE MÁRIO JÁUREGUI

VALÉRIA VERAS

¿Para qué sirve un diagrama para un arquitecto? Un diagrama es, en la perspectiva


que nos interesa, la huella de lo que existe, pero ya encaminándose para lo que puede
venir a existir. Incluye entonces para un “arquitectourbanista” una tensión entre lo real
(inaprensible) y la potencia lógica ordenadora de que habla Lacan. Potencia lógica ésta,
que presupone una pulsión estética. Hay, por esta razón, desde el inicio, una cierta in-
tención ordenadora que organiza estéticamente, que tiende hacia “lo bello”, signifique
esto lo que signifique (JÁUREGUI, 2012, p.87).

A necessidade em desvelar ‘espaços’ – como uma gênese – revertendo catego-


rias de representação idealizadas de uma prática urbanística, traz à cena os diagramas
que conduzem o arquiteto Jorge Mário Jáuregui em investigações de uma arquitetura
de sentidos.
Desconstruir a opacidade de uma arquitetura mediadora – de propriedades, quan-
tidades, distâncias, mensurações – que racionalmente e progressivamente impõe sentido
a lugares, designa nomes, detém leis de ordem – compõe a feitura dos diagramas, de que
faz uso o arquiteto Jorge Mário Jáuregui, para a (des)construção da articulação sócio – es-
pacial, interagindo a produção de espaços com cotidianidade. Processo de criação como
ressonâncias psicanalíticas, que o arquiteto Jáuregui remete a estudos lacanianos, da
desordem apreendida na urbis, revelaria em leituras, a potência implícita ‘do sentido do
belo’ em um ‘pulsar estético’.
Cotidianidade ancorada na intenção, que interliga espaços-tempos, da permuta
entre corpos, textos, lembranças, visões onde em relances – hesitações – fazem emergir
potencialidades possíveis de situações, como nos remeteria o filósofo Merleau-Ponty,
de momentos silenciosos, quase gestos que anunciam palavras (MERLEAU-PONTY,
2004), dá o sentido ao que Jáuregui diz brindar a possibilidade de se abrir o visível para o
campo de articulações (JAUREGUI, 2012).
Hesitações deixando vir à tona palavras que anunciam atos expressaria a potência
da mão, a que diz o arquiteto ser imanente a um estado de prazer imerso em abstrações
(JAUREGUI, 2012). E não seriam estas abstrações as sombras que emanavam da luz que

O cul um ens. | Campi nas | 14(1) | 10-43 | Janei ro-Abri l 2017


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18 AT O S D E H E S I TA Ç Ã O – OS C ROQUIS DE INV E S T IGA Ç Ã O DO ARQ U ITETO JOR G E MÁR IO JÁU REG U I | Val éri a Veras

viria tensionar pintura e espaço renascentista procedentes dos contrastes entre espiritu-
alidade e racionalismo implícitos no barroco?
O pintor renascentista Leon Battista Alberti, em seu tratado “Da Pintura”, ao discernir
que reside no pintor o modo que pode seguir com a mão o que compreendeu com a inteligên-
cia (ALBERTI, 2014), vem celebrar o ato da imanência de um espaço que está por vir. E não
seriam estas as mãos vazias, diz o arquiteto Jáuregui, à espera da vazão de impulsos conduzidos
por advertências vindas dos pensamentos, como nos aponta Merleau-Ponty (2004), anun-
ciadores da possível interação entre signos formuladores de linguagens? Alberti 2014 (p.96)
ao dizer que o arquiteto “tomou do pintor as arquitraves, as bases, os capitéis, as colunas, as
fachadas e outras coisas [...]”, e ainda ao afirmar que “talvez não se encontre arte de algum valor
que não tenha vínculos com a pintura, de tal forma que se pode dizer que toda beleza que se
encontra nas coisas nasceu da pintura” (ALBERTI, 2014, p.98) vem reforçar a condição do
desenho como mero instrumento a mediar a composição das formas implícitas na natureza.
O diagrama, ao mediar uma apreensão de mundo, como o processo semelhante
a de uma pintura que vem representar o que se vê ‘sentindo, neste caso, revelaria traços
como impressões (JAUREGUI, 2012) e impulsionaria posteriormente o desenho das
ideias. Como uma pintura albertininana, que não distingue beleza, realidade e represen-
tação, o diagrama de Jáuregui parece embebido da tensão que deixa transparecer pela
potência – do belo, do vivo – uma estética que se estrutura no devir dos acontecimentos.
A apreensão de signos, nascidos da prática que Jáuregui empreende em seus dia-
gramas, torna-se um campo de percepção de uma forma que se instaura prévia à intenção
do arquiteto ordenar e organizar plasticamente o espaço segundo uma lógica orgânica
– funcional e estruturante. Intenção plástica, na condição de ser uma arqui escrita expe-
rimental, que tem carga e é desenho como no risco costiniano revelando “determinada
intenção” (COSTA, 2001, p. 39), rege o traçado como sendo um signo, que atua entre o
sentido e a razão, na difícil conversação da relação do sujeito no ciclo contínuo de desve-
lamentos, que desafiam a lógica. Persistência da ambiguidade barroca.
Jáuregui parece ter persistido nas hesitações do pintor Leon Battista Alberti quanto
ao espaço renascentista, antevendo as imperfectibilidades do desenho literalmente à som-
bra do espaço barroco. Personificando o papel de pintor / arquiteto desconstrói a representa-
ção universal contida na ponderação de Merleau-Ponty (2004) que ‘a cultura nunca nos ofe-
rece significações absolutamente transparentes, a genes do sentido nunca está terminada’ e
faz colidir racionalidade e subjetividade em pinturas/ diagramas dos fenômenos humanos.

DIAGRAMA COMO SENTIDO DE INTERAÇÃO ENTRE ARTE E ARQUITETURA

Urbanizar favelas implica, partiendo de la estructura del lugar y de la “escucha” de


las demandas interceptadas con los datos derivados de los estudios socio-económicos y
culturales forzar el caos hasta convertirlo en forma (JÁUREGUI, 2012, p.118).

O c ulu m e n s . | C a m p i nas | 14(1) | 10-43 | Jan eir o- A b r il 2017


AT O S D E HE S ITA Ç Ã O – OS C ROQUIS DE INVESTIGAÇÃO DO ARQ U ITETO JOR G E MÁR IO JÁU REG U I | Val éri a Veras |19

Esquema de leitura – Fubá Campinho, Rio de Janeiro, 2003.


Schematic – Fubá Campinho, Rio de Janeiro, 2003.
Esquema de lectura – Fubá Campinho, Rio de Janeiro, 2003.

O cul um ens. | Campi nas | 14(1) | 10-43 | Janei ro-Abri l 2017


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20 AT O S D E H E S I TA Ç Ã O – OS C ROQUIS DE INV E S T IGA Ç Ã O DO ARQ U ITETO JOR G E MÁR IO JÁU REG U I | Val éri a Veras

Esquema de leitura – Mangueira, Rio de Janeiro, 2012.


Schematic – Mangueira, Rio de Janeiro, 2012.
Esquema de lectura – Mangueira, Rio de Janeiro, 2012.

O c ulu m e n s . | C a m p i nas | 14(1) | 10-43 | Jan eir o- A b r il 2017


AT O S D E HE S ITA Ç Ã O – OS C ROQUIS DE INVESTIGAÇÃO DO ARQ U ITETO JOR G E MÁR IO JÁU REG U I | Val éri a Veras |21

A arte contemporânea tem contribuído enormemente para questionar as possibi-


lidades de apropriações com o espaço público. Leituras de obras site specifics (KWON,
2008) desvelando espaços insurgentes de mapeamentos “que se assemelham a uma rede
que vai ligando pontos e formalizando um conjunto de relações” fazendo aparecer “ele-
mentos justapostos, contrapostos, implícitos uns pelos outros”, formalizam uma determi-
nada configuração estruturalista contida em um lugar, a que Foucault nomeia de heteroto-
pologia (FOCAULT, 1984). Para Jáuregui esta heterotopologia se manifesta na arquitetura
como sendo uma forma de arte que exige o entrelaçamento do visual, do conceitual, do
sensorial, do acidental e do social, buscando estabelecer pequenas parcelas de ordem em
um contexto infinitamente desordenado. (JÁUREGUI, 2012).
Os diagramas de Jáuregui, na condição de heterotopologias, inscrevem uma “se-
quência fragmentária de eventos e narrativas” da interação entre “vivências”, do arquiteto
e da comunidade, com o local da implantação futura dos projetos de urbanização. Este
processo como vetor dissidente da prática urbana dissecada por Kevin Lynch, no livro
“A Imagem da Cidade”, de 1960, composto pelo mapeamento da percepção de elementos
estruturadores de imagens das cidades agrupados em cinco grandes tipos - caminhos, li-
mites, bairros, pontos nodais e marcos –, permeia a configuração de lugares que não difere
muito do pensamento do artista americano Robert Smithson, um dos principais precur-
sores do site specific. O seu trabalho “engendrado em desmistificar a distinção entre teoria
e prática das maneiras de abordar as experiências estéticas como dimensões do espaço
do tempo, evidencia uma relação dialógica entre pensamento, obra e lugar” (PÉREZ-
-ORAMA, 2012, online) que torna-se parte do lugar e reestrutura sua organização tanto
conceitual quanto no campo da percepção.
Este procedimento em Jáuregui tornou-se meio para processar o “espaço percebido”
–mediado pela simultaneidade do “caminhar olhando” –, contando histórias e revelando
tramas, intrínseco às investigações que o arquiteto relativiza não poder se furtar para po-
tencializar o espaço de suas propensões naturais em relação à comunidade. Nesta ordem,
Jáuregui expõe à cidade o enfrentamento de seus traumas e afirma ser plausível “uma nova
conexão da estrutura urbana como um todo possibilitando articular diferenças quando estas
se tornam intoleráveis”. O conflito é uma agenda positiva de trabalho e a favela é o lugar do
puro devir! E potencializar o uso de um espaço pela interação entre o formal e informal,
à deriva de ressignificações, traduz a “integração arte arquitetura” movida por estado de
ambiguidade que o arquiteto vê configurada como uma “estética que une fragmentos”. Es-
tas considerações proporcionaram ao arquiteto Jáuregui participar da 12ª Documenta de
Kassel de 2007, intitulada “The Migration of Forms”, a convite do curador Roger M. Buergel,
expor as experiências estéticas das dimensões espaços/tempos advindas de seus diagramas.
A temática da 12ª Documenta de Kassel, consistia em discussões sobre a transfi-
guração das formas da produção da cultura visual e da história da humanidade em outras
formas a contento de uma relocação em outros contextos e em diferentes propósitos en-

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levados pela história da arte. A curadoria, ao apontar que na contemporaneidade estaria


implícito um processo de releitura que promove o surgimento de situações inesperadas,
enveredando em novas relações entre obras de diferentes períodos da história, revelaria
interseções e semelhanças conteudísticas, que predispõem a migração estética de formas
através de tempos e fronteiras culturais (12° DOCUMENTA DE KASSEL, 2007).
Para o arquiteto Jáuregui projetar sempre implicou nesta perspectiva. A combina-
ção entre temas e percepções seria o componente principal da espinha dorsal de um pro-
jeto cuja interdisciplinaridade permeia as experiências intrínsecas às práticas cotidianas
da urbis que compõem, a cada momento, situações adversas de vivências e leituras que
fundem racionalidade e intuição.

El punto de partida para la formulación del Partido Urbanístico (que busca capturar
e estructurar las órdenes espaciales que subyacen a los paisajes, configurados aparente-
mente sin sentido) es la elaboración del esquema de lectura de la estructura del lugar,
que representa gráficamente la configuración descontínua y no homogénea, aunque co-
nectiva, de cada sitio, identificando relaciones entre áreas de la intensidad diferencial,
dentro de un campo coherente (JÁUREGUI, 2102, p.121).

Seria esta arquitetura de Jáuregui a arte ambiental de Hélio Oiticica, a que o artis-
ta conceitua como um conjunto sensorial ordenado segundo uma ‘hierarquia de ordens’
– todo dirigido para a criação de um mundo ambiental? (PEDROSA, 2004). Os diagra-
mas enquanto articulações entre expressões orgânicas e formas na ordem de estabelecer
relações entre arte, arquitetura e história seriam, no mínimo, correspondências com os
pressupostos de Alberti dotando o mundo real da predisposição de vir ser expressão de
sua espacialização.
Deixa registrado o pintor renascentista, que “durante a pintura devemos estar aber-
tos a todos os que vêm e ouvir a cada um” (ALBERTI, 2014, p.139), compondo, a seu
tempo, forte diálogo com a arquitetura de sentidos empreendida pelo arquiteto Jorge
Mário Jáuregui.

REFERÊNCIAS
12° DOCUMENTA de Kassel. Kassel: Documenta, 2007. Available in: <http://www.documenta.de/
en/retrospective/documenta_12>. Cited: Oct. 13, 2016.

ALBERTI, L.B. Da pintura. São Paulo: Editora Unicamp, 2014.

COSTA, L. Registro de uma vivência, 1986-94. In: COSTA, M.E. Com a palavra Lucio Costa. Rio de
Janeiro: Aeroplano, 2001.

FOUCAULT, M. Outros Espaços. In: FOUCAULT, M. Ditos e escritos. Rio de Janeiro: Forense Uni-
versitária, 2001. v.3. Disponível em: <http://www.uesb.br/eventos/pensarcomfoucault/leituras/
outros-espacos.pdf>. Acesso em: 13 out. 2016.

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AT O S D E HE S ITA Ç Ã O – OS C ROQUIS DE INVESTIGAÇÃO DO ARQ U ITETO JOR G E MÁR IO JÁU REG U I | Val éri a Veras |23

JÁUREGUI, J.M. Estratégias de articulación urbana. Buenos Aires: Nobuko, 2012.

KWON, M. Um lugar após o outro. Arte & Ensaios, n.17, 2008. Disponível em: < https://vmutante.
files.wordpress.com/2014/08/7-kwon-miwon-um-lugar-apc3b3s-o-outro-em-portugues-artigo-
-imprimir.pdf>. Acesso em: 13 out. 2016.

LYNCH, K. The image of the city. Cambridge: MIT Press, 1960.

MERLEAU-PONTY, M. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.

PEDROSA, M. O Programa ambiental de Hélio Oiticica: por uma geografia da arte. Arquitetura
e Urbanismo, n.121, 2004. Disponível em: <http://au.pini.com.br/arquitetura-urbanismo/121/
artigo23405-1.aspx>. Acesso em: 4 dez. 2015.

PÉREZ-ORAMAS, Luis et al. Catálogo Trigésima Bienal de São Paulo. Ministério da Cultura, 2012.
Disponível em: <http://www.bienal.org.br/publicacao.php?i=2088> Acesso em: 15 abr. 2017.

VALÉRIA VERAS | Mestranda em Arquitetura PUC- Rio de Janeiro, Aprofundamento em História da


Arte Brasileira pela Fundação Joaquim Nabuco e em Curadoria na Escola de Artes Visuais Parque
Lage, Rio de Janeiro, Arquiteta urbanista, desenvolve projetos de curadoria, expografia e arte edu-
cação | Av. Tim Maia 7435, Bl. 4, Apt. 103, Recreio, 22790-669, Rio de Janeiro, RJ, Brasil | E-mail:
<valveras@terra.com.br>.

O cul um ens. | Campi nas | 14(1) | 10-43 | Janei ro-Abri l 2017


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Esquema de leitura – Rio Cidade Catete, Rio de Janeiro, 1994.


Schematic – Rio Cidade Catete, Rio de Janeiro, 1994.
Esquema de lectura – Rio Cidade Catete, Rio de Janeiro, 1994.

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ACTS OF HESITATION – JORGE MÁRIO JÁUREGUI’S
INVESTIGATIVE SKETCHES

VALÉRIA VERAS

¿Para qué sirve un diagrama para un arquitecto? Un diagrama es, en la perspectiva


que nos interesa, la huella de lo que existe, pero ya encaminándose para lo que puede
venir a existir. Incluye entonces para un “arquitectourbanista” una tensión entre lo real
(inaprensible) y la potencia lógica ordenadora de que habla Lacan. Potencia lógica ésta,
que presupone una pulsión estética. Hay, por esta razón, desde el inicio, una cierta in-
tención ordenadora que organiza estéticamente, que tiende hacia “lo bello”, signifique
esto lo que signifique (JÁUREGUI, 2012, p.87).

The need to unveil “spaces” as a genesis and revert idealized representation cat-
egories of an urbanistic practice brings diagrams to the scene, the same ones that con-
duce the architect Jorge Mário Jáuregui throughout his investigations on conceiving an
architecture os sense of Beauty. Deconstructing the opacity of a mediating architecture
(of properties, quantities, distances, measuring) that rationally and progressively imposes
senses to places, assigns names, detains ordering laws, is an essential part of the making
of diagrams. Those are what Jorge Mário Jáuregui uses for the (de)construction of social-
spatial articulation, the production of spaces interacting with everyday life. As a creative
process with psychoanalytic resonances, that the architect Jáuregui remits to lacanian
studies and to the apprehended disorder in the Urbis, it would reveal the implicit potency
of the “sense of the Beautiful” in an “aesthetic drive”.
Everyday life anchored in intention, interlacing space-times; exchanging bodies,
texts, memories, visions in which glimpses (hesitations) make potentialities of situations
emerge (as the philosopher Merleau-Ponty would invite us to consider), as well as of silent
moments; almost gestures that announce words (MERLEAU-PONTY, 2004). It provides
meaning to what Jáuregui says offers the possibility of opening the visible to the field of
articulations (JAUREGUI, 2012).
Hesitations allowing words that announce actions to come to the surface, express
the potency of the hand, that which the architect says is immanent to a state of pleasure
submersed into abstractions (JAUREGUI, 2012). And would not those abstractions be
the shadows that emanated from the light coming to tension renaissance painting and
space, deriving from contrasts between spirituality and rationalism implied in baroque?

O cul um ens. | Campi nas | 14(1) | 10-43 | Janei ro-Abri l 2017


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In his treaty On Painting, renaissance painter Leon Battista Alberti states that
the painter is able to follow with his hand what he has comprehended with his intel-
ligence (ALBERTI, 2014), and celebrates the immanence act of a space that is yet
to come. And would not those be the empty hands, says Jáuregui, that long for the
outflow of impulses conducted by advertences coming from the realm of thought, (as
pointed by Merleau-Ponty (2004), announcers of the possible interaction between
language-forming signs)? As Alberti (2014, p.96, tradução do autor) says that the
architect “borrowed from the paintors the architraves, the capitols, the bases, the
facades and other things”1 and that “maybe art cannot be taken without having trends
with paintings such as beauty is in a certain sense in between things that emerge from
painting”2 (ALBERTI, 2014, p.98, tradução do autor) he reinforces drawing as a mere
instrument to mediate the composition of forms implicit in nature.
By mediating a comprehension of the world like the process similar to a painting
that represents what is seen with feeling, the diagram, in this case, would reveal traces
as Impressions (JAUREGUI, 2012) and would later impel the design of the ideas. The
Jauregui diagram, like an albertinian painting that does not distinguish beauty, reality
and representation seems infused in the tension that it reveals through potency – of the
beauty, the alive – an aesthetic structured in the transformations of happenings.
The apprehension of signs born in the practice Jáuregui applies in his diagrams
becomes a field of form perception that installs itself before the architect’s intention to
plastically order and organize the space according to an organic logic – both functional
and structuring. Plastic intention in the condition of an arch-experimental writing that is
charged and drawing, as in the costinian sketches, and that reveals a “determinant inten-
tion”3 (COSTA, 2001, p.39, tradução do autor), rules the trace as a sign that acts between
sense and reason, in the difficult conversation of the subject relation in the continuous
unravelling cycle that defies logic. Persistence of baroque ambiguity.
Jáuregui seems to have persisted in the hesitations of Leon Battista Alberti as
to the renaissance space, foreseeing the drawing’s imperfections literally shadowed
by baroque space. Personifying the role of painter/architect, he deconstructs the
universal representation contained in Merleau-Ponty (2004) ponderation that ‘cul-
ture never offers completely transparent meanings, the genesis of the sense is never
completed’ and makes rationality and subjectivity collide in paintings/diagrams of the
human phenomena.

THE DIAGRAM AS SENSE OF INTERACTION BETWEEN ART AND ARCHITECTURE

Urbanizar favelas implica, partiendo de la estructura del lugar y de la “escucha” de las


demandas interceptadas con los datos derivados de los estudios socio-económicos y cul-
turales forzar el caos hasta convertirlo en forma (JÁUREGUI, 2012, p.118).

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Esquema de leitura Dharavi – Munbai, Índia, 2008.


Schematic – Dharavi, Mumbai, Índia, 2008.
Esquema de lectura Dharavi – Mumbai, Índia, 2008.

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Contemporary art has contributed enormously to question the possibilities of


appropriations within the public space. Readings of site specifics (KWON, 2008) works
unravelling insurgent spaces of mappings ‘that resemble a net that gradually connects
points and formalizes a collection of relations’, making ‘elements that juxtapose, con-
trapose and imply one another’ appear, formalize a specific structuralist configuration
contained in one place, that which Foucault calls heterotopology (FOCAULT, 1984).
According to Jáuregui this heterotopology manifests itself in architecture as a form of
art that demands the intertwinement of the visual, the conceptual, the sensorial, the
accidental and the social, trying to achieve tiny bits of order in an infinitely disordered
context. (JÁUREGUI, 2012).
As heterotopologies, Jáuregui’s diagrams inscribe a ‘fragmentary sequence of
events and narratives’ of the experiences’ interaction, the architect and the com-
munity, with the place where the urbanization projects will be set up in the future.
This process, as a dissident vector of the urban practice dissected by Kevin Lynch in
his book The Image of the City (1960), composed by the mapping of the perception
of elements that structure the images of cities, grouped in five types – paths, edges,
districts, nodes and landmarks – permeates the configuration of places. This configu-
ration does not differ much from the remarks of American artist Robert Smithson,
one of the pioneers of site specific. His work, “taken to dismistify distinction between
theory and pratice from ways on ensuring aesthetic experiences as the dimensions of
time and space, evaluates a dialogical relation betrween thinking, object and place”4
(PÉREZ-ORAMA, 2012, online, tradução do autor) that becomes part of a place and
restructures its organization in conceptual terms and in the field of perception.
In Jáuregui, this procedure became the means to process the ‘perceived space’
– mediated by the simultaneity of ‘looking while walking’-, telling stories and revealing
fabrics, intrinsic as it is to the investigations that the architect relativizes the inability of
avoiding maximizing the space of his natural tendencies towards the community. In this
order, Járegui exposes the city to the facing of its traumas and affirms that “a new con-
nection of the whole urban structure, enabling the articulation of differences when those
become intolerable” is plausible. Conflict is a positive work agenda and the slam is the
place of the pure becoming! Powering the use of a space within the interaction of formal
and informal, leaving new meanings adrift, translates the ‘art-architecture integration’
set in motion by states of ambiguity the architect sees as an ‘aesthetics that unites frag-
ments’. These considerations foster Jáuregui’s participation in Kassel’s Documenta 12,
2007, entitled The migration of forms, invited by the curator Roger M. Buergel, to expose
the aesthetic experiences of spaces/times dimensions that originate from his diagrams.
Kassel’s Documenta 12 consisted of discussions on the transfiguration of forms
taken by the production of visual culture and humanity’s history in other shapes, that
accommodated different contexts and purposes allured to by the History of Art disci-

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pline. Curatorship revealed content intersections and resemblances with its focus on
the contemporary implicit process of new interpretations, which promotes unexpected
situations, shedding light on new relations among works of different historical periods.
These similarities and intersections predispose the migration of aesthetic forms throughout
moments and cultural boundaries (12° DOCUMENTA DE KASSEL, 2007).
For Jáuregui, projecting has always implied in this perspective. The mixing of
themes and perceptions would be the most important component in the backbone of a
project whose inter-disciplinarity permeates the experiences intrinsic to the routine prac-
tices of the Urbis. The latter compose, at each moment, adverse situations of experience
and readings that fuse rationality and intuition.

El punto de partida de partida para la formulación del Partido Urbanístico (que busca
capturar e estructurar las órdenes espaciales que subyacen a los paisajes, configurados
aparentemente sin sentido) es la elaboración del esquema de lectura de la estructura
del lugar, que representa gráficamente la configuración descontínua y no homogénea,
aunque conectiva, de cada sitio, identificando relaciones entre áreas de la intensidad
diferencial, dentro de un campo coherente (JÁUREGUI, 2102, p.121).

Would Jáuregui’s architecture be Hélio Oitica’s environmental art, one that the
artist conceives as a sensorial collection ordinated according to a ‘order hierarchy’ – all
directed towards the creation of an environmental world? (PEDROSA, 2004). Dia-
grams as articulations between organic expressions and forms in the order of establish-
ing relations among art, architecture and history would serve, at its very least, as cor-
respondences with Alberti’s assumptions, providing the real world with the possibility
of being the expression of its own spacialization.
The advice offered by the renaissance painter — “as we paint we should be
opened to all that see and to each one to hear”5 (ALBERTI, 2014, p.139, tradução do
autor) —builds up a strong dialogue with the architecture of the senses advanced by
Jorge Mário Jáuregui.

NOTA
1. “tomou do pintor as arquitraves, as bases, os capitéis, as colunas, as fachadas e outras coisas [...]”.

2. “talvez não se encontre arte de algum valor que não tenha vínculos com a pintura, de tal forma que se
pode dizer que toda beleza que se encontra nas coisas nasceu da pintura”.

3. “determinada intenção”.

4. “engendrado em desmistificar a distinção entre teoria e prática das maneiras de abordar as experiências
estéticas como dimensões do espaço do tempo, evidencia um a relação dialógica entre pensamento, obra
e lugar”.

5. “durante a pintura devemos estar abertos a todos os que vêm e ouvir a cada um”.

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REFERÊNCIAS
12° DOCUMENTA de Kassel. Kassel: Documenta, 2007. Available in: <http://www.documenta.de/
en/retrospective/documenta_12>. Cited: Oct. 13, 2016.

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COSTA, L. Registro de uma vivência, 1986-94. In: COSTA, M.E. Com a palavra Lucio Costa. Rio de
Janeiro: Aeroplano, 2001.

FOUCAULT, M. Outros Espaços. In: FOUCAULT, M. Ditos e escritos. Rio de Janeiro: Forense Uni-
versitária, 2001. v.3. Disponível em: <http://www.uesb.br/eventos/pensarcomfoucault/leituras/
outros-espacos.pdf>. Acesso em: 13 out. 2016.

JÁUREGUI, J.M. Estratégias de articulación urbana. Buenos Aires: Nobuko, 2012.

KWON, M. Um lugar após o outro. Arte & Ensaios, n.17, 2008. Disponível em: < https://vmutante.
files.wordpress.com/2014/08/7-kwon-miwon-um-lugar-apc3b3s-o-outro-em-portugues-artigo-
-imprimir.pdf>. Acesso em: 13 out. 2016.

LYNCH, K. The image of the city. Cambridge: MIT Press, 1960.

MERLEAU-PONTY, M. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.

PEDROSA, M. O Programa ambiental de Hélio Oiticica: por uma geografia da arte. Arquitetura
e Urbanismo, n.121, 2004. Disponível em: <http://au.pini.com.br/arquitetura-urbanismo/121/
artigo23405-1.aspx>. Acesso em: 4 dez. 2015.

PÉREZ-ORAMAS, Luis et al. Catálogo Trigésima Bienal de São Paulo. Ministério da Cultura, 2012.
Disponível em: <http://www.bienal.org.br/publicacao.php?i=2088> Acesso em: 15 abr. 2017.

VALÉRIA VERAS | Mestranda em Arquitetura PUC- Rio de Janeiro, Aprofundamento em História da


Arte Brasileira pela Fundação Joaquim Nabuco e em Curadoria na Escola de Artes Visuais Parque
Lage, Rio de Janeiro, Arquiteta urbanista, desenvolve projetos de curadoria, expografia e arte edu-
cação | Av. Tim Maia 7435, Bl. 4, Apt. 103, Recreio, 22790-669, Rio de Janeiro, RJ, Brasil | E-mail:
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ACTOS DE INCERTIDUMBRE – LOS CROQUIS DE
INVESTIGACIÓN DEL ARQUITECTO JORGE MÁRIO JÁUREGUI

VALÉRIA VERAS

¿Para qué sirve un diagrama para un arquitecto? Un diagrama es, en la perspectiva


que nos interesa, la huella de lo que existe, pero ya encaminándose para lo que puede
venir a existir. Incluye entonces para un “arquitectourbanista” una tensión entre lo real
(inaprensible) y la potencia lógica ordenadora de que habla Lacan. Potencia lógica ésta,
que presupone una pulsión estética. Hay, por esta razón, desde el inicio, una cierta in-
tención ordenadora que organiza estéticamente, que tiende hacia “lo bello”, signifique
esto lo que signifique (JÁUREGUI, 2012, p.87).

La necesidad de desvelar ‘espacios’ – como una génesis – revirtiendo categorías de


representación idealizadas de una práctica urbanística, pone en escena los diagramas que con-
ducen al arquitecto Jorge Mário Jáuregui en investigaciones de una arquitectura de sentidos.
Desconstruir la opacidad de una arquitectura mediadora – de propiedades, canti-
dades, distancias, medidas – que racionalmente y progresivamente impone sentido a lu-
gares, designa nombres, posee leyes de orden – compone la elaboración de los diagramas,
de que hace uso el arquitecto Jorge Mário Jáuregui, para la (des)construcción de la arti-
culación socio–espacial, interactuando en la producción de espacios con cotidianidad. El
proceso de creación como resonancias psicoanalíticas, que el arquitecto Jáuregui remite a
estudios lacanianos, al desorden aprehendido en la urbis, revelaría en lecturas la potencia
implícita ‘del sentido del bello’ en un ‘pulsar estético’.
Cotidianidad anclada en la interacción, que interconecta espacios-tiempos, del in-
tercambio entre cuerpos, textos, recuerdos, visiones donde en relances – incertidumbres
– emergen potencialidades posibles de situaciones, como nos remitiría el filósofo Mer-
leau-Ponty, de momentos silenciosos, casi gestos que anuncian palabras (MERLEAU-
PONTY, 2004), da sentido a lo que Jáuregui dice brindar la posibilidad de abrirse a lo
visible para el campo de articulaciones (JAUREGUI, 2012).
Incertidumbres que dejan surgir palabras que anuncian actos expresarían la po-
tencia de la mano, la que dice el arquitecto ser inmanente a un estado de placer inmerso
en abstracciones (JAUREGUI, 2012). ¿Y no serían estas abstracciones las sombras que
emanaban de la luz que tensionaría la pintura y el espacio renacentista procedentes de los
contrastes entre espiritualidad y racionalismo implícitos en el barroco?

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Esquema de leitura – Complexo do Alemão, Rio de Janeiro, 2007.


Schematic – Complexo do Alemão, Rio de Janeiro, 2007.
Esquema de lectura – Complexo do Alemão, Rio de Janeiro, 2007.

Croqui teleférico –
Complexo do Alemão,
Rio de Janeiro, 2008.
Drawing cable car –
Complexo do Alemão,
Rio de Janeiro, 2008.
Croquis telecabina –
Complexo do Alemão,
Rio de Janeiro, 2008.

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El pintor renacentista Leon Battista Alberti, en su tratado “De la Pintura”, al dis-


cernir que reside en el pintor el modo que puede seguir con la mano lo que comprendió
con la inteligencia (ALBERTI, 2014), celebra el acto de la inmanencia de un espacio que
vendrá. ¿Y no serían estas las manos vacías, dice el arquitecto Jáuregui, a la espera del
caudal de impulsos conducidos por advertencias provenientes de los pensamientos, como
nos señala Merleau-Ponty (2004), anunciadores de la posible interacción entre signos
formuladores de lenguajes? Alberti 2014 (p.96) al decir que el arquitecto “tomou do pintor
as arquitraves, as bases, os capitéis, as colunas, as fachadas e outras coisas [...]”, y aún al afir-
mar que “talvez não se encontre arte de algum valor que não tenha vínculos com a pintura,
de tal forma que se pode dizer que toda beleza que se encontra nas coisas nasceu da pintura”
(ALBERTI, 2014, p.98) viene a reforzar la condición del dibujo como mero instrumento
a mediar la composición de las formas implícitas de la naturaleza.
El diagrama, al ser mediador de una aprehensión del mundo, semejante al proceso
de una pintura que representa lo que ve ‘sintiendo, en este caso, revelaría trazos como im-
presiones (JAUREGUI, 2012) e impulsaría posteriormente el diseño de las ideas. Como
una pintura albertininana que no distingue belleza, realidad y representación, el diagrama
de Jáuregui parece embebido de la tensión que deja trasparecer por la potencia – de lo
bello, de lo vivo- en una estética que se estructura en lo devenir de los acontecimientos.
La aprehensión de signos, nacidos de la práctica que Jáuregui emprende en sus dia-
gramas, se convierte en un campo de percepción de la forma que se instaura previamente
a la intención del arquitecto de ordenar y organizar plásticamente el espacio según una
lógica orgánica – funcional y estructuradora. Intención plástica, en la condición de ser una
arqui escrita experimental, que tiene carga y es dibujo como en el trazo costiniano revelando
“determinada intenção” (COSTA, 2001, p. 39), rige el trazado como siendo un signo que
actúa entre el sentido y la razón, en la difícil conversación de la relación del sujeto en el ciclo
continuo de desvelamientos que desafían la lógica. Persistencia de la ambigüedad barroca.
Jáuregui parece ter persistido en las incertidumbres del pintor Leon Battista Al-
berti respecto al espacio renacentista, previendo las imperfectibilidades del dibujo lite-
ralmente a la sombra del espacio barroco. Personificando el papel de pintor / arquitecto
desconstruye la representación universal contenida en la ponderación de Merleau-Ponty
de que “la cultura nunca nos ofrece significaciones absolutamente transparentes, a genes
del sentido nunca está terminada” (MERLEAU-PONTY, 2004) y hace colidir racionali-
dad y subjetividad en pinturas/ diagramas de los fenómenos humanos.

DIAGRAMA COMO SENTIDO DE INTERACCIÓN ENTRE ARTE Y ARQUITECTURA

Urbanizar favelas implica, partiendo de la estructura del lugar y de la “escucha” de las


demandas interceptadas con los datos derivados de los estudios socio-económicos y cul-
turales forzar el caos hasta convertirlo en forma (JÁUREGUI, 2012, p.118).

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El arte contemporánea ha contribuido enormemente para cuestionar las posibili-


dades de apropiaciones con el espacio público. Lecturas de obras site specifics (KWON,
2008) desvelando espacios insurgentes de mapeos “que se asemejan a una rede que va
uniendo puntos y formalizando un conjunto de relaciones” haciendo aparecer “elementos
yuxtapuestos, contrapuestos, implícitos unos por los otros”, formalizan una determinada
configuración estructuralista contenida en un lugar, al que Foucault denomina de he-
terotopología (FOCAULT, 1984). Para Jáuregui esa heterotopologia se manifiesta en la
arquitectura como una forma de arte que exige el entrelazarse del visual, del conceptual,
del sensorial, del accidental y del social, buscando establecer pequeñas parcelas de orden
en un contexto infinitamente desordenado (JÁUREGUI, 2012).
Los diagramas de Jáuregui, en la condición de heterotopologías, inscriben una “se-
cuencia fragmentaria de eventos y narrativas” de la interacción entre “vivencias”, del ar-
quitecto y de la comunidad, con el lugar de la implantación futura de los proyectos de
urbanización. Este proceso como vector disidente de la práctica urbana disecada por Ke-
vin Lynch, en el libro La imagen de la ciudad, de 1960, compuesto por el mapeo de la per-
cepción de elementos estructuradores de imágenes de las ciudades agrupados en cinco
grandes tipos - caminos, límites, barrios, puntos nodales y marcos–, atraviesa la configura-
ción de lugares que no difiere mucho del pensamiento del artista estadounidense Robert
Smithson, uno de los principales precursores del site specific. Su trabajo “engendrado em
desmistificar a distinção entre teoria e prática das maneiras de abordar as experiências estéticas
como dimensões do espaço do tempo, evidencia uma relação dialógica entre pensamento, obra
e lugar” (PÉREZ-ORAMA, 2012, online) que se convierte en parte del lugar y reestructura
su organización tanto conceptual cuanto en el campo de la percepción.
Este procedimiento en Jáuregui se transformó en un medio para procesar el “espa-
cio percibido” -mediado por la simultaneidad del “caminar mirando” -, contando historias
y revelando tramas, intrínseco a las investigaciones que el arquitecto relativiza no poder
alejarse para potencializar el espacio de sus propensiones naturales en relación a la comu-
nidad. En este orden, Jáuregui expone a la ciudad el enfrentamiento de sus traumas y afir-
ma ser plausible “una nueva conexión de la estructura urbana como un todo posibilitando
articular diferencias cuando estas se vuelven intolerables.” ¡El conflicto es una agenda
positiva de trabajo, y la favela es el lugar del puro devenir! Y potencializar el uso de un espa-
cio por la interacción entre lo formal e informal, a la deriva de re-significaciones, traduce la
“integración arte arquitectura” movida por un estado de ambigüedad que el arquitecto ve
configurada como una “estética que une fragmentos”. Estas consideraciones permitieron
al arquitecto Jáuregui participar de la 12ª Documenta de Kassel de 2007, titulada “The
Migration of Forms”, a invitación del curador Roger M. Buergel, para exponer las expe-
riencias estéticas de las dimensiones espacios/tiempos provenientes de sus diagramas.
La temática de la 12ª Documenta de Kassel, consistía en discusiones sobre la
transfiguración de las formas de la producción de la cultura visual y de la historia de

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Esquema de leitura – Complexo do Dique, Rio de Janeiro, 2012.


Schematic – Complexo do Dique, Rio de Janeiro, 2012.
Esquema de lectura – Complexo do Dique, Rio de Janeiro, 2012.

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la humanidad en otras formas a contento de una re-asignación en otros contextos y en


diferentes propósitos embelesados por la historia del arte. La curaduría, al apuntar que
en la contemporaneidad estaría implícito un proceso de relectura que promueve el sur-
gimiento de situaciones inesperadas, encaminando en nuevas relaciones entre obras de
diferentes períodos de la historia, revelaría intersecciones y semejanzas de contenido, que
predisponen la migración estética de formas a través de tiempos y fronteras culturales (12°
DOCUMENTA DE KASSEL, 2007).
Para el arquitecto Jáuregui proyectar siempre implicó esta perspectiva. La combi-
nación entre temas y percepciones sería el componente principal de la espina dorsal de
un proyecto cuya interdisciplinaridad atraviesa las experiencias intrínsecas a las prácticas
cotidianas de la urbis que componen, a cada momento, situaciones adversas de vivencias
y lecturas que funden racionalidad e intuición.

El punto de partida para la formulación del Partido Urbanístico (que busca cap-
turar e estructurar las órdenes espaciales que subyacen a los paisajes, configu-
rados aparentemente sin sentido) es la elaboración del esquema de lectura de la
estructura del lugar, que representa gráficamente la configuración descontínua
y no homogénea, aunque conectiva, de cada sitio, identificando relaciones entre
áreas de la intensidad diferencial, dentro de un campo coherente (JÁUREGUI,
2102, p.121).

¿Sería esta arquitectura de Jáuregui el arte ambiental de Hélio Oiticica, que el artista
conceptualiza como un conjunto sensorial ordenado según una jerarquía de órdenes’ – todo
dirigido a la creación de un mundo ambiental? (PEDROSA, 2004) Los diagramas en cuanto
articulaciones entre expresiones orgánicas y formas en el orden de establecer relaciones entre
arte, arquitectura e historia serían, como mínimo, correspondencias con los presupuestos de
Alberti dotando al mundo real de la predisposición de ser expresión de su espacialización.
Deja registrado el pintor renacentista, que “durante a pintura devemos estar abertos
a todos os que vêm e ouvir a cada um” (ALBERTI, 2014, p.139), componiendo, a su tiem-
po, un fuerte diálogo con la arquitectura de sentidos emprendida por el arquitecto Jorge
Mário Jáuregui.

REFERÊNCIAS
12° DOCUMENTA de Kassel. Kassel: Documenta, 2007. Available in: <http://www.documenta.de/
en/retrospective/documenta_12>. Cited: Oct. 13, 2016.

ALBERTI, L.B. Da pintura. São Paulo: Editora Unicamp, 2014.

COSTA, L. Registro de uma vivência, 1986-94. In: COSTA, M.E. Com a palavra Lucio Costa. Rio de
Janeiro: Aeroplano, 2001.

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FOUCAULT, M. Outros Espaços. In: FOUCAULT, M. Ditos e escritos. Rio de Janeiro: Forense Uni-
versitária, 2001. v.3. Disponível em: <http://www.uesb.br/eventos/pensarcomfoucault/leituras/
outros-espacos.pdf>. Acesso em: 13 out. 2016.

JÁUREGUI, J.M. Estratégias de articulación urbana. Buenos Aires: Nobuko, 2012.

KWON, M. Um lugar após o outro. Arte & Ensaios, n.17, 2008. Disponível em: < https://vmutante.
files.wordpress.com/2014/08/7-kwon-miwon-um-lugar-apc3b3s-o-outro-em-portugues-artigo-
-imprimir.pdf>. Acesso em: 13 out. 2016.

LYNCH, K. The image of the city. Cambridge: MIT Press, 1960.

PEDROSA, M. O Programa ambiental de Hélio Oiticica: por uma geografia da arte. Arquitetura
e Urbanismo, n.121, 2004. Disponível em: <http://au.pini.com.br/arquitetura-urbanismo/121/
artigo23405-1.aspx>. Acesso em: 4 dez. 2015.

PÉREZ-ORAMAS, Luis et al. Catálogo Trigésima Bienal de São Paulo. Ministério da Cultura, 2012.
Disponível em: <http://www.bienal.org.br/publicacao.php?i=2088> Acesso em: 15 abr. 2017.

VALÉRIA VERAS | Mestranda em Arquitetura PUC- Rio de Janeiro, Aprofundamento em História da


Arte Brasileira pela Fundação Joaquim Nabuco e em Curadoria na Escola de Artes Visuais Parque
Lage, Rio de Janeiro, Arquiteta urbanista, desenvolve projetos de curadoria, expografia e arte edu-
cação | Av. Tim Maia 7435, Bl. 4, Apt. 103, Recreio, 22790-669, Rio de Janeiro, RJ, Brasil | E-mail:
<valveras@terra.com.br>.

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Esquema de leitura – Completo do Manguinhos, Rio de Janeiro, 2008.


Schematic – Complexo de Manguinhos, Rio de Janeiro, 2008.
Esquema de lectura – Complexo de Manguinhos, Rio de Janeiro, 2008.

Diagrama de comunidades e contexto. Complexo de Manguinhos,


Rio de Janeiro, 2008.
Community and context diagram. Complexo de Manguinhos,
Rio de Janeiro, 2008.
Diagrama de Comunidades y contexto. Complexo de Manguinhos,
Rio de Janeiro, 2008

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Esquema de leitura – Completo do Manguinhos, Rio de Janeiro, 2008.


