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São
Paulo: Moderna, 2004.
Aparentemente, “a maioria das pessoas não se importa de viver em uma ditadura, desde que seus
problemas pessoais sejam resolvidos.”
“As pessoas parecem não ter consciência de que foram os Estados ditatoriais e autoritários, que
governaram os países latino-americanos nesses quinhentos anos de colonização, que nos colocaram neste
quadro em que prevalecem a miséria e a pobreza. O autoritarismo está impregnado em nossas culturas...”
A maioria dos docentes, estudantes e famílias também apoiaria uma educação autoritária se ela pudesse
resolver os problemas de indisciplina na escola, “pois não reconhece que o atual estado de mal-estar na educação
foi provocado justamente pelo autoritarismo, e não pela democracia, que nunca existiu. O autoritarismo, que
sempre excluiu das escolas a maioria da população, privilegiando uma elite pretensamente homogênea, assusta-
se quando os novos ventos democráticos exigem que a escola conviva com as diferenças socioeconômicas e de
valores, com os desejos e os comportamentos de seus jovens e de suas crianças. Pensam essas pessoas [...] que
melhor seria viver sem liberdade do que ter de aprender a conviver com as diferenças e a encontrar maneiras
democráticas de lidar com os conflitos que os novos tempos sociais lhes impõem.” (p. 6).
“Entendo que aprender a dialogar, a construir coletivamente as regras de convívio e a fortalecer o
protagonismo das pessoas e dos grupos sociais na construção da democracia e da justiça social é um papel que a
escola pode, e deve, exercer na luta de transformação da sociedade” (p. 7).
“Se, por um lado, a maioria dos educadores se considera democrática, por outro, existe muita polêmica
nas relações entre docentes e estudantes sobre o que são práticas democráticas ou não. [...] Puig nos lembra que,
embora útil para definir um modelo desejável de relações políticas na sociedade, o termo democracia não é
necessariamente adequado para caracterizar instituições como a família, a escola e os hospitais” (p. 9). Assim
como pais e mães têm capacidades, papéis e responsabilidades muito diferentes daquelas de seus filhos, também
são assimétricas as relações entre médicos e pacientes, e entre professores e alunos.
Para esse autor, “pode haver escolas democráticas, desde que se consiga um equilíbrio no jogo entre a
assimetria funcional das relações interpessoais e a simetria democrática dos princípios que devem reger as
instituições sociais” (p. 10).
Eqüidade : “além da igualdade, existe um outro princípio inerente ao conceito de justiça e,
conseqüentemente, de democracia: a ‘eqüidade’, que reconhece o princípio da diferença dentro da igualdade.
Discussão [...] Se pensamos na democracia somente a partir do ideal de igualdade, acabamos por destruir a
liberdade. Se todos forem concebidos como iguais, onde ficará o direito democrático da diferença, a possibilidade
de se pensar de maneira diferente e de ‘ser diferente’?” Igualdade e eqüidade são complementares. Nesse ponto
percebemos a necessidade do respeito à diversidade, ao pensamento divergente (p. 11-12).
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Assim, a democracia e a justiça podem ser concebidas no âmbito escolar, partindo-se, “em primeiro lugar,
da assimetria dos papéis de estudantes e docentes, entendendo sua diferenciação natural a partir do princípio da
eqüidade. Isso, porém, não quer dizer que, em alguns aspectos, ambos os coletivos não sejam iguais perante a
sociedade, tendo os mesmos direitos e deveres de todos os seres humanos” (p. 13). A sociedade atribui aos
professores(as) responsabilidades e deveres que lhes permitem avaliar alunos(as) e fazer uso da autoridade de
sua função para exigir o cumprimento das regras e normas sociais. “Por sua vez, tais poderes não lhes garantem o
privilégio de agir de maneira injusta, desconsiderando, por exemplo, os direitos relativos à cidadania de seus
alunos e alunas”.