Schematic – Complexo de Manguinhos, Rio de Janeiro, 2008.
Esquema de lectura – Complexo de Manguinhos, Rio de Janeiro, 2008.

Ideograma - Complexo de Manguinhos, 2008.


Ideogram - Complexo de Manguinhos, 2008.
Ideograma - Complexo de Manguinhos, 2008.

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Perspectiva geral – Maré, Rio de Janeiro, 2000.


General perspective – Maré, Rio de Janeiro, 2000.
Perspectiva general – Maré, Rio de Janeiro, 2000.

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Croquis de investigação –
Maré, Rio de Janeiro, 2000.
Research drawings –
Maré, Rio de Janeiro, 2000.
Croquis de investigación –
Maré, Rio de Janeiro, 2000

Ideogramas – Maré,
Rio de Janeiro, 2000.
Ideograms – Maré,
Rio de Janeiro, 2000.
Ideogramas – Maré,
Rio de Janeiro, 2000.

Esquema de leitura – Maré, Rio de Janeiro, 2000.


Schematic – Maré, Rio de Janeiro, 2000.
Esquema de lectura – Maré, Rio de Janeiro, 2000.

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Esquema de leitura – Rio das Pedras, Rio de Janeiro, 2003.


Schematic – Rio das Pedras, Rio de Janeiro, 2003.
Esquema de lectura – Rio das Pedras, Rio de Janeiro, 2003.

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Esquema de leitura – Ilha do Governador, Rio de Janeiro, 2001.


Schematic – Ilha do Governador, Rio de Janeiro, 2001.
Esquema de lectura – Ilha do Governador, Rio de Janeiro, 2001.

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TRANSFORMAÇÕES E PERMANÊNCIAS:
DESAFIOS DA POLÍTICA PÚBLICA NA OPERAÇÃO URBANA
BAIRROS DO TAMANDUATEÍ EM SÃO PAULO
TRANSFORMATION AND PERMANENCE: CHALLENGES OF THE PUBLIC CITY
POLITICS IN TAMANDUATEI NEIGHBORHOOD URBAN OPERATION IN SÃO PAULO |
TRANSFORMACIONES Y PERMANENCIAS: DESAFÍOS DE LA POLÍTICA PÚBLICA
EN LA OPERACIÓN URBANA EN BARRIOS DE TAMANDUATEÍ EN SÃO PAULO

ANDRÉA DE OLIVEIRA TOURINHO

RESUMO
A intervenção urbana desempenha um papel fundamental na política municipal,
por constituir um instrumento de mudança de dinâmicas territoriais consolida-
das, que enseja o enfrentamento da relação entre transformações e permanências,
principalmente em projetos de grande porte. Em São Paulo, a Operação Urbana
tem sido o instrumento privilegiado de intervenção, considerado estratégico para
incentivar novos empreendimentos, em busca da chamada requalificação urbana.
As mudanças decorrentes da implantação desse tipo de instrumento podem cau-
sar maior ou menor impacto sobre o território, dependendo da relação que se esta-
belece entre as transformações e permanências urbanas. A Operação Urbana, por
ter como fundamento o projeto urbanístico, constitui oportunidade de se evitarem
processos de ruptura física e social no território. Importante proposta de interven-
ção, em andamento na cidade de São Paulo, é a Operação Urbana Consorciada
Bairros do Tamanduateí, cuja implementação, se aprovada, implicará mudanças
significativas no setor sudeste do município. A análise da proposta do projeto,
objeto deste artigo, mostra como essas questões têm sido enfrentadas no âmbito
da política urbana municipal mais recente.
PALAVRAS‑CHAVE: Desenvolvimento urbano. Intervenção urbana. Política pública. Patrimônio
cultural. São Paulo.

ABSTRACT
Urban intervention plays a fundamental role in city politics, as it constitutes an instru-
ment of change in consolidated territorial dynamics, confronting the relationship
between transformation and permanence, especially in large projects. In São Paulo,
the Urban Operation has been the privileged instrument of intervention, considered
strategic to encourage new projects looking for urban requalification. Changes arising
from the implementation of this instrument may cause greater or lesser impact upon a

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territory, depending on the relationship that is established between transformation and


urban permanence. The Urban Operation, as based on the urban project, constitutes an
opportunity to avoid physical and social rupture processes in the territory. An important
ongoing proposal of urban intervention in the city of São Paulo is the Tamanduateí
Neighborhood Consortium Urban Operation. If approved, its implementation will give
rise to material changes in the southeast sector of the city. The analysis of the project
proposal, object of this paper, shows how these questions have been faced within the
most recent urban city politics.
KEYWORDS: Urban development. Urban intervention. Public policy. Cultural heritage. São Paulo.

RESUMEN
La intervención urbana desempeña un papel fundamental en la política municipal, pues
constituye un instrumento de cambio de las dinámicas territoriales consolidadas, lo que
implica hacer frente a la relación entre las transformaciones y permanencias, especial-
mente en grandes proyectos. En São Paulo, la Operación Urbana ha sido el instrumento
privilegiado de intervención, considerado estratégico para fomentar nuevos proyectos en
busca de la llamada recualificación urbana. Los cambios resultantes de la implantación
de estos instrumentos pueden causar un impacto mayor o menor sobre el territorio, depen-
diendo de la relación que se establece entre las transformaciones y permanencias urbanas.
La Operación Urbana, por tener como fundamento el proyecto urbanístico, constituye
una oportunidad de evitar los procesos de ruptura física y social en el territorio. La Ope-
ración Urbana Consorciada Barrios del Tamanduateí es una importante propuesta de
intervención urbana, en curso en la ciudad de São Paulo, cuya aplicación, de ser apro-
bada, implicará cambios significativos en el sector sudeste del municipio. El análisis de
la propuesta del proyecto, objeto de este artículo, muestra cómo estas cuestiones se han
abordado en el contexto de la más reciente política urbana municipal.
PALABRAS CLAVE: Desarrollo Urbano. Intervención urbana. Política pública. Patrimonio cultural.
São Paulo.

INTRODUÇÃO
A intervenção urbana desempenha um papel fundamental no âmbito da política de
planejamento municipal, por ser um instrumento de mudança de dinâmicas territoriais
já estabelecidas e, muitas vezes, consolidadas. Nas últimas décadas, no plano interna-
cional, as posturas mais recorrentes nas políticas urbanas para enfrentar os problemas
das grandes cidades, sobretudo os relativos à minimização do papel do Estado e à sua
capacidade de ação, têm sido as intervenções pontuais e a desregulamentação da legis-
lação urbanística, tidas como estratégicas para incentivar novos empreendimentos, em
busca da chamada requalificação urbana.

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No Brasil, essa atuação encontrou sua tradução na figura das Operações Urbanas,
forma de intervenção que visa à transformação estrutural de um setor da cidade, sendo
instituída e disciplinada por lei específica. São instrumentos de parceria público-privada,
concebidos para intervenções de grande porte, como alternativa à falta de recursos pú-
blicos e de agilidade do Estado — como muitos defendem —, por meio da definição de
perímetros sobre os quais incidem regras específicas de ordenamento urbano. Os recursos
obtidos da iniciativa privada pelo poder púbico, a partir de contrapartida financeira — ou
de outra natureza — pela concessão de aumento do coeficiente de aproveitamento ou de
alteração de usos que antes não eram permitidos no local, são aplicados em melhorias no
perímetro da Operação Urbana, previamente estabelecido.
Esse tipo de instrumento começou a ser pensado, no Brasil, na década de 1970.
Posteriormente, além de São Paulo, a Operação Urbana foi adotada em cidades como
Natal, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Santo André e Mauá, entre outras. A partir de
2001, com a entrada em vigor do Estatuto da Cidade (BRASIL, 2001), estabeleceram-se
as diretrizes da política urbana nacional mais recente, cujo objetivo é a ordenação das
funções sociais da cidade e da propriedade urbana, contemplando tanto o planejamento
para a correção dos efeitos negativos do crescimento urbano, quanto a preservação do
patrimônio cultural. Considerando o cumprimento desses objetivos, o Estatuto da Cidade
aponta, em seu Artigo 4º, instrumentos de política urbana municipal, como as Operações
Urbanas Consorciadas e o tombamento de imóveis ou de mobiliário urbano. Evidencia-se
a necessidade de ordenamento do desenvolvimento das cidades, tendo em vista as mu-
danças que esse processo implica, aliado à preocupação, entre outras, com a permanência
do seu patrimônio.
Na cidade de São Paulo, as Operações Urbanas Consorciadas começaram a ser
implementadas logo após a entrada em vigor do Estatuto da Cidade Brasil (2001),
substituindo a figura da Operação Urbana1 tal como tinha sido adotada a partir da
década de 1990, quando foram aprovadas a do Anhangabaú em 1992, Faria Lima em
1995, Água Branca em 1995 e Centro em 1997. As Operações Urbanas Consorciadas
buscam adequar-se ao Estatuto da Cidade, sendo disciplinadas também pelo Plano
Diretor Estratégico (PDE) do Município de São Paulo. Com efeito, o PDE atualmente
vigente (SÃO PAULO, 2014) prevê quatro instrumentos de implementação de Projetos
de Intervenção Urbana: a Operação Urbana Consorciada, a Concessão Urbanística, as
Áreas de Intervenção Urbana, e as Áreas de Estruturação Local, sendo que a primeira
refere-se a ações de maior porte.
As políticas urbanas municipais mais recentes têm se pautado por diretrizes rela-
cionadas, principalmente, ao adensamento populacional, com mescla de classes e usos,
maior proximidade entre habitação e trabalho, bem como ao incentivo à habitação social
e de mercado popular, ao transporte coletivo, às ciclovias e ao incremento de áreas verdes.
Com esses objetivos, vêm sendo adotados vários instrumentos urbanísticos nas novas

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Operações Urbanas Consorciadas e também na revisão das existentes — como é o caso da


segunda etapa da Operação Urbana Água Branca (SÃO PAULO, 2013a) —, com o intuito
de adequá-las às diretrizes do Estatuto da Cidade. A ideia é, claramente, a de se afastar das
primeiras Operações Urbanas, como a da Faria Lima e a primeira etapa da Água Branca,
que ficaram associadas às vantagens produzidas para o setor imobiliário, implicando ape-
nas em aumento de área construtiva para o setor terciário.
Da mesma forma, constata-se, também, uma maior preocupação com a qualifica-
ção do espaço público, a paisagem urbana e a preservação do patrimônio cultural, sobre-
tudo no que se refere ao controle dos impactos provocados pelas mudanças decorrentes
da intervenção urbana. Essa preocupação mostra-se absolutamente pertinente, tendo
em vista que as Operações Urbanas Consorciadas se sustentam nas “alterações de índi-
ces e características de parcelamento, uso e ocupação do solo e subsolo, bem como das
normas edilícias”, como prevê o Estatuto da Cidade, em seu Artigo 32 (BRASIL, 2001,
online), implicando significativas mudanças socioespaciais no território.
As mudanças decorrentes da implantação desses instrumentos podem causar
maior ou menor impacto sobre o território, dependendo da relação que se estabelece
entre as transformações e permanências de elementos constituidores de tramas urbanas
consolidadas, representando um grande desafio em projetos de grande porte. Esse desafio
é ainda mais complexo em cidades como São Paulo, que não são marcadas pelo caráter
excepcional de seus bens culturais, se comparadas a regiões de formação mais antiga, e
tampouco pelo apelo turístico de outros centros urbanos.
Este artigo aborda, assim, a relação entre as transformações e permanências decor-
rentes das mudanças causadas por novas dinâmicas de intervenção urbana, aprofundando
a discussão no caso específico da Operação Urbana Consorciada Bairros do Tamanduateí,
com o objetivo de analisar a condução da questão no âmbito da política urbana municipal.
Atualmente em discussão na Câmara Municipal de São Paulo, a sua implementação, se
aprovada, implicará mudanças importantes para os bairros consolidados ao longo do rio
Tamanduateí, no setor sudeste da cidade.

Entre a mudança e a ruptura: TRANSFORMAÇÕES E PERMANÊNCIAS


O ritmo acelerado das mudanças a que estão sujeitas as cidades contemporâneas colo-
ca a relação entre transformação e permanência urbana como um dos grandes desafios
da política e gestão territoriais. As mudanças urbanas, em si, não são necessariamente
negativas, até porque refletem os inevitáveis processos de transformação da sociedade.
Mesmo a memória, como afirma Meneses (1992, p.14), não escapa às mudanças, pois
implica um processo constante de construção e reconstrução, um trabalho que ocorre no
presente para responder às solicitações deste tempo: “A memória é filha do presente. Mas,
como seu objeto é a mudança, se lhe faltar o referencial do passado, o presente permanece
incompreensível e o futuro escapa a qualquer projeto”.

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Se mudar é necessário e inevitável, é preciso se perguntar por que as mudanças


são percebidas como negativas, principalmente por parte de determinados segmentos
sociais — como certas entidades preservacionistas, associações de bairros e/ou mora-
dores, movimentos contra a verticalização, alguns setores acadêmicos —, ou, mesmo,
cidadãos em geral, descontentes com a piora da qualidade de vida urbana, sobretudo
em grandes centros.
Uma das respostas possíveis para esse sentimento está na forma de percepção da mu-
dança. Esta última relaciona-se a processos que ‘tornam algo diferente’ ou ‘dispõem as coisas
de outro modo’ em comparação com o que havia antes, e, dessa forma, quanto mais bruscos
os processos de mudança, maiores serão as diferenças sentidas quanto à situação anterior. As
mudanças podem ser mais lentas, moderadas, ou, ao contrário, em seu limite, levar à ruptura,
o que significa a quebra, separação e mesmo rejeição com respeito a uma situação anterior.
Nesse sentido, a ruptura tem relação com ações mais abruptas, incisivas ou violentas. Como
fica evidente, toda ruptura é uma mudança, mas nem toda mudança implica ruptura.
Os processos de mudança e ruptura podem ocorrer tanto na produção cotidiana
da cidade — como a construção de um edifício ou um grande condomínio por agentes
privados —, quanto em intervenções urbanas realizadas pelo poder público, como obras
de infraestrutura ou grandes projetos urbanos.
No Brasil, as intervenções urbanas de grande porte são associadas, em geral, a
processos de ruptura, como reflete a historiadora Rodrigues (2012, p.5):

A ruptura provocada por intervenções de porte, de grande impacto no espaço, aca-


bou por se tornar um dos componentes que moldam as paisagens urbanas contem-
porâneas e pode ser identificada por sua imposição no espaço e por não manter
nenhum diálogo com o entorno, especialmente quando esse faz parte da constitui-
ção pretérita da paisagem. O resultado é a sensação de perda, uma vez que as coisas
estão onde eram, mas não são como eram, não mantêm relações espaciais antes
identificadas e tomadas como referência de espaço e memória pelos moradores.

O diálogo com o entorno é um aspecto fundamental para entender a diferença


entre os processos de mudança e ruptura, a partir da análise das transformações e das per-
manências que se dão no território ao longo do tempo. As transformações são entendidas
como aquilo que adquire novo aspecto, forma ou caráter devido às mudanças, sejam elas
rupturas ou não. E, evidentemente, entre a mudança e a ruptura existe uma gama enorme
de possibilidades, que produzem maiores ou menores impactos na conformação do ter-
ritório. Do ponto de vista da paisagem, a transformação urbana desvinculada do entorno
— físico e social —, em que ocorre a mudança, relaciona-se à ruptura, sendo percebida,
em geral, como quebra entre uma paisagem consolidada, que possivelmente faz parte do
imaginário coletivo, e outra que se conformou depois e que não dialoga com a primeira.

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Como afirma o arquiteto italiano Rossi (2001), as transformações urbanas devem-


-se a mudanças fortuitas (por exemplo, um incêndio), normais (obsolescência) ou, ainda,
artificiais (por exemplo, planos ou especulação), cujos promotores são identificáveis, e
significam, sempre, transformação também da vida do morador.
Contudo, ainda segundo o arquiteto, a transformação é sempre condicionada pelos
dados materiais — principalmente pelas permanências — que se opõem à mudança. As
permanências podem ser entendidas a partir da significativa definição de Rossi (2001,
p.49) de que “elas são um passado que ainda experimentamos”, no sentido de serem
elementos primários constitutivos da cidade. Ou seja, são fatos urbanos geradores de
uma determinada forma, tendo em vista que “a forma da cidade é sempre a forma de um
tempo da cidade, e existem muitos tempos na forma da cidade” (ROSSI, 2001, p.57). Os
elementos que permanecem no tempo — embora com modificações, por exemplo, de uso
— são fundamentais na teoria dos fatos urbanos do arquiteto italiano2, que se sustenta
no conceito de cidade como artefato que cresce e como lócus da memória coletiva. Dessa
forma, em qualquer processo de mudança, quanto maior o respeito ao entorno físico e
social, maior a possibilidade de se manterem as permanências.
Enquanto as permanências referem-se aos monumentos, aos sinais físicos do pas-
sado, bem como ao traçado e ao plano, Rossi distingue na cidade outro fato urbano funda-
mental, a área-residência, muito mais suscetível à transformação devido ao valor do solo,
produzindo-se uma relação continuamente tensa entre elementos que permanecem e
áreas que se transformam. O estudo da história urbana é, assim, para Rossi, fundamental
para entender a relação entre esses elementos e áreas no processo de formação e desenvol-
vimento de uma cidade, entre permanências e transformações, ou seja, para compreender
a construção da cidade no tempo.
Tendo em vista que as mudanças são inevitáveis e, mais do que isso, desejadas, man-
ter o equilíbrio entre permanências e transformações é fundamental, tanto na produção
cotidiana da cidade quanto nas intervenções urbanas de maior porte:

As intervenções e a renovação dos espaços urbanos fazem parte do processo


de mudança da sociedade e muitas vezes funcionam como condição neces-
sária para a reinserção de grandes áreas na dinâmica econômica e cultural da
cidade. Definir suas diretrizes a partir dos testemunhos do processo de forma-
ção histórico-cultural não significa mantê-los intocados, mas sim percebê-los
como parte constituinte, e não acessória, do objeto a ser “moldado”. Não se
trata, portanto, de não mudar, mas de como mudar, de modo a manter linhas de
continuidade entre presente e passado que permitam somar valores cognitivos,
afetivos e de uso, enfrentando a obsolescência programada dos objetos e seu
consequente descarte, o que inclui também o descarte de heranças imateriais
(RODRIGUES, 2012, p.6, grifo do autor).

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O equilíbrio desejado sustenta-se, dessa forma, em duas premissas inter-relacio-


nadas: (1) não se trata de ‘não mudar’, mas sim de ‘como mudar’; (2) é necessário evitar
que as mudanças impliquem processos violentos de ruptura. Nessa direção, a opção pelo
respeito e/ou a manutenção das especificidades locais é fator fundamental para uma rela-
ção equilibrada entre transformações e permanências:

Essa difícil equação abarca uma gama enorme de respostas que precisam ter como
fundamento as especificidades culturais da área que se pretende atingir, de modo a
se integrarem ao cotidiano e serem percebidas como fatores de melhoria da quali-
dade de vida, e não como formas de exclusão ou de ruptura de dinâmicas locais. [...]
O que se pretende preservar não são apenas as “coisas” que compõem o espaço, mas
a potencialidade das pessoas que nele habitam, ou convivem, de continuar a criar
suas formas específicas de vida, produzir saberes, fazeres e celebrações, bem como
a exercer relações de vizinhança e solidariedade, cujas dinâmicas de mudança são
espontâneas, sendo desejável que não sejam provocadas por fortes interferências
externas (RODRIGUES, 2012, p.1).

As ‘fortes interferências externas’, provocadas pelas dinâmicas de mudança, po-


dem ser controladas por meio do projeto, enquanto instrumento de política urbana que
reflete espacialmente o programa e o plano de intervenções previstas em um determinado
perímetro. Considerando que a Operação Urbana Consorciada é uma modalidade de
intervenção indissociável do projeto urbano, relacionada à intervenção de grande porte,
ela pode ser vista como oportunidade para a busca de equilíbrio entre transformações e
permanências, com o objetivo de se evitar a ruptura nos processos que impliquem mudan-
ças urbanas em grandes perímetros.
Fica evidente, assim, que o modo de se trabalhar a relação entre as transforma-
ções e permanências em um determinado território é uma questão de política pública,
ou seja, é possível buscar o desejado equilíbrio entre esses elementos a partir de premis-
sas prévias que orientem a proposta de intervenção urbana. Trata-se, portanto, de uma
opção que pode ser assumida desde que haja uma determinação nessa direção. Essas
questões serão a seguir analisadas no caso concreto da Operação Urbana Consorciada
Bairros do Tamanduateí.

Bairros do Tamanduateí: A CONSTRUÇÃO DE UMA OPERAÇAO URBANA


A Operação Urbana Consorciada Bairros do Tamanduateí estende-se ao longo do rio de
mesmo nome, no setor sudeste do município, desde sua área central até o início da Via
Anchieta, no limite com o município de São Caetano do Sul, na região do ABC, tendo
como eixos estruturadores o próprio rio, a Avenida do Estado e a antiga estrada de ferro
Santos-Jundiaí (Figura 1).

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FIGURA 1 —
Localização da
operação urbana
consorciada bairros
do Tamanduateí no
contexto metropolitano
paulista.
Fonte: São Paulo
(2015b, p.22).

Foram definidos, para sua implantação, dois perímetros: o de adesão, em que incidirão
as regras urbanísticas específicas da lei, e o expandido, que poderá receber recursos da Opera-
ção Urbana para melhorias do poder público (Figura 2). Sua complexidade deve-se não apenas
à sua grande extensão territorial (cerca de 1.670 ha), mas também ao fato de abarcar parte de
distintos bairros de consolidação antiga, como o Cambuci, Mooca, Parque da Mooca, Ipiran-
ga, Vila Carioca e Vila Prudente. Esses bairros, cuja formação foi condicionada pela presença
da várzea, da ferrovia e da indústria, embora tenham em comum a mesma origem fabril-ope-
rária — exceto as partes altas das colinas do Ipiranga e do Alto da Mooca —, apresentam uma
ampla diversidade cultural, resultado de configurações socioculturais locais muito específicas.
Por outro lado, apesar da diversidade, o perímetro da Operação Urbana Consorcia-
da cobra certa unidade paisagística conferida por sua geografia, que se revela na relação
entre a várzea do rio e as colinas em volta, determinante para seu uso e ocupação. Camadas
de geografia e história determinaram as práticas sociais que se estabeleceram naquele
território, e também por elas foram determinadas:

A região é uma das portas da cidade para o litoral (antigo Caminho do Mar e Via
Anchieta) na qual, a partir do centro até os limites com o ABC, se desenvolveram
bairros com diferentes paisagens e funções. Uma das grandes intervenções na pai-
sagem natural da região foi a retificação/canalização do Tamanduateí e a abertura
da Avenida do Estado. De uma forma geral, os antigos caminhos se tornaram eixos

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FIGURA 2 — Perímetro
da operação urbana
consorciada bairros
do Tamanduateí:
perímetro de adesão
(interno) e perímetro
expandido (externo).
Fonte: São Paulo
(2015c, Mapa II).

de irradiação de bairros; assim é a antiga Estrada do Oratório em relação ao Alto da


Mooca e à Vila Bertioga; e a Rua Ibitirama, em relação às vilas Prudente, Zelina e
Alpina (RODRIGUES, 2012, p.16).

Os estudos da área começaram a ser desenvolvidos no início dos anos 2000 pela
antiga Secretaria Municipal de Planejamento, visando à elaboração de proposta para a
então chamada Operação Urbana Diagonal Sul, prevista no Plano Diretor Estratégico de
2002, sendo seus perímetros e diretrizes reformulados posteriormente. Em 2010, já no
âmbito da atual Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano (SMDU), passou a
designar-se Operação Urbana Consorciada Mooca-Vila Carioca e, em 2014, recebeu sua
atual denominação.

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Nos últimos anos, sob a condução da empresa pública São Paulo - Urbanismo
(SP-Urbanismo), vinculada à SMDU3, foram realizados vários estudos para a elaboração
de plano para a área. Entre 2012 e 2013, o Consórcio Mooca-Vila Carioca, liderado pelo
escritório de arquitetura Vigliecca e Associados, vencedor de processo licitatório, desen-
volveu o Plano Urbanístico Específico para a Operação Urbana em questão, com base em
estudos urbanísticos, sociais, ambientais e econômicos então realizados. Em 2014, esse
plano foi objeto de reformulações pela SP-Urbanismo, para sua adequação ao novo Plano
Diretor Estratégico da cidade de São Paulo, aprovado no mesmo ano.
No ano seguinte, com base nesse plano modificado, foi encaminhado à Câmara
Municipal de São Paulo, onde se encontra atualmente em discussão, o Projeto de Lei do
Executivo nº 01-00723/2015 (SÃO PAULO, 2015c, online), que “estabelece objetivos,
diretrizes, estratégias e mecanismos para a implantação da Operação Urbana Consorcia-
da Bairros do Tamanduateí, define Projeto de Intervenção Urbana e autoriza a criação da
empresa Bairros do Tamanduateí S/A”.
Integrante da Macroárea de Estruturação Metropolitana, de acordo com o Ar-
tigo 12 do atual Plano Diretor Estratégico (SÃO PAULO, 2014) — que abrange áreas
das planícies fluviais dos rios Tietê, Pinheiros e Tamanduateí, com funções metropolita-
nas —, a Operação Urbana Consorciada Bairros do Tamanduateí situa-se no Setor Orla
Ferroviária e Fluvial, cujo grande desafio está expresso em seus objetivos específicos:

[...] I. transformações estruturais orientadas para o maior aproveitamento da terra


urbana com o aumento nas densidades construtiva e demográfica e implantação de
novas atividades econômicas de abrangência metropolitana, atendendo a critérios
de sustentabilidade e garantindo a proteção do patrimônio arquitetônico e cultural,
em especial o ferroviário e o industrial (SÃO PAULO, 2014, online).

O desenho dessa Operação Urbana deve, portanto, conceber e aplicar instrumen-


tos urbanísticos que tornem possível o adensamento de uma parte complexa da cidade,
que envolve bairros com fortes e específicas identidades, em tecido urbano historicamen-
te consolidado: o desafio consiste em promover transformações sem deixar de considerar
as permanências. Apresentado esse histórico, será analisado, a seguir, de que forma são
tratadas, no projeto urbanístico da referida Operação Urbana, as relações entre as trans-
formações e permanências decorrentes das mudanças que ela acarretará no território.

Transformações e permanências NA OPERAÇÃO URBANA


CONSORCIADA BAIRROS DO TAMANDUATEí
Já no início da Operação Urbana Consorciada Mooca-Vila Carioca, o Termo de Referên-
cia de 2010 relativo à contratação de consórcio de empresas para elaboração de estudos
urbanísticos e complementares — visando subsidiar a formulação do projeto de lei para

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sua implantação — estabelecia como sua diretriz básica a proteção das identidades locais:
“Contribuir para a manutenção e ampliação dos laços de identidade entre a população
local e os bairros que constituem o território desta operação urbana, áreas de ocupação
antiga e costumes tradicionais, de importância inestimável para a imagem da cidade”
(SÃO PAULO, 2010, p.23).
Essa diretriz pautava-se pelo próprio diagnóstico das características do território da
Operação Urbana, e se desdobrava em outra, que anunciava um desejável tratamento de
equilíbrio entre as transformações e permanências urbanas:

Outra característica deste território é a presença de edificações e conjuntos edifi-


cados de grande valor histórico, bem como de outros remanescentes significativos
que merecem ser preservados e constituem rico potencial a explorar, permitindo
que a preservação da memória industrial e operária seja um diferencial de alto valor
agregado que, articulado à renovação de usos e de edificações, eleve a dinâmica de
utilização desta região, permitindo um desenvolvimento harmônico e integrado do
existente a preservar com o novo a ser instalado (SÃO PAULO, 2010, p.6).

Desenvolvimento e preservação deveriam, assim, ser contemplados de forma har-


moniosa nos estudos que seriam realizados pelo Consórcio a ser contratado. Em con-
sequência, o referido documento previa estudos sobre os elementos caracterizadores e
identificadores da paisagem urbana, construídos e naturais, bem como do patrimônio
cultural e ambiental. O Termo de Referência exigia, ainda, que houvesse uma visão con-
junta de patrimônio e paisagem urbana na elaboração do projeto urbanístico, que deveria
contemplar uma:

Proposta de qualificação da paisagem urbana, contendo diretrizes gerais de volume-


tria e restrições em função da preservação e qualificação do patrimônio histórico, de
parâmetros de orientação e percepção da paisagem natural e construída do território
da Operação Urbana, indicando as áreas passíveis de verticalização e seus respecti-
vos graus (baixa, média e alta), bem como perspectivas visuais a manter, qualificar e
recuperar (SÃO PAULO, 2010, p.49).

Dessa forma, o projeto a ser elaborado pelo Consórcio deveria ser orientado por
tais diretrizes, e basear-se nos diagnósticos a serem realizados a partir dos dados levan-
tados no desenvolvimento do projeto, sempre com a intermediação da equipe técnica do
poder público. O produto final seria resultado, portanto, das discussões entre a equipe
contratada e os técnicos da SP-Urbanismo. Após a contratação do Consórcio, este pro-
cedeu aos estudos previstos, dentre os quais o levantamento dos bens materiais com
possível interesse de preservação — ou seja, ainda não reconhecidos oficialmente por

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meio de tombamento. Também foi realizada análise dos impactos do empreendimento


da Operação Urbana no patrimônio cultural — bens culturais tombados —, situado em
seu perímetro, e no de sua área de influência direta, bem como a indicação de medidas
mitigadoras de seus efeitos negativos.
Toda essa pesquisa integra o conjunto dos Estudos de Impacto Ambiental (EIA)
que subsidiou o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), requisito necessário para a
aprovação do licenciamento ambiental prévio do empreendimento pela Secretaria Muni-
cipal do Verde e Meio Ambiente, o que foi obtido em 2015 (SÃO PAULO, 2013b).
De acordo com o EIA-RIMA, a metodologia utilizada no trabalho foi a de levanta-
mento de bibliografia especializada, principalmente em arqueologia e história — com ên-
fase nas ferrovias —, e a pesquisa de campo, “com o objetivo de levantar todos os imóveis
existentes no entorno da ferrovia, integrantes do processo de constituição deste território”
(SÃO PAULO, 2013b, p.770), além de pesquisa documental em acervos sobre o tema.
Como resultado, os estudos apresentaram fichas de identificação de imóveis ‘passíveis
de tombamento’, segundo o EIA-RIMA, bem como de estruturas e/ou espaços ligados à
ferrovia — como os seus ramais —, vinculados, principalmente, ao patrimônio ferroviário,
sendo ainda que não se identificou nenhum novo sítio arqueológico na área.
Apesar de a referida pesquisa não ter apresentado análise conclusiva sobre a possi-
bilidade de atribuição de valor cultural aos imóveis, espaços e estruturas estudados, nem
ter se debruçado sobre as questões de patrimônio imaterial, consubstanciou extenso e
detalhado trabalho, reunindo significativo volume de informações sobre o tema.
Contudo, os resultados dessa pesquisa não se refletem no projeto urbanístico que
acompanha o Projeto de Lei para a implantação da Operação Urbana Consorciada Bairros
do Tamanduateí, atualmente em discussão na Câmara Municipal de São Paulo. Com efei-
to, o Plano Urbanístico Específico4 (Figura 3) indica apenas três edifícios de “interesse
histórico” no perímetro da Operação Urbana: a Antiga Fábrica Labor, as Antigas Oficinas
Casa Vanorden e o Armazém da Antiga São Paulo Railway, que já se encontram tombados
pelos órgãos de patrimônio.
O referido Projeto de Lei é acompanhado, ainda, por mapa com a indicação de bens
já protegidos por legislação municipal, estadual e federal de preservação do patrimônio
(SÃO PAULO, 2015c, Mapa VI), e posterga, em seu Artigo 71, a identificação de bens de
interesse de preservação no perímetro da Operação Urbana:

Caberá ao Departamento do Patrimônio Histórico, da Secretaria Municipal de Cul-


tura, a elaboração de inventário de bens de interesse de preservação, bem como
o acompanhamento e orientação dos estudos promovidos pela BTSA [Bairros do
Tamanduateí S/A, empresa a ser criada] para intervenções urbanísticas em que seja
necessária a valorização da paisagem cultural ou a restauração e readequação de edi-
ficações de interesse histórico, públicas ou privadas (SÃO PAULO, 2015c, online).

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O adiamento quanto às ques-


tões de identificação poderá levar à
perda de testemunhos e de manifes-
tações culturais importantes, como
ocorreu no caso da demolição, em
2014, das antigas Oficinas da Light,
no Cambuci. Embora fosse objeto
de proposta da Operação Urbana
com proposição de parque e equipa-
mentos coletivos, esse significativo
conjunto industrial, não tombado
à época, desapareceu e, com ele, a
chance de se transformar a área, mas
mantendo parte de suas permanên-
cias (TOURINHO & PIRES, 2016).
Verifica-se, assim, que o tra-
tamento do patrimônio cultural na
proposta da Operação Urbana é
ainda uma grande interrogação, pre-
dominando, por ora, procedimentos
metodológicos de identificação de
“bens de interesse de preservação”
que refletem o conceito já superado
FIGURA 3 — Plano urbanístico específico que acompanha o projeto de lei para implantação da
de patrimônio histórico-arquitetôni- operação urbana. Em magenta, estão indicados os edifícios de interesse histórico.
co. No contexto de um território am- Fonte: São Paulo (2015a, Mapa I).

plo como o definido por essa Opera-


ção Urbana — 1.600ha e distintos
bairros com características muito peculiares —, o procedimento relativo à indicação
de bens com interesse de preservação, sobre os quais podem vir a incidir o instrumento
do tombamento, é insuficiente e inoperante, sobretudo para o tratamento equilibrado
entre as permanências e transformações.
Como visto anteriormente, as permanências têm relação com a definição da cidade
como lócus da memória coletiva, envolvendo aspectos mais amplos do que o reconhe-
cimento de bens de interesse histórico e seu tombamento. Este último entendimento
é reducionista quanto às possibilidades que a preservação apresenta no tratamento das
permanências e sua relação com as transformações. Mantida essa direção, a tendência
das mudanças à ruptura é significativa, tendo em vista que a premissa inicial, expressa
no Termo de Referência, de “manutenção e ampliação dos laços de identidade entre a
população local e os bairros que constituem o território desta Operação Urbana” (SÃO

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PAULO, 2010, p.23), não encontra procedimentos conceituais, metodológicos e de pro-


jeto adequados ao objetivo formulado.
O próprio marco regulatório da política de desenvolvimento urbano municipal, o
Plano Diretor Estratégico (SÃO PAULO, 2014), que entrou em vigor no momento em
que se elaborava a minuta do Projeto de Lei da Operação Urbana, prevê, além do tom-
bamento e do inventário, outros instrumentos de identificação do patrimônio cultural,
como o registro do patrimônio imaterial, a chancela da paisagem cultural e o registro
das então denominadas áreas de proteção cultural e territórios de interesse da cultura
e da paisagem. O conceito de paisagem cultural, por exemplo, constitui possibilidade
instigante como instrumento de preservação e gestão do território, principalmente em
áreas de grande porte, permitindo que se conjuguem, em um determinado perímetro,
diretrizes urbanísticas e de preservação, podendo incluir, ainda, a ideia de patrimônio
ambiental urbano. Esta última noção, retomada e recuperada na sua concepção origi-
nal, vinculada a uma preocupação com as imagens que os grupos sociais produzem e ao
mesmo tempo refletem sobre o território (MENESES, 1978), em muito contribuiria,
também, para a identificação das permanências locais. As práticas de preservação do
patrimônio poderiam, assim, contribuir para o reconhecimento de valores afetivos, in-
centivando os múltiplos sentidos sociais de pertencimento ao território.
Esses instrumentos são mais adequados para o tratamento de áreas de grande
porte, em que a visão do conjunto como um todo é fundamental. O perímetro da Opera-
ção Urbana em questão, marcado pelas relações que se estabeleceram entre a várzea do
Tamanduateí e suas colinas, configura uma paisagem única, sendo uma geografia ainda
perceptível — apesar das significativas alterações sofridas nas últimas décadas —, em
uma cidade em que essas paisagens são cada vez mais difíceis de enxergar, devido aos
processos de urbanização intensiva. Essa paisagem pode ser entendida como possibili-
dade de apreensão das acumulações no território —
­ no sentido das rugosidades, sobre
as quais falava o geógrafo Milton Santos5 —, não apenas resultante dos agenciamentos
físico-territoriais, mas também das relações e práticas sociais que ali se estabeleceram,
produzindo camadas de trabalho social que foram se sobrepondo.
Se é evidente que na proposta da Operação Urbana predominou a noção já supe-
rada de patrimônio histórico-arquitetônico, por outro lado, ao prever “a preservação dos
territórios produtivos e da oportunidade de geração de novos empregos” (SÃO PAULO,
2015a, p.3) no chamado Setor Henry Ford (Figura 4), na área em estudo, a Operação
Urbana adotou procedimento inovador, coadunado com a constatação, na fase de diag-
nósticos, do vigor ainda existente das zonas industriais. São mantidos, assim, nessa área,
os perímetros industriais existentes: “Com isso, a transformação desses territórios deve
acontecer no compasso da transformação dos processos produtivos e para processos pro-
dutivos e não precipitada por incentivos ao setor imobiliário propostos pela Operação
Urbana” (SÃO PAULO, 2015a, p.11).

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FIGURA 4 — Setores e subsetores da operação urbana consorciada bairros do Tamanduateí, indicando o setor Henry Ford.
Fonte: São Paulo (2015b, p.31, adaptado pela autora).

Essa decisão de política pública inovadora abre pos-


sibilidades importantes na busca do equilíbrio entre trans-
formação e permanência no território. Com efeito, o Setor
Henry Ford situa-se no centro do perímetro da Operação
Urbana, compreendendo a área que se desenvolve para-
lelamente à ferrovia, entre a Avenida do Estado e a Rua
Dianópolis, e os Viadutos São Carlos e a Av. Luis Inácio
de Anhaia Melo. A Av. Presidente Wilson e a Av. Henry
Ford são paralelas à ferrovia, conformando um grande eixo
industrial, com uma paisagem urbana única, pelo fato de
os galpões terem se implantado em fileira, sem recuos nos
lotes, e com gabarito praticamente homogêneo, sendo mar-
cada, ainda, pela presença de ramais ferroviários (Figura 5).
FIGURA 5 — Vista aérea do Ipiranga e da Mooca, com destaque
Tendo em vista essa paisagem única — formada por para o Setor Henry Ford.
traçados, construções, estruturas e espaços, bem como por Fonte: Google Earth (imagem, 23 jul. 2015, adaptado pela autora).
práticas sociais que permaneceram —, situada em orla fer-
roviária que será objeto de mudanças ao longo do tempo, esse Setor configura território
propício para a busca de uma relação equilibrada entre as transformações e permanências
previstas para a implementação da Operação Urbana.

CONCLUSÃO
Como conclusão, pode-se afirmar que a Operação Urbana Consorciada Bairros do Ta-
manduateí é um exemplo significativo das dificuldades do enfrentamento da relação en-
tre as transformações e permanências nos projetos de intervenção urbana, que acarre-

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tarão mudanças de dinâmicas territoriais já consolidadas. Inicialmente, apresentou-se


a oportunidade da elaboração de um ‘projeto urbano completo’ com as diretrizes dadas
por um Termo de Referência que considerou a relevância das questões de identidade
dos bairros, da memória local, da imagem da cidade e do patrimônio cultural, bem
como a relação desses aspectos com os da paisagem urbana. A própria municipalidade
anunciou que essa Operação Urbana representaria um avanço com relação às outras
existentes, tanto em São Paulo como em outros municípios brasileiros, justamente por
prever um projeto urbano completo, que contemplaria todas as dimensões que uma
intervenção deste porte requer.
No desenvolvimento dos trabalhos, contudo, a formulação do plano urbanístico
e do projeto urbano antecedeu o tratamento das questões de identidade e memória
locais — cuja relevância fora indicada como diretriz da intervenção —, as quais foram
postergadas para a etapa de implantação da Operação Urbana. Procedeu-se, assim, em
sentido contrário à Declaração de Amsterdã — importante documento da reunião do
Conselho da Europa, ocorrida em 1975, em que se propôs o tratamento conjunto das
questões do patrimônio e do planejamento territorial —, segundo a qual a proteção da
memória deve orientar a planificação urbana e territorial, e não o inverso, como ocorreu
nos estudos em questão.
Considerando, entretanto, que o período de implantação da Operação Urbana se
estenderá até o ano 2040, e que a transformação do chamado Setor Henry Ford está pre-
vista para acontecer no compasso das mudanças dos processos produtivos ali existentes,
ainda é possível pensar a relação das transformações e permanências no referido Setor.
Na busca de equilíbrio dessa relação, será fundamental a reflexão e adoção de concei-
tos e procedimentos metodológicos diferentes daqueles assumidos até o momento na
Operação Urbana. Para tanto, a formulação e aplicação, nas últimas décadas, de outros
conceitos de proteção da memória e das identidades locais — acima mencionados e re-
fletidos no novo Plano Diretor Estratégico — estimulam a reflexão sobre os significados
das permanências e a sua importância na política e gestão do desenvolvimento urbano.
Deseja-se, com isso, evitar que as mudanças impliquem rupturas físicas e sociais
que comprometam as rugosidades do território, convertendo em realidade o temor de
Meneses, citado no início deste artigo, de que o presente se torne incompreensível, e o
futuro, um projeto sem memória.

notas
1. O instrumento da Operação Urbana foi previsto pela primeira vez em São Paulo em 1985, no
projeto de lei do Plano Diretor do Município, que, contudo, não foi implementado.

2. O conceito de permanência é essencial para entender a teoria dos fatos urbanos de Rossi, que
tanto influenciou o campo da arquitetura e do urbanismo desde o final dos anos 1960, e que foi por
ele formulada a partir das ideias dos historiadores franceses do urbanismo Marcel Poëte e Pierre

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Lavedan, bem como dos estudos do campo da chamada geografia tradicional francesa, da primeira
metade do século XX.

3. A SP-Urbanismo é uma empresa pública que tem o objetivo de dar suporte e desenvolver as
ações municipais de planejamento urbano, tendo surgido da cisão da antiga Empresa Municipal de
Urbanização em duas, sendo a outra empresa a São Paulo Obras.

4. De acordo com o Projeto de Lei em questão, o Plano Urbanístico Específico é o “[...] plano de
transformação físico-territorial, compreendendo o Programa de Intervenções e o regramento urba-
nístico definido” para a Operação Urbana (SÃO PAULO, 2015c, online).

5. Conforme afirma Santos (2008, p.43), “[...] as rugosidades não podem ser apenas encaradas como
heranças físico-territoriais, mas também como heranças socioterritoriais ou sociogeográficas”.

REFERÊNCIAS
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Federal. Estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Diário Oficial da
União, Brasília, 11 jul. 2001. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/
l10257.htm>. Acesso em: 24 jun. 2016.
GOOGLE EARTH. Software da Google que disponibiliza imagens de satélite de vários lugares do mundo:
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14 jul. 2016.
MENESES, U.B. A História, Cativa da Memória? Para um mapeamento da memória no campo das
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MENESES, U.B. Patrimônio ambiental urbano: do lugar comum ao lugar de todos. Revista CJ Arqui-
tetura, n.19, p.45-46, 1978.
RODRIGUES, M. Identificação e preservação do patrimônio histórico-cultural da operação urbana
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nâmicas urbanas na demolição das antigas oficinas da Light em São Paulo. Vitruvius, n.17, 2016.
Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.193/6086>. Acesso
Recebido em em: 14 jul. 2016.
30/8/2016,
reapresentado
em 2/3/2017 e ANDRÉA DE OLIVEIRA TOURINHO | Universidade São Judas Tadeu | Centro de Pesquisa | Programa de
aprovado em Pós-Graduação Stricto Sensu em Arquitetura e Urbanismo | R. Taquari, 546, Mooca, 03166-000,
17/3/2017. São Paulo, SP, Brasil | E-mail: <prof.atourinho@usjt.br>. 

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VILA DOS IDOSOS: NOVOS INSUMOS PARA
A POLÍTICA HABITACIONAL, NOVOS PARÂMETROS PARA
A ARQUITETURA, NOVAS RESULTANTES URBANAS
VILA DOS IDOSOS: NEWS INPUTS TO HOUSING POLICY, NEWS PARAMETERS TO
ARCHITECTURE, NEW URBAN RESULTANTS |VILA DOS IDOSOS: NUEVOS INSUMOS
PARA LA POLÍTICA DE VIVIENDA, NUEVOS PARÁMETROS PARA LA ARQUITECTURA,
NUEVOS RESULTADOS URBANOS

FELIPE ANITELLI, MARCELO TRAMONTANO

RESUMO
O principal objetivo deste artigo é identificar qualidades do conjunto habitacional
Vila dos Idosos, promovido pela Companhia Metropolitana de Habitação e projeta-
do por Hector Vigliecca, localizado em São Paulo. São três as categorias de análise
escolhidas que organizam as reflexões propostas: soluções arquitetônicas idealiza-
das pelo arquiteto, aspectos da política habitacional adotada e assistência na rotina
doméstica dos moradores. A premissa deste trabalho é que especificidades da Vila
dos Idosos, desde sua formatação e gestão até suas resultantes projetuais e a própria
localização do empreendimento, contrapõem‑se à provisão habitacional pública
vigente, cujos resultados são extensos conjuntos habitacionais, compostos por edi-
fícios de apartamentos implantados em terrenos proporcionalmente grandes, loca-
lizados em periferias metropolitanas, longe de centralidades já consolidadas, forma-
tados a partir de um projeto arquitetônico e urbanístico altamente padronizado, cujo
principal objetivo em termos de consumo é a venda da unidade habitacional. Como
contraponto, a Vila dos Idosos indica outros caminhos para o acesso à moradia e à
cidade, incluindo‑se, pretensamente, em reformas urbanas consideradas aqui como
progressistas. Para embasar os argumentos expostos, foram utilizados procedimen-
tos metodológicos variados: revisão bibliográfica, análise de peças gráficas, visita à
Vila dos Idosos e entrevistas.
PALAVRAS‑CHAVE: Habitação de interesse social. Política pública habitacional. Vila dos idosos.

ABSTRACT
This article’s main purpose is to identify the qualities of Vila dos Idosos housing complex,
which was designed by Hector Vigliecca and advanced by the São Paulo Metropolitan
Housing Public Company in the city of São Paulo, Brazil. Three analytical categories
organize the reflections herein presented: architectural solutions designed by the ar-

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chitect, aspects of the adopted housing policy, assistance within the residents’ domestic
routine. The premise of this article is that Vila dos Idosos’s specific features (including its
formulation and management, its design resultants and the housing complex location)
oppose the current public housing provision. The results of the latter are large housing
developments, consisting of apartment buildings placed in proportionately large plots,
located in metropolitan peripheries, far from consolidated centralities, formatted from
a highly standardized architectural and urban design, whose main objective in terms
of consumption is the sale of housing units. As a counterweight, Vila dos Idosos’s proj-
ect indicates other paths to access housing and the city, supposedly included in urban
reforms regarded as progressive. The arguments in this paper are based on different
methodological procedures: literature review, analysis of graphic elements, technical
visit to the housing complex and interviews.
KEYWORDS: Social housing. State housing policy. Vila dos Idosos.

RESUMEN
El objetivo principal de este artículo es identificar cualidades del conjunto de viviendas
Vila dos Idosos, promovido por la Companhia Metropolitana de Habitação y proyectado
por Hector Vigliecca que se ubica en la ciudad de São Paulo. Se eligieron tres categorías de
análisis para organizar las reflexiones propuestas: las soluciones arquitectónicas ideadas
por el arquitecto, los aspectos de la política de vivienda adoptada y la ayuda en la rutina do-
méstica de los residentes. Este artículo tiene como premisa que las características de la Vila
dos Idosos, incluyendo desde su formateo y gestión, hasta los resultados de los proyectos y su
propia ubicación se contraponen a la provisión de vivienda pública vigente, cuyos resul-
tados son extensos conjuntos de viviendas, compuestos de edificios de apartamentos cons-
truidos en terrenos proporcionalmente grandes, localizados en periferias metropolitanas,
lejos de centralidades ya consolidadas, establecidos a partir de un proyecto arquitectónico
y urbanístico altamente estandarizado, cuyo principal objetivo en términos de consumo
es la venta de la unidad de vivienda. Como contrapunto, la Vila dos Idosos indica otros
caminos para el acceso a la vivienda y a la ciudad, incluyéndose, conforme se pretende,
en reformas urbanas consideradas aquí como progresistas. Para dar base a los argumentos
expuestos, se utilizaron procedimientos metodológicos variados: revisión bibliográfica,
análisis de piezas gráficas, visita a la Vila dos Idosos y entrevistas.
PALABRAS CLAVE: Vivienda social. Política pública de vivenda. Vila dos idosos.

INTRODUÇÃO
O conjunto habitacional conhecido como Vila dos Idosos é um empreendimento pro-
movido recentemente por uma empresa estatal que, ao longo das últimas décadas,
notabilizou‑se em construir enormes conjuntos de edifícios de apartamentos ou casas,

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implantados em glebas relativamente grandes, localizadas em regiões periféricas, nas


bordas metropolitanas, com propostas arquitetônicas e inserções urbanas altamente pa-
dronizadas que, quase sempre, desconsideram pré‑existências ambientais locais. Essas
são características pertinentes a milhares de unidades habitacionais construídas pela
Companhia Metropolitana de Habitação (COHAB), desde a época do golpe militar dos
anos 19601. Aqui, coloca‑se a Vila dos Idosos como contraponto a algumas dessas ques-
tões, pois vislumbra outras formas de produção e gestão, outras políticas públicas, além
de outras resultantes arquitetônicas.
A Vila dos Idosos, realizada pelo arquiteto Héctor Vigliecca, está implantada nas
imediações da região central de São Paulo, inserida em um quarteirão de um bairro cons-
tituído há décadas, mas que perdeu população nos últimos anos, passando a concentrar
imóveis ociosos (INSTITUTO POLIS, 2009). Esses fatores contribuíram para enfraque-
cer a dinâmica do bairro e degradá‑lo em alguns aspectos. Por isso, pontualmente, a Vila
dos Idosos contribuiu para reabilitar a área e recuperar certas qualidades socioespaciais.
Por se tratar de região já consolidada, a vila foi construída em uma escala relativamente
reduzida, somando‑se às materialidades urbanas já existentes nas imediações. Nesse sen-
tido, como será apresentado, a sutileza da implantação da edificação no terreno, proposta
pelo autor do projeto, contribuiu para a integração espacial com a vizinhança e o estabe-
lecimento de vínculos raramente existentes quando grandes conjuntos habitacionais são
extensivamente construídos nas periferias. Questões suscitadas a partir das qualidades,
porte e localização da Vila dos Idosos, além do contexto em que ela foi promovida, portan-
to, serão objetos de análise no presente trabalho.
O principal objetivo aqui é identificar suas qualidades, algumas apenas idealizadas,
outras de fato materializadas e construídas, que a distinguem da produção vigente. Para
a compreensão dos aspectos anunciados, foram utilizados procedimentos metodológicos
variados: revisão bibliográfica, análise de peças gráficas e visita à Vila dos Idosos. A relativa
diversidade das fontes consultadas contribuiu para enriquecer as leituras aqui realizadas,
ao mesmo tempo em que ajudou a estabelecer noções mais precisas e críticas.

SÃO OS MEIOS QUE DETERMINAM OS FINS


Vila dos Idosos (Figura 1) se inseriu em um programa chamado Locação Social, imple-
mentado na cidade através de ações de diferentes administrações locais. Ele trouxe duas
questões não usuais na história recente da produção habitacional brasileira: (1) As unida-
des habitacionais são construídas para arrendamento, portanto, são alugadas e não ven-
didas; (2) O pagamento do aluguel é subsidiado com recursos financeiros da prefeitura.
Essas diretrizes alteram fundamentos das principais políticas públicas vigentes atual-
mente, materializadas, por exemplo, no programa do governo federal Minha Casa Minha
Vida (MCMV), onde as unidades são basicamente vendidas e, cada vez mais raramente,
subsidiadas. Como a locação social confronta esses dois princípios, é pouco provável que

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ela usufrua de alguma linha de financiamento vinculada ao MCMV para viabilizar a pro-
dução do empreendimento. Esse fato é significativo pois o programa se tornou a principal
maneira de viabilizar formalmente, através de órgãos públicos, a produção de habitações
de interesse social, tendo aportado recursos em milhões de unidades nos últimos anos.
Além disso, quando realizada sob a promoção imobiliária privada, a venda da uni-
dade possibilita rendimentos excedentes oriundos da especulação fundiária e imobiliária,
minimizadas com o arrendamento, já que os valores extras não podem ser repassados ao
consumidor, pois as moradias não são vendidas. Com isso, eventuais participações da ini-
ciativa privada na produção dessas moradias, como, por exemplo, na etapa de incorporação,
seriam inviabilizadas. A sabida influência dos principais promotores imobiliários privados
sobre a gestão pública e a impossibilidade desses agentes privados lucrarem sobre políticas
engendradas a partir do aluguel, sugerem um grande desafio para implementá‑las.
A experiência da Vila dos Idosos chama a atenção de acadêmicos de diversas áreas,
interesse talvez relacionado com a abrangência de suas pretensões2. À época da execução
do projeto, a locação social também se submetia a diretrizes estabelecidas na Política
Municipal de Habitação, como a diversificação de programas e projetos condizentes com
diferentes realidades socioeconômicas e a reabilitação do centro, ocupando‑o com mo-
radias de interesse social. Essas pretensões certamente facilitaram a inclusão do público
em questão, composto exclusivamente por idosos pobres. No mínimo em suas intenções
mais legítimas, esses pressupostos aproximam a moradia produzida de outras pretensões
esperadas do Poder Público, como a justiça social. Se esses moradores estivessem apenas
submetidos a regras estabelecidas pelo mercado formal, que incluem, quase sempre, vul-

FIGURA 1 — Vila dos Idosos, produzida entre 2003 e 2007.


Fonte: Fotografia de Felipe Anitelli (2011).

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tosos capitais públicos, é improvável que tivessem acesso à moradia adequada. A maioria
deles não tem disponibilidade financeira para contribuir com os rendimentos normalmen-
te requisitados nessas operações imobiliárias. Portanto, uma intervenção pública nesses
termos parece determinante nessas circunstâncias e para esse perfil socioeconômico.
Nesse contexto, outro fator relevante é o fato do aluguel ser subsidiado. O valor
cobrado se concentra entre 10% e 15% da renda total da família, abaixo dos 20% a 30%
normalmente recomendados a qualquer pessoa que alugue sua moradia. Como requisito, a
renda máxima dos moradores não pode ultrapassar três salários mínimos. Essa é a base da
pirâmide econômica — entre zero e três salários mínimos — e provavelmente atinge alguns
dos idosos mais pobres da cidade. Mesmo o valor do condomínio não é custeado totalmente
pelos moradores. A manutenção dos elevadores, por exemplo, três no total, não é paga pelos
condôminos. É sabido que os elevadores geram grande impacto no valor do condomínio,
principalmente quando o rateio é realizado entre famílias mais pobres. O fato de serem
idosos, no entanto, torna a presença dos elevadores essencial, mesmo o edifício contendo
apenas quatro pavimentos. A segurança interna, realizada por uma empresa especializada,
com três seguranças, também não é incluída no valor do condomínio. A manutenção de
todo o jardim central, gramado, é outro exemplo de serviço não custeado pelos moradores.
Assim, entrevê‑se outro modelo de negócio, cuja formatação e resultados são específicos:
mesmo após a concretização do empreendimento, o Poder Público ainda é proprietário do
imóvel construído, minimizando, além disso, responsabilidades financeiras que recairiam
exclusivamente sobre os rendimentos das famílias, caso as unidades fossem vendidas.
Portanto, o critério de seleção dos beneficiados, nesse caso, não dependeria de ren-
dimentos mínimos, mas o contrário. Como pressuposto, assume‑se que essas pessoas têm
parcas possibilidades econômicas e precisam de subsídios variados, não apenas para acessar
a moradia adequada, mas em seu cotidiano doméstico. Esse programa de locação de habi-
tações sociais estaria presente em diferentes circunstâncias na cidade de São Paulo: em
conjuntos habitacionais novos, recém construídos, mas também em cortiços, casas ou apar-
tamentos reformados ou reabilitados, principalmente localizados na região central. Apesar
de poucos exemplos, a eventual popularização dessas formas de provisão e gestão das habi-
tações sociais produzidas por órgãos públicos pode contribuir para criar, no imaginário da
população atingida, outras maneiras de compreender a habitação, diferente dos modelos
hegemônicos constituídos historicamente. Esses modelos, que são estabelecidos a partir da
predominância de agentes imobiliários privados, especificamente setores empresariais, po-
dem ser entrevistos ao longo das décadas em Rossetto (2002), Anitelli (2010), entre outros.
Neles, o principal objetivo que viabiliza financeiramente o negócio é a venda da unidade
habitacional, prática habitualmente adotada inclusive por órgãos estatais.
Atualmente, no Brasil, alugar habitações pode ser considerado original na primeira
metade do século XX, no sentido restrito de retomar origens da provisão habitacional pública
brasileira como, por exemplo, a realizada a partir de fundos dos Institutos de Aposentadorias

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e Pensões. Como aponta Bonduki (1998), boa parte dessas moradias eram arrendadas e não
vendidas. Mesmo entre as moradias produzidas pela iniciativa privada, o mercado formal
era, inicialmente, voltado quase todo para a renda, pelo menos em São Paulo, já que as
primeiras experiências com incorporação imobiliária datam de meados do século XX, como
sugere Lemos (1976). Nos dias de hoje, contrariamente, a imensa maioria das habitações
produzidas, públicas ou privadas, são vendidas e o aluguel raramente é adotado.
O fato das unidades habitacionais serem alugadas traz algumas especificidades
para o exemplo estudado. Na Vila dos Idosos, como o empreendimento é exclusivamente
voltado para um público composto por pessoas acima dos 60 anos, quando o morador fa-
lece, a habitação é repassada para outra pessoa. Mesmo que existam outros moradores no
apartamento, eventualmente familiares ou agregados, eles seriam, em princípio, obriga-
dos a se mudar. Isso sempre ocorre quando nenhum dos outros moradores remanescentes
tem a idade mínima estabelecida.
Além do Programa de Locação Social, esse conjunto habitacional se insere em
outra iniciativa estatal: um programa da administração local com o sugestivo nome “Morar
no Centro”. A partir da segunda metade do século XX, principalmente após o início das
atividades do Banco Nacional de Habitação em 1964 e durante mais de duas décadas,
a produção pública de habitações com interesse social foi grandemente centralizada na
esfera federal, em função dos interesses deste banco. Boa parte dessa produção, com ou
sem intermédio de empresas privadas, como construtoras ou incorporadoras, tinha certas
características: grandes conjuntos habitacionais, com diversas torres ou blocos, com cen-
tenas ou milhares de apartamentos, implantados na periferia de metrópoles brasileiras,
distantes de centralidades já consolidadas e longe de instituições públicas, equipamentos
urbanos, concentração e variedade de postos de trabalho, entre outros. Esse fato é facil-
mente confirmado, pois são raras as habitações produzidas, nesse contexto e para esse
público, localizadas em bairros mais próximos do centro.
João Cantero, que entre 1990 e 2010 foi coordenador de projetos da COHAB‑SP, e
Khaled Ghoubar, professor da Universidade de São Paulo, corroborando questões pontua-
das no parágrafo anterior, afirmam que habitações de baixa renda no Brasil e, notadamente
em São Paulo, caracterizam‑se por uma produção em grande escala, em locais periféricos
da área urbanizada, constituindo‑se “meras reproduções empobrecidas da produção do
mercado imobiliário” (CANTERO & GHOUBAR, 2010, p.2). O conjunto habitacional
da Figura 2 é paradigmático desse local e escala mencionados.
Como contraponto, os autores colocam que o formato da Vila dos Idosos alterou dois
paradigmas históricos: (1) Optou por um conjunto comparativamente de pequeno porte,
nesse caso, implantado em malha urbana já consolidada, em bairro praticamente vizinho
ao centro da cidade; (2) Reforçando algo já apontado neste trabalho, adotou a modalidade
de arrendamento ao invés de venda da unidade através de financiamento. Milhares de
conjuntos habitacionais construídos em periferias metropolitanas nas últimas décadas

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ilustram o quadro do qual, segundo


os arquitetos citados, a concepção
da Vila dos Idosos pretensamente
se distinguiria.
São muitos os exemplos de
conjuntos que até hoje marcam a
paisagem das periferias das grandes
cidades brasileiras. Em São Paulo,
a Cidade Tiradentes talvez seja um
dos principais paradigmas desse
modelo que deveria ser superado:
localizados no extremo leste da ci-
dade, milhares de populares ainda
têm grandes dificuldades de loco- FIGURA 2 — Cidade Tiradentes, extremo leste de São Paulo. Modelo de ocupação periférica.
Fonte: Fotografia de Felipe Anitelli (2011).
moção e acesso a outros territórios,
moradores de um conjunto que vem
se consolidando há cerca de três décadas e que nunca previu adequadamente demandas
cotidianas básicas relacionadas à educação, saúde, entre outros.
Portanto, é fundamental que parte da política pública sobre provisão de habitação
para famílias mais pobres altere os parâmetros normalmente adotados para localizar os
conjuntos construídos, pois a distância relativa que terão sobre territórios e atividades
situados em outras regiões da cidade influenciará diretamente a qualidade de vida e o
cotidiano doméstico dos moradores. Em outras palavras, a localização dessas moradias
estaria relacionada com a sustentabilidade da política pública e a capacidade que teria
de facilitar ou prejudicar o pleno acesso aos benefícios da aglomeração urbana. O próprio
Vigliecca indica que a concepção da Vila dos Idosos estaria concatenada com essas ques-
tões. Em entrevista à revista Arquitetura e Urbanismo, afirmou que muito da violência
de hoje “resulta da criação desses modelos de habitação popular implantados de maneira
segregada do resto da cidade. Lamentavelmente, ainda hoje, a Companhia de Desenvol-
vimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU) insiste neste modelo”
(FIGUEROLA, 2005). Também aponta contrapontos:

Passar o trator e implantar centenas de edifícios habitacionais padronizados é mais


fácil, economiza o tempo das construtoras e arquitetos, além de dar mais dinheiro.
Mas, quando se faz isso, rompem‑se laços sociais de 30 ou 40 anos. Ao invés de
serem bairros urbanos, essas áreas tornam‑se depósitos de prédios e de pessoas.
Nosso trabalho consiste em implantar ações pontuais, não destrutivas, que devol-
vam a auto‑estima a uma área e às pessoas, que se tornam cidadãs de verdade. Esse
é o difícil caminho das pedras que escolhemos (FIGUEROLA, 2005).

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70 VILA DOS IDOSOS | F. A n itelli & M . Tr am on tan o

Construir extensivamente edifícios de apartamentos em regiões periféricas com


a justificativa de reduzir o cronograma de obra e ampliar os rendimentos, além de adotar
projetos arquitetônicos padronizados, “depósitos de prédios e de pessoas”, como aponta
Vigliecca, é uma situação verificável em metrópoles localizadas em todas as regiões brasi-
leiras nos dias de hoje (ANITELLI, 2015). Paradoxalmente, a imensa maioria dessas uni-
dades habitacionais foi financiada por fundos estatais, como os vinculados ao programa
MCMV. Enquanto determinados gestores públicos, como os que propuseram a Vila dos
Idosos, raramente e em períodos alternados propõem soluções cujas justificativas tentam
minimizar esses problemas, outros gestores públicos, contraditoriamente, os ampliam a
partir de outros modelos de produção.
Nesse contexto, o Poder Público precisa buscar coerência em suas ações. Este,
na economia brasileira, tem capacidade inigualável de movimentar vultosas somas
para investimentos no setor imobiliário, capital evidentemente insuficiente diante do
gigantesco deficit habitacional, mas que produziu, direta ou indiretamente, milhões
de unidades habitacionais nos últimos anos. Para que se efetivem reformas urbanas
de fato progressistas, compatibilizando interesses mercantis, eventualmente privados,
com demandas urgentes da população mais pobre, como a fundamental necessidade
de morar em centralidades consolidadas, é preciso que as diversas administrações,
instituições e instâncias governamentais, democraticamente, alinhem suas ações e
interesses, compatibilizando os programas existentes. Essas contradições, que quase
sempre envolvem um protagonismo desigual de certos agentes privados sobre a gestão
pública, poderiam ser explicadas, de forma mais abrangente, a partir da hegemonia
de interesses econômicos no ambiente neoliberal. A problemática colocada nesses
termos, que tocam tangencialmente os interesses do presente trabalho, podem ser
entrevistas em diversos autores, como Harvey (1996), Chomsky (2002) e Bauman
(2013). Constata‑se que a compreensão da provisão de habitação na cultura capita-
lista, mesmo que sendo pública, demanda entender também o ambiente neoliberal
levantado por esses e tantos outros trabalhos.
Objetivamente, no presente trabalho, considera‑se que a Vila dos Idosos pro-
põe alternativas positivas sobre a inserção urbana e a localização do empreendimento.
Situa‑se no bairro do Pari (Figura 3), na Avenida Carlos de Campos, nº 840, entre o
centro da cidade e a marginal do Rio Tietê. Além da proximidade, existem várias opções
de transporte coletivo nas imediações, bem como assistências básicas como postos
de saúde, convenientes para os moradores do conjunto. Seria desnecessário listar a
quantidade e a variedade de serviços, muitos dos quais gratuitos, disponíveis na região
central, vinculados à cultura, ao lazer, entre outros. A proposta inicial previa que os
moradores do Conjunto fossem provenientes do Pari. Posteriormente, por solicitações
de demandas sociais diversas, também foram incluídos moradores de outras regiões:
do centro, de prédios construídos em décadas atrás, ociosos, sem cumprir sua função

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FIGURA 3 — Trecho do bairro do Pari, região central de São Paulo, com destaque para a Vila dos Idosos.
Fonte: Google Maps. Disponível em: <www.maps.google.com.br>. Acesso em: 24 ago. 2015.

social nos termos da legislação brasileira, que foram ocupados por moradores sem‑teto;
de edifícios demolidos ou em processo de demolição, como o São Vito e o Mercúrio, na
região do Mercado Municipal; de áreas de risco ou insalubres, como favelas e cortiços;
e de listas de espera da COHAB.
Atualmente, a lista de famílias inscritas com expectativa de morar na Vila dos Ido-
sos chega a 5 mil, mais de 30 vezes a quantidade de unidades habitacionais disponíveis.
Essa informação, ao mesmo tempo em que denuncia parte do deficit local por moradias,
indica o grande interesse de idosos pobres em morar na região central da cidade. Por ou-
tro lado, esse número deveria constranger gestores públicos competentes para ampliar
ações do gênero e construir mais conjuntos habitacionais com essas características.
Como exposto, no mínimo mais 30 empreendimentos do mesmo porte seriam neces-
sários para atender apenas aos inscritos. A região central ainda traz outra possibilidade
de intervenção: a reabilitação de edifícios ociosos, que não cumprem sua função social
como presa a legislação, muitos dos quais são atualmente ocupados por movimentos
populares que lutam por moradia. Há menos de um ano, a própria Secretaria Municipal
de Habitação contabilizou 39 edifícios ociosos, alguns dos quais, segundo o discurso da
atual administração, seriam convertidos em habitação de interesse social3.
Portanto, ações isoladas como a Vila dos Idosos mostram de maneira inequívoca o
enorme desafio existente. Uma provocação deste artigo é questionar quão preparados esta-
riam os órgãos públicos e os autores do projeto para formatar as resultantes arquitetônicas
desses conjuntos habitacionais, situados em terrenos relativamente pequenos e em frag-
mentos urbanos já consolidados. Essa dúvida decorre das soluções historicamente adotadas
nesses projetos que, quase sempre, desconsideram essas questões, por mais óbvias e básicas
que sejam. Uma constatação é de que, nessas condições, já não seria mais possível aplicar

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indiscriminadamente os projetos padronizados que constituem conjuntos habitacionais em


regiões periféricas precariamente urbanizadas. O direito ao centro da cidade, principalmen-
te o direito de pobres morarem na região central, parece demandar não apenas soluções que
renovem o repertório projetual existente, mas também uma mudança substancial no proces-
so de desenvolvimento e criação de projetos e na participação do profissional arquiteto nos
mesmos, já que os parâmetros são bastante distintos dos usuais. Outra conclusão inevitável
é de que os rendimentos econômicos, muitas vezes esperados, precisariam ser revistos, pois,
nesse caso, trata‑se claramente de outro modelo de negócio, cujos objetivos puramente mer-
cantis não são prioritários. Por isso, o desafio apontado não se restringe apenas à quantidade
demandada, mas também à qualidade resultante e ao modelo de produção adotado.

PRETÉRITO PERFEITO: QUANDO O PROJETO É MAIOR QUE A OBRA


Vila dos Idosos previu a construção de 145 unidades habitacionais distribuídas em quatro
pavimentos. As unidades construídas estão divididas entre quitinetes (29m²) e aparta-
mentos com um dormitório (43m²). A metragem relativamente pequena do apartamento
e o programa habitacional simplificado talvez correspondam às expectativas dos idosos, já
que, normalmente, compõem grupos domésticos menores. Inicialmente, o projeto previa
mais opções de plantas, inclusive com possibilidades de futuros agenciamentos espaciais.
As paredes de divisa entre os cômodos, por exemplo, seriam de material leve, facilitando
eventuais rearranjos de acordo com demandas dos moradores. Talarico (2010) apresenta
algumas dessas peças gráficas em seu trabalho. Essa seria outra dimensão do projeto,
pois, no mínimo em suas intenções, sugere outros materiais e sistema construtivo, outras
possibilidades de uso e manutenções não usualmente ocorridas em conjuntos habitacio-
nais do gênero, que costumam, por sua vez, ter uso indiscriminado de tijolos cerâmicos e
blocos de concreto para fechamento dos ambientes, materiais que inviabilizam rearranjos
futuros menos trabalhosos. Essas questões insinuam a incompatibilidade do que foi ide-
almente proposto com as pretensões de projetos padronizados normalmente utilizados.
Um relatório realizado pela Prefeitura Municipal de São Paulo (2008) evidenciou
certa diversidade de perfis familiares na Vila dos Idosos, o que pode indicar demandas por
espaços ou ambientes específicos em cada família, além de mostrar, igualmente, a perti-
nência de propostas de flexibilização. Infelizmente, a decisão de alterar a configuração es-
pacial das plantas não foi concretizada por uma decisão unilateral da COHAB, à revelia da
opinião do arquiteto. Na prática, as paredes de fechamento escolhidas foram de blocos de
concreto. O presente trabalho infere que a expertise da Companhia em utilizar largamente
essa mesma solução em muitos outros empreendimentos pode ter influenciado sua deci-
são em não aceitar materiais alternativos. Ela teria controle pleno dos blocos de concreto
usados nessa mesma situação: custos, rendimento, fornecedores, aplicações, técnicas e
mão‑de‑obra adequada, resultados, entre outros. Isso pode ter influenciado a postura mais
conservadora no sentido restrito de conservar e repetir o que já havia sido testado.

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FIGURA 4 — Corredor de acesso aos apartamentos, Vila dos Idosos.


Fonte: Fotografia de Felipe Anitelli (2011).

Os apartamentos foram implantados linearmente, com as portas de entrada


dispostas para um longo corredor, boa parte deles com vista para o pátio central (Figu-
ra 4). Apesar do tamanho diminuto do corredor, sua abertura em um dos lados, a inte-
gração com a paisagem ao redor e a previsão de mobiliários, como bancos na entrada
das unidades, sugerem permanências e pontos de encontro, como, de fato, foi possível
observar4. O próprio recuo da região onde se localiza a porta de entrada, justamente o
local em que os bancos foram instalados, contribui para constituir possibilidades de
usos variados do corredor.
Ainda sobre o corredor, o fechamento do perímetro externo não seria realizado com
o guarda‑corpo metálico, mas com elementos cerâmicos vazados, que teriam a altura do
pé‑direito do corredor. Além de outros resultados estéticos e de alterações na própria volu-
metria da edificação, elas seriam capazes de proteger as paredes dos apartamentos contra
o excesso de insolação, criando, inclusive, outras privacidades aos seus usuários. Essa
proteção se confirma na prática, pois o sol poente estaria defronte a diversos apartamentos
dispostos para o pátio central. Esse é um expediente que, senão inventado, grandemente
aperfeiçoado durante décadas em solo brasileiro, utilizado em edifícios de apartamentos
paradigmáticos, como os projetados por Lúcio Costa ao redor do Parque Guinle, bairro de
Laranjeiras, Rio de Janeiro. Mais uma vez, as intenções projetuais foram frustradas pelas
imposições da COHAB, que preferiu não adotar os elementos sugeridos. De todo modo,
o elemento metálico vazado de meia‑altura certamente ampliou a visibilidade do gramado
à frente e gerou outras integrações com o entorno.

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Em cada pavimento, no interstício dos blocos que, por sua vez, são dispostos per-
pendicularmente, formando um L, existe uma sala de convívio, lugar em que os idosos po-
dem descansar, conversar e entreter‑se com atividades variadas nesse ambiente coletivo.
Contudo, na prática a sala nem sempre está aberta, disponível e adequadamente equipa-
da. São espaços de convivência que constituem zonas intermediárias, vizinhas às caixas de
escadas e aos elevadores, criadas entre a esfera particular do apartamento e do ambiente
público no térreo. Além disso, ampliando as possibilidades de contato entre os moradores,
também foram instalados, no mesmo pavimento, diversos equipamentos de uso coletivo,
tanto nas áreas internas, nos pilotis do edifício, quanto nas externas. Por exemplo, existe
um salão de festas, conjugado com uma cozinha e outro cômodo de serviços, disponível
para uso dos moradores. Nesse contexto, de acordo com a gestão do condomínio, já que o
edifício pertence ao Poder Público, a COHAB ajuda a organizar encontros, reuniões, fes-
tas de aniversário e outras comemorações. Essa constante participação do agente público,
estende‑se a outras questões e envolve assistentes sociais, psicólogos, médicos e acompa-
nhantes, aproximando o cotidiano do Conjunto da rotina de uma casa de repouso ou de
um asilo, já que os moradores seriam amparados rotineiramente por esses profissionais.
Sobre esse modelo de gestão, constatou‑se que a introdução diária de acompanhamen-
to técnico, logístico, psicológico, médico etc. para solicitações domésticas básicas torna‑se
viável pelo fato dos apartamentos serem acessados através de arrendamento e não de compra.
Assim, as tarefas do condomínio são compartilhadas com o Poder Público, que contribui para
manter a integridade física da edificação, mas também ajuda nas demandas diárias dos idosos.
Traduzindo em termos mercadológicos, não seria apenas a unidade habitacional que seria ofe-
recida como produto, mas a administração edilícia do condomínio e a assistência pessoal aos
moradores. Essa situação é praticamente inexistente em outros conjuntos habitacionais públi-
cos produzidos em moldes mais tradicionais, cujo produto oferecido é apenas o apartamento.
Na prática, os idosos também são assistidos por profissionais técnicos da área da cons-
trução, os quais trabalham para a própria COHAB ou são terceirizados, como pedreiros,
encanadores, pintores e eletricistas, contratados especificamente para atender demandas
das unidades5. As reformas emergenciais, como vazamentos, troca de chuveiros e manuten-
ções na rede elétrica, são resolvidas por esses técnicos, que vão ao Conjunto periodicamen-
te. Sobre a assistência médica, o atendimento básico ocorre nas dependências do próprio
Conjunto; já outras ocorrências ou consultas/exames periódicos são realizados em postos de
saúde localizados nas proximidades, mas sempre com a presença de acompanhantes, muitos
dos quais voluntários. Eles assistem os idosos em demandas variadas, como compras em
mercados, pagamentos de contas em agências bancárias, visitas a parentes em outras regiões
da cidade, além do acompanhamento aos hospitais e postos de saúde. A assistência médica,
especificamente, é realizada a partir de diversas parcerias, como, por exemplo, com a Unida-
de Básica de Saúde do Pari, através do Programa Saúde da Família, e com o Instituto de La-
boridade, por meio de oficinas de consciência corporal (CANTERO & GHOUBAR, 2010).

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Figura 5 — Horta Comunitária, Vila dos Idosos.


Fonte: Fotografia de Felipe Anitelli (2011).

Complementarmente, nas áreas descobertas, também foram projetados ambien-


tes com qualidades paisagísticas e que permitem interações entre os moradores. No pátio
central, por exemplo, existe uma grande área gramada, com algumas árvores e um espelho
d’água. Todos que chegam pela entrada principal do Conjunto transitam por esse espaço.
Além da vegetação, na fachada posterior que divisa com terrenos vizinhos, há um jardim
linear ocupando toda a extensão do edifício onde foi prevista a construção de uma horta
comunitária (Figura 5). Sobre a horta, para o auxílio do plantio das hortaliças, a COHAB
disponibiliza um técnico agrícola, que orienta os idosos em atividades como o manejo da
terra, o cultivo dos grãos, o eventual uso de adubos, a colheita dos vegetais, legumes ou
frutas, o uso de sementes etc. Atualmente, todo o espaço destinado para a horta está ocu-
pado com uma grande variedade de plantas. Supõe‑se que esses alimentos contribuam na
dieta e na economia dos idosos, além de significar importante atividade laboral e mental,
que demanda trabalho comunitário.
Dessa forma, sempre que um conjunto habitacional for implantado dessa maneira
não seria mais apenas um lugar de consumo e acesso à moradia, mas também de produção,
pois parte dos alimentos utilizados em refeições diárias poderiam ser cultivados e produ-
zidos dentro do próprio condomínio. Pretensamente, a própria definição de moradia e o
respectivo programa habitacional, nesse caso, poderiam ser ampliados. O curioso é que
o espaço da horta, para funcionar plenamente de acordo com o foi previsto, necessita da
interferência direta e constante dos usuários, que redefinem, sempre que conveniente,
quais as plantas que serão incluídas no cultivo.

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A implantação do edifício
no terreno e a relação espacial com
o entorno também suscitam ques-
tões sobre a integração socioespa-
cial com a vizinhança (Figura 6).
Um exame desatento da implanta-
ção do conjunto pode concluir que
o edifício habitacional e o prédio
de uma biblioteca municipal estão
inseridos na mesma área verde.
FIGURA 6 — Implantação da Vila dos Idosos, que ocupa parte do perímetro de uma área verde
Nessas circunstâncias, moradores
pré‑existente. Na região central do gramado, a biblioteca pública Adelpha Figueiredo. do conjunto e usuários da biblio-
Fonte: Google Maps. Disponível em: <www.maps.google.com.br>. Acesso em: 24 ago. 2015. teca, além de transeuntes, teriam
a opção de transpor livremente ou
permanecer na área comum do conjunto‑biblioteca. A forma geral da planta do edifício da
Vila dos Idosos, em L, sugere uma ocupação perimetral do terreno. O Conjunto contorna
as instalações da biblioteca pública, criando uma área comum, vazia e sem edificações,
um pátio entre os dois edifícios. No trecho entre a biblioteca e o conjunto, na região do
espelho d’água, haveria um ambiente pretensamente mais intimista, aberto e de livre
acesso, porém visualmente protegido, já que boa parte desse ambiente está fechado pelas
fachadas dos dois edifícios.
Infere‑se que as intenções do autor do projeto se estenderiam para qualificar a
vizinhança, ou seja, excederiam o limite do terreno do conjunto habitacional, buscan-
do formas sutis de integrar territorialmente a edificação às imediações. Alguns trechos
do pavimento térreo, por exemplo, são ocupados com pilotis, sendo que um deles está
alinhado a uma rua da vizinhança chamada Siqueira Campos, perpendicular ao corpo
do edifício. Essa rua termina em uma das entradas do conjunto habitacional, como é
possível notar na imagem anterior, exatamente no trecho aberto com pilotis. Ao tran-
sitar pela rua e adentrar a Vila dos Idosos, caminha‑se no térreo pelos pilotis e, poste-
riormente, acessa‑se o pátio central gramado. A partir dali, seria possível dirigir‑se aos
apartamentos, seguir em frente até as instalações da biblioteca ou transitar em direção
a outros trechos do bairro. Nenhuma dessas soluções foi efetivamente executada pela
COHAB, pois cercou‑se com grades todo o perímetro do terreno (Figura 7). Hoje,
por causa da grade, a Vila dos Idosos está isolada da rua e da biblioteca. A permeabili-
dade espacial, portanto, não se concretizou. Além de grades e muros, construíram‑se
três entradas, sendo que uma delas se tornou a portaria principal para os moradores.
Existem três profissionais de uma empresa especializada em segurança condominial
24 horas por dia, o que revela que a integração depende, atualmente, da autorização
formal dos guardas.

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Pretende‑se inferir algumas questões a partir dessas duas variáveis: as intenções


de projeto e as interferências da COHAB. Como já mencionado aqui, uma das importan-
tes características da política pública que originou a Vila dos Idosos é o fato do conjunto
habitacional ser implantado em centralidade já consolidada. Por um lado, a integração
com a biblioteca vizinha, os alinhamentos dos pilotis com ruas ao redor e a ausência de
fechamentos externos são elementos que denotam intenções do autor em somar a edifi-
cação por ele projetada ao meio urbano já existente, cuja paisagem do entorno se tornou
um insumo para qualificar o que foi proposto. Por outro lado, considerando as milhares de
unidades habitacionais já construídas por esse órgão público em periferias metropolita-
nas, distantes de centralidades consolidadas e relativamente desconexas territorialmente,
a implantação de um conjunto habitacional poderia ocorrer a partir de outros parâmetros
já que, normalmente, não há as pré‑existências ambientais mencionadas.
Grades ou muros são as barreiras arquitetônicas normalmente adotadas nos inters-
tícios do terreno desses conjuntos. Sem negligenciar os riscos de violência que os idosos
poderiam estar expostos, ao fechar‑se o perímetro da Vila dos Idosos inutiliza‑se uma de
suas principais qualidades: sua sensibilidade em somar‑se ao entorno já estabelecido,
integrando‑se a ele e respeitando os insumos e os limites ambientais disponíveis, cons-
truídos historicamente. Uma óbvia constatação é que os parâmetros que determinam as
formas de inserção da edificação no terreno deveriam alterar‑se quando a COHAB deci-
disse construir conjuntos habitacionais em regiões centrais.

Figura 7 — A grade que separa o conjunto habitacional da biblioteca, além do gramado que foi separado por essa
barreira arquitetônica.
Fonte: Fotografia de Felipe Anitelli (2011).

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CONCLUSÃO
As conclusões deste trabalho estão relacionadas às qualidades encontradas na Vila
dos Idosos que, normalmente, não são verificadas em outros conjuntos habitacionais
realizados a partir de políticas públicas. Portanto, essas constatações ilustram as ex-
ceções encontradas. Essas qualidades são relacionáveis tanto com as características
arquitetônicas do edifício, adotadas ou não pela COHAB, quanto com a formatação
da política habitacional e da gestão do condomínio. Elas podem ser sintetizadas nos
seguintes pontos:

n As unidades habitacionais são alugadas e não vendidas. O modelo de produção


se altera, já que o bem imóvel pertence ao órgão público mesmo após a construção da
edificação e a ocupação dos moradores. Isso se distingue da imensa maioria das habi-
tações de interesse social promovidas a partir de ação pública na segunda metade do
século XX no Brasil, já que eram, quase sempre, construídas e posteriormente vendidas.
Assim, o órgão público que arrenda as moradias tem maior participação no posterior
cotidiano dos moradores.
n Parte do aluguel e custos gerais com o condomínio é subsidiado pela COHAB.
O acesso à moradia parece ser estabelecido de forma mais ampla, pois não contempla
simplesmente o acesso ao bem imóvel construído. Considerando a faixa de renda normal-
mente atendida, zero a três salários mínimos, além da evidente precariedade financeira
decorrente desses baixos rendimentos, faz‑se necessário que o Poder Público, muitas
vezes a fundo perdido, complete com recursos próprios gastos existentes no condomínio.
n A Companhia Metropolitana de Habitação participa do cotidiano doméstico
dos moradores para além da assistência social e médica prestada por agentes da compa-
nhia. Mesmo que terceirize parte dos serviços prestados, o quadro técnico e os recursos
humanos se ampliam, pois envolvem médicos, psicólogos, pedreiros, jardineiros, entre
outros. Nesse contexto, os próprios objetivos parecem ser outros, já que a participação
do órgão não termina quando a moradia é construída, mas mantém‑se enquanto o imó-
vel estiver em uso.
n A Vila dos Idosos tem escala pequena, quando comparada aos conjuntos habi-
tacionais normalmente construídos nas periferias metropolitanas, em glebas extensas.
Construir diversos prédios em um mesmo empreendimento imobiliário é uma ação jus-
tificada por questões produtivas e econômicas, pois, a partir de um projeto padronizado,
o custo unitário seria pretensamente menor e a quantidade de unidades habitacionais,
maior. A solução arquitetônica e a respectiva escala da Vila dos Idosos, portanto, trazem
outras implicações sobre o modelo de produção.
n A Vila dos Idosos localiza‑se em bairro vizinho ao centro da cidade. A localização
dos conjuntos habitacionais quase sempre é definida por regiões periféricas, distantes de
centralidades já consolidadas, longe, portanto, dos maiores benefícios que o aglomerado

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urbano pode oferecer, como variedade e concentração de postos de trabalho, opções de


cultura, educação e saúde, proximidade de serviços públicos ou de equipamentos urba-
nos, entre outros.

Os itens listados também podem ser considerados como insumos mínimos que
contribuiriam para balizar políticas públicas habitacionais cujo objetivo seja promover
edifícios de apartamentos em regiões centrais, empreendimentos em que o projeto ar-
quitetônico seja valorizado e as referências padronizadas sejam superadas, moradias que
busquem, a partir de seu modelo de produção, justiça social e não apenas a constituição
de suas características a partir de interesses econômicos.