Então, considerada a assimetria entre alunos e professores, em que aspectos todos os membros da
comunidade escolar têm os mesmos direitos? O “direito ao diálogo, à livre expressão de seus sentimentos e de
suas idéias, ao tratamento respeitoso, à dignidade etc.” Trata-se do que constitui a cidadania (p. 14).
A formação para a cidadania “deve visar ao desenvolvimento de competências para lidar com a
diversidade e o conflito de idéias [...]. A educação para a cidadania e para a vida em uma sociedade democrática
solicita um trabalho visando à construção de personalidades morais, de cidadãos e cidadãs autônomos, que
buscam, de maneira consciente e virtuosa, a felicidade e o bem pessoal e o coletivo” (p. 15).
Uma maneira de contribuir “para que cada sujeito cresça incorporando, no núcleo central de sua
personalidade [...] a racionalidade autônoma com base na igualdade, na eqüidade, na justiça, no auto-respeito e
no respeito pela natureza e por todos os demais seres humanos” (p. 15-16) “é por meio de propostas educativas
fundamentadas na resolução de conflitos e de problemas cotidianos, e isso é a matéria-prima das
assembléias escolares” (p. 16).
“[...] tendemos a atribuir um caráter negativo aos conflitos cotidianos, vistos como incompatíveis com o
amor, o afeto e a harmonia que deveria reinar nas relações humanas. Por isso são reprimidos, subestimados,
criticados, ignorados e, em geral, condenados.”
“O conflito é uma parte natural de nossas vidas [...]. De fato todas as teorias interacionistas em filosofia,
psicologia e educação estão alicerçadas no pressuposto de que nos constituímos e somos constituídos a partir da
relação direta ou mediada com o outro, seja ela de natureza subjetiva ou objetiva. Nessa relação, deparamo-nos
com as diferenças e as semelhanças que nos obrigam a comparar, descobrir, ressignificar, compreender, agir,
buscar alternativas e refletir sobre nós mesmos e sobre os demais. O conflito torna-se, portanto, a matéria-prima
para nossa constituição psíquica, cognitiva, afetiva, ideológica e social” (p. 17).
“Os educadores conscientes de tal fato, em vez de condenar e reprimir, deveriam mudar a perspectiva de
seus olhares e práticas e buscar compreender os conflitos como um conteúdo essencial para a formação
psicológica e social dos seres humanos, e encarar o desafio de introduzir o trabalho sistematizado com conflitos
no dia-a-dia das salas de aula. Em vez de assumirem posturas de eterna conciliação e anulação das diferenças de
valores, interesses, preferências e gostos de seus alunos e alunas, posturas estas que geralmente têm como
substrato a tentativa de homogeneização dos seres humanos, poderiam incorporar os conflitos cotidianos como o
material de onde se produziriam textos, se desenvolveriam projetos de pesquisa e se construiriam os momentos
de diálogo na escola” (p. 18).
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Como lembram SASTRE e MORENO, “Não fomos preparados para compartilhar nem para resolver com
agilidade e de forma não-violenta os problemas que iam surgindo em nossas relações pessoais [...] Nossa razão
não foi exercitada na resolução de conflitos e tampouco dispúnhamos de um repertório de atitudes e
comportamentos práticos que nos permitissem sair dignamente de uma situação. Em síntese, nossa formação nos
tornou mais hábeis para lidar com o mundo físico do que com o social” (apud ARAÚJO, p. 18). A escola contribuiu
para isso, na medida em que vem ignorando a importância das relações interpessoais e dos conflitos para a
formação integral dos seres humanos. No entanto, um importante papel atribuído à escola seria “o da formação de
cidadãos e cidadãs autônomos, que tenham as competências necessárias para lidar de modo ético com seus
conflitos pessoais e sociais” (p. 19).
“A educação com base em propostas de resolução de conflitos está cada vez mais difundida em todo o
mundo”, mas “a maioria das experiências atuais se baseia em modelos tradicionais que utilizam arbitragens,
mediações, negociações e terapias. Em geral, atuam sobre objetivos específicos e práticos e pautam-se em
pressupostos dicotômicos de ganhar e perder nas resoluções” (p. 19) [Isto tem a ver com a ênfase da Silvana
na busca de consenso, e não da simples maioria ].