NOTAS
1. Esse ambiente político‑institucional e a urbanização brasileira podem ser melhor entrevistos nos
argumentos de Costa (1972), presidente do Banco Nacional de Habitação à época.

2. Publicações sobre a Vila dos Idosos confirmam sua relevância no cenário local. Outros trabalhos
contribuíram para visualizar, aqui, os principais argumentos, como Bedolini (2014).

3. Disponível em: <http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/habitacao/noticias/?p


=184427>. Acesso em: 25 ago. 2015.

4. Em uma visita realizada pelo autor em 17 de outubro de 2011.

5. Segundo o relato de uma assistente social, vinculada à prefeitura e à COHAB e que presta servi-
ços na Vila dos Idosos e em outros conjuntos habitacionais na cidade.

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Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) ‑ Instituto de Arquitetura e Urbanismo, Uni-
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BEDOLINI, A.C.B. A Vila dos Idosos de Héctor Vigliecca: uma reflexão sobre o ‘fazer arquitetônico’.
In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA DE PÓS‑GRADUAÇÃO EM ARQUI-
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Disponível em: <http://www.anparq.org.br/dvd‑enanparq‑3/htm/Artigos/SC/ORAL/SC‑HDC‑022_
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BONDUKI, N. Origens da habitação social no Brasil. São Paulo: Estação Liberdade, 1998.

CANTERO, J.; GHOUBAR, K. A habitação para locação social em São Paulo (Brasil): o caso do conjun-
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CHOMSKY, N. O lucro ou as pessoas? neoliberalismo e ordem global. São Paulo: Bretrand Brasil, 2002.

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FIGUEROLA, V. Caminho das pedras. Arquitetura e Urbanismo, n.132, 2005. Disponível em: <http://
www.revistaau.com.br/arquitetura‑urbanismo/132/imprime22702.asp>. Acesso em: 5 out. 2011.

HARVEY, D. Do gerenciamento ao empresariamento: a transformação da administração pública no


capitalismo tardio. Espaço & Debates, n.39, p.48‑64, 1996.

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Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) ‑ Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universi-
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TALARICO, C. Habitação de interesse social no centro de São Paulo: legislação e estudo de caso
sobre a Vila dos Idosos, do arquiteto Héctor Vigliecca. In: CONGRESSO INTERNO DE INICIAÇÃO
CIENTÍFICA DA UNICAMP, 18., 2010, Campinas. Anais… Campinas: Unicamp. Disponível em:
<http://www.prp.unicamp.br/pibic/congressos/xviiicongresso/paineis/074801.pdf>. Acesso em:
10 out. 2011.

Recebido em FELIPE ANITELLI | Universidade de São Paulo | Faculdade de Arquitetura e Urbanismo | Labora-
21/9/2015, tório de Habitação e Assentamentos Humanos | R. do Lago, 876, Cidade Universitária, Butantã,
reapresentado 05508‑080, São Paulo, SP, Brasil | Correspondência de/Correspondence to: F. anitelli | E‑mail:
em 10/5/2016 <felipeanitelli@yahoo.com.br>.
e aprovado em MARCELO TRAMONTANO | Universidade de São Paulo | Instituto de Arquitetura e Urbanismo | Núcleo
1/9/2016. de Estudos de Habitares Interativos | São Carlos, SP, Brasil.

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RESÍDUOS SÓLIDOS URBANOS, METRÓPOLE E PERIFERIA:
A SEGREGAÇÃO SOCIOESPACIAL DOS CATADORES DE
MATERIAL RECICLÁVEL NA COMUNIDADE FREI DAMIÃO,
EM PALHOÇA, SANTA CATARINA1
URBAN SOLID WASTE, METROPOLIS AND PERIPHERY: SOCIO-SPATIAL SEGREGATION
OF WASTE PICKERS IN THE COMMUNITY FREI DAMIÃO IN PALHOÇA, SANTA CATARINA |
RESIDUOS SÓLIDOS URBANOS, METRÓPOLI Y PERIFERIA: LA SEGREGACIÓN
SOCIO-ESPACIAL DE LOS RECOLECTORES DE MATERIAL RECICLABLE EN LA
COMUNIDAD FREI DAMIÃO EN PALHOÇA/ ESTADO DE SANTA CATARINA

ARTHUR EDUARDO BECKER LINS

RESUMO
O processo de industrialização e urbanização, aliado ao crescimento econômico,
tecnológico e à cultura de consumo de massa, amplia a geração de resíduos na socie-
dade contemporânea, em sua maioria sem destinação final adequada. Esta pesquisa
investiga a produção de resíduos sólidos urbanos vinculada à produção do espaço
urbano, sobrepondo os dados levantados à ocupação do território. Organizado em
duas partes, o trabalho tem por objetivo analisar as relações que se estabelecem
entre a produção de resíduos sólidos, o processo de urbanização e a segregação
socioespacial. Para tanto, a primeira parte contextualiza a realidade da área conur-
bada de Florianópolis, Santa Catarina e a destinação final inadequada dos resíduos,
alertando para impactos de cunho ambiental, social e espacial em escala regional.
Tomando o exemplo da comunidade Frei Damião, a segunda parte se aproxima
da escala local e analisa as áreas de acúmulo e manejo inadequado de resíduos,
onde uma população marginalizada reside em condições subumanas, muitas vezes
dependente desse material para a sua sobrevivência. Os resultados indicam que as
áreas periféricas metropolitanas são destino comum para o descarte de resíduos,
alertando para a necessidade de estratégias espaciais mais justas e equilibradas.
PALAVRAS‑CHAVE: Espaço urbano. Resíduos sólidos. Segregação socioespacial.

ABSTRACT
The process of industrialization and urbanization coupled with economic growth, tech-
nology and mass consumer culture, increases the solid waste generation in contempo-
rary society, most of it without an adequate final destination. The research investigates
the production of urban solid waste linked to the production of urban space, superim-

O cul um ens. | Campi nas | 14(1) | 81-98 | Janei ro-Abri l 2017


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82 R E S Í D U O S S Ó L I D O S URBA NOS , M E T RÓP OLE E P E RIF ERIA | A.E.B. Li ns

posing the data collected to the occupation of the territory. Organized in two parts, the
objective of this work is to analyze the relationships established among solid waste pro-
duction, the urbanization process and socio-spatial segregation. To do so, the first part
contextualizes the reality of the conurbated area of Florianópolis and the inadequate
final destination of the waste, alerting to environmental, social and spatial impacts on
a regional scale. Through the example of the Frei Damião community, the second part
approaches the local scale and analyzes the areas of accumulation and inadequate waste
management, where a marginalized population resides in subhuman conditions and is
often dependent on this material for its survival. The results indicate that metropolitan
peripheral areas are a common destination for waste disposal, prompting the need for
fairer and more balanced spatial strategies.
KEYWORDS: Urban space. Solid waste. Socio-spatial segregation.

RESUMEN
El proceso de industrialización y urbanización, junto con el crecimiento económico,
tecnológico y la cultura de consumo masivo, intensifica la generación de residuos en la
sociedad contemporánea, en su mayoría sin destino final adecuado. Este estudio inves-
tiga la producción de residuos sólidos urbanos, vinculada a la producción del espacio
urbano, superponiendo los datos recogidos a la ocupación del territorio. Organizado en
dos partes, el trabajo tiene como objetivo analizar las relaciones que se establecen entre
la producción de residuos sólidos, el proceso de urbanización y la segregación socio-
espacial. Para ello, la primera parte contextualiza la realidad de la zona conurbada
de Florianópolis y la disposición inadecuada de los residuos, llamando la atención
hacia los impactos ambientales, sociales y espaciales a escala regional. Tomando como
ejemplo la comunidad Frei Damião, la segunda parte se acerca al nivel local y analiza
las áreas de acumulación y gestión inadecuada de residuos, donde una población mar-
ginada vive en condiciones infrahumanas, que depende a menudo de este material para
su supervivencia. Los resultados indican que las áreas periféricas metropolitanas son
destino común para la eliminación de residuos, advirtiendo de la necesidad de estrate-
gias espaciales justas y equilibradas.
PALABRAS CLAVE: Espacio urbano. Residuos sólidos. Segregación socio-espacial.

INTRODUÇÃO
A produção de resíduos sólidos transpassa o tempo histórico e acompanha a vocação da hu-
manidade em transformar o meio natural. O fenômeno do lixo está presente na produção do
território ocupado pelo homem desde as mais antigas civilizações, sendo, em muitos casos,
fator determinante para a organização do espaço geográfico. Eigenheer (2009) aponta que
na pré-história os resíduos eram queimados com a ideia de eliminar o mau cheiro e que, en-

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quanto o homem era nômade, os problemas com o lixo não eram tão complexos. É quando a
humanidade passa a se organizar em aldeias e, principalmente, em cidades que o problema
se solidifica. A fixação do homem em determinados lugares indica que:

[...] já em tempos remotos, temos o início de uma dualidade que vai acompanhar o
lixo e os dejetos: o necessário afastamento, e mesmo receio e rejeição, de um lado, e
aceitação por sua utilidade, de outro. São inúmeros os exemplos que indicam como
os dejetos e o lixo orgânico produzidos nas cidades da Antiguidade foram usados na
agricultura (EIGENHEER, 2009, p.17).

Todavia, é a partir da modernidade que a questão ganha proporções em escala glo-


bal. A cidade, em especial no período pós-industrial, desempenha papel fundamental para
o desenvolvimento capitalista: é imprescindível para a reprodução da força de trabalho e
para a acumulação do capital (HARVEY, 1993), com consequências diretas na produção
e na reprodução de seu espaço. Nas formações sociais antecedentes, os resíduos apre-
sentavam alta capacidade de assimilação pelas dinâmicas naturais, já que eram formados
por materiais factíveis de se imiscuírem ao meio natural, contando com as capacidades
diluidoras da natureza a seu favor (WALDMAN, 2010). Porém, com o advento da tecno-
logia e seus novos materiais, bem como com o vertiginoso processo de urbanização, esse
cenário é alterado.
Desde a Revolução Industrial, as cidades espacializam disparidades reveladas por
um desenvolvimento geográfico desequilibrado, no qual a estruturação do espaço urbano
reflete interesses de determinados setores da sociedade, ampliando as desigualdades so-
ciais. O avanço tecnológico, ao longo da história, quebrou paradigmas na luta do homem
pela sobrevivência. Contudo, a capacidade de consumo alcançada causou problemas am-
bientais e socioespaciais, desequilibrando as relações entre população, recursos naturais
e meio ambiente. A transformação desses recursos aponta o lixo como um problema de
ordem pública, que aflige a saúde da população e revela conflitos sociais. Para Fuão et al.
(2006, p.104), o lixo:

[...] associa-se à ordem e à desordem. Portanto, dizemos que isso está no campo
da arquitetura, da cidade, da ordenação das cidades, da ordenação do espaço da
cidade, do espaço punitivo da cidade. [...] O lixo é muito mais que um subproduto
da sociedade atual, [...] ele é o retrato mais fiel da sociedade de consumo, [...] que
prioriza as embalagens em detrimento do conteúdo.

Enquanto a cultura de consumo de massa preza pelo valor simbólico e estético


da embalagem, a velocidade da produção e renovação das prateleiras no comércio exi-
ge, a cada instante, novos locais de despejo que se saturam em progressão geométrica

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por volta de todo o contorno terrestre. Os desafios lançados pela ideologia da globali-
zação resultam em conflitos locais de difícil superação. Bauman (2005, p.13) alerta
que pouco se dispõe de soluções globais para os problemas produzidos localmente
e que, agora, as localidades “[…] se veem em face de procurar soluções locais para
problemas produzidos globalmente”.
No Brasil, esses problemas são evidentes. O rápido processo de urbanização
e a transferência da população do campo para a cidade refletiram na construção de
baixa qualidade dos espaços urbanos, desprovida de infraestrutura e com alto grau de
segregação. Para Villaça (1998), o espaço urbano é produzido e consumido por um
único processo, no qual as áreas periféricas são direcionadas para o atendimento habi-
tacional das camadas populares. Ressalta que a segregação é uma geografia produzida
pela classe dominante, que visa ao controle do espaço na disputa pela localização. A
produção de Resíduos Sólidos Urbanos (RSU), especialmente nas cidades brasilei-
ras, é intrínseca a esse processo e reflete a essência da sociedade moderna, na qual
prevalece o comportamento individual, a alta capacidade de consumo e a segregação
social. O próprio homem é refugo, deslocado para periferias urbanas ou exportado
para nações subdesenvolvidas. Bauman (2005, p.38) afirma que: “[...] removemos os
dejetos da maneira mais radical e efetiva: tornando-os invisíveis, por não olhá-los, e
inimagináveis por não pensarmos neles. Eles só nos preocupam quando as defesas
elementares da rotina se rompem, e as precauções falham”.
O acúmulo de RSU ameaça a cada dia as condições de vida nas cidades, com
elevados custos sociais e ambientais, além de impactos na paisagem. É patente que a
geração de resíduos está diretamente associada às atividades desenvolvidas pelo homem,
tanto no tempo quanto no espaço. Entretanto, pouco se debate sobre a geografia dos RSU
— a relação entre sua produção e o espaço. A disputa pela melhor localização e o valor da
terra urbana definem rumos e estratégias socioespaciais incoerentes, já que usualmente
as administrações públicas se preocupam apenas em afastar os resíduos coletados das
zonas urbanas, dispondo-os muitas vezes em locais inadequados: áreas de proteção ou
preservação ambiental, lugares próximos a cursos d’água, manguezais, encostas etc., im-
plicando graves danos ambientais. A situação se agrava na medida em que muitas áreas
foram ocupadas por catadores que trabalham em situação informal, revelando a má gestão
de resíduos para a população marginalizada da sociedade, que identifica na atividade uma
opção de sobrevivência.
Esses trabalhadores são refugo social assim como os resíduos, cujo destino final
foge aos olhos da maioria da população. Eles convivem diariamente com o estigma que
os afasta de um convívio social justo e equilibrado, denunciando o processo de segre-
gação socioespacial produzido pelas classes dominantes. Enquanto na cidade formal a
produção de resíduos reflete o maior poder aquisitivo da população, na cidade informal,
o resíduo descartado é fonte de renda para inúmeras famílias. Nas áreas periféricas é

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que se espacializa o descaso do poder público com os setores excluídos da população.


“A burguesia, como alegou Engels, tem para os problemas sociais uma única solução —
afastá-los das vistas enquanto culpa precisamente os que têm menos condições de arcar
com o ônus” (HARVEY, 2004, p.185).
Assim como em diferentes regiões brasileiras, na Área Conurbada de Florianópolis
(ACF) os RSU coletados se aproximam dos bolsões de pobreza que abrigam a população
menos favorecida onde já existem problemas de infraestrutura urbana e deficit habita-
cional — locais demasiadamente afastados das áreas centrais. Este trabalho pesquisa a
dinâmica socioespacial dos RSU a partir de estudo de caso da comunidade Frei Damião.
Situada na divisa entre os municípios de Palhoça e São José, no estado de Santa Catarina,
a comunidade passou oficialmente a fazer parte de Palhoça quando os limites entre os
municípios foram alterados no ano 2000. É considerada uma das áreas mais pobres da
Região Metropolitana de Florianópolis (RMF).
É objetivo do trabalho, portanto, analisar as relações que se estabelecem entre a
produção de RSU, o processo de urbanização e a segregação socioespacial. Pretende tecer
considerações acerca da distribuição e localização dos serviços de RSU no território e das
desigualdades sociais relacionadas à produção do espaço urbano e à periferia metropoli-
tana. Para isso, o trabalho investiga e diagnostica a produção de RSU na ACF, sobrepondo
os dados levantados à ocupação do território.
O trabalho é organizado em duas partes. A primeira contextualiza o modelo de
ocupação da ACF, destacando aspectos do sítio, condicionantes socioeconômicos e ca-
racterísticas do espaço intraurbano e do tecido consolidado, bem como ressaltando a
produção de RSU na escala regional. Já a segunda parte se detém ao estudo de caso da
comunidade Frei Damião, em Palhoça, com análise da produção de resíduos na escala
local. As considerações finais discutem a produção desequilibrada de RSU no território
e apontam a necessidade de incluir o processo de urbanização no debate e construção da
gestão de RSU, visando a estabelecer estratégias mais justas e equilibradas na distribuição
dos serviços e que reduzam impactos e conflitos de ordem espacial.

RESÍDUOS SÓLIDOS URBANOS NA ÁREA CONURBADA DE FLORIANÓPOLIS


Dos 22 municípios que compõem a RMF, São José, Palhoça, Biguaçu e Florianópolis
formam um conjunto conurbado consolidado (Figura 1), cuja área intraurbana se estende
entre a ilha e o continente, separada pelas águas das baías norte e sul, e conectada pelas
pontes Pedro Ivo e Colombo Salles no Canal do Estreito.
A Área Conurbada de Florianópolis, polarizada pela capital, soma 826 584 habi-
tantes (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2011). Desse
total, 50,96% residem em Florianópolis, 25,38% em São José, 16,61% em Palhoça, e
7,04% em Biguaçu. Em uma área de 1.588,87m², a densidade demográfica média é de
520,23 hab/km², sendo que 1/3 da população de Florianópolis reside na porção conti-

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FIGURA 1 — Mapa da região metropolitana de Florianópolis, que destaca a Área Conurbada de Florianópolis.
Fonte: Mapa elaborado pelo autor (2015), com base nos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2011).

nental do município. Dos 22 municípios que compõem a RMF, os quatro municípios da


ACF representam 81,66% da população total, e produzem 87,62% de um total de 754,81
Toneladas por Dia (t/dia) de resíduos.
O padrão de ocupação do solo na ACF caracteriza-se pela urbanização dispersa, com
baixas densidades e concentração de emprego nas áreas centrais, configurando um tecido
urbano fragmentado que dificulta a mobilidade urbana e a prestação de serviços à população,
como a gestão de RSU. O movimento pendular entre ilha e continente é diário, já que Floria-
nópolis absorve grande parte da mão de obra — tanto no setor público quanto privado — en-
quanto os outros três municípios se caracterizam principalmente como bairros-dormitórios.
Esse modelo de ocupação desequilibra o valor da terra urbana, medido conforme as distâncias
a serem percorridas e o acesso à infraestrutura. Por consequência, as camadas de menor renda
sofrem com a segregação espacial, instalando-se nas franjas da cidade, em áreas distantes e/
ou com pouco acesso à infraestrutura urbana e serviços. As periferias estão principalmente no
interior dos municípios de Palhoça, São José e Biguaçu, que abrigam a população de menor
renda, ao passo que a concentração das camadas de alta renda se dá na porção insular de Flo-

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rianópolis, principalmente no eixo da


Avenida Beira-Mar Norte e no Norte
da Ilha (Figura 2).
As transformações ocorridas
em um território que se caracteriza
pela exuberância natural e fragili-
dade ecológica foram impulsiona-
das por agentes públicos e privados.
Os investimentos do Estado foram
decisivos nesse processo, deter-
minando a ocupação do território
principalmente no que se refere ao
sistema viário urbano e regional,
evidenciando o processo de pro-
dução intraurbana controlado pela
classe dominante (SUGAI, 2014).
É nesse contexto que se es-
pacializa a produção de RSU, asso-
ciada aos processos de segregação e
distanciamento social, enfatizando a
exploração da pobreza e a cultura do
desperdício. Os resíduos recolhidos
pela coleta regular, na Avenida Beira- FIGURA 2 — Mapa de concentração populacional por extremos de renda.
Fonte: Mapa elaborado pelo autor (2015), com dados retirados do Instituto Brasileiro de
-Mar Norte (Figura 3), por exemplo,
Geografia e Estatística (2011), sobre Mapa Base de Sugai (2014).
correspondem a 1,49kg/hab.dia, ao
passo que em algumas comunidades no maciço
do Morro da Cruz (setores de ocupação informal)
correspondem a 0,60 kg/hab.dia (COMPANHIA
DE MELHORAMENTOS DA CAPITAL, 2011).
A cobrança da taxa de coleta de resíduos sólidos,
que varia conforme a frequência e não a produção,
evidencia os conflitos socioespaciais.
A disposição final dos RSU da RMF se dá
no Parque de Gerenciamento de Resíduos (PGR)
de Biguaçu. Localizado ao norte do município
(Figura 4), a cerca de quarenta quilômetros de
Florianópolis, o aterro sanitário recebe resíduos
FIGURA 3 — Vista da Avenida Beira-Mar Norte e os contrastes
provenientes de 22 municípios. Os quatro que socioespaciais.
compõem a ACF geram 661,26t/dia de RSU. Fonte: Quint (2011).

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Nesses quatro municípios, foram levantados cinquenta locais de manejo e dis-


posição de resíduos (Tabela 1), dos quais: 14% são associações e cooperativas, 62% são
sucateiros particulares, 2% são aparistas e 22% são recicladores autônomos. A esses equi-
pamentos, somam-se o PGR em Biguaçu, a Estação de Transbordo e um pátio de cami­
nhões em Palhoça, e o Centro de Transferência de Resíduos Sólidos, o aterro de inertes e
mais um pátio em Florianópolis.
Ao sobrepor a localização desses equipamentos ao mapa de concentração popu-
lacional por extremo de renda (Figura 4), é possível confirmar que a produção e gestão
de resíduos sólidos no espaço urbano acompanham as desigualdades socioespaciais.
Ao analisar essa sobreposição, destacam-se os contrastes, com os locais de manejo de
resíduos concentrados em áreas onde habita a população de baixa renda. As associações
e as cooperativas de reciclagem estão instaladas nos pontos mais remotos da região —
71% estão em bairros periféricos da região continental, áreas que geralmente se esva-
ziam de qualquer estrutura de coleta regular dos RSU. São locais onde há disposição
irregular de resíduos, galpões clandestinos e espaços inadequados, com condições
pre­cárias de trabalho.
Pesa ainda a distância desses locais em relação aos centros urbanos, o que ocasiona
dificuldades para o deslocamento dos trabalhadores, principalmente para catadores que
arrecadam material nas áreas onde se concentra a população de alta renda, que pos-
sui maior poder de consumo e gera mais resíduos. Nas áreas da cidade como a Avenida
Beira-Mar Norte, catadores disputam o recolhimento de resíduos com o serviço de coleta
regular. Para Cunha (2007, p.18):

[...] as relações de poder pertinentes à catação de materiais recicláveis e reprodução


de indivíduos excluídos socialmente, o caráter locacional da disposição final e as
caracterizações urbanas dos bairros mais privilegiados em relação àqueles de menor
status configuram uma latente segregação.

Tabela 1 — Locais de manejo de Resíduos sólidos urbanos na Área Conurbada de Florianópolis.

Florianópolis São José Palhoça Biguaçu Total %

Cooperativas 3 1 2 1 7 14

Sucateiros 6 20 5 0 31 62

Aparistas 0 1 0 0 1 2

Recicladores 4 2 0 5 11 22

Total 13 24 7 6 50 100

Fonte: Elaborado pelo autor (2015), com dados retirados de São José (2013) e Compromisso Empresarial para Reciclagem (2015).

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FIGURA 4 — Mapa de locais de manejo de Resíduos sólidos urbanos na Área Conurbada de Florianópolis, sobrepostos à
concentração populacional por extremos de renda.
Fonte: Mapa elaborado pelo autor (2015), com dados retirados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2011),
sobre Mapa Base de Sugai (2014).

Esse panorama ratifica o contexto em que as condições de trabalho associadas


aos RSU se espacializam na cidade, em um processo de reprodução da pobreza que
atende às necessidades do capital. Das sete cooperativas de reciclagem identificadas
na área conurbada, duas se localizam na área insular de Florianópolis: uma no Maciço
do Morro da Cruz, região com alto grau de ocupação informal; outra dentro do Centro
de Transferência de Resíduos Sólidos, situado na Companhia de Melhoramentos da

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Capital. Outra cooperativa está localizada na comunidade Chico Mendes, na região


continental de Florianópolis, enquanto as demais se concentram nas áreas periféri-
cas de Palhoça, São José e Biguaçu (Figura 4), com destaque para a comunidade Frei
Damião, em Palhoça.

PALHOÇA E A COMUNIDADE FREI DAMIÃO


O município de Palhoça produziu, no ano de 2010, 40.102,55t de resíduos (SANTA CA-
TARINA, 2012) em seu perímetro urbano, para uma população de 137 334 habitantes
(INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2011), o que repre-
senta uma média de 0,80kg/hab.dia. Os 16 bairros da cidade estão organizados em dois
grupos de coleta, realizada no mínimo três vezes por semana em cada roteiro, alcançando
a totalidade dos bairros.
O município possui uma organização formal para a triagem de resíduos denomi-
nada associação Pro Criar, Reciclar, Educar e Preservar (PRO-CREP), que recebe o ma-
terial recolhido pela coleta seletiva de Palhoça. Os RSU da coleta seletiva, oriundos dos
26 pontos de entrega voluntária espalhados na planície norte, devem ser encaminhados
diariamente até a Praia da Pinheira, ao sul da cidade, onde se encontra a PRO-CREP,
totalmente afastada das áreas onde a maior porção de resíduos é gerada (Figura 5).
A rodovia federal BR101, que acumula o tráfego urbano e regional, é o canal de
ligação para o transporte dos resíduos. Já os resíduos da coleta regular são recolhidos e di-
recionados à estação de transbordo da Proactiva, localizada no Km 8 da BR 282, que ainda
recebe cerca de 310 toneladas diárias de RSU de 11 municípios da RMF, transportados
posteriormente para o PGR de Biguaçu.
Já na comunidade Frei Damião, localizada no bairro Brejaru, ao norte do município
(Figura 6), a Associação dos Trabalhadores de Materiais Recicláveis, Resíduos Sólidos e
Orgânicos de Palhoça (ATMR) ainda não está consolidada formalmente sob o ponto de
vista jurídico e ambiental, e recebe grande parte do material proveniente da atividade
informal de coleta de resíduos. No bairro, existem muitos catadores que atuam de forma
independente e revendem o material coletado para galpões particulares que, em grande
parte, atuam na ilegalidade.
Em situação de fragilidade, a comunidade Frei Damião ocupa uma área de aproxi-
madamente 350 mil m² e abriga quase sete mil pessoas, que sobrevivem em situação de-
sumana e insalubre em 1 353 domicílios. O valor do rendimento nominal médio mensal é
de apenas R$500,00, para 2 684 pessoas ocupadas com trabalho remunerado (SERVIÇO
BRASILEIRO DE APOIO ÀS MICRO E PEQUENAS EMPRESAS, 2014).
O surgimento da comunidade data de 1986, como um assentamento irregular em
terras da Companhia de Habitação do Estado de Santa Catarina (COHAB/SC). Os pri-
meiros moradores que ocuparam a área ali se instalaram no final da década de 1980, atraí-
dos por melhor condição de emprego na região de Florianópolis, em sua maioria provindos

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FIGURA 5 — Mapa de fluxos da gestão de resíduos sólidos urbanos em Palhoça.


Fonte: Mapa elaborado pelo autor (2015), com dados retirados de Santa Catarina (2012) e Compromisso Empresarial para
Reciclagem (2015).

de outras localidades de Santa Catarina e também da comunidade Chico Mendes, devido


a ações da COHAB/SC (OLIVEIRA, 2011). Até o ano 2000, a área fazia parte do muni-
cípio de São José; contudo, por meio de uma polêmica lei estadual (Lei n° 11.340/2000)
(SANTA CATARINA, 2000), passou a fazer parte do município de Palhoça, num pro-
cesso de cunho legal duvidoso (OLIVEIRA, 2011). Desde 2011, a área foi delimitada
como Zona Especial de Interesse Social (ZEIS), por meio do projeto de Lei nº 3565/2011
(PREFEITURA MUNICIPAL DE PALHOÇA, 2011).

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Assentada em uma área com


condições precárias em termos de in-
fraestrutura, às margens do Rio Ima-
ruí e do Córrego dos Pombos, sem
ruas pavimentadas nem arborizadas,
a ocupação se estende sobre os man-
guezais e em áreas de interesse am-
biental, em habitações improvisadas
que fragilizam o ecossistema local e
põem em risco a vida dos moradores,
à margem da ilegalidade. A popula-
ção extremamente carente caracte-
riza-se por migrantes e desemprega-
dos, que em sua maioria sobrevivem
da coleta de material reciclável nas
cooperativas, na rua ou nas próprias
habitações. Conforme Maricato
(2011), apenas 30% da população
do país é atendida pelo mercado re-
sidencial legal. Boa parte da popula-
ção de baixa renda, devido à ausência
de alternativas legais, invade terras
FIGURA 6 — Mapa de localização da comunidade Frei Damião, entre Palhoça e São José.
Fonte: Mapa elaborado pelo autor (2016), com dados retirados do Instituto Brasileiro de para habitar — aquelas que não in-
Geografia e Estatística (2011), sobre Mapa Base de Sugai (2014). Foto do acervo do autor. teressam ao mercado imobiliário, em
ecossistemas frágeis, sobre os quais
incide a legislação de proteção ambiental, da mesma forma acontece em Frei Damião.
Na comunidade, além da ATMR, existem dois galpões particulares e uma série
de residências onde os trabalhadores separam o material no próprio quintal de casa. Os
resíduos separados chegam a ser acumulados na rua por falta de espaço, e estão sujeitos a
intempéries que podem até causar a perda do material (Figura 7).
A principal atividade geradora de renda para a comunidade é também ameaça à
sua sobrevivência, junto à debilidade do saneamento básico. Os resíduos que sobram
da atividade de triagem e também aqueles produzidos pela população são mal acondi-
cionados e, junto com o esgoto, contaminam o solo e a água. Do total de domicílios,
360 não são atendidos pela coleta regular de resíduos (SERVIÇO BRASILEIRO DE
APOIO ÀS MICRO E PEQUENAS EMPRESAS, 2014). A maioria das habitações não
possui fossas ou qualquer tipo de tratamento, e o esgoto é lançado in natura em valas
a céu aberto e nos córregos. Apenas 265 domicílios estão ligados à rede geral de esgoto
e 847 utilizam valas, sendo que dez domicílios sequer possuem banheiros (SERVIÇO

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FIGURA 7 — Vista de galpões improvisados da Associação em Frei Damião.


Fonte: Google Maps (2013), imagem editada pelo autor (2016) a partir da ferramenta Google Street View.

FIGURA 8 — Vista da comunidade Frei Damião e do acúmulo de resíduos.


Fonte: Quint (2011).

BRASILEIRO DE APOIO ÀS MICRO E PEQUENAS EMPRESAS, 2014). Predomi-


nam as habitações com ligação irregular de energia elétrica e abastecimento de água.
Devido à proximidade dos cursos d’água existentes (Figura 8), o lençol freático
aflora com facilidade, acumulando água sobre o solo, principalmente em épocas de chuva
e maré cheia, espalhando resíduos e esgoto nas ruas e até mesmo dentro de algumas casas,
impulsionando a proliferação de doenças, sobretudo entre crianças. A presença de animais
que costumeiramente vasculham o lixo agrava a situação.
A poluição ao meio ambiente é nítida. Contudo, é preciso compreender que esse
conflito é social, e não ambiental. Segundo Rodrigues (2012), as matrizes discursivas sobre
o meio ambiente ocultam os verdadeiros responsáveis pelos problemas, atribuindo a res­
ponsabilidade aos consumidores e aos pobres que ocupam as áreas que não interessam ao
setor imobiliário, obscurecendo a essência da desigualdade e da segregação socioespacial.

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Esse processo de segregação confirma-se pelo contraste com a área vizinha, onde
o cenário é outro — a Cidade Pedra Branca (Figura 9), loteamento ao lado da comuni-
dade Frei Damião, cujos bairros são separados apenas por um córrego e barreira vegetal.
Distantes menos de um quilômetro, seus acessos constroem fisicamente o contraste so-
cial do discurso ideológico ambiental. A proximidade das duas localidades evidencia os
mecanismos do mercado imobiliário e suas manobras na produção de localizações no
espaço urbano. Como afirma Cardoso (2007), o capital de incorporação se responsabi-
liza por organizar o processo de produção, conferindo centralidade ao lucro imobiliário
enquanto motor do processo de acumulação, ao invés do lucro oriundo da construção.
Empreendimento do capital imobiliário, com princípios pró-sustentabilidade, a Cidade
Pedra Branca, afastada do centro urbano, tem como base o discurso do urbanismo susten-
tável e a promoção da diversidade para impulsionar suas vendas.
Visando à redução do contraste social, firmou-se recentemente uma parce-
ria entre a COHAB/SC e o grupo empresarial Pedra Branca em prol da revitaliza-
ção urbanística da comunidade Frei Damião, com projeto de um bairro modelo de
construção sustentável, mas que reproduz a tradição tecnocrática de planejamento
urbano que se faz no país. O interesse provável da Pedra Branca é reduzir a desvalo-
rização do empreendimento, com obras apenas de caráter físico, que desconsideram
a realidade social e os problemas da comunidade e da cidade como um todo. É fun-
damental, além dos projetos urbanísticos, combater o preconceito e a vinculação da
localidade ao crime e à violência, promovendo e incentivando atividades geradoras de
renda, como as cooperativas de catadores.

FIGURA 9 — Vista da Cidade Pedra Branca e comunidade Frei Damião ao fundo.


Fonte: Quint (2011).

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Em 2009, a Prefeitura Municipal de Palhoça perdeu recursos da ordem de R$ 6,5


milhões porque não tinha projeto para a área. Já em agosto de 2013 foi prevista verba para
a urbanização da área por meio do Programa de Aceleração do Crescimento; contudo, até
o momento, foram realizadas somente obras técnicas de canalização e pavimentação em
algumas ruas. Somente três ruas da comunidade são oficialmente registradas. Há grande
dificuldade em relação à regularização da escritura da área, ainda que a COHAB/SC tenha
anunciado o repasse à Prefeitura da titularidade da área de 346.167,57m², que compreende
o bairro Brejaru. Consoante Cardoso (2007), as ZEIS têm se mostrado um instrumento
eficiente para a garantia de posse, evitando as remoções; entretanto, no que diz respeito
à regularização da propriedade, os resultados ainda são pouco efetivos, tendo em vista os
trâmites burocráticos em cartórios e no judiciário, que resistem aos novos direitos estabe-
lecidos a partir do Estatuto da Cidade. Enquanto isso, predominam as injustiças sociais em
áreas das periferias metropolitanas, onde é nítido o desequilíbrio entre a produção de RSU
e a distribuição de equipamentos no território, e onde não é concedido o acesso básico e
universal a serviços essenciais.
O Estado, em suas diferentes esferas, responsável por definir a localização de
equipamentos e investimentos públicos, cede às pressões do capital para que sejam
atendidos seus interesses em determinadas áreas da cidade, em detrimento de serviços
que depreciam o valor da terra. Hospitais, praças, teatros, bibliotecas quase sempre
estão em setores privilegiados, ao passo que equipamentos estigmatizados, como presí-
dios, cemitérios, manicômios, hospitais psiquiátricos e habitação social, na maior parte
dos casos, estão localizados longe das áreas centrais e mais valorizadas (SUGAI, 2014).
Unidades de triagem, pontos de entrega de resíduos e aterros sanitários fazem parte
desse segundo grupo, como comprovado pelos dados levantados para a ACF. Em casos
extremos, como na comunidade Frei Damião, ainda há o manejo e depósito irregular de
resíduos sólidos urbanos.

CONCLUSÃO
A produção desequilibrada de RSU no território da ACF ratifica as desigualdades socioespa-
ciais resultantes de um processo histórico. Nesse trabalho, foram analisados as relações
entre a produção de resíduos sólidos e o processo de urbanização, por meio da abordagem
de duas escalas. Na escala regional, foram observados os conflitos existentes na ACF e as
injustiças na distribuição dos serviços da gestão de RSU. Os quatro municípios da área con-
urbada, por exemplo, representam 81,66% da população total da RMF e produzem 87,62%
das 754,81 toneladas diárias de RSU. De um total de cinquenta equipamentos de manejo,
71,00% das associações e cooperativas de reciclagem estão instalados nos pontos mais re-
motos da região. Nas periferias da área continental, instalaram-se inúmeros espaços de
triagem que atuam na informalidade, onde moram trabalhadores que diariamente separam
(e por vezes coletam) os resíduos produzidos nas áreas da cidade formal.

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Os resultados demonstram que a produção dos resíduos no espaço urbano e


regional não é homogênea — reflete justamente a essência de uma sociedade desigual
e heterogênea, cujo controle é estabelecido pelo poder aquisitivo das diferentes ca-
madas sociais. Em áreas como a Avenida Beira-Mar Norte, os resíduos recolhidos
pela coleta regular chegam a quase 250% daqueles produzidos em comunidades do
maciço do Morro da Cruz. Ainda que os resíduos sejam produzidos de forma desigual,
os custos são socializados sem equidade entre a população, já que a cobrança da taxa
de coleta de resíduos sólidos varia conforme a frequência de coleta nos bairros e ruas,
e não segundo a sua produção.
A rejeição ao tipo de serviço — manejo e disposição de RSU — e a disputa pela
terra urbana evidenciam os contrastes das cidades brasileiras, afirmando as desigual-
dades socioespaciais através da localização e dos fluxos dos resíduos no território, desde
a sua origem até seu destino final. A produção de resíduos na área conurbada de Flo-
rianópolis cristaliza os contrastes sociais no espaço urbano e a ausência de propostas
para a universalização dos serviços de RSU. Os resíduos podem ser considerados apenas
matéria no local errado: o que não serve para um, para outro pode ser fonte de renda e
matéria-prima de qualidade.
Na escala local, foi analisado o caso da comunidade Frei Damião, em Palhoça,
onde há grande quantidade de catadores em situação crítica. Do total de domicílios, 360
residências não são atendidas pela coleta regular. Além da ATMR, existem dois galpões
particulares na comunidade, mas é geralmente nas residências que os trabalhadores se-
param o material reciclável. Os RSU separados chegam a ser acumulados na rua por falta
de espaço e muitas vezes se perdem frente às fortes chuvas — impondo aos menos favo-
recidos a culpa pelos problemas ambientais. Ao mesmo tempo, os RSU da coleta seletiva
regular são encaminhados para a PRO-CREP, localizada a quilômetros de distância do
centro urbano, na Praia da Pinheira. É também em Palhoça que se encontra uma grande
estação de transbordo, que arca com o impacto do acúmulo temporário de RSU de 11
municípios da RMF.
Aos quase sete mil moradores da comunidade Frei Damião, é negado duplamente
o direito à cidade pelo Estado: primeiro, quando os exclui da cidade idealizada pela elite;
segundo, quando não lhes provê acesso às mínimas condições de habitabilidade, como
água potável e saneamento básico. Nem 20% dos domicílios estão ligados à rede geral de
esgoto: a ausência de investimentos públicos evidencia a lógica do processo segregativo.
Mesmo que excluída, a comunidade é dependente da cidade, mas o preconceito e a
vinculação da localidade ao crime e à violência dificultam a obtenção de emprego formal
para os moradores.
Junto ao Estado, o grupo Pedra Branca pretende realizar a revitalização urbanística
da comunidade, buscando promover a integração e diversidade local. Apesar de ser ne-
cessária a iniciativa, questiona-se como é possível incitar a diversidade em um tecido

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RESÍD U O S SÓLID O S U RB AN O S, METRÓ PO LE E PERIFERIA | A.E.B. Li ns |97

desarticulado da cidade, que nega a realidade vizinha e cria barreiras físicas e virtuais para
o acesso de pessoas de menor renda. A população menos favorecida apenas acessa a Pedra
Branca na condição de trabalhadores, ao passo que na comunidade vizinha, em terras não
regularizadas, não há mínimas condições de habitabilidade e vida digna.
É fundamental, portanto, promover a justiça urbana e social através do acesso
universal aos serviços de gerenciamento de RSU. Aliada a outras ações do poder público,
a universalização desses serviços possibilitará amenizar os contrastes sociais decorrentes
da produção de resíduos no espaço urbano. É urgente reduzir os impactos causados a uma
população fragilizada socialmente, bem como organizar de forma equilibrada a gestão de
RSU no território. O compartilhamento de equipamentos em nível regional, em localiza-
ção adequada, pode ser um recurso eficaz tanto do ponto de vista administrativo quanto
da organização do espaço — e pode ser efetivado por meio da consolidação de consórcios
entre os municípios da ACF. Com compartilhamento de infraestrutura e incentivo ao
cooperativismo de catadores, a gestão comunitária pode ser um instrumento decisivo
para reduzir as desigualdades, constituindo importante agente de inclusão social, apto a
induzir a geração de trabalho e renda em comunidades como Frei Damião.

nota
1. Artigo elaborado a partir da dissertação de mestrado de A.E.B. LINS, intitulada “Resíduos sólidos
urbanos, desigualdades socioespaciais e conflitos ambientais: reflexões para uma gestão integrada
na região metropolitana de Florianópolis”. Universidade Federal de Santa Catarina, 2015.

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Recebido em
30/8/2016,
reapresentado ARTHUR EDUARDO BECKER LINS | Universidade Federal de Santa Catarina, Departamento de Arqui-
em 14/2/2017 tetura e Urbanismo, Programa de Pós-Graduação em Urbanismo, História e Arquitetura da Cidade
e aprovado em | Campus Universitário Reitor João David Ferreira Lima, s/n., Trindade, 88040-900, Florianópolis,
23/2/2017. SC, Brasil | E-mail: <arthur@desterro.arq.br>.

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A ESCRITA DA HISTÓRIA COMO UM PROCESSO: AS PRÁTICAS
HISTORIOGRÁFICAS DE FRANÇOISE CHOAY (1965-1973)1
THE WRITING OF HISTORY AS A PROCESS: THE HISTORIOGRAPHICAL PRACTICES OF
FRANÇOISE CHOAY (1965-1973) |LA ESCRITURA DE LA HISTORIA COMO UN PROCESO:
LAS PRÁCTICAS HISTORIOGRÁFICAS DE FRANÇOISE CHOAY (1965-1973)

PRISCILLA ALVES PEIXOTO

RESUMO
O presente artigo tem por objeto a produção da filósofa Françoise Choay. Mais
especificamente, ele aborda textos que a autora desenvolveu entre 1965 e 1973,
nos quais ela enfoca a história do urbanismo. São eles: ‘L’Urbanisme en question’ de
1965, ‘L’histoire et la méthode en urbanisme’ de 1970 e ‘Urbanisme: théories et réa-
lisations’ de 1973. Toma-se por hipótese a necessidade de se lançar um olhar mais
aprofundado para as práticas historiográficas da autora, sublinhando o caráter pro-
cessual e as condicionantes de enunciação de sua teoria. As ideias desenvolvidas
neste trabalho se amparam na noção de ‘operação historiográfica’ enunciada por
Michel de Certeau em seu livro “A escrita da história” de 1975. A partir das balizas
dessa operação descrita por Certeau — os lugares, as práticas e a escrita da nar-
rativa histórica —, busca-se, por fim, explicitar os elementos que Choay mantém
e modifica em seu processo de interpretar a memória de uma disciplina chamada
urbanismo, em outras palavras, em sua história do urbanismo.
PALAVRAS‑CHAVE: Françoise Choay. História do urbanismo. Historiografia.

ABSTRACT
The object of the present work is the production of the philosopher Françoise Choay.
More specifically, it deals with texts developed by the author between 1965 and 1973,
in which she focuses on the history of urbanism, namely “L’Urbanisme en question”
(1965), “L’histoire et la méthode en urbanisme” (1970) and “Urbanisme. Théories
et réaliasations”. The hypothesis involves the need to launch a deeper look at the his-
toriographical practices of the author, emphasizing the procedural character and the
enunciation conditionings of her theory. The ideas developed in this work are supported
by the notion of “historiographical operation” as stated by Michel de Certeau in his
book The writing of history (1975). From the limits of this operation described by Cer-
teau — the places, practices and writing of historical narrative — it seeks to clarify the
elements that Choay maintains and changes in her process of interpreting the memory
of a discipline called urbanism, in his history of urbanism.
KEYWORDS: Françoise Choay. History of urbanism. Historiography.

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RESUMEN
El presente artículo tiene por objeto la producción de la filósofa Françoise Choay.
Más específicamente, trata de textos que la autora desarrolló entre 1965 y 1973 y
en los cuales enfoca la historia del urbanismo. Son ellos: “L’Urbanisme en question”
(1965), “L’histoire et la méthode en urbanisme” (1970) y “Urbanisme. Théories et
réalisations” (1973). Aquí se adopta por hipótesis la necesidad de una mirada más
profundizada sobre las prácticas historiográficas de la autora, subrayando el carác-
ter procesal y los condicionantes de enunciación de su teoría. Las ideas desarrolla-
das en este trabajo se basan en la noción de “operación historiográfica” enunciada
por Michel de Certeau en su libro “La escritura de la historia” (1975). A partir de
los referentes de esta operación descritos por Certeau — los lugares, las prácticas y
la escritura de la narrativa histórica —, se busca, por fin, explicitar los elementos
que Choay mantiene y modifica en su proceso de interpretar la memoria de una
disciplina llamada urbanismo, en otras palabras, en su historia del urbanismo.
PALABRAS CLAVE: Françoise Choay. Historia del urbanismo. La historiografía.

INTRODUÇÃO
Françoise Choay é uma autora reconhecida por seus escritos sobre a história do ur-
banismo e sobre a noção de patrimônio. Trata-se de uma intelectual que iniciou seus
estudos nas áreas de estética, línguas e antropologia e que, a partir da década de 1950,
tornou-se redatora de duas revistas francesas — L’Oeil (1958-1959) e France Obser-
vateur (1956-1961) —, nas quais passou a dedicar especial interesse também a temas
arquitetônicos e urbanos.
Contudo, é o texto “L’urbanisme, utopies et réalités”, publicado em Choay (1965),
que marca de fato o início do esforço de reflexão dessa autora, especificamente sobre a
história do urbanismo. Traduzido em ao menos quatro línguas — espanhol, italiano, inglês
e português do Brasil e de Portugal — e objeto de diversas reedições, esta talvez seja uma
das obras da autora com maior difusão e que tenha contribuído verdadeiramente para a
construção de seu renome internacional.
O aprofundamento de suas reflexões sobre esses saberes continuou nos anos se-
guintes. Em março de 1978, a autora se tornou doutora em letras (CHOAY, 1978) com
uma tese que versava sobre duas diferentes modalidades discursivas que instauravam es-
paços (de cidades inclusive): aquelas conhecidas como tratados de arquitetura e aquelas
chamadas de utopias. O trabalho foi a base para outro livro de grande recepção: “La règle
et le modèle” (CHOAY, 1980). Atualmente, Choay possui mais de vinte títulos publicados
em diferentes países.
No entanto, a despeito da relevância e da grande difusão de seus escritos, o con-
junto de trabalhos que se dedicaram à sua vida e obra não é muito numeroso. Até mesmo

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na França — país onde nasceu, reside e trabalha Choay — poucos são os autores que se
posicionam sobre suas contribuições. Dentre eles, podem-se citar os esforços de Claude
(2006), Thierry Paquot (CHOAY, 1994), Dosse (2002) e Ouahès (1999).
Pode-se dizer que todos esses autores sublinharam o papel precursor de Choay na
história do pensamento urbanístico. Eles estabeleceram, inclusive, paralelo entre a pro-
dução da autora e a dos historiadores do urbanismo que escreveram posteriormente. Po-
rém, nesse conjunto de trabalhos não se percebe um olhar mais direcionado aos aspectos
que condicionavam a história praticada por Françoise Choay, levando em consideração
seu momento de produção e estabelecendo, de forma mais precisa, a relação entre esses
limites e a estrutura do discurso produzido por ela (PEIXOTO, 2015).
É preciso observar que essa desatenção às condicionantes das práticas historiográ-
ficas não é exclusiva dos trabalhos sobre Françoise Choay. Na fortuna crítica de outros
autores que se dedicaram à historicidade do urbanismo, é igualmente difícil encontrar
trabalhos que desenvolvam esse aspecto2. Diante da expressão desse cenário — em que
existe uma produção pujante de uma historiadora do urbanismo, mas uma produção pou-
co expressiva sobre a historiografia do urbanismo em geral, e sobre a crítica de Françoise
Choay em particular —, o presente artigo visa trazer algumas contribuições, mesmo que
de forma tópica.
Tomam-se como ponto de partida três textos escritos pela autora, especificamente
aqueles que tematizaram a história do urbanismo e que foram publicados entre 1965 e
1973: ‘Urbanismo em questão’ (CHOAY, 1965), “L’histoire et la méthode en urbanisme”
(CHOAY, 1970) e “Urbanisme, théories et réalisations” (CHOAY, 1973)3. Com eles, ao
contrário da tendência apontada anteriormente, o presente artigo busca sublinhar a ne-
cessidade de se atentar para as práticas da escrita da história estabelecida por Françoise
Choay e para as condicionantes de enunciação de sua teoria.
Essa atenção mais fina à historiografia pode ser enunciada pela teoria da história
desenvolvida por Michel de Certeau, mais especificamente, com sua noção de “operação
historiográfica” (CERTEAU, 1974, 1975). Essa noção busca evidenciar a produção do
historiador como algo condicionado por um lugar, por uma prática e por uma escrita.
Para o autor, os escritos de um historiador são fragmentos de um processo maior, os quais
englobam seu percurso intelectual por instituições e por círculos sociais, bem como o de-
senvolvimento de suas pesquisas e sua capacidade de refletir sobre sua própria produção.
Essa abordagem permite supor, portanto, que os escritos de Choay sobre o urbanismo são,
igualmente, fragmentos de um percurso.
Assim, toma-se aqui por hipótese que, para compreender de maneira mais ampla
a interpretação que a autora faz da memória do urbanismo — dita de outra forma, sua
história do urbanismo —, é necessário reconhecer as condicionantes que se impõem
e que conformam a arquitetura de seu discurso a cada escrito. Trata-se de um aspecto
importante, pois, além da pouca bibliografia que versa sobre a obra de Françoise Choay

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e da pequena atenção a sua prática historiográfica, a difusão de seus escritos também


não contou com o cuidado aqui enunciado. Brevemente, os modelos que ela construiu,
marcados ainda pelo pensamento estruturalista que criticará posteriormente, passaram a
ser adotados como categorias de análise, ou seja, como invariantes culturais. Configuram
assim, um uso completamente avesso ao próprio engajamento da autora. Em entrevista a
Thierry Paquot, ela sublinha esse aspecto:

No contexto da época — o estruturalismo, ao qual eu permaneci exterior — e por


uma preocupação pedagógica, eu construí três tipos de “modelos”– três famílias de
pensamento, se vocês preferirem — e alguns leitores os congelaram, os “coisifica-
ram”. Essas categorias são instrumentais, elas funcionam “de modo geral”, mas não
se pode sistematizá-las. E se os dois primeiros, o “culturalista” e o “progressista” ain-
da são relevantes, o terceiro, o “naturalista”, que na época reagrupava a abordagem
de arquitetos e urbanistas americanos como Frank Lloyd Wright, não corresponde
ao que entendemos habitualmente por “naturalista”, tanto na arte, quanto na lite-
ratura. Vocês veem porque é conveniente ser prudente nas classificações e não lhes
dar maior importância? (CHOAY, 1994, p.6, tradução nossa)4.

Um exemplo do uso dos modelos de interpretação de Choay como categorias es-


tabilizadas a priori é o texto Frey (2001b) para a revista Urbanisme, intitulado “Gaston
Bardet, théoricien de l’urbanisme ‘culturaliste’”. Essa interessante análise de Frey utiliza já
em seu título a noção desenvolvida por Choay para qualificar a visão do urbanista Bardet.
Contudo, em seu desenvolvimento não há qualquer menção à abordagem da autora.
Em outros textos (FREY, 1999; FREY, 2001a), esse uso será precedido de comen-
tários e referências diretas à obra de Françoise Choay. Entretanto, o adjetivo ‘culturalista’,
empregado sem maiores explicações especificamente nesse artigo, demonstra como as en-
tão categorias de Françoise Choay eram amplamente difundidas e reconhecidas. Em uma
revista de grande circulação na área, como a conhecida Urbanisme, ao se escrever ‘urbanis-
mo culturalista’, presumia-se que boa parte dos leitores reconhecesse o sentido do termo.
Se até mesmo para um grande e atento especialista da história do urbanismo, em
textos mais circunscritos, o modelo de interpretação de Choay foi destituído de seu cará-
ter situado e provisório, pode-se dizer que em uma esfera ainda mais ampla, por exemplo,
na vulgarização do uso da antologia de 1965 como livro didático em escolas de arquitetura
e urbanismo, a reflexão de Françoise Choay foi reduzida a uma taxonomia. As ementas
de cursos das faculdades de arquitetura e urbanismo são sintomáticas desse processo,
indicando com frequência a necessidade de se estudar ‘o urbanismo progressista’ e ‘o
urbanismo culturalista’ como se eles existissem como correntes ou movimentos de fato5.
Ao contrário dessa tendência, como já enunciado anteriormente, acredita-se ne-
cessário problematizar a maneira como Françoise Choay constrói sua reflexão sobre a

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história do urbanismo e as condicionantes dessa produção. Para demonstrar a hipótese, a


presente análise busca distinguir, em cada texto de Françoise Choay, quais são os elemen-
tos que se mantêm e os que se modificam, tendo em conta o lugar onde são produzidos, as
práticas que articulam e a forma escrita que delineiam (CERTEAU, 1974, 1975).
Na primeira parte deste artigo, ‘Três textos para se escrever uma história do urba-
nismo’, apresentar-se-á cada um dos escritos que serão analisados. Nesse momento serão
sublinhados os aspectos da produção de Françoise Choay enunciados pela ‘operação
historiográfica’ de Michel de Certeau. Na segunda parte, ‘Da história como método’, serão
aprofundados os temas já apresentados, enfatizando a maneira como a história deveria ser
entendida como um método para o urbanismo — aspecto que será enunciado pela própria
autora ao longo desse processo. Na terceira e última parte, ‘Considerações finais’, será
apresentado um balanço desse percurso que, como aponta Michel de Certeau a respeito
do ofício do historiador de forma mais geral, parece se constituir a partir da “construção
e erosão de unidades” (CERTEAU, 1975, p.107), ou seja, por uma ação construída a
partir de arquiteturas interpretativas que serão, texto após texto, revisitadas e modificadas
quando necessário.

TRÊS TEXTOS PARA SE ESCREVER UMA HISTÓRIA DO URBANISMO


Pode-se dizer que ‘Urbanismo em questão’ (CHOAY, 1965), ‘História e método em ur-
banismo’ (CHOAY, 1970) e “Urbanisme, théories et réalisations” (CHOAY, 1973) são os
primeiros escritos nos quais Choay buscou sistematizar e interpretar os debates que de-
ram forma ao urbanismo como disciplina. Publicado em 1965, ‘Urbanismo em questão’
(CHOAY, 1965) é o texto de abertura da antologia “L’urbanisme, utopies et réalités ”. Reco-
nhecida apenas como uma polemista que escrevia para revistas literárias e de arte, reuniu
no livro escritos produzidos durante quase um século de tematização sobre as cidades, de
meados do século XIX a sua contemporaneidade. Especificamente em “Urbanismo em
questão”, texto de abertura do livro, a autora tece relações entre os autores que aborda
na antologia. Primeiramente ela organiza os escritos em dois grupos: pré-urbanistas e
urbanistas. Eles se distinguem por serem, respectivamente, constituídos por autores
que elaboraram as ideias que forneceram as bases para o urbanismo e por autores que
escreveram a partir de um momento em que a disciplina já se encontrava nomeada,
constituída e reconhecida.
Além de estabelecer essa diferenciação, Françoise Choay identifica também algu-
mas tendências nas tematizações das cidades, que atravessam tanto o período do pré-ur-
banismo quanto o do urbanismo. Dentre elas, destacam-se os ‘culturalistas’ e os ‘progres-
sistas’, tendências diametralmente opostas. Os autores culturalistas se caracterizavam
por projetar cenários futuros a partir da reorganização de formas do passado, enquanto
os progressistas eram aqueles que prospectavam a partir de um ato de ruptura com as
ações precedentes. Por fim, deve-se notar nesse texto que Françoise Choay evita aderir

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expressamente à ideia de compor uma história do urbanismo, que para ela ainda era um
gênero narrativo muito ligado à produção de autores como Lavedan (1926). Ao contrário
desse autor, ela acredita que para se repensar a produção das cidades de seu tempo era
necessário assumir uma ação mais interpretativa em relação às narrativas dos urbanistas:

Essa recorrência à história deveria permitir a construção de um quadro de referên-


cias onde captar o sentido real do urbanismo propriamente dito, sob suas diversas
formulações e fórmulas, e situar os problemas atuais do planejamento urbano. No
entanto, esse método não deve prestar-se a confusões. Nas páginas seguintes, não
se encontrará uma história do urbanismo ou das ideias relativas ao planejamento
urbano, mas uma tentativa de interpretação (CHOAY, 2003, p.3).

Como se pode observar, para Françoise Choay a prática da história ainda era
percebida como um relato factual. Tratava-se da formulação de um discurso que se
imaginava responsável por descrever uma verdade, por isso a necessidade de contra-
pô-la à noção de interpretação. Conforme se verá adiante, essa percepção da autora
sofrerá modificações.
Já o texto “L’histoire et la méthode en urbanisme” foi publicado em 1970 em uma
edição temática da revista dos Annales sobre o urbanismo. Trata-se da única incursão de
Françoise Choay nessa revista e, de certo modo, denota a circulação da autora por meios
cada vez mais especializados academicamente. Nesse texto, Françoise Choay apresenta
como hipótese a necessidade de se pensar a história como um método para o urbanismo.
Nas doze páginas nas quais organiza sua argumentação, expõe como a ação projetiva
do urbanista — mesmo aquelas formuladas em um texto literário ou em uma especula-
ção crítica — está sempre articulando relações temporais. Expondo ainda as reflexões
das posições dicotômicas de urbanistas culturalistas e progressistas já apresentadas no
texto anterior, Françoise Choay demonstra os revezes das posições polarizadas para a
construção do urbano. Ao observar as cidades que estão sendo produzidas em sua época,
propõe um olhar crítico sobre suas condições e sugere uma mudança de postura em
relação a esses modelos de construção do espaço. Assim, propõe a (re)organização de
uma nova prática, em que essa dicotomia é rebaixada e aspectos das duas posições são
trazidos para a ação projetiva. Afirma, com essa proposta, uma maior consciência em
relação à capacidade de ponderação (em relação ao passado e ao futuro) daquele que
propõe a ação urbanística (CHOAY, 1970).
Contudo, é curioso notar que, para aprofundar sua reflexão, Françoise Choay
inclui nesse texto autores que não constavam em seu escrito anterior, dos quais se des-
tacam Idelfonso Cerdà e Sigfried Giedion (CHOAY, 1970). A inclusão desses autores
cria uma tensão em relação ao modelo progressista que, a princípio, os enquadraria.
Com uma ação fugidia, Idelfonso Cerdà e Sigfried Giedion são descritos por Françoise

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Choay como aqueles que agenciam de forma mais evidente o conhecimento histórico
e a ação prospectiva. É justamente com eles que ela constrói seu argumento contra a
polarização dos modelos de construção do espaço e em favor da necessidade da história
como um método para a disciplina.
Por fim, o texto ‘Urbanisme, théories et réalisations’ (CHOAY, 1973) foi publicado
em 1973 em uma enciclopédia de grande circulação, a Universalis, pertencente ao grupo
da Encyclopaedia Britannica na França. Possivelmente, a escolha de Françoise Choay
para a escrita de um dos verbetes sobre urbanismo seja um sintoma do maior reconheci-
mento da autora; afinal, escrevendo sobre o mesmo assunto estavam também dois outros
autores de grande reconhecimento e notoriedade, como Bruno Zevi “Urbanismo e arqui-
tetura” e Pierre George “Urbanismo e sociedade”.
Contudo, além da possível marca de reconhecimento da autora, o texto escrito
para a enciclopédia apresenta um traço curioso em relação aos modelos utilizados por
ela até então para interpretar a ação dos urbanistas em seu campo. Françoise Choay
busca superar a estrutura que havia construído para sua narrativa sobre a historici-
dade do urbanismo e a antinomia entre progressistas e culturalistas. Para isso, opera
duas ações que devem ser assinaladas. Primeiramente, inclui em seu discurso as
práticas urbanísticas que não produziram textos (ou cujos escritos foram igualmente
ou menos potentes que sua poética projetual), mas que podiam ser lidas nas formas
materiais da cidade e nos projetos. Desse modo, amplia a atenção para a noção de “arte
urbana” — que já havia sido mencionada timidamente em seu texto de 1965 (CHOAY,
1965) — e introduz uma nova noção, a de ‘urbanismo de regularização’, que seria
representada, sobretudo, pela ação de Georges Eugène Haussmann, prefet de Paris
entre 1853 e 1870 (CHOAY, 1973).
Assim, Choay reduz a oposição entre pré-urbanismo e urbanismo e expõe, ao con-
trário, que o segundo deriva da mesma estrutura utópica do primeiro. Porém, a inclusão
das novas noções — arte urbana e urbanismo de regularização — visavam mostrar que o
discurso urbanístico possui também outra matriz, não utópica, e que segue uma tradição
originária da tratadística do século XV. No entanto, após a publicação de “Urbanisme,
théories et réalisations” (CHOAY, 1973), ao abrir espaço para os registros deixados nas
formas materiais, Françoise Choay não relegava a um segundo plano os escritos críticos
sobre as cidades. Ao contrário, começava a aprofundar ainda mais sua análise. É justa-
mente essa atenção aos discursos sobre as intervenções nas formas materiais das cidades
que o presente artigo considera a segunda ação empreendida por Françoise Choay a se
observar nesse seu texto.
A partir de então, a ênfase de seus escritos passa a ser muito mais a problematização
dos discursos instauradores de espaço de maneira mais ampla — e a oposição entre os
gêneros literários utopia e tratadística —, do que os discursos do urbanismo especifica-
mente. Este último, na interpretação da autora, passa a ser entendido apenas como uma

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variação recente dos discursos utópicos. Por isso, mesmo que em entrevistas posterio-
res Choay continuasse a afirmar a validade dos modelos culturalistas e progressistas
(CHOAY, 1994), eles não serão mais tematizados em seus textos com o mesmo destaque.

DA HISTÓRIA COMO MÉTODO


Inicialmente, os modelos para interpretar a história do urbanismo — pré-urbanismo,
urbanismo, culturalismo e progressismo, por exemplo — parecem ser os elementos mais
estáveis do conjunto de textos aqui tratados. No entanto, pouco a pouco, esse aspecto pa-
rece perder força, interesse e destaque nos escritos da autora. Por outro lado, nos mesmos
textos é possível destacar outro aspecto que se afirma amplamente à medida que o tempo
passa. Trata-se do engajamento de Choay em uma abordagem que entendia a história
como um método para o urbanismo. Ou seja, justamente aquela explicitada no texto para
a Revista dos Annales (CHOAY, 1970).
Ao contrário dos modelos dicotômicos, essa abordagem não seria silenciada em
textos posteriores, mas continuaria presente nos trabalhos da autora muitos anos após o
primeiro esforço de enfocar o urbanismo como disciplina. Ela retoma essa metodologia
tanto nas obras sobre os discursos instauradores de espaço como, por exemplo, “La règle
et le modèle” (CHOAY, 1980), quanto naquelas relativas à noção de patrimônio, como
“L’allégorie du patrimoine” (CHOAY, 1992). Em todos eles, percebe-se que Françoise
Choay é motivada por um anseio de criticar a conformação das cidades existentes e de
indicar caminhos para que se desenvolvam novos modos de produção do espaço.
Entretanto, observa-se como o processo de construção dessa metodologia parece
ter sido complexo (e intenso), demandando, inclusive, uma precisão no sentido do termo
“história”. É curioso notar nesse processo — inicialmente em Urbanismo em questão —
que Choay (1965) chegou a afirmar que seu trabalho não pretendia compor uma história do
urbanismo. Naquele primeiro momento, sua posição era construída em oposição à história
do urbanismo desenvolvida por Lavedan (1926), conforme já apontado. Assim, na redação
do texto para a antologia, Françoise Choay contrapõe a essa forma de fazer história o desejo
de interpretação. Portanto, interpretação e história aparecem como noções antagônicas.
Essa aparente contradição entre a autora que denunciava a baixa reflexividade
nos estudos históricos e, ao mesmo tempo, estudava os autores e seus textos na história,
cinco anos mais tarde parece mais tênue no texto “L’histoire et la méthode en urbanisme”
(CHOAY, 1970). Nesse trabalho, aproximando-se de Idelfonso Cerdà e Sigfried Giedion
na atenção ao discurso histórico, começa não somente a aventar outra concepção de
história, como a explicitar seu envolvimento com outra que não mais servisse apenas
para descrever ações e formas do passado, mas que as interrogasse para projetar o futuro.
Essa nova acepção não é realizada de maneira simplória; Françoise Choay não escrutina
o passado em busca de lições; ao contrário, parece olhar as construções do presente como
frutos de processos e, muitas vezes, também de disputas.

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Escrevendo para a revista Analles, em 1970, Françoise Choay aparenta não estar
mais alheia aos debates historiográficos do período. A autora faz referências, por exem-
plo, a Fernand Braudel (CHOAY, 1970), importante historiador estruturalista. Contu-
do, apesar de estar atenta aos escritos produzidos por esse autor, não parece encontrar
nele uma abordagem da história que lhe satisfaça por completo. Se por um lado ela se
aproxima da noção de “pluritemporalidade” desenvolvida por Braudel, por outro, opõe-
-se à pouca atenção à temporalidade dos indivíduos e das mentalidades (PEIXOTO,
2015). Sua referência em relação a uma nova noção de história está mais próxima, não
daquela desenvolvida por um historiador stricto sensu, mas sim da utilizada pelos his-
toriadores da arte, pelos precursores do urbanismo já citados anteriormente (Idelfonso
Cerdà e Sigfried Giedion) e também por uma utilizada pelo semiólogo Roland Barthes.
Em “Mythologies”, Barthes (1957) realizou uma crítica aos valores transformados em
estereótipos, às ideias do senso comum e a tudo aquilo que em seu tempo se havia tornado
“mito” (DOSSE, 2012) e parecia ter se “constituído pela perda de qualidade histórica das
coisas” (BARTHES, 1957, p.109). Assim, para Barthes, o estudo da história, como se torna-
ria para Choay entre 1965 e 1970, poderia ser visto como método para mostrar que as ‘coisas’
e as ‘ideias’ (sobre as cidades inclusive) não são universais, mas sim dotadas de sentidos nos
discursos; esses podem sofrer mudanças à medida que os termos e os tempos do discurso se
alteram. Reavivar esse processo é, portanto, um método para afastar as coisas e as ideias do
lugar-comum dos mitos e, por outro lado, apresentá-las como construções.
Especificamente para Françoise Choay, a desnaturalização dos processos que a
história permite deveria ser utilizada pelos urbanistas para a prospecção de cenários fu-
turos, não mais em uma ação polarizada — emulando ou opondo-se ao passado como um
todo —, mas, ao contrário, ponderando sobre quais ações gostaria de se aproximar ou se
afastar em sua tentativa de instauração de novos espaços:

Assim, a história deve, nos dias de hoje, contribuir para superar a velha antinomia
dos urbanismos progressista e culturalista. Ela abre novos horizontes aos “urba-
nistas” em uma nova abordagem epistemológica, descobrindo as duas instâncias
do espaço que nós construímos tanto como membros de uma sociedade datada
e localizada quanto como indivíduos (CHOAY, 1970, p.1153, tradução nossa)6.

CONCLUSÃO
O presente artigo apresentou elementos para uma maior atenção à vida e obra de
Françoise Choay. Especificamente, por meio de escritos e dados da biografia intelectual
da autora, buscou-se expor aspectos que permitissem um olhar mais aprofundado sobre
os processos e as condições de enunciação de sua teoria. Para isso, foram apresentados
três textos escritos por Françoise Choay que têm em comum a produção de uma narra-
tiva sobre a historicidade do urbanismo.

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Se esse conjunto de escritos vincula-se, inicialmente, por um objeto comum, pro-


curou-se demonstrar como, pouco a pouco, eles se conectaram também por um caráter
menos perene: uma mudança em seus modelos de interpretação. Assim, no exercício da
escrita, texto após texto, Françoise Choay parece ilustrar a própria imagem de ‘construção
e erosão de unidades’ descrita alguns anos depois por Michel de Certeau. Nesse processo
— em que foram aqui analisados o lugar de enunciação, as práticas adotadas e a forma
delineada pelos escritos —, não apenas a narrativa sobre a historicidade do urbanismo
pareceu ganhar maior complexidade, buscando superar as dualidades iniciais de ‘pré-
-urbanistas e urbanistas’ e ‘culturalistas e progressistas’. Ela também abarcou mais atores
que contribuíram para um olhar mais amplo, para além do urbanismo, enfocando o que
ela chamou de discursos instauradores de espaço. Por fim, ressaltou-se igualmente como
esse processo a incitou a descolocar seu entendimento de história.
Sobre essa última ação, deve-se destacar que primeiramente a história foi tratada
com desconfiança pela autora, mas em seguida se tornou um verdadeiro método para des-
naturalizar as ideias sobre cidades que haviam se tornado uma espécie de mito contempo-
râneo. Ao produzir esses textos e passar ela mesma por esse processo, pode-se pensar que
a contribuição mais significativa de Françoise Choay tenha sido dotar de novo sentido o
próprio estudo da história em disciplinas produtoras de espaço.
No entanto, como pontuado inicialmente, pode-se dizer que esse aspecto da pro-
dução intelectual de Françoise Choay não permaneceu em primeiro plano na difusão de
sua obra nem ganhou a notoriedade de seus comentadores e seguidores. O aspecto mais
difundido e vulgarizado de seu trabalho — sobretudo da antologia publicada em 1965 — são
as categorias criadas a partir de seu modelo de interpretação das memórias do urbanismo.
Contrário a essa tendência, o presente artigo buscou sublinhar a necessidade de se estudar
a obra da autora, travando um diálogo mais direto com a teoria que ela mesma enuncia.

notas
1. Artigo apresenta resultados parciais da tese P.A. PEIXOTO, intitulada “Uma história do urba-
nismo em construção: as práticas historiográficas de Françoise Choay (1965-1973)”, Universidade
Federal do Rio de Janeiro.

2. Esse aspecto é objeto de uma pesquisa específica que vem sendo desenvolvida no âmbito da
tese de doutorado da autora deste artigo. Para justificar essa afirmação seria necessário um espaço
que extrapola os limites do presente trabalho. No entanto, o levantamento realizado por Isabelle
Backouche (1998) ilustra bem esse cenário em que, até mesmo na França, onde se observa um
interesse crescente nos estudos urbanos realizados entre as décadas de 1980 e 1990, são pouco
numerosos os trabalhos de cunho historiográfico.

3. Dos três textos trabalhados aqui, apenas “Urbanismo em questão” possui uma versão publicada e
traduzida para o português. “História e método em Urbanismo” e “Urbanismo: teorias e realizações”
são disponíveis apenas na sua versão original em francês, respectivamente, “L’histoire et la méthode
en urbanisme” e “Urbanisme: théories et réalisations”. No presente artigo, optou-se por utilizar a
tradução da autora para o português para facilitar a leitura e compreensão.

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4. “Dans le contexte de l’époque — le structuralisme, auquel je suis demeurée extérieure — et par


souci pédagogique, j’ai construit trois types de “modèles”– trois familles de pensée, si vous préférez — et
certains lecteurs les ont figés, chosifiés. Ces catégories sont instrumentales, elles marchent “en gros”,
mais il ne faut pas les systématiser. Et si les deux premières, la “culturaliste” et la “progressiste” sont
toujours pertinentes, la troisième, la “naturaliste”, qui à l’époque regroupait l’approche d’architectes et
d’urbanistes américains comme Frank Lloyd Wright, ne correspond pas à ce qu’on entend habituelle-
ment par “naturaliste”, en art comme en littérature. Vous voyez pourquoi il convient d’être prudent dans
les classifications et de ne pas leur donner plus d’importance [...]”.

5. Aqui se faz menção à ementa da disciplina História das Teorias do Urbanismo da Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Disponível em: <http://www.
fau.ufrj.br>. Acesso em: 21 jul. 2015.

6. “Ainsi l’histoire doit aujourd’hui contribuer à permettre de dépasser l’ancienne antinomie des urba-
nismes progressiste et culturaliste. Elle ouvre des horizons nouveaux aux “urbanistes” dans une nouvelle
saisie épistémologique, découvrant les deux instances de l’espace qui nous construit à la fois comme
membres d’une société datée et localisée, et comme sujets”.

Apoio: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Processo nº 1330755) e


Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Processo nº E-26/200.067/2016).

REFERÊNCIAS
BACKOUCHE, I. L’histoire urbaine en France: Moyen age-XXe siècle: Guide bibliographique
1965-1996. Paris: L’Harmattan, 1998.
BARTHES, R. Mythologies. Paris: Le Seuil, 1957.

CERTEAU. M. L’écriture de l’histoire. Paris: Gallimard, 1975.

CERTEAU. M . L’opération historique. In: LE GOFF, J. ; NORA, P . (Org.). Faire de l’histoire.


Paris: Gallimard, 1974.
CHOAY, F. Intervieweur: Paguot, T. Revue Urbanisme, n.278-279, p.5-11, 1994.

CHOAY, F. L’allégorie du patrimoine. Paris: Seuil, 1992.

CHOAY, F. L’urbanisme, utopies et réalités: Une anthologie. Paris: Seuil, 1965.

CHOAY, F. La cité du désir et la ville modèle: Essai sur l’instauration textuelle de la ville. Thèse
(Doctorat en Philosophie) — Université de Paris X, Paris, 1978.
CHOAY, F. La règle et le modèle. Paris: Seuil, 1980.

CHOAY, F. L’histoire et la méthode en urbanisme. Annales: Économies, Sociétés, Civilisations,


Année 25, n.4, p.1143-1154,1970.
CHOAY, F. O Urbanismo: utopias e realidades: uma Antologia. São Paulo: Perspectiva, 2003.

CHOAY, F. Urbanisme, théories et réalisations. In: GRÉGORY, C. Encyclopaedia universalis.


Boulogne-Billancourt: Universalis, v.6, p.492-499, 1973.
CLAUDE, V. Faire la ville: Les métiers de l’urbanisme au XXe siècle. Marseille: Parenthèses, 2006.

DOSSE, F. Michel de Certeau: Le Marcheur Blessé. Paris: La Découverte, 2002.

DOSSE, F. Histoire du structuralisme: Le champ du signe 1945-1966. Paris: La Découverte, 2012. t.1.

FRANCE Observateur. Paris: Le Nouvel observateur, 1956-1961.

FREY, J-P. Être architecte et devenir urbaniste. In: ACTES DU SEMINAIRE INTERNATIONAL
ENSEIGNEMENT ET PRATIQUE DE L’ARCHITECTURE: QUELLES PERSPECTIVES? Ager, 2001.
Annales... Alger: EPAU, 2001a. p.24-35.

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FREY, J-P. Gaston Bardet, L’espace social d’une pensée urbanistique. Les études sociales: Voyages
d’Expertise, n.130, p.57-82, 1999.

FREY, J-P. Gaston Bardet, théoricien de l’urbanisme “culturaliste”. Urbanisme, n.319, p.32-36,
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L’OEIL: Revue d’Art Mensuelle. Lausanne: Sedo, 1958-1959.

LAVEDAN, P. Histoire de l’urbanisme. Paris: H. Laurens, 1926.

OUAHÈS, R. Chronique d’une mort annoncé: Essai d’interprétation de la théorie d’urbanisme de


François Choay, en regard du concept de “mort” appliqué à l’architecture et à la ville (Mémoire de di-
plole d’études approfondies). Paris: École d’Architecture Paris-Belleville, Université Paris VIII, 1999.

PEIXOTO, P. A construção de uma abordagem: Françoise Choay e seu horizonte historiográfico em


1970. In: SEMINÁRIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 18., Florianópolis, 2015. Anais... Florianópolis:
ANPUH, 2015.

Recebido em
3/9/2015,
reapresentado PRISCILLA ALVES PEIXOTO | Universidade Federal do Rio de Janeiro | Faculdade de Arquitetura e
em 27/1/2017 Urbanismo | Programa de Pós-Graduação em Urbanismo | Av. Reitor Pedro Calmon, 550, Prédio
e aprovado em da FAU/Reitoria, 5º andar, sala 521, Cidade Universitária, 21941-901, Rio de Janeiro, RJ, Brasil |
17/2/2017. E-mail: <priscillapeixoto@gmail.com>. 

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DISCURSOS QUE ESTRUTURAM O PODER
SIMBÓLICO NO ESPAÇO EDIFICADO ESCOLAR
DISCOURSES STRUCTURING SYMBOLIC POWER IN THE
BUILT SCHOOL ENVIRONMENT |DISCURSOS QUE ESTRUCTURAN
EL PODER SIMBÓLICO EN EL ESPACIO ESCOLAR EDIFICADO

SILVIA KIMO COSTA, MILTON FERREIRA DA SILVA JUNIOR

RESUMO
O presente artigo apresenta os principais resultados e discussões da tese intitu-
lada “Discursos Arquitetônicos e Práticas de Ensino e Aprendizagem: fundamen-
tação, disciplinamento e subjetividades produzidas”, que objetivou avaliar como
o Poder Simbólico vem se estruturando em instituições escolares em função de
três discursos: Arquitetura, Projeto Político Pedagógico e Práticas de Ensino e
Aprendizagem docentes. Foram escolhidas três escolas para a pesquisa: uma re-
presentativa do ensino particular, localizada em Ilhéus (BA); uma representativa
do ensino público, localizada em Itabuna (BA), e outra fundada e dirigida por
uma Associação de Pais e Professores e financiada por Organizações não Gover-
namentais, localizada em Uruçuca (BA). A fundamentação teórico‑metodológica
baseou‑se na complementaridade entre cinco áreas do conhecimento: Arquite-
tura, Pedagogia, Sociologia, Psicossociologia e Arqueogenealogia. As técnicas de
pesquisa utilizadas foram roteiros para observação e análise das edificações e
espaços adjacentes, para fichamento e análise dos Projetos Políticos Pedagógicos
e para entrevista semi‑estruturada aplicada a docentes. A análise das informações
se deu através de uma matriz de sistematização e triangulação de dados e de dia-
gramas cartográficos da subjetividade.
PALAVRAS‑CHAVE: Arquitetura escolar. Cartografia das subjetividades. Discursos.

ABSTRACT
This article presents the main results and the discussion advanced in the thesis “Archi­
tectural Discourses and Practices of Teaching and Learning: foundations, disciplining
and produced subjectivities”, which aimed to evaluate how Symbolic Power is struc-
tured in school institutions according to three discourses: Architecture, Politi-
cal‑Pedagogic Project and teachers’s Practice of Teaching and Learning. Three schools
were chosen for the research: one representative of private education, located in Ilhéus
(BA); one representative of public education, located in Itabuna (BA); and one headed
by a Parent Teacher Association and financially supported by non‑governmental orga-

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nizations, located in Uruçuca (BA). The theoretical‑methodological approach was


based on the complementarity among five areas of knowledge: Architecture, Pedagogy,
Sociology, Social Psychology and Archeogenealogy. Techniques developed during the
research were: script for observation and analysis of buildings and adjacent spaces; script
for analysis of the Political‑Pedagogic Projects and semi‑structured interview guides
applied to teachers. The analysis of the information was performed by means of a matrix
of systematization and triangulation of data and cartographic diagrams of subjectivity.
KEYWORDS: School architecture. Mapping of subjectivities. Discourses.

RESUMEN
El presente artículo presenta los principales resultados y discusiones de la tesis titu-
lada Discursos arquitectónicos y prácticas de enseñanza y aprendizaje: fundamenta-
ción, disciplina y subjetividades producidas, que tuvo como objetivo evaluar de qué
forma se ha ido estructurando el Poder simbólico en instituciones escolares en función
de tres discursos: Arquitectura, Proyecto político pedagógico y Prácticas de enseñanza
y aprendizaje docentes. Para el estudio se eligieron tres escuelas: una representativa de
la enseñanza particular, ubicada en Ilhéus (BA); una representativa de la enseñanza
pública, ubicada en Itabuna, Ilhéus (BA), y otra fundada y dirigida por una Aso-
ciación de padres y profesores y financiada por Organizaciones no gubernamentales,
ubicada en Uruçuca, Ilhéus (BA). El fundamento teórico‑metodológico se basó en
la complementariedad entre cinco áreas del conocimiento: Arquitectura, Pedagogía,
Sociología, Sicosociología y Arqueo‑genealogía. Se utilizaron guiones como técnica
de investigación para observación y análisis de las edificaciones y espacios adyacen-
tes, para registro y análisis de los Proyectos políticos pedagógicos y para entrevista
semi‑estructurada aplicada a docentes. El análisis de las informaciones se realizó
a través de una matriz de sistematización y triangulación de datos y de diagramas
cartográficos de la subjetividad.
PALAVRAS CLAVE: Arquitectura de la escuela. Mapeo de las subjetividades. Discursos.

INTRODUÇÃO
O presente artigo apresenta os principais resultados e discussões da tese intitulada “Dis-
cursos arquitetônicos e práticas de ensino e aprendizagem: fundamentação, disciplinamento e
subjetividades produzidas”1, desenvolvida no período de março de 2012 a junho de 2014 e
financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia. A pesquisa objetivou
avaliar como o Poder Simbólico vem se estruturando em instituições escolares em função
de três discursos: Arquitetura, Projeto Político Pedagógico e Práticas de Ensino e Aprendi-
zagem docentes. Como objetos de estudo, foram escolhidas três escolas: uma representa-
tiva do ensino particular, localizada no município de Ilhéus (BA); uma do ensino público,

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DIS C URS OS arq uitetôn icos, PO D ER SIMBÓ LICO | S.K. Costa & M.F. Si l va Juni or |113

localizada no município de Itabuna (BA); e outra fundada e dirigida por uma Associação
de Pais e Professores e financiada por Organizações não Governamentais, localizada no
município de Uruçuca (BA). Considerando o contexto geohistórico, econômico, político,
cultural e social em que as escolas estão inseridas, marcado por um autoritarismo advindo
do coronelismo da produção do cacau (ASSIS, 2006), partiu‑se da hipótese de que o Poder
Simbólico poderia estar se estruturando segundo um antagonismo entre o autoritarismo
educacional e a educação libertária.
O mapeamento desse antagonismo foi realizado através da Cartografia das Sub-
jetividades e estipulou‑se quatro dimensões (D) de análise que interconectam os três
discursos: D1 — práticas de ensino e aprendizagem; D2 — estrutura organizacional da
escola; D3 — relações interpessoais no espaço físico e simbólico; e D4 — edificações e
espaços adjacentes. A operacionalização da Cartografia foi realizada através da elaboração
e aplicação de três roteiros analíticos: (1) roteiro para observação e análise das edificações
e espaços adjacentes; (2) roteiro para fichamento e análise dos Projetos Políticos Pedagó-
gicos; e (3) roteiro de entrevista semi‑estruturada aplicado a docentes.
A abordagem teórico‑metodológica fundamentou‑se na complementaridade entre
as seguintes áreas do conhecimento: Arquitetura (arquitetura escolar), Pedagogia (práti-
cas de ensino e aprendizagem), Psicossociologia (Gilles Deleuze e Felix Guattari e a Car-
tografia das Subjetividades), Sociologia (Pierre Bourdieu e o Poder Simbólico) e Arqueo-
genealogia (Michel Foucault e a Arqueologia do Saber). Dessa forma, o texto encontra‑se
organizado em três partes: a primeira apresenta os principais conceitos norteadores da
pesquisa; a segunda descreve resumidamente as escolas e a metodologia elaborada; e a
terceira apresenta os principais resultados e discussões.

CONCEITOS NORTEADORES
Ao propor avaliar como o Poder Simbólico vem se estruturando em instituições es-
colares em função de três diferentes discursos (Arquitetura — discurso construído;
Projeto Político Pedagógico — discurso escrito; Práticas de Ensino e Aprendizagem
docentes — discurso verbalizado), constatou‑se que o referencial teórico apenas da
área de conhecimento da Arquitetura não seria suficiente.Tratava‑se, na realidade, de
uma pesquisa interdisciplinar que, segundo Jupiassu (2006, p.6), é “a que se realiza
nas fronteiras e pontos de contato entre diversas ciências”. Sendo assim, buscou‑se
explorar o referencial teórico das seguintes áreas do conhecimento: Arquitetura, Peda-
gogia, Sociologia, Psicossociologia e Arqueogenealogia. Assim, os principais conceitos
norteadores da Pesquisa foram:
Autoritarismo educacional é aquele que se materializa tanto através da Governamen-
talidade, nível de Macropoder, quanto em nível de Micropoder através das Técnicas Disci-
plinares, que possibilitam o esquadrinhamento do corpo (FOUCAULT, 2011). O autorita-
rismo educacional está presente na arquitetura escolar através de indícios do Panoptismo.

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Panoptismo e a disciplina‑mecanismo, trata‑se de um “dispositivo funcional que


deve melhorar o exercício do poder tornando‑o mais rápido, mais leve, mais eficaz”
(FOUCAULT, 2011, p.198). Trata‑se de arquitetura que permite o controle interior, tor-
nando visível aquele que nela se encontra. Age sobre o indivíduo, domina seu compor-
tamento, oferece o conhecimento e o modifica, torna‑o dócil e o reconduz a uma outra
identidade pelos efeitos coercitivos e ou sedutores, sujeitados pelos macro (Governamen-
talidade) e micropoderes (técnicas disciplinares).
A governamentalidade é um:

Conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, cál-


culos e táticas que permitem exercer esta forma bastante específica e complexa
de poder, que tem por alvo a população, por forma principal de saber a econo-
mia política e por instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de segurança
(FOUCAULT, 2012a, p.409).

As técnicas disciplinares, por sua vez, são: vigilância hierárquica, sanção normali-
zadora e o exame.