Novas propostas promovem diálogos transformativos. Não adotam “o pressuposto de que em um conflito
há sempre ganhadores e perdedores, e sim afirmam que é possível a construção do interesse comum, em que
todos os envolvidos ganhem conjuntamente, com uma co-participação responsável. Elas permitem aumentar a
compreensão, o respeito, e construir ações coordenadas que considerem as diferenças, as quais incrementam o
diálogo e a participação coletiva em decisões e acordos participativos. Por fim, acreditam na importância do
protagonismo das pessoas ao enfrentar os conflitos em suas vidas e entendem que tal processo deve enfocar não
apenas emoções, intenções e crenças dos participantes, mas também domínios simbólicos, narrativos e dialógicos
como o meio pelo qual se constroem e transformam significados e práticas, permitindo o aparecimento de
identidades, mundos sociais e novas formas de relações” (p. 20).
Tais programas educativos, assumindo que trabalhar os conflitos integra o currículo, podem, de acordo
com SASTRE e MORENO, “formar os(as) alunos(as), desenvolver sua personalidade, faze-los(as) conscientes de
suas ações e das conseqüências que acarretam, [...] fomentar a cooperação, a autoconfiança e a confiança em
suas companheiras e seus companheiros, com base no conhecimento da forma de agir de cada pessoa [...]. A
realização desses objetivos leva [...] à melhoria da qualidade de vida, que não se baseia no consumo, e sim em
gerir adequadamente os recursos mentais... intelectuais e emocionais – para alcançar uma convivência humana
muito mais satisfatória” (apud ARAÚJO, p. 21).
1. Assembléias de classe
Tratam “de temáticas envolvendo o espaço específico de cada sala de aula. Dela participam um docente e
todos os estudantes de uma turma. Seu objetivo é regular e regulamentar a convivência e as relações
interpessoais no âmbito de cada classe e, com encontros semanais de uma hora, serve como espaço de diálogo
na resolução dos conflitos cotidianos” (p. 31).
2. Assembléias de escola
“Contando com a participação de representantes de todos os segmentos da comunidade escolar, busca
discutir assuntos relativos a horários (chegada, saída, recreio); espaço físico (limpeza, organização); alimentação;
e relações interpessoais. De seu temário devem constar aqueles assuntos que extrapolam o âmbito de cada
classe específica. Os representantes dos diversos segmentos (por exemplo, dois de cada classe, quatro docentes
e quatro funcionários) são escolhidos obedecendo a uma sistemática de rodízio [...]. Sua periodicidade deve ser
mensal, coordenada por algum membro da direção da escola” (p. 33). O número de participantes não deve ser
muito grande, e sugere-se uma assembléia por turno.
3. Assembléias docentes
Aqui os temas são aqueles relacionados “com o convívio entre docentes e entre estes e a direção, com o
projeto político-pedagógico da instituição e com conteúdos que envolvam a vida funcional e administrativa da
escola. Dela participam todo o corpo docente, a direção da escola e, quando possível, algum representante” da
Secretaria da Educação (p. 34).
Exercitar diferentes papéis nessas assembléias permite os sujeitos “compreendê-las em suas distintas
dimensões e funções. Um professor que atua como coordenador de uma assembléia de classe um dia, no
seguinte pode estar no papel de membro regular de uma assembléia docente, para depois estar no papel de
representante de seus pares na assembléia de escola. Com isso, tem melhores condições de saber como se sente
um aluno quando exerce a função de representante [...]” (p. 34-35).
Essa é a retroalimentação que permite enriquecer a experiência. “O fato de podermos exercer papéis
sociais distintos àqueles que estamos acostumados ajuda no processo de descentração pessoal e cognitiva, tão
importante para os processos de construção da ética nas relações interpessoais” (p. 35). O objetivo não é somente
a formação dos alunos e alunas, mas também dos adultos que participam do espaço escolar.