Vigilância hierárquica, pois o ‘exercício da disciplina supõe um dispositivo que


obrigue pelo jogo do olhar: um aparelho onde as técnicas que permitem ver indu-
zam a efeitos de poder, e onde, em troca, os meios de coerção tornem claramente
visíveis aqueles sobre quem se aplicam’; da sanção normalizadora: as disciplinas
‘estabelecem uma ‘infrapenalidade’, quadriculam um espaço deixado vazio pelas
leis; qualificam e reprimem um conjunto de comportamentos’; e do exame: ‘um
controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir
(FOUCAULT, 2011, p.165).

Autoritarismo educacional:

[…] se baseia na difusão de um conhecimento cuja eficiência e eficácia se mede


por dar corpo e forma a essa realidade social estratificada desigualmente. Toda a
pedagogia autoritária tem por objetivo nuclear, desenvolver e aplicar um conjunto
de técnicas e de métodos capazes de aperfeiçoar, treinar e formar as virtualidades
socio‑cognitivas e físicas do ser humano como função de produção e de reprodução
da sociedade vigente. A pedagogia autoritária é, desse modo, uma função de adap-
tação dos indivíduos que se enquadra no processo de aculturação dos indivíduos
em relação à assimilação dos múltiplos saberes que relevam dos imperativos edu-
cacionais da evolução da sociedade capitalista no contexto geográfico da Europa
ocidental e no resto do mundo (FERREIRA, 1999, p.101).

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Educação libertária, parte do pressupoto de que sujeito, em seu processo de apren-


dizado, não aceita ser reduzido às pressões e conveniências sociais, mas sim estimulado a
uma ampliação de sua autonomia (FREIRE, 2011; GALLO, 2012; LANZ, 2013). Dentre
os teóricos que contribuíram para práticas pedagógicas que corroboram a educação liber-
tária destacam‑se: Dewey, Kilpatrick, Decroly, Montessori, Claparède, Piaget, Feuers-
tein, Bruner, Gardner, Rudolf Steiner e Paulo Freire.
Entende‑se por práticas pedagógicas: […] uma prática social complexa, que acon-
tece em diferentes espaço/tempos da escola, no cotidiano de professores e alunos nela
envolvidos e, de modo especial, na sala de aula, mediada pela interação professor‑alu-
no‑conhecimento (CALDEIRA & ZAIDAN, 2010, p.21).
Configuração do ambiente de ensino, de acordo com Elali (2003), as bases de cada
pedagogia delimitam as qualidades físico‑ambientais dos espaços que serão configurados
para recebê‑la. Segundo Hall (2010) e Fisher (2005), qualquer atividade pedagógica re-
quer especificidades espaciais para se tornar efetiva. Cada princípio pedagógico requer
uma abordagem pedagógica para apoiar o princípio e a abordagem pedagógica possui um
núcleo ativo ou modo específico. Esse modo específico influencia diretamente no proces-
so de projeto do ambiente de ensino.
O discurso pode ser definido como: Um conjunto de enunciados, na medida em que
se apoie na mesma formação discursiva; ele não forma uma unidade retórica ou formal, in-
definidamente repetível e cujo aparecimento ou utilização poderíamos assinalar (e explicar,
se for o caso) na história; é constituído de um número limitado de enunciados para os quais
podemos definir um conjunto de condições de existência (FOUCAULT, 2012b, p.143).
Já as práticas discursivas podem ser entendidas como: Um conjunto de regras anô-
nimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada
época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições
de exercício da função enunciativa (FOUCAULT, 2012b, p.144).
De acordo com Silva Junior et al. (2012), os pontos de difração são objetos, concei-
tos, tipos de enunciações, frases ou palavras‑chave das práticas discursivas.
O termo poder:

[…] designa relações entre parceiros, entendendo‑se com isso não um sistema de
jogo, mas apenas — e permanecendo por enquanto, na maior generalidade — um
conjunto de ações que se induzem e se respondem umas às outras (FOUCAULT,
1983, p.240).

Já o poder simbólico é o:

Poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de con-
firmar ou transformar a visão do mundo, e deste modo, a ação sobre o mundo,

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portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo
que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito específico de
mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbi-
trário. Isso significa que o poder não reside nos sistemas simbólicos em forma
de uma ‘illocutionary force’, mas que se define numa relação determinada — e
por meio desta — entre os que exercem o poder e os que lhes estão sujeitos,
quer dizer, isto é, na própria estrutura do campo em que se produz e reproduz a
crença. [..] o poder simbólico, poder subordinado, é uma forma transformada,
quer dizer irreconhecível, transfigurada e legitimada das outras formas de poder
(BOURDIEU, 1989, p.145).

Subjetividade e cartografia das subjetividades:

O conceito de subjetividade transborda as linhas da identidade enquanto algo igual


a si mesmo, pois se há constância em seu critério, esta é de mudança na construção
das estilísticas do ser. Fala da constante passagem: de um processo, de uma ação, de
um acontecimento. […] A subjetividade, antes de ser feita de igualdades, é consti-
tuída por diferenças contingentes, justapostas, formando um estilo. […] Existimos,
então, em um mundo expressão, no qual vagamos‑expressamos, impelidos por nos-
sas forças em arranjo. […] Passamos então da designação de coisas predicadas a um
sujeito, para a expressão de acontecimentos sempre moventes, onde o atributo não
é mais uma qualidade‑adjetivo de um ser, mas sim a expressão verbal de um modo
de ser. (COSTA & FONSECA, 2008, p.515).

[…] a cartografia das subjetividades é um modo de conceber a pesquisa e o encon-


tro do pesquisador com seu campo. Entendemos que a cartografia pode ser com-
preendida como método, como outra possibilidade de conhecer, não como sinô-
nimo de disciplina intelectual, de defesa da racionalidade ou de rigor sistemático
para se dizer o que é ou não ciência, como propaga o paradigma moderno. […]
a cartografia é um método, pois não parte de um modelo pré‑estabelecido, mas
indaga o objeto de estudo a partir de uma fundamentação própria, afirmando uma
diferença, em uma tentativa de reencontrar o conhecimento diante da complexi-
dade (ROMAGNOLI, 2009, p.169).

Segundo Prado Filho e Teti (2013), a Cartografia das Subjetividades foi algo
desenvolvido por Deleuze a partir de perspectivas metodológicas de Foucault — Ar-
queologia do Saber, Genealogia do Poder e Genealogia da Ética. Sendo assim, a pes-
quisa considerou a Cartografia das Subjetividades em complementaridade com a
Arqueogenealogia Foucaultiana.

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Dobras e redobras no processo de subjetivação dos sujeitos: a Cartografia das


Subjetividades em complementaridade com a Arqueogenealogia Foucaultiana implica
em considerar que o sujeito é aquele sujeitado pela Prática Discursiva (FOUCAULT,
2012b). “Uma vez que o sujeito é menos a sua “subjetividade” e mais a coercitividade se-
dutora de regras exteriores e anteriores ou simultâneas ao seu (des) envolvimento […]”
(SILVA JUNIOR et al., 2012, p.15). Logo, a pesquisa procurou entender o sujeito como
“dobra” (DELEUZE, 2008, 2006) — produto da coerção/sedução —, uma pressão de
macro e micropoderes.

MÉTODO
Para operacioanalização da Cartografia das Subjetividades, foram elaborados três roteiros
de análise relacionados, cada qual, aos seguintes discursos: Arquitetura, Projeto Político
Pedagógico (PPP) e Práticas de Ensino e Aprendizagem docentes. Os roteiros foram apli-
cados nas seguintes escolas, escolhidas para a Pesquisa:
A escola representativa do ensino particular pertence à Congregação das Irmãs
Ursulinas. Foi construída em 1917 e funcionou como escola internato para moças até
1975, quando se tornou mista. Na última década foi tombada como Patrimônio Histórico
Cultural do Município de Ilhéus. O edifício principal possui 1.296m² de área construída
e a infraestrtura total ocupa 75.000m². A escola atende cerca de 6.122 alunos (Ensino
Infantil, Ensino Fundamental I e II e Ensino Médio). Em 2017, a Instituição completará
100 anos de existência.
A escola representativa do ensino público foi construída em 2001 e localiza‑se no
município de Itabuna. Seu projeto arquitetônico é padronizado pelo Governo do Estado
da Bahia. A escola possui 6.377m² de área construída e atende cerca de 3.120 alunos do
ensino médio pertencentes à parcela da população de baixa renda.
A escola dirigida por Associação de Pais e Professores e financiada por Organização
Não Governamentais (ONG) — surgiu de um projeto elaborado por um grupo de edu-
cadoras ligadas à Pedagogia Waldorf, em 2000, objetivando a reestruturação pedagógica
de uma pequena escola rural mantida pela Prefeitura de Uruçuca. A escola possui área
construída equivalente a 1.200m² e atende cerca de 560 alunos (Jardim de Infância e
Ensino Fundamental I e II).
O primeiro roteiro objetivou a observação e análise das edificações escolares e
de seus espaços adjcentes. Foi elaborado considerando as características arquitetônicas
que corroboram o autoritarismo educacional através dos indícios do panoptismo e as que
corroboram a educação libertária (Quadro 1).
O segundo roteiro objetivou o fichamento dos PPP das escolas. Foi elaborado con-
siderando as características que indicam a predominância do autoritarismo educacional
e da educação libertária (Quadro 2).

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Já o terceiro roteiro foi elaborado como uma entrevista semi‑estruturada e objetivou


compreender como os docentes vivenciam o dia a dia escolar, uma vez que são os sujeitos
que dão voz às Práticas Discursivas (sejam autoritárias e/ou libertárias). A elaboração do
roteiro considerou: “quem fala” — o status, a competência e as condições legais limitado-
ras à constituição da materialidade supra‑referida e, no caso do espaço construído escolar,
quem e como se recomenda, se defende (ou não) a utilização de práticas pedagógicas que
corroboram o autoritarismo educacional ou a educação libertária; “Lugares Institucio-
nais” — para o espaço construído escolar, onde ocorrem as práticas pedagógicas (a escola
e seus ambientes); “posições que o sujeito ocupa”, “a escala entre os entrevistados que
questionam, ouvem, observam ou apenas anotam a rede de informações decorrentes de
suas práticas” (SILVA JUNIOR et al., 2012, p.23), os professores e a posição hierárquica
que ocupam em cada escola.

Quadro 1 – Roteiro para observação e análise das edificações e espaços adjacentes em relação às características do “Autoritarismo Educacional”
e da “Educação Libertária”.

Itens a serem observados Autoritarismo Educacional Educação Libertária


Características predominantes Características predominantes

1. Espacialização das edificações • Dispostos por setor e lado a lado • Sem disposição setorial e qualquer
(Salas de aula, área administrativa/ ao longo de corredores fechados; elemento de vedação (paredes ou painéis)
direção e outros espaços (Labins/ • Disposição setorial, mas separados que limite seu espaço físico e contato
laboratórios/sala de audiovisual, etc.). em edificações individualizadas, com o exterior.
dispostas com certa distância umas
das outras, interligadas por corredores
vedados com paredes e cobertura ou
por passarelas ao ar livre.

2. Partido arquitetônico (forma) • Rígido, com pouca possibilidade de • Forma livre, variando desde a
das edificações. plasticidade das formas e flexibilidade geometrização (com a predominância das
dos espaços. linhas retas) às curvas e formas orgânicas.

3. Layout das salas de aula • Carteiras enfileiradas de frente • Carteiras dispostas em círculo;
(disposição do mobiliário). para o quadro. • Carteiras dispostas de maneira aleatória
formando grupos.

4. Mobiliário da sala de aula e • Carteiras ou mesas com pouca • Carteiras ou mesas com boa mobilidade
demais ambientes da escola. mobilidade ou flexibilidade de e confeccionadas para permitir
modulação. flexibilidade de modulação.

5. Dispositivos de segurança e vigilância. • Existem: visores de vidro nas • Não existem.


portas; câmeras de vigilância;
monitores (vigilantes).

Fonte: Elaborado por Silvia Kimo Costa (2013).

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Quadro 2 – Roteiro para fichamento e análise dos Projetos Políticos Pedagógicos em relação às características do “Autoritarismo Educacional”
e da “Educação Libertária”.

Itens a serem observados Autoritarismo Educacional Educação Libertária


Características predominantes Características predominantes

1. Objetivos do PPP • Prepara o indivíduo para adaptação • Desenvolvimento do pensamento


ao e reprodução do mercado de trabalho crítico, sem pressões ou coerção.
da sociedade disciplinar. • Escola como organismo – livre
• Objetiva a adequação do sujeito de delimitações.
ao padrão existente – corroborar o • Formação do indivíduo para
sistema de pressão e coerção. transformar, criar e não reproduzir.

2. Princípios/ filosofia da Escola • Propõe o disciplinamento. • Propõe que o indivíduo seja capaz
• Corrobora as Técnicas Disciplinares: de transformar, não sendo necessário
vigilância hierárquica, sanção ser doutrinado para reproduzir.
normalizadora e o exame.

3. Organização curricular • Fragmentação das disciplinas por • Não há fragmentação dos conteúdos
área do conhecimento. por disciplinas.
• Interdisciplinaridade precária. • Exercício da interdisciplinaridade.
• Impossibilidade de transdisciplinaridade. • Exercício da Transdisciplinaridade.
O professor permeia por todas as áreas
do conhecimento; pode inclusive criar
novos conceitos.

4. Organização por nível de ensino • Fragmentação hierárquica. • Não há determinação da estrutura


• Fragmentação dos conteúdos. dos níveis de ensino por fragmentação
• Conteúdo ensinado de maneira linear, hierárquica.
sem flexibilidade. • São considerados princípios evolutivos
do ser humano.
• O Afeto e o afetar da criança.
Desenvolvimento para possibilitar
o imaginar, a criatividade.

5. Sistema de avaliação • Testes, trabalhos, provas. Mecanismos • Não há o “exame” característico


que corroboram o “exame” (Técnica das Técnicas Disciplinares.
Disciplinar que objetiva qualificar, • O aluno não é medido e comparado
classificar e punir). a outro ou a um padrão determinado
como ideal.
• São considerados aspectos qualitativos
no seu processo de crescimento para
os quais não se atribui notas.

Fonte: Elaborado por Silvia Kimo Costa (2013).

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O roteiro foi elaborado considerando, também, as quatro dimensões de análise


(D1, D2, D3 e D4) que interconectam os três discursos (Arquitetura, Projeto Político
Pedagógico e Práticas de Ensino e Aprendizagem docente).
Perguntas referentes à D1 — práticas de ensino e aprendizagem: (1) Você poderia
descrever um dia seu em sala de aula? (2) Quando você, em sua experiência profissional,
faz aulas práticas, usa equipes com alunos como tutores? (3) Qual é o procedimento que
você usa, durante/ após a explanação de determinado assunto, para tirar as dúvidas dos
alunos? (4) Como são os métodos avaliativos da sua disciplina? (5) Como se dá a correção
e entrega das notas?
Perguntas referentes à D2 — estrutura organizacional da escola: (6) Você sabe o
que são os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN)? (7) Ao longo de sua experiência
profissional na escola, você verificou se a mesma tem adotado os PCN? (8) Você conhece
ou participou da elaboração do Projeto Pedagógico da Escola? (9) Quando há reuniões
frente à coordenação pedagógica o atendimento é individual ou coletivo? (10) Como fo-
ram/são elaboradas as ementas das disciplinas e os planos de aulas?
Perguntas referentes à D3 — relações interpessoais no espaço físico e simbólico:
(11) Há oficinas/grupos de estudos onde os professores trocam ideias e compartilham
procedimentos metodológicos e dificuldades? (12) A escola onde você trabalha oferece
cursos de capacitação para o docente? (13) Como a escola viabiliza o afastamento do
docente para pós‑graduação? (14) Você poderia descrever como são as reuniões pedagó-
gicas na escola onde trabalha? (15) Nos conselhos de classe, como tem sido respeitada a
opinião dos professores de “disciplinas menores”? (16) Nos conselhos de classe, quais são
os critérios para avaliar o desempenho dos alunos?
Perguntas referentes à D4 — edificações e espaços adjacentes: (17) Você poderia
descrever a sala de aula onde ministra sua disciplina e como você a organiza? (18) Du-
rante a sua carreira como professor/coordenador/diretor nesta escola, você observou se a
edificação e seus espaços adjacentes (áreas livres) facilitam ou complicam formas liber-
tárias, amorosas, autoritárias de ensino e aprendizagem? (19) A sala de aula onde você
ministra sua disciplina facilita o rearranjo do mobiliário? (20) A sala de aula onde você
ministra sua disciplina é confortável em termos de iluminação, ventilação e acústica?
As entrevistas foram gravadas, transcritas e, posteriormente, extraíram‑se palavras
e expressões chave que foram analisadas, classificadas e sintetizadas em ideias centrais
(pontos de difração). Estas, por sua vez, poderiam indicar a predominância do autorita-
rismo educacional e/ou da educação libertária. Também foi levado em consideração o
silêncio, o qual se refere às respostas que não respondem aos questionamentos, mesmo
quando explicações e/ou outras perguntas são introduzidas durante a entrevista para es-
clarecimento do que foi perguntado (SILVA JUNIOR, 2006).
O Quadro 3 apresenta a quantidade de professores em cada escola e a porcentagem
entrevistada. Pontua‑se que, ao cartografar a subjetividade, não é a quantidade de entre-

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vistados que viabiliza as informações, mas sim a qualidade das mesmas. Dessa forma, são
utilizados pequenos grupos focais e/ou uma ou duas pessoas as quais detenham as infor-
mações‑chave pertinentes ao processo social que está sendo cartografado (SEMESTSKY,
2004; ROMAGNOLI, 2009; PASSOS et al., 2010).
Para análise das informações, foi elaborada uma matriz de sistematização que apre-
senta as características presentes no espaço edificado, características do PPP e a quan-
tificação dos Pontos de Difração (PD) que aparecem na fala dos docentes em relação à
predominância do autoritarismo educacional e/ou da educação libertária (Tabela1). No
que diz respeito à quantificação dos pontos de difração, considerou que a soma dos PD de
cada entrevistado por dimensão de análise, em função do autoritarismo educacional, da
educação libertária e do silêncio, deveria ser sempre ≤20. Para cálculo da porcentagem,
utilizou‑se a seguinte fórmula:

Quadro 3 – Quantidade de professores em cada escola e a porcentagem de entrevistados.

Escola Quant. professores total Quant. professores Descrição dos entrevistados


selecionados para a pesquisa

Escola representativa 65 9 Mulheres que estudaram na Instituição,


do ensino particular. (infantil + ensino (corresponde a 14% na época do internato e que atualmente
fundamental I e II + ensino da quantidade total de são professoras (apenas uma). E também
médio). professores da escola). homens e mulheres que estudaram na
escola, quando esta passou a ser mista, e
são Professores na mesma há 15-20 anos,
que se disponibilizaram (dentre os quais
são: coordenadores e/ ou professores).

Escola representativa 52 13 Diretor Geral; 3 Vice-diretores (matutino,


do ensino público. (apenas ensino médio). (corresponde a 25% vespertino e noturno).
da quantidade total de Principais lideranças dos professores por
professores da escola). área do conhecimento (articulador da área
de Linguagens, códigos e representações;
articulador da área de Ciências Humanas;
articulador da área de Ciências Exatas);
professores efetivos que se disponibilizaram.

Escola dirigida por 10 10 Diretor Geral; 3 Vice-diretores (matutino,


Associação de Pais e (infantil + ensino (corresponde a 100% da vespertino e noturno).
Professores e financiada fundamental I e II). quantidade de professores Principais lideranças dos professores por
por ONGs. da escola). área do conhecimento (articulador da área
de Linguagens, códigos e representações;
articulador da área de Ciências Humanas;
articulador da área de Ciências Exatas);
professores efetivos que se disponibilizaram.

Fonte: Elaborado por Silvia Kimo Costa (2013).

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(∑ total dos PD dos E ‑ coluna vertical) X 100


Porcentagem =
(∑ quantidade de E) X 20

O número “20” equivale à quantidade de perguntas que constam no roteiro de


entrevista semi‑estruturada. Para cada pergunta há um Ponto de Difração (ideia central)
que sintetiza uma quantidade “x” de palavras/expressões‑chave extraídas da resposta à
pergunta. Dessa forma, o que se quantifica é a ideia central do discurso verbalizado que
pode ser autoritário e/ou libertador.
Após a análise das características observadas no espaço edificado escolar e no
Projeto Político Pedagógico e da quantificação dos Pontos de Difração extraídos da fala
docente, foi elaborado um diagrama cartográfico que representa “as dobras e redobras do
processo de subjetivação dos sujeitos” (DELEUZE, 2006; 2008) quando sujeitos ao au-
toritarismo educacional e/ou à educação libertária. Quando o sujeito é sujeitado ao auto-
ritarismo educacional ocorre a dobra (flambagem) de invaginamento; quando é sujeitado
à educação libertária ocorre a dobra (flambagem) de emersão.

RESULTADOS E DISCUSSÕES
As Tabelas 2, 3 e 4 apresentam as características (espaço edificado e Projeto Político
Pedagógico) e quantificação de pontos de difração extraídos da fala docente em rela-
ção à predominância do autoritarismo educacional e da educação libertária em cada
escola analisada. Na sequência de cada tabela, apresentam‑se os diagramas cartográ-
ficos (Figuras 1, 2 e 3).
Os diagramas representados pelas Figuras 1, 2 e 3 mostram as quatro dobras do
processo de subjetivação sugeridas por Deleuze (2008): primeira dobra — corpo e seus
prazeres; segunda dobra — relação das forças homogeneizantes e segmentadoras do su-
jeito em indivíduo; terceira dobra — o saber que surge da relação entre o saber, o poder e
a verdade; e quarta dobra — captura do dentro e do fora.
Dessa forma, a primeira dobra foi identificada na fala docente através dos pontos de
difração que remetem mais à psicomotricidade ou a sentimentos (coração) ou a emoções
(desejos) ou a algo mais espiritualizado (sagrado, quase messiânico) no ofício de educador,
diferente de ser apenas um professor. Já a segunda foi identificada através dos Pontos de
Difração daquilo que sinaliza a questão entre a norma e a regra, do que deve ser dito diante
do que se poder dizer e da forma como é dito.
A terceira dobra foi identificada através dos pontos de difração que sinalizam a
vigilância hierárquica à qual os entrevistados estavam submetidos e que interfere em seu
comportamento. Refere‑se às obrigações, atividades e a quem devem se reportar dentro
da escola, quando se trata da prática discursiva do disciplinamento. Quando se trata da
prática discursiva da Libertação, os Pontos de Difração sinalizam o contrário, pois não há
hierarquia de poder, mas um consenso, uma sociocracia.

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Tabela 1 — Características (espaço edificado e Projeto Político Pedagógico) e quantificação de pontos de difração na fala docente em relação à
predominância do autoritarismo educacional e da educação libertária.

Instituição:
Espaço edificado e adjacentes Projeto Político Pedagógico
Descrição: Descrição:

% Autoritarismo educacional % Educação libertária % Autoritarismo educacional % Educação libertária

Pontos de Difração extraídos da fala docente


Entrevistado (E) Autoritarismo educacional Educação libertária Silêncios
D1 D2 D3 D4 Total D1 D2 D3 D4 Total D1 D2 D3 D4 Total
E1
En
Total
Porcentagem Porcentagem Porcentagem

Fonte: Elaborado pela autora Silvia Kimo Costa (2014).

Por fim, a quarta dobra foi identificada através de pontos de difração que indicam
movimentos sutis onde o social e o individual se misturam, bem como quais as teorias/
conveniências pessoais e situação da governamentalidade, somada às técnicas disci-
plinares, que fazem os docentes se camuflarem como “camaleões” ou se definirem por
uma “cor ou matiz ideológico”, onde a congruência é necessária — “sou um professor
Paulo Freiriando”, “Sou um professor Construtivista”, “Sou um professor Behaviorista”,
por exemplo.
A partir disso, verificou‑se que as Tabelas 2 e 3 referentes à escola representativa do
ensino particular e à do ensino público são similares. Da mesma maneira que os diagramas
cartográficos representados pelas Figuras 1 e 2, esses dados indicam que ambas as escolas
são marcadas pela predominância do autoritarismo educacional.
Esse autoritarismo ocorre através do exercício das técnicas disciplinares (micro-
poder): vigilância hierárquica, sanção normalizadora e o exame (FOUCAULT, 2011).
A vigilância hierárquica ocorre na fragmentação (setorização — esquadrinhamento) do
conteúdo do PPP, dispositivos de coerção que objetivam deixar visíveis aqueles sobre os
quais se aplicam. A sanção normalizadora, por sua vez, está implícita na normalização do
indivíduo e é corroborada pelo exame através da avaliação normalizadora de controle que
objetiva, indiretamente, qualificar, classificar e punir.
A análise do espaço edificado das duas escolas corrobora o que foi constatado em
seus PPP. A disposição dos ambientes reproduz o espaço setorizado (fragmentado) em sa-
las de aula ao longo de extensos corredores, como nas escolas e edificações Panópticas do
século XIX. As edificações apresentam extrema rigidez, não sendo possíveis adequações
dos ambientes internos; além disso, embora seja possível movimentar o mobiliário das
salas de aula, não há possibilidade de modulação (Figuras 4 e 5).

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TABELA 2 — Características (espaço edificado e Projeto Político Pedagógico) e quantificação de Pontos de Difração na fala docente em relação à
predominância do autoritarismo educacional e da educação libertária.

Escola representativa do ensino particular

Espaço edificado e adjacentes Projeto Político Pedagógico

Espacialização das edificações: apresenta disposição setorial, Objetivos: adequação do sujeito ao padrão existente —
mas separados em edificações individualizadas, dispostas com corrobora o sistema de pressão e coerção.
certa distância umas das outras, interligadas por corredores Princípios/filosofia da Escola: disciplinamento.
vedados com paredes e cobertura. Organização curricular: fragmentação das disciplinas por área do
Partido arquitetônico: pouca possibilidade de plasticidade conhecimento. Interdisciplinaridade precária.
das formas e flexibilidade dos espaços. Organização por nível de ensino: fragmentação dos conteúdos.
Layout das salas de aula: carteiras enfileiradas de frente Conteúdo ensinado de maneira linear, sem flexibilidade.
para o quadro. Sistema de avaliação: testes, trabalhos, provas.
Mobiliário: carteiras com pouca mobilidade e flexibilidade
de modulação.
Dispositivos de segurança e vigilância: monitores (vigilantes).

Autoritarismo educacional Educação libertária Autoritarismo educacional Educação libertária


100% 0% 100% 0%

Pontos de difração extraídos da fala docente


Entrevistado
(E) Autoritarismo educacional Educação libertária Silêncios

D1 D2 D3 D4 Total D1 D2 D3 D4 Total D1 D2 D3 D4 Total


E1 2,5 2 1 5,5 1,5 1 2 4,5 1 3 1 4 9
E2 6 4 5 1 16 4 4 0
E3 4 4 3 3 14 2 2 2 6 0
E4 6 4 5 5 20 0 0
E5 6 2 5 2 15 0 2 3 5
E6 6 4 5 2 17 3 3 0
E7 4 4 5 0 13 2 2 5 5
E8 6 4 5 4 19 1 1 0
E9 3 4 4 4 15 3 1 4 1 1
Total 43,5 30 39 22 134,5 8,5 1 5 10 24,5 1 5 1 13 20
Porcentagem (%) 74,23 Porcentagem (%) 13,62 Porcentagem (%) 12,15

Fonte: Resultados da pesquisa (2014).

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4ª Dobra – Captura do dentro e do fora 4ª Dobra – Captura do dentro e do fora

3ª Dobra – Saber surge da relação entre 3ª Dobra – Saber surge da relação entre o
o saber, o poder e a verdade saber, o poder e a verdade

2ª Dobra – Relação das forças 2ª Dobra – Relação das forças


homogeneizantes e segmentadoras do homogeneizantes e segmentadoras do
sujeito em indivíduo sujeito em indivíduo

1ª Dobra – O corpo e seus prazeres 1ª Dobra – O corpo e seus prazeres

Silêncio

FIGURA 1 — Diagrama cartográfico da escola representativa do ensino particular.


Fonte: Resultados da pesquisa (2014).

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TABELA 3 — Características (espaço edificado e Projeto Político Pedagógico) e quantificação de pontos de difração na fala docente em relação à
predominância do autoritarismo educacional e da educação libertária.

Escola representativa do ensino público

Espaço edificado e adjacentes Projeto Político Pedagógico

Espacialização das edificações — apresenta disposição Objetivos — adequação do sujeito ao padrão existente — corrobora
setorial com salas de aula e outros ambientes dispostos lado a o sistema de pressão e coerção.
lado ao longo de extensos corredores. Princípios/filosofia da Escola — disciplinamento.
Partido arquitetônico — pouca possibilidade de plasticidade Organização curricular — fragmentação das disciplinas por área do
das formas e flexibilidade dos espaços. conhecimento. Tentativa de Interdisciplinaridade através de práticas
Layout das salas de aula — carteiras enfileiradas de frente que envolvem projetos de pesquisa e estudos baseados em problemas
para o quadro. concretos.
Mobiliário — carteiras com pouca mobilidade e flexibilidade Organização por nível de ensino — fragmentação dos conteúdos.
de modulação. Conteúdo ensinado de maneira linear.
Dispositivos de segurança e vigilância — câmeras de Sistema de avaliação — testes, trabalhos, provas.
vigilância, portas com visor de vidro.

Autoritarismo Educacional Educação libertária Autoritarismo educacional Educação libertária


100% 0% 90% 10%

Pontos de difração extraídos da fala docente


Entrevistado
(E) Autoritarismo educacional Educação libertária Silêncios

D1 D2 D3 D4 Total D1 D2 D3 D4 Total D1 D2 D3 D4 Total

E1 3 4 5 5 17 3 3 0

E2 6 4 5 5 20 0 0
E3 2 3 2 7 4 1 3 5 13 0
E4 6 4 5 5 20 0 0
E5 6 4 3 2 15 2 3 5 0
E6 6 4 2,5 12,5 2,5 5 7,5 0
E7 6 4 5 5 20 0 0
E8 3 4 5 12 3 3 5 5
E9 6 4 5 5 20 0 0
E10 3 4 5 5 17 3 3 0
E11 6 4 5 5 20 0 0
E12 6 4 5 2 17 0 3 3
E13 3 4 5 2 14 3 3 6 0
Total 62 51 57,5 41 211,5 16 1 7,5 16 40,5 8 8
Porcentagem 81,3 Porcentagem 15,58 Porcentagem 3,07

Fonte: Resultados da pesquisa (2014).

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4ª Dobra – Captura do dentro e do fora 4ª Dobra – Captura do dentro e do fora

3ª Dobra – Saber surge da relação entre 3ª Dobra – Saber surge da relação entre
o saber, o poder e a verdade o saber, o poder e a verdade

2ª Dobra – Relação das forças 2ª Dobra – Relação das forças


homogeneizantes e segmentadoras do homogeneizantes e segmentadoras do
sujeito em indivíduo sujeito em indivíduo

1ª Dobra – O corpo e seus prazeres 1ª Dobra – O corpo e seus prazeres

Silêncio

FIGURA 2 — Diagrama cartográfico da escola representativa do ensino público.


Fonte: Resultados da pesquisa (2014).

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TABELA 4 — Características (espaço edificado e Projeto Político Pedagógico) e quantificação de pontos de difração na fala docente em
relação à predominância do autoritarismo educacional e da educação libertária.

Escola dirigida por uma Associação de Pais e Professores e financiada por ONG

Espaço edificado e adjacentes Projeto Político Pedagógico

Espacialização das edificações: sem disposição setorial. Objetivos: desenvolvimento do pensamento crítico,
Edificações individualizadas, dispostas com certa distância sem pressões ou coerção.
umas das outras, interligadas por passarelas ao ar livre. Princípios/filosofia da Escola: propõe que o indivíduo seja
Partido arquitetônico: Geometrização (com a predominância das capaz de transformar e estimula a criatividade.
linhas retas) e formas orgânicas. Organização curricular: não há fragmentação dos conteúdos por
Layout das salas de aula — carteiras dispostas de maneira disciplinas. Exercício da intertransdisciplinaridade.
aleatória formando grupos. Organização por nível de ensino: não há determinação da estrutura
Mobiliário — carteiras com mobilidade e flexibilidade dos níveis de ensino por fragmentação hierárquica.
de modulação. São considerados princípios evolutivos do ser humano.
Dispositivos de segurança e vigilância: não existem. Sistema de avaliação: são considerados aspectos qualitativos.
Relatório descritivo sobre o desempenho do(a) aluno(a)
ao longo do ano.

%Autoritarismo Educacional %Educação libertária %Autoritarismo educacional %Educação libertária


0% 100% 0% 100%

Pontos de difração extraídos da fala docente


Entrevistado
Autoritarismo educacional Educação libertária Silêncios
(E)
D1 D2 D3 D4 Total D1 D2 D3 D4 Total D1 D2 D3 D4 Total
E1 1 1 6 3 5 5 19 0
E2 1 1 6 3 5 5 19 0
E3 2 1 3 6 2 4 5 17 0
E4 1 1 6 3 5 5 19 0
E5 1 1 6 3 5 5 19 0
E6 1 1 6 3 5 5 19 0
E7 0,5 1 1,5 5,5 3 5 5 18,5 0
E8 1 1 6 3 5 5 19 0
E9 1 1 6 3 5 5 19 0
E10 1 1 6 3 5 5 19 0
Total 0,5 11 1 0 12,5 59,5 29 49 50 187,5 0
Porcentagem 6,25 Porcentagem 93,75 Porcentagem 0

Fonte: Resultados da pesquisa (2014).

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4ª Dobra – Captura do dentro e do fora 4ª Dobra – Captura do dentro e do fora

3ª Dobra – Saber surge da relação entre 3ª Dobra – Saber surge da relação entre
o saber, o poder e a verdade o saber, o poder e a verdade

2ª Dobra – Relação das forças 2ª Dobra – Relação das forças


homogeneizantes e segmentadoras do homogeneizantes e segmentadoras do
sujeito em indivíduo sujeito em indivíduo

1ª Dobra – O corpo e seus prazeres 1ª Dobra – O corpo e seus prazeres

Silêncio

FIGURA 3 — Diagrama cartográfico da escola dirigida por uma Associação de Pais e Professores e financiada por ONG.
Fonte: Resultados da pesquisa (2014).

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Essas características dificultam práticas de ensino e aprendizagem que seguem


abordagens humanistas, cognitivo‑interacionistas e socioculturais consideradas nesta
pesquisa como libertárias. Nelas, o ensino deixa de estar centralizado no professor e o
aluno não é mais um receptor passivo, mas um colaborador que deve buscar/criar conhe-
cimento junto ao professor.
No que se refere ao discurso verbalizado dos docentes em ambas as escolas, a
quantificação de Pontos de Difração indica que a pressão/coerção exercidas pelos ma-
cro e micropoderes do Disciplinamento, que provocam a dobra de invaginamento, são
muito maiores do que a contraforça que permite a dobra de emersão. Já a escola dirigida

1. Igreja 13. Sala para matrícula


2. Sala de aula (antigo dormitório) 14. Mecanografia
3. Sala de aula (antigo dormitório) 15. Espaço com diversas salas
4. Sala de aula (antigo dormitório) (antigo banheiro coletivo)
5. Banheiro 16. Almoxarifado
6. Banheiro 17. Almoxarifado
7. Sala de aula (antigo dormitório) 18. Financeiro
8. Sala de aula (antigo dormitório) 19. Sala de recepção da escola
9. Igreja (dependências) 20. Museu
10. Igreja (dependências) 21. Museu
11. Museu 22. Sala da Diretoria Pedagógica Geral
12. Museu

FIGURA 4 — Planta baixa do pavimento térreo da edificação principal da escola representativa do ensino particular.
Fonte: Desenho elaborado por Costa (2014).

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13 14 15 16 1. Entrada
2. Biblioteca
3. Auditório
12 4. Administrativo (diretorias,
secretaria, coordenação e sala
11 8 9 6 5 de professores)
5. Hall de circulação
7 4 6. Recreio coberto
10 7. Cozinha
8. Despensa
9. Cantina
18 10. Serviço
17 11. Vestiário feminino
12. Vestiário masculino
13. Sanitário masculino
14. Sanitário feminino
15. Sanitário serviço
16. Sanitário p/ portadores de
deficiência
3 17. Jardim interno
18. Jardim Interno

1. Entrada 10. Serviço


2. Biblioteca 11. Vestiário feminino
3. Auditório 12. Vestiário masculino
4. Administrativo (diretorias, secretaria, 13. Sanitário masculino
coordenação e sala de professores) 14. Sanitário feminino
5. Hall de circulação 15. Sanitário serviço
6. Recreio coberto 16. Sanitário p/ portadores de deficiência
7. Cozinha 17. Jardim interno
8. Despensa 18. Jardim Interno
9. Cantina

FIGURA 5 — Planta Baixa do pavimento térreo da escola representativa do ensino público.


Fonte: Desenho elaborado por Costa (2014).

por uma Associação de Pais e Professores e financiada por ONG apresenta realidade
oposta. A Tabela 4 e o diagrama cartográfico representado pela Figura 3 indicam que a
escola é marcada pela predominância da Educação Libertária. Isso acontece porque o
conteúdo do Projeto Político Pedagógico dessa escola não foi pautado em dispositivos
de coerção, os quais objetivam deixar visíveis aqueles sobre os quais se aplicam; não há
fragmentação em disciplinas específicas; todas as áreas do conhecimento se comple-
mentam (um exercício de interdisciplinaridade); e o professor exerce uma (inter‑trans)
disciplinaridade. Além disso, não há intenção de normalização do indivíduo (um modelo
ideal a ser seguido), são respeitadas a individualidade e o tempo de amadurecimento e
aprendizado de cada aluno. Por fim, não existe o exame, a avaliação normalizadora de

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controle que objetiva qualificar, classificar e punir. O aluno é diagnosticado de maneira


qualitativa, sendo considerado seu crescimento intelectual, cognitivo, físico, emocional
e espiritual, isto é, um crescimento para o qual não se atribuem notas.
Quanto ao espaço edificado e espaços adjacentes, os ambientes distam fisicamen-
te uns dos outros, pois cada espaço é um núcleo específico de imersão e emersão para o
aluno. A interconexão entre esses espaços ocorre através de passarelas ao ar livre em meio
a vegetação remanescente da Mata Atlântica (Figura 6). A escola não apresenta indícios
do panoptismo.
No que se refere ao discurso verbalizado dos docentes, a quantificação de Pontos
de Difração indica que a pressão/coerção exercidas pelos macro e micropoderes do disci-
plinamento, e que provocam a dobra de invaginamento, não são suficientes para impedir
a contraforça que origina a dobra de emersão. Há um rompimento do processo de frag-
mentação, vigilância hierárquica, normalização e esquadrinhamento do corpo, típicos do
Disciplinamento.
Dessa maneira, pontua‑se que a predominância do autoritarismo educacional ou
da educação libertária nas escolas analisadas independe da quantidade de docentes e
discentes, pois o determinante é a prática discursiva (FOUCAULT, 2012b) que dá voz aos
sujeitos sujeitados por ela. Assim, com base na análise dos discursos Arquitetura, Projeto
Político Pedagógico e Práticas de Ensino e Aprendizagem docente, foi possível avaliar
como o poder simbólico vem se estruturando em cada escola analisada. Constatou‑se

1. Sala de artes e música


2. Primeira série
3. Quinta série
4. Terceira série
5. Segunda série
6. Quarta série
7. Sexta série
8. Sétima série
9. Oitava série
10. Banheiros
11. Jardim de Infância

FIGURA 6 — Planta de implantação da escola dirigida por uma Associação de Pais e Professores e financiada por ONG.
Fonte: Desenho elaborado por Costa (2014).

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que o autoritarismo educacional, predominante tanto na escola representativa do ensino


particular quanto na do ensino público, que sujeita os docentes ao Disciplinamento, e a
educação libertária, predominante na escola dirigida por uma Associação de Pais e Profes-
sores e financiada por ONG, que sujeita os docentes à Libertação, fazem com que esses
sujeitos se modifiquem profundamente. Isso não acontece de maneira superficial, mas no
eu (Cogito2) de cada um, como resultado da pressão psicossocial.
Dessa forma, é a modificação do eu (uma minimização do Cogito) que interfere
diretamente e reforça ou não a forma como o poder simbólico vem se estruturando e
se hierarquizando dentro de cada escola analisada. Tanto na escola representativa do
ensino particular quanto na do ensino público o autoritarismo educacional proporciona
o exercício do poder como aquele que se impõe como legítimo, dissimulando a força
que há em seu fundamento e que é exercida porque é reconhecida. Assim, as ordens são
executadas com eficiência, pois aqueles que as executam acreditam indiscutivelmente
nelas (CASTRO, 1998).
Já na escola dirigida por uma Associação de Pais e Professores e financiada por
ONG, a predominância da educação libertária dificulta o exercício explícito e/ou im-
plícito do micropoder (técnicas disciplinares). Dessa forma, o poder simbólico como
aquele que é subordinado, irreconhecível, transfigurado e legitimado de outras formas
de poder (BOURDIEU, 1989) não se sustenta, porque o mesmo não é reconhecido,
logo não pode ser exercido.

CONCLUSÃO
Explorar a complementaridade entre diferentes áreas do conhecimento é um desafio e
acontece quando o arcabouço teórico da área de formação inicial do pesquisador não é
suficiente para responder seus questionamentos. Sendo assim, para mapear os discur-
sos Arquitetura, Projeto PPP de Ensino e Aprendizagem docente na estruturação e hie-
rarquização do poder simbólico em escolas, foi necessário transitar por cinco diferentes
áreas do conhecimento e encontrar seus pontos de contato.
Esses pontos de contato foram identificados como sendo: na Arquitetura, o
espaço edificado escolar onde acontecem as práticas de ensino e aprendizagem e
as relações interpessoais; na Pedagogia, as bases teóricas das práticas de ensino e
aprendizagem que ocorrem no espaço edificado escolar; na Sociologia, os estudos
acerca do poder simbólico que ocorre no espaço também simbólico através das re-
lações interpessoais no vivenciar cotidiano do espaço edificado escolar. E no que se
refere aoespaço simbólico, remete‑se à subjetividade (formas de agir e pensar que são
construídas, desconstruídas e reconstruídas constantemente). Já na Psicossociolo-
gia, identificou‑se os estudos sobre a subjetividade. O que implica um mapeamento,
uma “cartografia das subjetividades” inerente às relações interpessoais que ocorrem
no espaço edificado escolar; na Arqueogenealogia, os estudos sobre o discurso e a

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prática discursiva, aquilo que dá voz aos sujeitos e constrói, desconstrói e reconstrói
constantemente a subjetividade.
Após a identificação desses pontos de contato entre as áreas de conhecimento,
explorou‑se a fundamentação teórica para criar a metodologia para coleta e análise das
informações. A pesquisa optou por uma “cartografia das subjetividades” após verificar
que as práticas de ensino e aprendizagem determinavam a configuração do espaço físico
do ambiente de ensino. Ora corroborando um disciplinamento dos corpos, ora possibi-
litando uma emersão da coerção/sedução de macro e micropoderes, através de práticas
de ensino e aprendizagem de cunho “libertárias”. Como resultado final, constatou‑se
que é justamente essa pressão psicossocial sobre o sujeito (docente) para imergir ou
emergir da “dobra” (processo de subjetivação) que estrutura ou não o poder simbólico
nas escolas analisadas.
Dentre as principais contribuições da pesquisa destacam‑se: descrição dos
indícios do panoptismo e da educação libertária na Arquitetura e no PPP das escolas
e análise dos discursos através da extração de Pontos de Difração e do processo de
subjetivação dos sujeitos (docentes) através dos diagramas cartográficos. Estes, es-
pecificamente, são uma inovação desenvolvida durante a pesquisa e podem se tornar
padrões gráficos ao analisar outras escolas e instituições com características seme-
lhantes e, em certa medida, serem compreendidos como uma representação gráfica
de identidades institucionais.