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Talvez por isso se explique parte da resistência à proposta. Sempre que se pensa em formação para a
cidadania, costuma-se esquecer que a formação ética dos adultos é tão importante quanto à dos alunos. “Daí a
importância de se tomar a decisão política de introduzir os três tipos de assembléias nas escolas” (p. 36).
Como iniciar? O ideal seria o coletivo decidir trabalhar as três formas citadas. Porém, raramente isso é
possível. “Muitas vezes, o trabalho deve ser iniciado com apenas um professor e sua turma, ou um grupo de
professores compartilhando a experiência para, lentamente, ir disseminando-a entre os colegas. Esses caminhos
[...] são muitas vezes os únicos possíveis em instituições em que a direção ou a maioria dos profissionais prefere a
manutenção de relações autoritárias, as quais garantem as instâncias de poder institucionalizadas e consolidadas”
(p. 36).
“Como situação ideal, a implementação das assembléias escolares deve ser decidida no âmbito dos espaços
democráticos já consolidados nas escolas, como aquele previsto nos conselhos escolares ou nos momentos de
planejamento. Mediante estudos prévios sobre o tema e a discussão de suas implicações, o coletivo de
professores e a direção podem tomar a decisão de iniciar o trabalho com as assembléias. Esse desejo coletivo é
fundamental para o sucesso da experiência, pois é o que garantirá a sustentação da decisão diante dos percalços
que, necessariamente, aparecerão em um programa que mexe com as relações de poder dentro da escola. [...] a
melhor maneira de iniciar o trabalho é por meio das assembléias docentes. Com isso [...] os docentes aprendem
coletivamente em ação concreta, e não apenas na teoria, como se deve organizar as discussões e o
funcionamento de uma assembléia, e, assim, sentem-se mais seguros para iniciar o mesmo processo em suas
classes” (p. 37). “[...] não podemos perder de vista a estrutura autoritária que caracteriza nossas escolas e as
relações interpessoais ali presentes. As escolas funcionam em sintonia com as demais instituições da sociedade e,
dessa maneira, não são isoladas da mesma. Nossa sociedade ainda é autoritária, e também o é a escola. Em
geral, quem detém o poder manda e os demais obedecem, ou se calam para não sofrer as punições da autoridade
constituída” (p. 38).
“Aprender a ouvir, a controlar nossos impulsos autoritários, a deixar o outro falar e confiar no poder do
grupo como agente de regulação coletiva, são alguns dos processos construídos por meio do espaço de diálogo e
de participação propiciados nas assembléias.” Entretanto, “por ser um processo diferente de organização do
convívio e do diálogo escolar, é necessário dar tempo para que as novas práticas se consolidem. Já vivenciei
várias situações em que o grupo docente desiste depois de poucas assembléias, com o argumento de que dá
muito trabalho e poucos resultados. Isso é típico de ações de resistência ao novo e característico de processos
que levam ao imobilismo e à manutenção de práticas autoritárias, que parecem dar mais conforto às pessoas, por
evitar conflitos”. É preciso dar pelo menos um ano de tempo para que a aprendizagem de novas formas de
convívio possa se consolidar no interior dos grupos (p. 40-41). Deve-se respeitar também o tempo de cada um em
seus processos de transformação; é um projeto complexo, no qual não se pode obrigar docentes a fazer aquilo em
que não acreditam, ou que julgam não estar ainda preparados. “Quando as pessoas são violentadas em seus
princípios e suas crenças, de alguma maneira resistirão às mudanças que lhes são impostas. Tais resistências
podem vir por meio da apatia, por meio de protestos explícitos ou, ainda, por meio dos jogos e das fofocas de
bastidores, tão comuns nos agrupamentos humanos” (p. 41).