NOTAS
1. A referida tese foi apresentada e aprovada pelo Curso de Pós‑Graduação em Desenvolvimento e
Meio Ambiente na Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus (BA), em 18 de agosto de 2014, e
disponibilizada para o público em 18 de outubro 2014.

2. O termo Cogito vem da expressão Cogito ergo sum é uma declaração filosófica usada por René
Descartes e significa que se alguém está se perguntando se deve ou não existir, é por si só uma prova
de sua existência. Segundo Roy (2003), a alto‑evidência do Cogito não depende de uma demonstra-
ção linguística de sua validade inferencial, mas sim da qualidade da percepção da realidade objetiva
que a ideia possui. Ou seja, uma clara e distinta percepção das ideias do pensamento é suficiente
para pronunciar ou escrever: Cogito ergo sum ‑ “Eu penso, logo existo”.

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SILVIA KIMO COSTA | Universidade Federal do Sul da Bahia | Instituto de Humanidades, Artes e Ciên-
cias | Centro de Formação em Ciências e Tecnologias Agroflorestais. Rod. Itabuna, km 39, BR 415,
Recebido em
Campus Jorge Amado, Ferradas, 45613‑204, Itabuna, BA, Brasil | Correspondência de/Correspon-
14/9/2015,
dence to: costa, S.K. | E‑mail: <skcosta@ufsb.edu.br>.
reapresentado
em 22/12/2015 MILTON FERREIRA DA SILVA JUNIOR | Universidade Federal do Sul da Bahia | Instituto de Humani-
e aprovado em dades, Artes e Ciências | Centro de Formação em Ciências e Tecnologias Agroflorestais. Itabuna,
30/08/2016. BA, Brasil.

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O PIONEIRISMO DO CENTRO DE PESQUISAS E
ESTUDOS URBANÍSTICOS NA IDEALIZAÇÃO E IMPLANTAÇÃO
DOS CONCEITOS DE URBANISMO MODERNOS NO
ESTADO DE SÃO PAULO (1957 A 1961)
THE CENTER OF RESEARCH AND URBAN STUDIES: A PIONEER IN FORMING AND
IMPLANTING CONCEPTS OF MODERN URBANISM IN SÃO PAULO (1957 — 1961) | EL
CENTRO DE INVESTIGACIÓN Y ESTUDIOS URBANOS: PIONERO EN LA IDEALIZACIÓN Y LA
APLICACIÓN DE LOS CONCEPTOS DE URBANISMO MODERNO EN
EL ESTADO DE SÃO PAULO (1957 — 1961)

ANA MARIA REIS DE GOES MONTEIRO, TAIANA CAR VIDOTTO

RESUMO
Objetiva-se com esse artigo analisar, por meio de suas publicações, a atuação do
Centro de Pesquisas e Estudos Urbanísticos da Faculdade de Arquitetura e Urba-
nismo da Universidade de São Paulo no cumprimento de suas finalidades: a orga-
nização de planos diretores, suas análises e inquéritos preliminares; a realização de
planos e estudos do uso da terra, com a proposição de regulamentos. Esta análise
focaliza o período entre 1957, quando o Centro de Pesquisas e Estudos Urbanísticos
foi instalado, e 1961, fase em que foi dirigido por Luís de Anhaia Mello. Criado em
um contexto de construção do campo profissional do arquiteto como urbanista, o
Centro desenvolveu estudos e pesquisas na área de Planejamento Urbano, bem
como Planos Diretores em municípios do Estado de São Paulo, promovendo a di-
vulgação de seus processos de levantamento e produção de projetos urbanísticos.
Por meio dessa atividade prática, de modo pioneiro, foram consolidadas as bases
teóricas para o ensino do urbanismo e para a atuação profissional do arquiteto e
urbanista no Estado de São Paulo.
PALAVRAS‑CHAVE: Arquitetura e urbanismo. Planejamento urbano. Plano diretor em
município.

ABSTRACT
This article aims to analyze the work of the Center of Research and Urban Studies
from the School of Architecture and Urbanism at the University of São Paulo in
fulfilling its goals: the organization of master plans, as well as their analyses and pri-
mary investigations; the accomplishment of plans and studies for land use, proposing
regulation terms. The analysis is carried out between 1957, when it was installed,

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and 1961, when directed by Luis de Anhaia Mello. Created during the construction
of the professional field of the architect as urban planner, the School of Architecture
and Urbanism developed studies and researches in the area of Urban Planning and
Master Plans in municipalities of São Paulo, promoting the dissemination of its sur-
vey methods and urban plans. Its practical activity consolidated in a pioneering way
the theoretical foundations for urban planning and for the education and professional
work of the architect and urban planner in the State of São Paulo.
KEYWORDS: Architecture and urbanism. Urban planning. Master plan in the municipality.

RESUMEN
Este artículo tiene como objetivo analizar, a través de sus publicaciones, el trabajo del
Centro de Investigación y Estudios Urbanos (Centro de Pesquisas e Estudos Urba-
nísticos) de la Facultad de Arquitectura y Urbanismo de la Universidad de São Paulo
en el cumplimiento de sus metas: la organización de planes maestros, sus análisis e
investigaciones preliminares; la realización de planes y estudios de uso de la tierra,
con la propuesta de reglamentos. El análisis se centró en el período entre 1957, cuan-
do se instaló en Centro de Estudio, y 1961, fase durante la cual fue dirigido por Luis
de Anhaia Mello. Creado en un contexto de construcción del campo profesional del
arquitecto como urbanista, el Centro de Investigación y Estudios Urbanos desarrolló
estudios e investigaciones en el área de Planificación Urbana y Planes Maestros en
municipios del Estado de São Paulo, promoviendo la difusión de sus procesos de veri-
ficación y producción de proyectos urbanísticos. A través de dicha actividad práctica,
de forma pionera, se consolidaron las bases teóricas para la enseñanza del urbanismo
y para la actuación profesional del arquitecto y urbanista en el Estado de São Paulo.
PALABRAS CLAVE: Arquitectura y urbanismo. La planificación urbana. Plan maestro en el municipio.

INTRODUÇÃO
Na década de 1930, quando da realização do IV Congresso Pan-Americano de Arquite-
tos na cidade do Rio de Janeiro, ampliou-se a discussão acerca do urbanismo enquanto
prática profissional dos arquitetos. Na ocasião, acordou-se que deveriam ser incluídas
disciplinas na graduação ou implementados cursos superiores de Urbanismo nas insti-
tuições que ministravam o ensino de arquitetura. Naquele momento, “houve um cres-
cente amadurecimento no pensamento sobre as atribuições profissionais do arquiteto
somando à tradicional concepção do homem das artes, noções de ciência, técnica e
planejamentos habitacional e regional” (ATIQUE, 2014, p.24). Em 1941, também no
Rio de Janeiro, foi realizado o I Congresso Brasileiro de Urbanismo, no qual foi discutida
a necessidade da realização de planos diretores municipais, bem como do levantamento
de estudos sobre a história das cidades, da legislação urbanística e da administração

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municipal no Brasil. Em sintonia com esses eventos, foram criados, nos anos de 1945
e 1947, Departamentos de Urbanismo nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo
(FARIA, 2009). Segundo Feldman (2004), nesse período consolidou-se o conceito de
planejamento como função do governo, sendo este ‘parte integrante de todas as ações e
setores da administração municipal’.
No âmbito do ensino, seguindo a indicação do IV Congresso Pan-Americano e
do I Congresso Brasileiro de Arquitetos, a primeira escola autônoma de arquitetura,
a Faculdade Nacional de Arquitetura da Universidade do Brasil, criada pelo Decreto-
-Lei nº 7.918, de 1945 (BRASIL, 1945), tinha como finalidades “ministrar o ensino
de arquitetura e de urbanismo, visando a preparação de profissionais altamente ha-
bilitados”, bem como “realizar estudos e pesquisas nos vários domínios técnicos e
artísticos, que constituem objeto de seu ensino” (FACULDADE NACIONAL DE
ARQUITETURA, 1945).
Posteriormente, em 1948, foi criada a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade de São Paulo (FAUUSP), mediante lei promulgada pela Assembleia Legis-
lativa sob o n° 104 (ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE SÃO PAULO,
1948). A lei estabelecia que, no ano de 1949, a FAUUSP deveria iniciar seu curso de
Urbanismo, em nível de pós-graduação, para profissionais já formados em Arquitetura ou
Engenharia Civil (artigo 12 e parágrafo único do artigo 3°).
Em 1955, sem que isso se concretizasse, buscou-se cumprir quanto ao Urba-
nismo a segunda finalidade da criação da Faculdade: “realizar estudos e pesquisas nos
vários domínios técnicos e artísticos, que constituem objeto de seu ensino” (ASSEM-
BLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE SÃO PAULO, 1948, p.14), mediante a cria-
ção do Centro de Pesquisas e Estudos Urbanísticos (CPEU), instituído pela Lei Pau-
lista nº 3.233/55:

Artigo 6.º – Fica criado, anexo à cadeira de Urbanismo, do Curso de Arquitetura, um


Centro de Pesquisas e Estudos urbanísticos, sob a direção do professor da cadeira.
Este Centro (C. P. E. U.) destina-se:
I – a realizar pesquisas, análises e inquéritos preliminares à execução de planos
urbanísticos parciais ou gerais;
II – a organizar planos diretores para os municípios que o desejarem;
III – a realizar planos e estudos relativos à habitação, uso da terra, regulamento e
programas;
IV – à prática e exercícios dos alunos da cadeira e do curso de Urbanismo da Facul-
dade; e
V – à propaganda, educação e divulgação, de forma a facilitar a solução dos pro-
blemas urbanísticos (ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE SÃO
PAULO, 1955, p.2).

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Nesse contexto, objetiva-se analisar, por meio de suas publicações, a atuação do


Centro de Pesquisas e Estudos Urbanísticos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
da Universidade de São Paulo no cumprimento de suas finalidades: a organização de pla-
nos diretores, suas análises e inquéritos preliminares; e a realização de planos e estudos
do uso da terra, com a proposição de regulamentos.
A presente análise se dará por meio das publicações1 do CPEU produzidas entre
os anos de 1957, quando ele foi instalado, e 1961, período no qual esteve sob a direção de
Luís de Anhaia Mello2. Segundo Brenno Cyrino Nogueira, nesse período foram desen-
volvidas as ‘linhas mestras das orientações adotadas nos anos subsequentes pelo CPEU’
(CENTRO DE PESQUISA E ESTUDOS URBANÍSTICOS, 1971). Desse modo, serão
utilizados como fonte os textos publicados no período: “Organização e funções da comis-
são do plano diretor nos municípios” (CENTRO DE PESQUISA E ESTUDOS URBA-
NÍSTICOS, 1958); “Organização comunitária para o Planejamento”; o Boletim nº 4, com
o título de “Anteprojeto de Lei de Loteamentos e respectivas normas técnicas” CENTRO
DE PESQUISA E ESTUDOS URBANÍSTICOS (1960a); e os Boletins reeditados para
publicação no ano de 1963, baseados em textos originais dos anos entre 1957 e 1961. São
eles: o Boletim nº 1, “Elementos para o planejamento territorial dos municípios” (original
de 1957) (CENTRO DE PESQUISA E ESTUDOS URBANÍSTICOS, 1963c); o Bole-
tim nº 5, “Documentos sobre organização comunitária”, reunindo textos de 1957 a 1960
(CENTRO DE PESQUISA E ESTUDOS URBANÍSTICOS, 1963b); e o Boletim nº 7,
“O Centro de Pesquisas e Estudos Urbanísticos e os convênios realizados para o Planeja-
mento das Estâncias do Estado de São Paulo” (CENTRO DE PESQUISA E ESTUDOS
URBANÍSTICOS, 1963d) , original de 1959. Além dos Boletins, será analisado o texto
“Elementos necessários para elaboração de pesquisa para Planos Diretores Municipais”,
redigido em 1959 e reeditado em 1971 (CENTRO DE PESQUISA E ESTUDOS UR-
BANÍSTICOS, 1971). Foram excluídas dessa análise as publicações que tratavam de
estudos preliminares dos Planos Diretores.
Na ocasião, segundo o Decreto nº 23.569 (BRASIL, 1933) que regulava a profis-
são, arquitetos e engenheiros civis estavam habilitados a realizar o projeto, direção e fisca-
lização de serviços de urbanismo. Contudo, desde a criação da primeira escola autônoma
de arquitetura, a Faculdade Nacional de Arquitetura, havia o interesse na formação de
urbanistas por parte das escolas de arquitetura, ao proporem a pós-graduação em Urba-
nismo como complemento ao curso de Arquitetura, este com cinco anos de duração. No
caso da FAUUSP não foi diferente: a lei propunha a criação do curso de Urbanismo desde
1949, o que não se efetivou. Segundo Birkholz e Nogueira (1992), dentre os entraves para
a criação do curso de Urbanismo estava a necessidade de formação de um número maior
de arquitetos, pois era pré-requisito ao curso a conclusão da graduação em Arquitetura.
Ainda assim, a proposta da criação do CPEU, anexo à cadeira de Urbanismo no
curso de graduação, colaborou para a construção e a consolidação do campo profissio-

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nal do urbanista, em conjunto com o de arquiteto (FELDMAN, 2005). Nesse sentido,


o trabalho conjunto entre o Instituto de Arquitetos do Brasil / seção de São Paulo (IAB/
SP) e a FAUUSP colaborou para a aprovação, pela Assembleia Legislativa do Estado de
São Paulo, da Lei nº 3.233 de 1955 (ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE
SÃO PAULO, 1955), que dispunha sobre o regulamento da faculdade, sua autonomia
em relação à Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e a criação do CPEU.
Assim, este foi instalado em junho de 1957, ocupando uma sala da “Vila Penteado”.
Entretanto, a aprovação para sua criação não se dera de forma unânime entre os
profissionais que atuavam como arquitetos em São Paulo, e o discurso de oposição se
intensificou, tomando espaço dentro e fora da FAUUSP. Além de ser um órgão de pesqui-
sa, o CPEU tinha como finalidade a organização de Planos Diretores, o que, na visão de
alguns arquitetos reunidos no IAB/SP, feriria a profissão e ofereceria uma concorrência
desleal aos profissionais e seus escritórios, visto que o Centro estava vinculado à escola e
não a uma entidade profissional (VIDOTTO, 2014).
Segundo Feldman (2005), o CPEU fez parte de uma rede de instituições, cria-
das fora da administração pública, que trouxeram legitimidade à atuação dos arquite-
tos no campo do planejamento. A autora comenta sobre a atuação do CPEU junto às
Prefeituras na promoção de planos urbanos, na publicação de Boletins para divulgação
de sua metodologia e na formação de novos técnicos. Diante dessas circunstâncias, as
publicações cumpriram a importante tarefa de divulgação dos trabalhos do Centro de
Pesquisas. Com elas, objetivava-se fornecer subsídios para a organização de trabalhos
semelhantes no campo do planejamento urbano, além de alertar os governos muni-
cipais da importância de planejar a ampliação e desenvolvimento das cidades. Acres-
centava-se ainda o desejo de formular bases teóricas a partir de experiências práticas,
as quais pudessem ser levadas para o plano do ensino de planejamento, resultando
na construção de um novo campo profissional, em conjunto com outras instituições,
como a Sociedade de Análise Gráfica e Mecanográfica Aplicada e Complexos Sociais,
criada em 1947 (CENTRO DE PESQUISA E ESTUDOS URBANÍSTICOS, 1960a;
1960b; 1963c; FELDMAN, 2005; SIQUEIRA, 2013). Como resultado, por meio da
atividade prática do Centro de Pesquisas, foram consolidadas bases teóricas para o
ensino do urbanismo e para a atuação profissional, colaborando para a efetivação das
proposições dos eventos realizados desde a década de 1930.

A ORGANIZAÇÃO DE PLANOS DIRETORES


Uma das principais funções desempenhadas pelo CPEU foi a organização de Planos Di-
retores, que incluíam a análise dos municípios e a realização de inquéritos preliminares,
conforme os incisos I e II do artigo 6º da criação do CPEU (Lei Paulista nº 3.233/1955)
(ASSEMBLÉIA LESGISLATIVA DO ESTADO DE SÃO PAULO, 1955). A possibili-
dade de execução desses se deu por meio de uma parceria com o Estado de São Paulo3,

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articulada por Lauro Bastos Birkholz, que na época era Chefe Técnico Administrativo
do Centro de Pesquisas e Diretor de Planejamento do Departamento de Obras Sanitá-
rias da Secretaria de Serviços e Obras Públicas do Estado. Como uma das demandas
desse Departamento era a elaboração de Planos Diretores para municípios e para es-
tâncias hidrominerais, climáticas e balneárias do Estado, e como não havia profissionais
preparados para tais tarefas, foi estabelecido um convênio com o CPEU (BIRKHOLZ
& NOGUEIRA, 1992)
Nesse contexto, o primeiro Boletim publicado pelo CPEU, de autoria de Anhaia
Mello, buscava responder o que era um Plano Diretor. Para tal, foram expressos seus con-
ceitos de planejamento, definido como a “ordenação e equipamento do espaço coletivo”
(CENTRO DE PESQUISA E ESTUDOS URBANÍSTICOS, 1963a, p.8). Adicionava-
-se a essa descrição “a arte de coordenar, de integrar, de equipar o espaço coletivo, deve ser
a grande arte social da atualidade o grande antídoto para os males referidos” (CENTRO
DE PESQUISA E ESTUDOS URBANÍSTICOS, 1963c, p.9). O autor apontava que
o espaço coletivo, urbano ou rural, não era um espaço de simples desenho geométrico,
com soluções de engenharia, “mas espaço social, complexo, heterogêneo, sensível, vivo,
palpitante, formado de uma multiplicidade de grupos primários e secundários, exigindo
soluções humanas e sociais” (CENTRO DE PESQUISA E ESTUDOS URBANÍSTI-
COS, 1963c, p.11). Anhaia Mello também criticava a característica metropolitana das
cidades, pois, para ele, estas deveriam ter no mínimo 30 mil habitantes e no máximo entre
100 mil e 150 mil habitantes. Com esses pressupostos, o planejamento era considerado
um processo a ser definido pela realização das seguintes etapas: antecipação das necessi-
dades e coordenação de meios para a concepção e realização de “um molde que permita
a satisfação plena das necessidades”, humanas e sociais (CENTRO DE PESQUISA E
ESTUDOS URBANÍSTICOS, 1963c, p.13). Para os técnicos do CPEU, o planejamento
visava:

[...] a elevação do standard de vida da massa da população; a formação da cidade


orgânica e funcional de população limitada; a reorganização técnica, econômica e
espiritual dos campos e zonas rurais; a preservação do ambiente “primevo”, florestas
e rios, no interesse da saúde, do recreio regional, da conservação da flora e fauna;
manutenção do admirável, divino equilíbrio dos sistemas da natureza (CENTRO
DE PESQUISA E ESTUDOS URBANÍSTICOS, 1963c, p.13).

Para Anhaia Mello, a atuação com o planejamento urbano deveria cumprir cinco
fases: (1) a fixação do objetivo; (2) os inquéritos e (3) pesquisas para identificar as necessi-
dades; (4) a coleta de dados essenciais tanto do local quanto dos seus habitantes; (5) a pro-
posição de um Plano Diretor, explicitando as ‘linhas mestras do desenvolvimento’. No Plano
Diretor deveriam ser especificados os sistemas de vias principais, zoneamento e espaços

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livres verdes, bem como os problemas de desenvolvimento local e organização comunitária.


O zoneamento, por sua vez, deveria elencar as “funções da vida em relação ao uso dessas
áreas: residência, trabalho, recreio (físico e espiritual) e circulação” (CENTRO DE PES-
QUISA E ESTUDOS URBANÍSTICOS, 1963c, p.17). Além desses incluíam-se, os planos
executivos, que abarcavam obras a realizar de cinco em cinco anos e, por fim, a “formação
do que se chama a consciência urbanística da população”, de cunho educativo (CENTRO
DE PESQUISA E ESTUDOS URBANÍSTICOS, 1963c, p.14).
O Boletim nº 1 incluía também as etapas primordiais para a ordenação espacial e
territorial. A primeira era o estabelecimento das artérias principais, tanto na zona urbana
quanto na zona rural, incluindo o cinturão verde que delimitaria a área urbana e definiria
as funções de circulação e entorno. Na sequência, deveria ser estabelecido o macrozo-
neamento entre os usos primevo (recreio, conservação e reflorestamento), rural (horti e
floricultura, silvicultura, agricultura, pecuária e recreio regional) e urbano (residência,
trabalho, comércio e indústria, recreio físico e espiritual, e circulação). A terceira etapa
seria a subdivisão desses setores, o que incluía o grid secundário de vias, a definição de
espaços livres e de recreio, bem como dos equipamentos sociais e serviços públicos, com o
método chamado “zoneamento diferencial (micro zoneamento) — fixando áreas, alturas,
volumes e densidade demográfica” (CENTRO DE PESQUISA E ESTUDOS URBA-
NÍSTICOS, 1963c, p.22).
Acrescentava-se a isso a defesa de uma cidade com diversos núcleos, hierarqui-
zados, sendo, de um lado, o centro principal como core, núcleo e coração da cidade, e,
de outro, os centros secundários, o das unidades de vizinhança e das unidades residen-
ciais, onde se pudesse passar parte da vida cívica (CENTRO DE PESQUISA E ESTU-
DOS URBANÍSTICOS, 1963c). No centro principal estavam localizados os setores
de administração e negócios (compreendendo mercado e rua comercial), de diversão
cultural, além de ser lugar de reunião da população, o lugar representativo da cidade.
No centro secundário, na escala da vizinhança, estavam o grupo escolar, o centro co-
munitário com cinema, o centro de saúde, o play-field e um centro comercial com trinta
a quarenta lojas (CENTRO DE PESQUISA E ESTUDOS URBANÍSTICOS, 1963c).
Para Anhaia Mello, “as nossas cidades atuais mononucleadas, com um só centro, para o
qual tudo converge, criando problemas terríveis, devem ser transformadas em cidades
polinucleadas, constituídas de elementos orgânicos associados [...] Cidades em cachos
(grappe), não em alvo (cible)” (CENTRO DE PESQUISA E ESTUDOS URBANÍS-
TICOS, 1963c, p.34).
Além desses referenciais, o Boletim nº 1 (CENTRO DE PESQUISA E ES-
TUDOS URBANÍSTICOS, 1963c) apontava que uma boa ocupação do solo deveria
compreender algumas regras, dentre as quais a noção de que, em uma hora a pé e em
uma distância não superior a 4,8 quilômetros, deveriam se encontrar todos os usos
cotidianos. Na escala da residência, a habitação nunca deveria ser menor que 100m2,

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sendo que uma pessoa precisaria de, no mínimo, 30m2 para viver. A ocupação do lote
não poderia ser superior a um terço de sua área, considerando o lote mínimo de 360m2,
com 12mx30m. O último índice publicado no Boletim era a relação entre as áreas ver-
des e o número de habitantes, que deveria ser de 20m2 por pessoa. Quanto ao método
para a construção de um projeto que atendesse a tais exigências, seguindo os conceitos
abordados no primeiro Boletim, o CPEU estabeleceu quatro pontos fundamentais: a
obtenção de recursos financeiros, a realização do levantamento (por meio de pesquisa
de campo, levantamento aerofotogramétrico, tabelas e gráficos) do município, e a con-
tratação de um arquiteto e de pesquisadores especializados (CENTRO DE PESQUISA
E ESTUDOS URBANÍSTICOS, 1963d).
Por sua vez, o documento “Organização Comunitária para o planejamento”, pu-
blicado em 1960 (CENTRO DE PESQUISA E ESTUDOS URBANÍSTICOS,1960b),
continha um quadro intitulado ‘Processo de Planejamento Territorial’, abaixo reproduzido
(Figura 1), cujo subtítulo destacava que a finalidade do planejamento territorial era pro-
piciar uma “vida feliz para todos dentro do equilíbrio entre povo-economia-território” e
“construir um mundo melhor”. O quadro ainda especificava as três etapas para a execução
desse planejamento, a começar pela fase de “eclosão”, preliminar e estrutural à fase de
projeto que compreenderia a educação e organização da comunidade pela “formação do
espírito urbanístico”. A fase de projeto era descrita como um processo de síntese dos dados
obtidos na pesquisa local, que resultava, na etapa subsequente de análise, na interpreta-
ção dos dados estatísticos.
Por sua vez, o Pré-Plano ou Plano Preliminar, que atribuía as primeiras diretrizes
de planejamento, em conjunto com a análise funcional do território, resultaria no Plano
Diretor, cujos elementos seriam o sistema viário, o zoneamento, a recreação e a setoriza-
ção, além do memorial descritivo e justificativo, e os problemas específicos de desenvol-
vimento local. A terceira fase especificada no quadro era a de execução, com a elaboração
dos planos executivos conforme a urgência apresentada (CENTRO DE PESQUISA E
ESTUDOS URBANÍSTICOS, 1960b).
Segundo Siqueira (2013), no período da gestão de Luís de Anhaia Mello foram
realizados os planos de Santa Rita do Passa Quatro, Socorro, São José dos Campos, Ca-
raguatatuba, Ubatuba, São Sebastião, Ilhabela e Itanhaém. No entanto, a autora atesta
que os planos tiveram pouca efetividade prática, sendo interrompidos na fase de Planos
Preliminares com a desestruturação das comissões organizadas para os Planos Diretores.

O PLANO PELOS PLANEJADORES E NÃO PARA OS PLANEJADORES


O contexto da organização de Planos Diretores trazia um desafio para o CPEU e para os
municípios conveniados, pois “a elaboração de um plano diretor é tarefa bastante com-
plexa, que exige a colaboração de um grande número de especialistas” (CENTRO DE
PESQUISA E ESTUDOS URBANÍSTICOS, 1971, p.2). Por essa razão, o Centro de

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FIGURA 1 — Processo de Planejamento Territorial.


Fonte: Centro de Pesquisas e Estudos Urbanísticos (1960b).

Pesquisas propôs a organização de uma estrutura nas cidades, que, além dos especialistas,
reuniria membros da sociedade local. Não deveriam ser buscadas pessoas com conheci-
mentos urbanísticos, mas pessoas que “tenham amor à sua cidade, um pouco de tempo
e muita boa vontade para colaborar com os poderes públicos, no sentido de ordenar o
desenvolvimento do seu Município” (CENTRO DE PESQUISA E ESTUDOS URBA-
NÍSTICOS, 1958, p.1).
O documento apontava o que deveria ser o Planejamento Urbano no conceito do
CPEU: distinto dos planos de ‘Engenharia Municipal’, o que justificava a demanda pela
participação dos membros da comunidade. Enquanto este tratava do alargamento das

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ruas e projeto de redes de água, o planejamento urbano traçado pelo Plano Diretor era
“uma indicação aos poderes públicos de como ordenar o crescimento e o desenvolvimento
de seu município, de maneira que seja beneficiada toda a população quer urbana quer
rural” de modo que predominasse o “sentido verdadeiro da palavra comunidade” (CEN-
TRO DE PESQUISA E ESTUDOS URBANÍSTICOS, 1958, p.3). Alertando que os
Planos Diretores não podiam ser executados apenas por urbanistas, o documento sugeria
que duas comissões fossem constituídas: a técnica e a do Plano Diretor do Município,
constituindo uma equipe pluridisciplinar.
A Comissão Técnica seria composta por engenheiros, arquitetos, agrônomos, so-
ciólogos, economistas e educadores dos municípios, sob a orientação de um urbanista.
Alguns anos após, na publicação reeditada, previu-se que ela teria um urbanista como
chefe e seria composta por um agrônomo, um médico sanitarista, um assistente social ou
professor de ciências sociais das escolas locais, um assessor jurídico, um especialista em
economia e finanças, e um geógrafo ou geólogo, que deveriam possuir ‘espírito cívico’ e
‘grau de identificação com a comunidade’. Os cargos poderiam ou não ser remunerados
(CENTRO DE PESQUISA E ESTUDOS URBANÍSTICOS, 1963b). A Comissão Téc-
nica deveria possuir um escritório na prefeitura local, dispondo de topógrafo e desenhis-
tas, podendo contar com a colaboração de escolas e entidades públicas locais. A comissão
teria que se tornar permanente após a aprovação do Plano, de modo que fosse consultada
a cada projeto de edificação e loteamento posterior.
A outra comissão, a do Plano Diretor, não deveria ultrapassar quinze pessoas, sen-
do presidida pelo prefeito e composta por representantes das entidades e associações
do município (CENTRO DE PESQUISA E ESTUDOS URBANÍSTICOS, 1958) Para
que essas comissões estabelecessem contato com a comunidade, eram promovidos con-
ferências e debates públicos, cumprindo o inciso V do artigo 6o da criação do CPEU da
propaganda, divulgação e educação, para facilitar a solução dos problemas urbanísticos. A
participação de membros da comunidade era defendida pelo CPEU como fundamental,
pois o Plano deveria ser feito “pelos planejadores e não para os planejadores”. Completava
ainda que “não deve o urbanista se fechar entre quatro paredes e traçar sozinho um es-
quema de ruas e praças, rotulando-o plano”. Nesse sentido, a consulta à população local
e às comissões era imprescindível (CENTRO DE PESQUISA E ESTUDOS URBANÍS-
TICOS, 1958, p.5).
No documento “Organização comunitária para o planejamento”, também no Bo-
letim no 5 de 1963, fica evidente a intenção de promover, por meio dos Planos Diretores,
uma nova área de atuação, capacitando profissionais:

Numerosos municípios do Estado de São Paulo vêm-se interessando ultimamente


pelo planejamento de seu desenvolvimento. Chegam [sic] ao Centro de Pesquisa e
Estudos Urbanísticos grande número de solicitações para colaborar na preparação

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de planos diretores e outros estudos. Torna-se evidente que um novo campo pro-
fissional, integrado nas administrações municipais, está surgindo [...] Há porém,
no momento, uma grande deficiência de pessoal habilitado para desempenhar ta-
refas de planejamento. Embora já se possam [sic] contar com dezenas de técnicos
dedicando-se ao problema, esse número é ainda altamente insuficiente para atender
às necessidades do nosso interior (CENTRO DE PESQUISA E ESTUDOS UR-
BANÍSTICOS, 1963b, p.10).

Com a constituição das Comissões locais, o CPEU propunha a criação de cargos


municipais, de acordo com as necessidades peculiares do local (CENTRO DE PESQUI-
SA E ESTUDOS URBANÍSTICOS, 1960b). Os ocupantes de cargos de coordenação te-
riam autoridade sobre projetos de lei e medidas administrativas referentes ao zoneamen-
to, arruamento, loteamentos, construções, espaços verdes, obras e serviços de utilidade
pública. Caso as mudanças propostas não fossem aprovadas pelo Centro de Pesquisas,
nada poderia ser executado. O CPEU ainda reforçava sua participação apontando que “a
elaboração e execução do plano diretor deverão ser orientadas pelo Centro de Pesquisa
e Estudos Urbanísticos mediante convênio” (CENTRO DE PESQUISA E ESTUDOS
URBANÍSTICOS, 1960b, p.3). Pode-se atestar que, com a intenção de realizar os planos
urbanísticos pelos planejadores e não para os planejadores, o CPEU claramente se colo-
cava como peça importante para a efetivação dos Planos nos Municípios.

A REALIZAÇÃO DE PLANOS E ESTUDOS DO USO DA TERRA - A LEI DE LOTEAMENTOS


Em 1960, cumprindo sua finalidade de realizar planos e estudos do uso da terra, o CPEU
propôs um “Anteprojeto de Lei de Loteamento e respectivas normas técnicas”, no qual
eram determinadas as disposições preliminares dos loteamentos para o processo de apro-
vação, bem como a documentação necessária. Como processo de projeto dos loteamen-
tos, era necessário o estabelecimento das vias de comunicação com a cidade, das quadras
e lotes, bem como das áreas de recreação, regra válida para todas as cidades do interior do
Estado de São Paulo. O CPEU estava desenvolvendo esse projeto de lei por verificar que
“as prefeituras paulistas, têm-se mostrado, em sua maioria, omissas na legislação sobre lo-
teamentos”, por desconhecimento ou pela crença de que seria função estadual ou federal
(CENTRO DE PESQUISA E ESTUDOS URBANÍSTICOS, 1960a, p.3).
Nesse sentido, o interesse do CPEU era alertar os municípios da necessidade
de planejar o crescimento urbano, pois a “adoção de normas que disciplinem melhor
essa atividade é um imperativo do desenvolvimento orgânico das bases territoriais das
aglomerações”. O objetivo era evitar que as cidades crescessem sem planejamento, re-
forçando a importância do papel do arquiteto no sentido de “empregar as técnicas mais
aperfeiçoadas, postas a serviço de interesse coletivo e do BEM COMUM” (CENTRO DE
PESQUISA E ESTUDOS URBANÍSTICOS, 1960a, p.1).

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Para a aprovação dos loteamentos, os proprietários deveriam apresentar um croqui


do terreno a ser loteado, com seus limites e elementos de identificação como: cursos
d’água, curvas de nível, arruamentos vizinhos, monumentos naturais, árvores e constru-
ções existentes, serviços de utilidade pública e outras indicações. Caberia à Prefeitura,
na planta apresentada, traçar as ruas e estradas que comporiam o sistema de circulação
do município, as áreas de recreação necessárias à população, bem como as áreas destina-
das aos usos institucionais para os equipamentos municipais. Após essa etapa, o projeto
definitivo deveria ser desenvolvido, assinado por profissional habilitado pelo Conselho
Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia e pelo proprietário.
O projeto definitivo, apresentado pelo profissional após as orientações das Prefei-
turas, deveria conter: as vias secundárias e áreas de recreação complementares, a subdi-
visão das quadras em lotes, os recuos exigidos, as dimensões do projeto, os perfis de todas
as vias de comunicação e praças, o projeto de pavimentação, o projeto de escoamento de
águas pluviais, o projeto de tratamento de esgotos e distribuição de águas potáveis, o pro-
jeto de iluminação pública e arborização, além do memorial descritivo e do justificativo do
projeto. O anteprojeto de lei explicitava as larguras mínimas e a declividade das vias, bem
como as dimensões das quadras e dos lotes (CENTRO DE PESQUISA E ESTUDOS
URBANÍSTICOS, 1960a). Assim como na proposta dos Planos Diretores, esse antepro-
jeto também centralizava o poder de decisão do traçado inicial à esfera da Prefeitura. Caso
o município estabelecesse um convênio com o CPEU e adotasse essa lei como modelo,
certamente os conceitos do Centro de Pesquisas estariam presentes.

OS REBATIMENTOS NO ENSINO DE URBANISMO


Conforme o artigo da criação do CPEU, uma de suas finalidades era fornecer as bases
para a prática dos alunos da cadeira e do curso de Urbanismo da Faculdade. Assim cum-
prindo sua função, podem-se identificar pontos em comum entre o que era lecionado nas
disciplinas de Urbanismo da FAUUSP e as práticas do Centro de Pesquisas. O exemplo
disso foi identificado nas fases do Plano Diretor, publicadas no Boletim nº 1 do CPEU
(CENTRO DE PESQUISA E ESTUDOS URBANÍSTICOS, 1963c), que estavam pre-
sentes na disciplina de Urbanismo já no programa de Luís Anhaia Mello em 1957 (UNI-
VERSIDADE DE SÃO PAULO, 1957) e foram mantidas no programa proposto em 1962
(UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, 1962). Em comum, constavam nos documentos
as fases de organização do Plano Diretor que eram: fixação do objetivo, inquéritos e pes-
quisas, organização do plano prévio, plano executivo e a parte educativa da população. A
única etapa que diferenciava os documentos era a de interpretação de dados, presente no
programa da disciplina.
Siqueira (2015) aponta que, até 1962, além das relações do CPEU com as cadei-
ras de Urbanismo, as cadeiras de Composição ministradas no 3º, 4º e 5º anos do curso
de Arquitetura da FAUUSP pelos professores Abelardo de Souza e Jon Maitrejean, e por

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Roberto Cerqueira César e João Batista Vilanova Artigas, abordavam o CPEU e sua base
de dados, especialmente seus Planos Diretores, como ponto de partida dos exercícios de
projeto. Em 1958, a Cadeira nº 19 de Grandes Composições (II Parte) do 5º ano teve como
base o Plano Piloto de Taubaté. No ano seguinte, em 1959, a Cadeira nº 18 de Grandes
Composições (I Parte) do 4º ano teve como ponto de partida o Plano Diretor de Águas da
Prata, no qual os alunos trabalhariam questões como abastecimento, transporte e tráfego,
população flutuante, estância hidromineral, recreação e esporte, e centro cívico. Por sua
vez, em 1961, a Cadeira nº 17 de Pequenas Composições do 3º ano, foi elaborada em
articulação com o Plano Diretor de Socorro, que estava em andamento, sendo a primeira
aula da disciplina ministrada por Anhaia Mello.
Quanto à metodologia de trabalho do CPEU, os mesmos itens elencados para
análise das cidades que eram objeto de elaboração dos planos diretores, estavam
detalhados nos programas da disciplina de Urbanismo. Eram eles a análise da situa-
ção geográfica, do solo e subsolo, do clima, da utilização humana, da população, das
atividades, dos serviços (transporte e comunicações), do tráfego, dos equipamentos
materiais (água, esgoto, coleta de lixo) e sociais (escolas, recreação, cultura), das
funções e sua influência na cidade e na região, do habitat, dos espaços livres, dos
monumentos históricos e sítios pitorescos a proteger, da vida coletiva e social, das
finanças públicas e da legislação.
Até aquele momento, as relações do CPEU com o ensino da disciplina de Urbanis-
mo do curso de Arquitetura da FAUUSP seguiram restritas ao quinto ano, em conjunto
com algumas intervenções e fornecimento de dados aos ateliers de projeto. Porém, com
a reforma curricular de 1962, o currículo da disciplina de Urbanismo, sob a organização
do professor Lauro Bastos Birkholz, passou a ser organizado em dois anos, antecipando
seu início para o quarto ano e abandonando a ideia de implantação de um curso de Urba-
nismo (BIRKHOLZ et al., 1993). Junto a isso, o conceito do ensino inter-relacionado da
arquitetura e do urbanismo foi implantado. Isso se deu com a organização do ensino de
arquitetura centralizado no atelier de projetos, ao qual todas as disciplinas convergiam,
incluindo a de Urbanismo (MILLAN, 1962). A estreita relação do ensino de urbanismo
com o de arquitetura estava incluída em um conceito mais amplo:

“Esta reforma, iniciada em 1962, foi influenciada por um conceito de projeto alta-
mente vinculado a uma visão social do arquiteto e a uma metodologia racionalista no
trabalho de projetar. Neste conceito de prática do arquiteto, a comunicação visual
e o desenho industrial do objeto, ambos introduzidos no currículo a partir de 1957,
junto com o Planejamento Arquitetônico, Projeto do Edifício e Paisagismo não
foram pensados como especializações distintas, mas como momentos do mesmo
conceito abrangente de Arquitetura como campo legítimo de atuação do arquiteto”
(GUNN, 1993, p.77).

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A inclusão de novos campos de atuação reforçava o que Millan (1962) afirmou


em seu relatório “O Atelier na formação do arquiteto”, segundo o qual os arquitetos eram
contra o desmembramento da profissão em cursos de pós-graduação. Para ele, a existên-
cia dessa modalidade de cursos negava ao arquiteto a condição essencial de projetar em
todas as vertentes, conforme apontado por Gunn (1993). Deve-se considerar que, para
execução de seus planos, o CPEU requeria a presença de um arquiteto na Prefeitura
das cidades para acompanhamento e implantação dos mesmos. Sendo assim, possuir
a atribuição de arquiteto e urbanista nesse contexto criava mais uma possibilidade de
emprego para a categoria.
Assim, com a Reforma de 19624, no quarto ano do curso de Arquitetura, na disci-
plina de Urbanismo, eram ministrados os conteúdos de ‘Planejamento’, ‘Administração
Municipal’ e ‘Documentação e Estatística’. O conteúdo de “Planejamento” era subdividido
em: a história das cidades, a cidade, o âmbito do planejamento, os sistemas principais de es-
truturação municipal e planejamento urbano. No subtema ‘Administração Municipal’ era
discutida a propriedade do solo urbano. O subtema “Documentação e Estatística” tratava
do ensino dos aspectos físicos da região de projeto, com coleta e sistematização de dados.
No último ano, a disciplina estava dividida em ‘Planejamento’, ‘Administração e
Legislação’ e ‘Estatística e Documentação’. No tópico ‘Planejamento’ uma nova temática
se destaca — a de ‘Metodologia do Processo de Planejamento’, que tinha como fases prin-
cipais a propaganda e organização comunitária, primeiro contato e pesquisa preliminar,
plano preliminar, pesquisa, processo estatístico e sua interpretação, plano diretor ou re-
gulador, implantação dos planos e plano executivo (UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO,
1962; VIDOTTO & MONTEIRO, 2014). Não por acaso, alguns textos do CPEU foram
reeditados no ano de 1963 como um esforço para manter sua memória, reforçando suas
diretrizes e tornando-as acessíveis aos estudantes.

UMA SÍNTESE DAS CONTRIBUIÇÕES DO CPEU


Para Birkholz e Nogueira (1992), a grande contribuição do Centro de Pesquisas durante
sua existência foi a formação e treinamento de técnicos para as atividades de planejamen-
to. Sua amplitude e seu impacto não tiveram maior alcance, provavelmente, em razão
das mudanças políticas a partir de 1964, conforme apontado pelos autores. Em razão do
Golpe Militar, o CPEU teria perdido força para seguir atuando. De acordo com Feldman
(2004), os órgãos de planejamento criados na década de 1950 acabaram por ser isolados
da máquina administrativa e desvinculados da política. Sendo assim, passou a ser insus-
tentável seu funcionamento.
Quanto ao ensino, segundo Faggin (1993, p.132), o CPEU era “o braço de pres-
tação de serviços à comunidade e o verdadeiro laboratório de ensaio das doutrinas gerais
experimentadas de maneira acadêmica”. Sendo assim, cumpriu seu objetivo de con-
solidar, por meio de atividades práticas, as bases teóricas para a atuação do arquiteto e

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urbanista, bases essas que foram lecionadas nas disciplinas de Urbanismo e Composição
da FAUUSP (SIQUEIRA, 2015). Também não se pode negar a contribuição do Centro
de Pesquisa para a divulgação do papel do arquiteto e urbanista, bem como para o estabe-
lecimento do trabalho deste último, propagado entre os estudantes que se familiarizavam
com o novo campo profissional.

CONCLUSÃO
Por meio de suas publicações, o Centro de Pesquisas e Estudos Urbanísticos difundiu a
importância dos Planos Diretores e do planejamento urbano por parte dos municípios,
divulgando seus conceitos e processos de trabalho. Sua parceria junto ao Estado de São
Paulo esteve claramente relacionada aos contatos políticos de seus diretores, o que possi-
bilitou convênios importantes com diversos municípios.
Desde sua criação, a produção de planos diretores foi duramente questionada. No
entanto, deve-se considerar seu pioneirismo e, ainda, destacar sua importância para a
construção do processo de planejamento urbano, que, reconhecidas as proporções, tem
rebatimentos até os dias de hoje. Como exemplo, podem ser citadas as comissões pluridis-
ciplinares organizadas para atuar nos municípios e, também, as comissões representativas
da população no contexto dos Planos Diretores e das decisões referentes ao planejamento
urbano, como os Conselhos Municipais. Destaca-se também o pioneirismo em implantar
levantamentos das condições dos municípios, por meio de fichas e questionários, além de
sua metodologia de análise dos dados obtidos.
Por fim, a associação do CPEU com o ensino da FAUUSP contribuiu, de forma
pioneira, para a formação dos alunos e, portanto, para a atuação profissional e o método de
trabalho dos arquitetos formados como urbanistas. Um aspecto desse campo profissional
sempre destacado nas publicações é o papel de coordenador do processo de execução dos
projetos. Além disso, o pioneirismo do CPEU se deu em estabelecer convênios com os
municípios, colaborando para o desenho das cidades — desenho esse que deve ser inves-
tigado para que a atuação do CPEU seja identificada e divulgada.

notas
1. As publicações utilizadas como fonte neste artigo foram consultadas no acervo da Biblioteca da
FAUUSP.

2. Em 1961, com a aposentadoria de Luiz de Anhaia Mello, o CPEU passou a ser dirigido por Lauro
Bastos Birkholz, que já atuava como diretor técnico. Na diretoria de Lauro Birkholz, o professor
Brenno Cyrino Nogueira exerceu a função de Chefe Técnico-Administrativo (BIRKHOLZ & NO-
GUEIRA, 1992).

3. Ver o Boletim nº 7 do CENTRO DE PESQUISAS E ESTUDOS URBANÍSTICOS (1963d) —


O Centro de Pesquisas e Estudos Urbanísticos e os Convênios Realizados para Planejamento das
Estâncias do Estado de São Paulo —, publicado originalmente em 1959.

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4. Com as mudanças no currículo da FAUUSP, alteraram-se os objetivos do CPEU, relacionados


na lei de sua criação: I - realizar pesquisas, análises e inquéritos preliminares à execução de planos
urbanísticos parciais ou gerais; II - organizar planos diretores para os municípios que o desejarem;
III - realizar planos e estudos relativos à habitação, uso da terra, regulamento e programas; IV - prá-
tica e exercícios dos alunos da cadeira e do curso de Urbanismo da Faculdade; e V - propaganda
educação e divulgação, de forma a facilitar a solução dos problemas urbanísticos. A alteração definiu
como objetivos: I - realizar pesquisas, análises e inquéritos preliminares à execução de planos direto-
res parciais ou gerais; II - organizar planos diretores para os municípios que o desejarem, tendo em
vista o interesse de ensino e pesquisa; III - realizar estudos básicos para o planejamento territorial;
IV - colaborar no ensino ministrado na Faculdade; e V - divulgar, através do Museu, os seus estudos
e trabalhos (BIRKHOLZ & NOGUEIRA, 1992).

REFERÊNCIAS
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1955. Dispõe sobre o regulamento da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade de
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ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Lei nº 104, de 21 de junho de 1948.
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to-23569-11-dezembro-1933-503453-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 17 out. 2012.
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Acesso em: 11 jan. 2016.

ANA MARIA REIS DE GOES MONTEIRO | Universidade Estadual de Campinas | Faculdade de Engenharia
Civil, Arquitetura e Urbanismo | Departamento de Arquitetura e Construção | Campinas, SP, Brasil. Recebido em
TAIANA CAR VIDOTTO | Universidade Estadual de Campinas | Faculdade de Engenharia Civil, Arqui- 29/1/2016 e
tetura e Urbanismo | Programa de Pós-Graduação em Arquitetura, Tecnologia e Cidade | Av. Albert reapresentado em
Einstein, 951, Cidade Universitária, 13084-971, Campinas, SP, Brasil | Correspondência para/ 2/3/2017 e aprovado
Correspondence to: T.C. VIDOTTO | E-mail: <taiana.car.vidotto@gmail.com>.  em 17/3/2017.

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O PLANEJAMENTO URBANO PARA ALÉM DA OPOSIÇÃO
URBANO-RURAL: PERSPECTIVAS E DESAFIOS PARA A
CONSOLIDAÇÃO NO BRASIL DE SISTEMAS E PRÁTICAS
INTEGRADOS DE PLANEJAMENTO TERRITORIAL
URBAN PLANNING BEYOND THE URBAN-RURAL OPPOSITION: PROSPECTS AND
CHALLENGES FOR THE CONSOLIDATION OF THE TERRITORIAL PLANNING IN BRAZIL |
LA PLANIFICACIÓN URBANA MÁS ALLÁ DE LA OPOSICIÓN URBANO-RURAL: PERSPECTIVAS
Y DESAFÍOS PARA LA CONSOLIDACIÓN DE SISTEMAS Y PRÁCTICAS INTEGRADOS DE
PLANIFICACIÓN TERRITORIAL EN BRASIL

SELENA DUARTE LAGE E LAGE

RESUMO
A prática de planejamento urbano no Brasil passou por transformações importan-
tes a partir da Constituição de 1988 e, principalmente, a partir da aprovação do
‘Estatuto da Cidade’, em 2001. Essa Lei ampliou a área de abrangência dos planos
diretores, que passaram a ter de englobar toda a unidade territorial dos municí-
pios, ou seja, não apenas as áreas urbanas, mas também as áreas rurais. A abor-
dagem territorial dos planos diretores vislumbra a necessidade de uma visão mais
abrangente e integrada da questão urbana. Pode-se dizer que está relacionada às
novas dinâmicas socioespaciais identificadas em todo o mundo a partir do final
do século XX e, também, à discussão ambiental disseminada a partir da década de
1970. Porém, notam-se ainda muitas dificuldades e desafios para a consolidação
no Brasil de sistemas e práticas integrados de planejamento e gestão territorial.
PALAVRAS‑CHAVE: Planejamento territorial. Planejamento urbano. Plano diretor. Políticas
urbanas.

ABSTRACT
The practice of urban planning in Brazil has undergone important changes since
the 1988 Brazilian Constitution, especially as the law called ‘Estatuto da Cidade’
was sanctioned in 2001. This law extended the coverage area of the master plans
to consider all the territorial limits of municipalities, not only its urban areas but
also the rural ones. The master plans’ territorial approach envisions the need for
comprehensive and integrated urban policies. It can be related to the new socio-
spatial dynamics identified worldwide since the end of the twentieth century, and
also to the environmental discussion widespread from the 1970s on. However, many

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difficulties and challenges for the consolidation of the territorial planning in Brazil
are still worthy of attention.
KEYWORDS: Territorial planning. Urban planning. Master plan. Urban policies.

RESUMEN
La práctica de la planificación urbana en Brasil ha experimentado transformaciones
importantes desde la Constitución de 1988 y, principalmente, desde la aprobación de
la ley ‘Estatuto da Cidade’, en 2001. Esta ley amplió el área de cobertura de los planes
maestros, que ahora tienen que abarcar toda la unidad territorial de los municipios, o
sea, no solo sus áreas urbanas, sino también sus áreas rurales. El enfoque territorial de los
planes maestros prevé la necesidad de una visión más amplia e integrada de la cuestión
urbana. Se puede decir que está relacionado con las nuevas dinámicas socio-espaciales
identificadas en todo el mundo a partir de finales del siglo XX y también con la discusión
sobre medio ambiente generalizada a partir de la década de 1970. Sin embargo, se ob-
serva todavía muchas dificultades y desafíos para la consolidación de sistemas y prácticas
integrados de planificación y gestión territorial en Brasil.
PALABRAS CLAVE: Planificación territorial. Planificación urbana. Plan maestro. Políticas urbanas.

INTRODUÇÃO
Não obstante a ocorrência de planos urbanos pontuais e construções de bairros e cidades
planejados, antes da década de 1930 a urbanização brasileira e, consequentemente, o
planejamento urbano enquanto atividade técnico-política era muito incipiente no Brasil.
É a partir dessa década que a ideia de plano diretor como instrumento norteador do de-
senvolvimento urbano começa a se difundir pelo país. Villaça (2005) informa que o termo
plan directeur1 aparece aqui pela primeira vez no Plano Agache para a cidade do Rio de
Janeiro, publicado em 1930.
A urbanização do Brasil acelerou-se nos anos 1950 e atingiu seu auge nas déca-
das de 1960-70, sob o Regime Militar, quando as cidades brasileiras experimentaram
enorme crescimento populacional e viram alastrarem problemas infraestruturais e so-
cioambientais. Nessa época — durante o Regime Militar — ocorreu no País a institu-
cionalização do planejamento urbano, e muitos foram os planos diretores elaborados
por órgãos governamentais, principalmente das cidades de maior porte. Esses planos
tinham um caráter essencialmente tecnocrático, de matriz modernista/funcionalista,
e prescindiam de participação popular para sua elaboração (MONTE-MÓR, 1980;
ROLNIK, 2001).
A Constituição de 1988 (BRASIL, 1988) manteve a aposta do planejamento urba-
no via planos diretores, tornando sua elaboração obrigatória para cidades com mais de vin-
te mil habitantes. Porém, fez despontar um novo padrão de se pensar a questão urbana no

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Brasil, incluindo as ideias de função social da cidade e da propriedade. Também instituiu


o direito à participação direta da população nas decisões e transferiu a responsabilidade
da política de desenvolvimento urbano à esfera municipal. A municipalização da política
urbana foi, inclusive, resultado da luta por uma maior participação da sociedade civil, visto
que o município é a instância administrativa de maior proximidade com as necessidades
e interesses dos cidadãos (CARDOSO, 1997).
Entretanto, a Constituição deixou lacunas e dúvidas quanto às competências rela-
cionadas ao planejamento dos territórios municipais na sua totalidade, ou seja, abarcando
suas áreas urbanas e rurais2. Foi definido como competência dos municípios o planeja-
mento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano, enquanto as po-
líticas voltadas ao meio ambiente e ao desenvolvimento das áreas rurais foram atribuídas
como responsabilidades comuns das três esferas administrativas (municipal, estadual,
federal). O desenvolvimento e planejamento das áreas rurais são tratados especificamente
no Estatuto da Terra (Lei Federal n° 4.504), que declara em seu Artigo 6°: “[…] a União,
os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão unir seus esforços e recursos, me-
diante acordos, convênios ou contratos, para a solução de problemas de interesse rural”
(BRASIL, 1964, online).
Dessa forma, no âmbito da administração municipal, permaneceu a ênfase no
planejamento voltado às áreas urbanas, ignorando-se, na maior parte das vezes, a
inter-relação urbano-rural existente nos municípios. Entretanto, a partir de 2001, com
a aprovação do Estatuto da Cidade [Lei Federal n° 10.257] (BRASIL, 2001), verifica-se
um esforço para a passagem de uma abordagem essencialmente urbana do planejamento
para uma abordagem territorial, uma vez que essa Lei ampliou a área de abrangência dos
planos diretores: estes passaram a ter de englobar toda a unidade territorial dos municí-
pios, ou seja, não apenas as áreas contidas nos perímetros urbanos e de expansão urbana,
mas também as áreas rurais.
Além disso, o Estatuto da Cidade tornou obrigatória a participação da popula-
ção nos processos de elaboração e implementação dos planos diretores, por meio de
debates, audiências públicas e publicidade dos documentos e informações produzi-
dos. Também estendeu a obrigatoriedade de sua elaboração para uma gama maior de
municípios, como os integrantes de regiões metropolitanas, integrantes de áreas de
especial interesse turístico e aqueles inseridos em área de influência de empreendi-
mentos ou atividades com significativo impacto ambiental, independentemente do
seu porte populacional.
A abordagem territorial dos planos diretores e sua elaboração de forma partici-
pativa vislumbra a necessidade de uma visão mais abrangente e integrada da questão
urbana. Pode-se dizer que está relacionada às novas dinâmicas socioespaciais identi-
ficadas em todo mundo a partir do final do século XX e também à discussão ambiental
disseminada a partir da década de 1970. Porém, as novas demandas põem à prova a

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adequação dos instrumentos de política urbana instituídos na legislação brasileira,


bem como nossa organização institucional-administrativa para um planejamento de
âmbito territorial.
Este artigo pretende discutir as perspectivas e desafios relacionados à consolida-
ção no Brasil de sistemas e práticas integrados de planejamento territorial. Os itens a
seguir justificam a pertinência da questão na atualidade e apresentam avanços e dificul-
dades encontrados no quadro legal e institucional brasileiro sobre o tema. As análises
e conclusões baseiam-se numa revisão teórica do assunto. As mudanças observadas
nos planos diretores pós-Estatuto da Cidade e os desafios para sua implementação
foram verificados principalmente a partir da publicação “Os Planos Diretores Muni-
cipais Pós-Estatuto da Cidade: balanço crítico e perspectivas” (SANTOS JÚNIOR &
MONTADON, 2011), realizada no âmbito da Rede de Avaliação e Capacitação para
a Implementação dos Planos Diretores Participativos, em convênio entre o Ministério
das Cidades e o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, Universidade
Federal do Rio de Janeiro.

NOVAS DINÂMICAS SOCIOESPACIAIS E O PLANEJAMENTO TERRITORIAL


Nos últimos anos observa-se nas áreas rurais, tanto no Brasil como em outros países, a
diversificação de atividades e o surgimento de novos usos do solo, bem como novos hábitos
e relações sociais próprios das áreas urbanas.
Silva (2002) chama de “Novo rural brasileiro” o espaço oficialmente denomi-
nado como rural que, não obstante, tem apresentado, além das atividades agropecuá-
rias e agroindustriais, múltiplas outras atividades, agrícolas e não agrícolas, antigas e
recentes na história agrária brasileira. Entre as ‘novas’3 atividades agrícolas tem-se a
psicultura, horticultura, floricultura, fruticultura de mesa, criação de animais exóti-
cos etc. Entre as atividades não agrícolas observa-se o crescimento do lazer, turismo,
conservação da natureza, moradia e prestação de serviços pessoais. Desse novo rural
surgem novos atores sociais: famílias pluriativas, que combinam atividades agrícolas e
não-agrícolas na ocupação de seus membros, dentro e fora de seus estabelecimentos,
tanto nos ramos tradicionais urbano-industriais, como nas novas atividades que vêm-se
desenvolvendo no meio rural.
As áreas rurais contemporâneas, especialmente aquelas de regiões desenvol-
vidas, apresentam todas as tecnologias provenientes das cidades, bem como a infra-
estrutura antes restrita aos aglomerados urbanos. Pode-se dizer que a generalização
do meio técnico-científico e sua racionalidade, aliada à difusão dos meios de co-
municação e à universalização do consumo, invadiram o campo com o modo de ser
proveniente do meio urbano.
Monte-Mór denomina de ‘urbanização extensiva’ o fenômeno de espraiamento da lógi-
ca urbano-industrial do capitalismo. Nas palavras do Monte-Mór (2006, p.15, grifo do autor)

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[Urbanização extensiva] É essa espacialidade social resultante do encontro explo-


sivo da indústria com a cidade — o urbano — que se estende, com as relações de
produção (e sua reprodução), por todo o espaço onde as condições gerais de produ-
ção (e consumo) determinadas pelo capitalismo industrial de Estado impõem-se à
sociedade burocrática de consumo dirigido, carregando, no seu bojo, a reação e a
organização políticas próprias da cidade.

Assim, estende-se por todo o território a infraestrutura necessária de produção —


rodovias, hidrelétricas, rede de comunicações etc. — e reprodução coletiva da força de
trabalho — serviços de saúde, educação, habitação etc. —, condições estas antes restritas
às cidades. Junto ao espraiamento das condições físicas e materiais próprias dos espaços
urbano-industriais, tem-se também o espraiamento de questões sociopolíticas e culturais,
de modo que movimentos sociais passam a abranger populações rurais e tradicionais,
como índios, seringueiros, trabalhadores sem terra, entre outras, reforçando preocupa-
ções com a qualidade do ambiente e da vida quotidiana nas áreas rurais.
Dessa forma, não há mais diferenças marcantes nos hábitos, comportamentos e
demandas sociais entre as áreas urbanas e rurais. Também em relação às atividades eco-
nômicas, os campos não podem ser identificados apenas com a agricultura e a pecuária,
e nem as cidades apenas com a atividade industrial, uma vez que nos últimos anos
observa-se nelas o crescimento do setor terciário em detrimento do setor secundário,
bem como o surgimento de atividades relacionadas ao setor primário, como a agricultura
urbana, por exemplo. Do ponto de vista socioespacial, rural e urbano / campo e cidade
podem ser entendidos como um continuum, tornando-se cada vez mais difusas e de difícil
identificação as fronteiras entre esses espaços (ROSA & FERREIRA, 2013).
No Brasil, verifica-se que a inter-relação urbano-rural é bastante complexa. Segun-
do o “Censo Demográfico de 2010” (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E
ESTATÍSTICA, 2011), 45% dos municípios não ultrapassam dez mil habitantes, e suas
sedes municipais, apesar de ostentarem a categoria de cidade pela legislação vigente4,
configuram pequenas aglomerações que, a depender da ocupação da mão de obra, das
tipologias de ocupação e dos graus de conexão com redes e atividades urbanas, podem ser
consideradas rurais. Em contrapartida, em determinadas regiões mais urbanizadas ocorre
o inverso, com áreas rurais mais vinculadas a atividades complementares aos centros ur-
banos. Além disso, nas grandes cidades perduram as ocupações clandestinas/irregulares,
carentes de infraestrutura e situadas em áreas impróprias à urbanização e/ou de impor-
tância ambiental (como mananciais, encostas íngremes e fundos de vales). São áreas
ocupadas por mão de obra oriunda da produção agrária ou excluída do sistema capitalista,
muitas vezes proveniente de regiões rurais isoladas.
Assim, tendo em vista as novas dinâmicas socioespaciais e as relações de inter-
dependência territorial instaladas, a abrangência territorial (áreas urbanas e rurais) dos

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planos diretores pode ser considerada um avanço na busca pelo planejamento integrado
do espaço social contemporâneo. Trata-se aqui do conceito de espaço social desenvolvi-
do por Lefebvre (1993), que considera, de forma dialética, tanto o ambiente construído
quanto as práticas socioespaciais.
Porém, as políticas brasileiras relacionadas ao planejamento e gestão do territó-
rio ainda se encontram estruturadas com base nas delimitações administrativas oficiais
(áreas/zonas urbanas e áreas/zonas rurais), e por vezes desconsideram as novas relações
e práticas sociais. Presas aos velhos padrões, as políticas voltadas às áreas rurais não
têm levado em conta suas novas necessidades, como, por exemplo, a de estabelecer um
disciplinamento do uso e ocupação do solo visando atender às demandas de habitação
e saneamento, à regulação das atividades de turismo e lazer e à preservação de recursos
naturais (SILVA, 2002; SILVA & PERES, 2009). No outro sentido, as análises e práticas
de planejamento focadas nas áreas urbanas não conseguem contemplar as demandas
materiais e sociais das populações municipais, acarretando fluxos migratórios que podem
repercutir em mais demandas materiais e sociais nas áreas urbanas.
Perduram dúvidas em relação às competências das diferentes instâncias e institui-
ções envolvidas no planejamento territorial, bem como à capacidade de diálogo e interlo-
cução que deveria existir entre elas. Mesmo com a obrigatoriedade dos planos diretores
de englobarem todo o território dos municípios, uma parte significativa dos programas
de políticas públicas praticadas no território rural e das disposições de gestão ambiental
têm sido de responsabilidade, quase que exclusiva, da esfera estadual ou federal (SILVA
& PERES, 2009).
Predomina a interferência das administrações municipais sobre os aspectos de
uso e ocupação do solo das áreas urbanas — definido pela Constituição de 1988 (BRA-
SIL, 1988) como competência exclusiva dos municípios — e os planos diretores (ou as
partes efetivas deles) acabam se limitando a tais questões. Villaça (2005; 2012), inclusi-
ve, aponta a abrangência alargada dos planos diretores como um dos fatores que contri-
buem para sua inoperância, ao abarcarem propostas das alçadas dos governos estaduais
e municipais. Porém, visto que a legislação brasileira não apresenta clareza sobre a
questão, faz-se importante a revisão das competências de cada instância de poder e de
suas instituições no processo de planejamento e gestão do território — especialmente
no que se refere às áreas rurais e à inter-relação urbano-rural, bem como a questões
transversais ao uso e ocupação do solo, como o saneamento ambiental, por exemplo:
Um dos motivos da pouca participação das administrações municipais nas po-
líticas voltadas às áreas rurais e ao meio ambiente é que a maior parte dos municípios
brasileiros possui limitadas condições administrativas e financeiras. Mesmo em se tra-
tando apenas do planejamento e gestão das áreas urbanas, notam-se muitas dificuldades
dos governos locais. Sobre a questão, a avaliação dos planos diretores pós-Estatuto da
Cidade aponta que “a maioria [dos municípios] não apresenta uma estrutura adminis-

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trativa adequada para o exercício do planejamento urbano, no que se refere aos recursos
técnicos, humanos, tecnológicos e materiais” (SANTOS JÚNIOR et al., 2011, p.15).
Assim, embora a abordagem territorial do plano diretor seja condizente com a nova
realidade socioespacial do País, a abrangência alargada do instrumento dificulta ainda
mais a gestão municipal deficiente.
Além disso, a abordagem territorial do plano diretor põe à prova a adequação dos
instrumentos de política urbana e territorial instituídos na legislação brasileira. Especial-
mente no que se refere ao Estatuto da Cidade, pesquisa realizada em 2007 pelo Minis-
tério das Cidades para aferir a utilização dos instrumentos elencados nessa Lei nos pla-
nos diretores municipais revelou que, não obstante muitos desses instrumentos estarem
presentes nos planos, havia a necessidade de se avançar no apoio à implementação dos
mesmos (SANTOS JÚNIOR et al., 2011). É de se supor que a não implementação dos
instrumentos não está relacionada somente à capacidade de gestão das administrações
locais (conforme aponta o documento citado), mas também à pertinência dos mesmos à
realidade de grande parte dos municípios brasileiros.
Nota-se que boa parte dos instrumentos regulamentados pelo Estatuto da Cidade
amolda-se principalmente a cidades grandes, cujos valores imobiliários são altos, bem
como as rendas provenientes dos investimentos urbanos; ajusta-se a cidades onde o poder
público tem recursos financeiros e humanos para aquisição de imóveis urbanos e parce-
rias público-privadas.

A DISCUSSÃO AMBIENTAL E A INTERLOCUÇÃO URBANO-AMBIENTAL


NO PLANEJAMENTO TERRITORIAL
A discussão ambiental, disseminada pelo mundo a partir da década de 1970, abarca mui-
tos e diferentes pontos de vista. Ao longo dos anos, nota-se uma mudança de enfoque
sobre a questão: a passagem de debates considerados preservacionistas e conservacio-
nistas que marcaram os anos 1960 e 1970, resistentes ao modo de produção e consumo
capitalistas, para a tentativa de associação entre desenvolvimento econômico (capitalista)
e preservação/conservação ambiental (COSTA, 1999). Nesse enfoque, despontam os
conceitos de desenvolvimento sustentável e sustentabilidade ambiental, que procuram
conciliar os interesses econômicos, ecológicos e sociais5.
Nesse viés, as cidades, antes excluídas da discussão ambiental (o espaço para a pro-
teção ambiental não era o urbano), tornam-se pauta importante, e o estudo da urbanização
e sua relação com o meio ambiente é inserido no debate sobre sustentabilidade. Assim,
“[…] ao mesmo tempo que verificamos uma ‘ambientalização’ do debate sobre políticas ur-
banas, observamos, também, um movimento em sentido oposto, com a entrada crescente
do discurso ambiental no tratamento das questões urbanas” (ACSELRAD, 1999, p.81).
Não obstante as diferentes abordagens teóricas e político-ideológicas sobre o
tema, verifica-se que a discussão ambiental tem trazido contribuições à discussão urba-

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nística na medida em que amplia o leque de questões — físico-materiais e socioeconô-


micas — e a abrangência de áreas a serem consideradas. Nesse sentido, tem contribuído
para a dissolução de fronteiras rígidas entre algumas categorias analíticas dicotômicas,
como urbano e rural, campo e cidade, ambiente construído e natural, elementos natu-
rais e artificiais (COSTA & COSTA, 2005). O conceito de meio ambiente, utilizado de
modo compreensivo, considerando não apenas os espaços físicos, mas também socioe-
conômicos, pode ser comparado ao conceito lefebvriano de espaço social.
Entretanto, a interlocução entre as agendas urbana e ambiental no planejamento
territorial é dificultada na medida em que estas derivam de racionalidades distintas: a
primeira — denominada ‘agenda marrom’ — tem como matriz a lógica funcionalista de
ordenamento do território, incorporando, pela matriz da reforma urbana, questões de
cunho social; a segunda — denominada ‘agenda verde’ — orienta-se principalmente pelo
binômio preservação/conservação dos recursos naturais e, mais recentemente, pela lógica
da valorização econômica da natureza (COSTA, 2008).
Não obstante, verifica-se nos atuais instrumentos de planejamento urbano no Brasil
uma tentativa de articulação das agendas urbana e ambiental. O Estatuto da Cidade pode
ser considerado um importante avanço nesse sentido. Na Lei (BRASIL, 2001) a integração,
pelo menos conceitualmente, das preocupações de caráter urbanístico e ambiental pode
ser observada principalmente nas diretrizes gerais da política urbana (Artigo 2°) e no rol de
instrumentos da política urbana (Artigo 4°). Entre as diretrizes gerais aparecem os conceitos
‘cidades sustentáveis’ e ‘sustentabilidade ambiental’, além de preocupações relacionadas a
efeitos negativos sobre o meio ambiente (natural e construído). Entre os instrumentos da
política urbana foram adotados alguns concebidos na esfera da gestão ambiental ou inspira-
dos nestes, como o zoneamento ambiental e o estudo de impacto de vizinhança.
A obrigatoriedade da abrangência territorial dos planos diretores (áreas urbanas e
rurais) reforça a necessidade de articulação das agendas urbana e ambiental, pois propõe
uma visão mais integrada dos processos socioespaciais. Sachs (1993), ao discorrer sobre
as dimensões do desenvolvimento sustentável, aponta, entre questões sociais, econômi-
cas, ecológicas e culturais, as questões espaciais. Em relação a estas, vislumbra a sus-
tentabilidade a partir de uma configuração rural-urbana mais equilibrada e uma melhor
distribuição territorial de assentamentos urbanos e atividades econômicas.
Estes conceitos e ideias têm orientado o discurso ambiental vigente e a regulação
ambiental, com desdobramentos nos instrumentos de planejamento urbano. O item so-
bre a dimensão ambiental no relatório de avaliação dos planos diretores pós-Estatuto da
Cidade (COSTA et al., 2011) relata que muitos planos fazem alusão aos conceitos ‘cida-
des sustentáveis’ e ‘sustentabilidade ambiental’. Porém, o documento também aponta que
a convergência/articulação entre as demandas de desenvolvimento econômico, melhoria
das condições de vida e preservação/conservação ambiental — princípio sobre o qual se
assentam tais conceitos — não foi alcançada nos planos analisados.

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O documento revela que a questão ambiental ainda está estritamente relacionada


à preservação dos recursos naturais e aparece desvinculada da política de ordenamento
territorial e das questões de infraestrutura urbana, principais focos dos planos diretores:

A análise da abordagem ambiental explicitada nos planos diretores dos municípios


que compõem a amostragem desta pesquisa revela uma visão do meio ambiente
como algo predominantemente ligado à preservação de áreas verdes, desvinculado
das demais questões de desenvolvimento municipal e, acima de tudo, desprovido do
reconhecimento da existência de conflitos socioambientais que caracterizam essa
temática, bem como de mecanismos para enfrentamento de tais conflitos (COSTA
et al., 2011, p.185).

Assim, não foram vislumbradas propostas efetivas de consolidação de sistemas


integrados de planejamento, visando à interlocução urbano-ambiental. As questões ur-
bana e ambiental seguem compartimentadas em políticas setoriais, predominando nas
políticas ambientais o foco na preservação dos recursos naturais.

MECANISMOS DE PARTICIPAÇÃO POPULAR


Ao longo da década de 1990, os sistemas de participação da sociedade civil nas políticas
públicas foram institucionalizados no Brasil, com a criação de conselhos setoriais e a re-
alização de conferências temáticas. No caso da política ambiental, o sistema se encontra
consolidado, apesar de haver muitas críticas a respeito. Estudiosos sobre a questão têm
apontado a oligarquização e tecnicização dos órgãos colegiados, a insuficiente participa-
ção das populações atingidas pelos impactos ambientais e a concentração de atribuições e
poder por parte do executivo como desafios limitantes a uma efetiva participação popular
(ZHOURI et al., 2014). Para os estudiosos, a pretensa participação estaria servindo prin-
cipalmente para legitimar o discurso dominante.
Outras políticas, entretanto, como é o caso da política urbana e das políticas de
habitação, saneamento e transporte e mobilidade, não angariaram forças suficientes para
a consolidação de sistemas participativos. Porém, com a aprovação do Estatuto da Cidade,
as diretrizes de participação quanto ao planejamento territorial ganharam objetividade.
A Lei elencou diversos mecanismos e instrumentos de participação, os quais devem ser
detalhados e complementados pelos planos diretores, principalmente.
O item “O Sistema de gestão e participação democrática nos planos diretores
brasileiros” no relatório de avaliação dos planos diretores pós-Estatuto da Cidade (SAN-
TOS, 2011) revela que a maioria dos planos instituiu conselhos de política urbana ou
similares, além de outros mecanismos de participação, como as audiências públicas
obrigatórias, as conferências e os mecanismos de democratização do orçamento. Po-
rém, “[…] poucos foram os planos que estabeleceram definições precisas quanto à for-

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ma de funcionamento dos mecanismos de participação e previram a articulação entre


os mesmos” (SANTOS, 2011, p.277).
No que se refere às atribuições dos conselhos instituídos, segundo o documento,
estes têm como foco principalmente as questões relativas ao uso e ocupação do solo urba-
no (SANTOS, 2011), não envolvendo, portanto, os problemas das áreas rurais e políticas
inter-relacionadas com a questão territorial, como as de habitação, transporte público
e meio ambiente, por exemplo. Conselhos setoriais, como os de educação, assistência
social, saúde e meio ambiente continuam atuando nos municípios de forma fragmentada,
sem mecanismos efetivos de articulação e compatibilização das políticas.
Assim como as políticas setoriais, a participação popular também se encontra frag-
mentada. A fragmentação da participação compromete a percepção dos processos socio-
espaciais de forma integrada e pode acarretar decisões conflitantes e incompatíveis. Uma
vez que os planos diretores devem abarcar todo o território dos municípios e suas questões
socioespaciais, seria importante que conseguissem integrar as políticas públicas e seus
mecanismos de participação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da aprovação do Estatuto da Cidade, percebe-se, pelo menos no âmbito
teórico-conceitual, a busca por um planejamento urbano mais abrangente e integrado,
para além da oposição urbano-rural. Porém, no âmbito operacional, ainda permanece a
compartimentação das políticas públicas e a ausência de propostas efetivas de consolida-
ção de sistemas e práticas integrados de planejamento territorial.
Como limitação ao desenvolvimento do planejamento territorial integrado,
pode-se citar a prevalência do viés urbano nos planos diretores, que muitas vezes negli-
genciam as áreas rurais e a inter-relação existente entre essas e as áreas urbanas. Des-
pontam-se dois motivos explicativos dessa situação: (1) perduram dúvidas em relação
às competências das diferentes instâncias e instituições envolvidas no planejamento
territorial, visto que a legislação brasileira deixa incertezas e lacunas sobre a questão;
(2) os municípios apresentam limitadas condições administrativas e financeiras, muitas
vezes não condizentes com as responsabilidades a eles atribuídas.
Por sua vez, o Estatuto da Cidade, que tem papel norteador dos planos diretores,
também apresenta uma gênese urbana (como o próprio nome da Lei revela) e não aponta
alternativas claras para um planejamento territorial de caráter abrangente, que integre as
questões urbanas, rurais, ambientais e sociais. O fato de muitos municípios não estarem
implementando os instrumentos elencados no Estatuto da Cidade (apesar de instituídos
em seus planos diretores), parece demonstrar que esses instrumentos não são adequados
à realidade de grande parte dos municípios brasileiros.
Essa deficiência da política urbana brasileira torna-se ainda mais problemática
nos casos dos municípios de pequeno porte populacional, que geralmente têm aglo-

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merações urbanas diminutas e pobres mergulhadas em um universo rural. Por essa


razão, são despendidos poucos esforços intelectuais e materiais para o planejamento e
gestão das suas áreas urbanas e para as questões referentes à inter-relação urbano-rural,
desprezando-se as relações de interdependência no âmbito territorial, fator essencial ao
desenvolvimento sustentável.
Portanto, para a consolidação no Brasil de sistemas e práticas integrados de plane-
jamento e gestão territorial, conclui-se serem necessários novos instrumentos de planeja-
mento e política urbana, assim como se mostram essenciais o esclarecimento e definição
de competências, bem como formas de envolvimento das diferentes instâncias e setores
afetos ao planejamento e gestão dos territórios.
Assim, é preciso rever a legislação urbana, rural e ambiental, considerando a diver-
sidade de arranjos socioespaciais encontrados no país. Sobretudo, é preciso romper com
polaridades como urbano-rural, cidade-campo, ambiente construído-ambiente natural
no desenvolvimento das políticas públicas.

notas
1. Termo francês que corresponde a plano diretor. O Plano Agache foi originalmente publicado
em francês.

2. Os municípios brasileiros são compostos de áreas/zonas urbanas e áreas/zonas rurais, conforme


delimitação administrativa: urbana é a área inserida em perímetro urbano definido pela legislação
de cada município. Os perímetros urbanos devem abarcar as sedes municipais, que configuram
as cidades.

3. Conforme o autor, “o termo novas foi colocado entre aspas porque muitas atividades, na verdade,
são seculares no país, mas não tinham, até recentemente, importância como atividade econômica”
(SILVA, 2002, p.ix).

4. No Brasil, desde o Decreto-Lei nº 311/1938, considera-se cidade toda e qualquer aglomeração


que se caracterize como sede de município, independentemente do seu porte e do caráter e vitali-
dade das dinâmicas socioeconômicas.

5. O termo desenvolvimento sustentável aparece pela primeira vez em publicações da década de


1980, consolidando-se com a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvol-
vimento, em 1992. Entendido como a busca de um equilíbrio entre desenvolvimento econômico e
preservação dos recursos naturais, visando à garantia da sobrevivência de futuras gerações, pode-se
dizer que sua difusão tem trazido avanços no sentido de condenar o crescimento econômico a qual-
quer custo; porém, é inegável que também traz consigo a proposta de reprodução e manutenção do
capitalismo em nível global. Portanto, é preciso inserir na discussão a reflexão sobre a aceitação ou
não do atual projeto de modernidade capitalista ocidental (COSTA, 1999).

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Recebido em
29/1/2016,
SELENA DUARTE LAGE E LAGE | Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Engenharia reapresentado
Civil, Arquitetura e Urbanismo, Programa de Pós-Graduação em Arquitetura, Tecnologia e Cidade em 18/1/2017
| R. Saturnino de Brito, 224, Cidade Universitária Zeferino Vaz, 13083-889, Campinas, São Paulo, e aprovado em
Brasil. | E-mail: <selenalage@yahoo.com.br>.  3/2/2017.

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URBANIZAÇÃO E DESASTRES NATURAIS,
ABRANGÊNCIA AMÉRICA DO SUL
De Lucí Hidalgo Nunes
São Paulo: Oficina de Textos, 2015

RESENHA | LEANDRO LUDWIG

“Urbanização e desastres naturais: abrangência América do Sul” é o título do livro de auto-


ria de Luci Hidalgo Nunes. Publicado em 2015, o texto oferece um relevante, histórico e
contemporâneo panorama dos desastres naturais na região. De acordo com a autora, ape-
sar da múltipla diversidade de indutores naturais de desastres presentes no continente,
o enfoque é relevante principalmente devido à relação dos desastres com dois processos
sociais contemporâneos: urbanização e globalização. Com uma relação direta explícita na
América do Sul, esses dois processos se destacam pela capacidade de alterar rapidamente
não apenas as relações sociais, mas também o ambiente natural. Nesse sentido, o livro en-
foca as diferentes formas como globalização e urbanização contribuíram para desarticular
ambientalmente o continente sul-americano no período de 1960-2009, sem que tenham
colaborado expressivamente para projetá-lo na arena global.

OS DESASTRES NATURAIS — CONDICIONANTES SOCIOECONÔMICOS E FÍSICOS


No primeiro capítulo da obra, a autora expõe uma reflexão acerca das condicionan-
tes sociais, econômicas e ambientais dos desastres naturais. A partir dessa reflexão, a
autora define desastres como um processo de construção social, que pode evidenciar
desequilíbrios bruscos e expressivos entre as forças dos sistemas naturais e sociais. Ou
seja, desastre não é uma problemática da natureza, mas da interação entre meio am-
biente natural e a falta de organização e estruturação da sociedade. Segundo Nunes, a
cidade constitui e caracteriza a maior modificação do ambiente natural. Por um lado, a
expansão dos centros urbanos, que costuma ocorrer em áreas ambientalmente frágeis,
como encostas e várzeas, está fortemente associada à vulnerabilidade da população.
A globalização, por outro lado, provoca transformações nos espaços produtivos locais

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170 U R B A N I Z A Ç Ã O E D E S A S T RE S NAT URA IS , A BRA NGÊ NCIA AMÉRICA D O SU L | Resenha

para atender às demandas globais, o que ocorre sem comprometimento com a escala e
a realidade regional.

A AMÉRICA DO SUL EM PERSPECTIVA


No segundo capítulo é exposta a influência dos aspectos físicos e das transformações
socioambientais para a ocorrência de desastres naturais na América do Sul. Dentre as di-
versas perspectivas apresentadas no capítulo, a autora destaca as grandes transformações
demográficas que ocorreram no continente, como, por exemplo, o fato de a população ter
aumentado 266,0% nas últimas seis décadas. Outro aspecto considerado é que esse au-
mento se concentrou principalmente nas áreas urbanas, que englobam atualmente 82,8%
da população. De tal forma, o crescimento e a concentração da população nas cidades, em
velocidade maior que os investimentos em infraestrutura, acarretaram transformações
profundas também no meio ambiente, o que contribuiu para o aumento dos desastres
naturais. Segundo a autora, o número de catástrofes naturais é maior onde o ritmo de
crescimento é mais acelerado, fato que ocorre mais intensamente nas cidades médias e
pequenas da América do Sul.

OS DESASTRES NATURAIS NA AMÉRICA DO SUL


A terceira parte do livro inicia destacando a relação histórica dos antigos povos da
América do Sul com os desastres naturais. Por meio de casos como dos povos incas,
machupes e tupi-guarani, Nunes argumenta que eles tinham suas crenças e divindades
baseadas em determinadas intempéries e desastres naturais. Partindo para uma aná-
lise contemporânea dos desastres, a autora utilizou a base de dados do International
Disaster Database (EM-DAT) para elaborar os cinquenta gráficos, tabelas e imagens
que ilustram e enriquecem o livro. A partir do EM-DAT, a autora apresenta um amplo
panorama dos desastres na América do Sul, destacando-se dois padrões específicos: (1)
eventos hidrometeorológicos são os mais recorrentes do continente e por isso afetam
maior número de pessoas (88%, de 1960 a 2009); (2) eventos geofísicos são expressivos
em apenas quatro países, entretanto causam nessas regiões a maior quantidade de mor-
tos do continente (60%, de 1960 a 2009).
Segundo Nunes (2015), o Brasil é o país mais afetado por desastres na América do
Sul (70 447 903 pessoas atingidas), com eventos majoritariamente hidrometeorológicos.
Além disso, o país responde por mais da metade dos eventos registrados no continente.
Entretanto, é o Peru que possui maior número de óbitos (87 552), ocasionados principal-
mente por eventos geofísicos. Os dados abrangem o período de 1960-2009.
Outro aspecto crucial analisado pela autora diz respeito ao impacto dos mega-
desastres. Essa análise revelou que somente os vinte maiores desastres naturais provo-
caram 149 877 óbitos, o que corresponde a 83,5% do total de mortes provocadas por
desastres no continente. Desse total de óbitos registrados, só o terremoto ocorrido no

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URBA NIZ A Ç Ã O E D ESASTR ES N ATU RAIS, ABR AN G ÊN CIA AMÉRICA D O SU L | R esenha |171

Peru em 1970 corresponde a 44,0% (66 794 óbitos). Do ponto de vista econômico, os
vinte desastres que causaram maiores perdas são responsáveis por 75,0% do total de
perdas provocadas nessa categoria, o que torna evidente os impactos, principalmente,
dos megadesastres.

CONCLUSÃO
Na quarta e última parte do livro, a autora destaca que a intensificação dos desastres
naturais pode representar um óbice ao desenvolvimento das nações sul-americanas.
Também salienta que, diante da importância de se compreenderem os padrões e ten-
dências espaciais dos desastres, a existência de um banco de dados específico para a
América do Sul é elemento central para confrontar os desastres naturais no continente.
Segundo a autora, se o convívio com o risco pode ser considerado inevitável, é urgente
desenvolver novas formas para seu entendimento e combate, que possibilitem aprimo-
rar a capacidade de a sociedade conviver com o risco. A autora argumenta que há muito
mais desarticulação do que ações concretas para a criação de um bloco efetivamente
unificado entre as nações sul-americanas. Logo, a relação do homem com seu meio é
perturbada por práticas econômicas guiadas por lógicas externas aos lugares. Por fim,
esse livro constitui uma contribuição ímpar de Luci Hidalgo Nunes não somente para a
compreensão dos desastres na América do Sul, mas também para os avanços nos estu-
dos sobre o assunto, pois empreende uma análise singular dos desastres como processos
guiados e transformados tanto pelos aspectos da globalização, quanto pelos acelerados
processos de urbanização.

REFERÊNCIAS
NUNES, L.H. Urbanização e desastres naturais, abrangência América do Sul. São Paulo: Oficina
de Textos, 2015.

LEANDRO LUDWIG | Fundação Universidade Regional de Blumenal | Programa de Pós-Graduação Recebido em


em Desenvolvimento Regional | R. Antonio de Veiga, 140, Itoupava Seca, 89030-903, Blumenal, 8/7/2016 e aprovado
SC, Brasil | E-mail: <leandroludwig@live.com>. em 18/1/2017.

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