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A sedução exercida pelos princípios inerentes às assembléias e os resultados positivos provavelmente
irão contagiar o grupo e incorporar de forma gradual novos atores ao processo, como se viu em diversos casos
concretos de escolas públicas. Em um desses casos, uma escola com 50 professores iniciou as assembléias de
classe (turma) com 4 docentes. “Paulatinamente, outros docentes foram se incorporando ao projeto, por sentirem-
se mais seguros, por pressão dos alunos e alunas e, principalmente, porque viam as mudanças positivas ocorridas
nas relações entre os próprios estudantes e entre eles e os professores que praticavam as assembléias”. No final
do ano, 25 professoras estavam colocando em prática o trabalho sistemático de assembléias em suas turmas (p.
42).
Os outros “25 docentes, embora eventualmente tivessem de realizar assembléias em suas classes, para
que os representantes levassem temas para a composição da pauta das assembléias de escola, não conseguiram
fazê-lo de maneira sistemática. Dentre várias razões alegadas, alguns assumiam que não acreditavam nessa
prática e achavam que a postura docente em sala de aula deve ser autoritária, para formar o caráter das crianças;
e outros porque se sentiam ainda inseguros e tinham medo de perder o controle da situação e da turma. Enfim, [...]
esses 25 professores foram respeitados em sua posição e tiveram a possibilidade de não levar a cabo as
assembléias de classe” (p. 43). Seria autoritário e inútil obriga-los a fazer algo em que não acreditam. Na verdade,
dever-se-ia considerar excelente o dado de que, “no período de um ano letivo, a metade dos docentes de uma
escola construiu, por decisão própria, e não por imposição, práticas mais democráticas e dialógicas com seus
alunos” (p. 44).
Procedimentos:
1. A mobilização do grupo
“O primeiro passo [...] é desenvolver alguma atividade que leve o coletivo a estudar e a discutir o que é e
como funciona uma assembléia” (p. 46). Em uma turma (classe), deve-se procurar aplicar uma atividade que leve
os alunos a discutir a importância do diálogo para a resolução dos conflitos escolares cotidianos. O livro
Democracia e participação escolar (PUIG, Josep. Moderna, 2000) traz exemplos de atividades com esse
objetivo. No caso das assembléias docentes, pode-se utilizar o presente resumo.
Quem vai participar das assembléias precisa se conscientizar de que elas se destinam “à resolução de
conflitos e à constituição de espaços de convivência mais positivos e democráticos. Ao mesmo tempo, é
necessário que se compreenda que esse espaço precisa também de momentos prazerosos, onde se fala de
coisas positivas, felicitam-se as conquistas pessoais e coletivas e discutem-se projetos futuros” (p. 47). [ penso
que isso aconteceu um pouco no Conselho de Classe da manhã – 51, 61, 62 ].
Não se pode gerar falsas expectativas – as assembléias não são mágicas. “É bastante comum o desejo
dos docentes, mesmo que inconsciente, de poder entrar em uma sala de aula homogênea, cheia de alunas e
alunos estudiosos, limpos, bem-educados e que não brigam nem fazem brincadeiras entre si, em que ninguém
atrapalha a aula etc. Ora, isso não é real nem possível em qualquer agrupamento humano onde se reúnam
pessoas absolutamente diferentes entre si, oriundas de estruturas familiares, sociais e ideológicas distintas, cada
uma com suas crenças, seus valores e suas histórias de vida específicas. Tal ambiente não será jamais
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encontrado, nem nas salas de aula nem dentro das salas de professores, tampouco em nossas próprias casas”
(p. 47-48).
Muita gente já desistiu das assembléias por terem esperado resultados imediatos. “Com as assembléias,
o que se consegue, em geral, com muito trabalho e esforço, é manter os comportamentos socialmente
inadequados em níveis democraticamente aceitáveis. [...] o foco da mobilização inicial para as assembléias deve
ser o de levar o grupo a refletir sobre a importância de se criar espaços dialógicos, que melhorem a convivência
dentro da escola e das salas de aula, ao mesmo tempo que contribuam para a formação de valores sociais e
pessoais mais democráticos e de uma melhor habilidade para lidar com os sentimentos e as emoções próprias e
dos demais” (p. 49).
2. A sistematização da periodicidade
Um dos temas sagrados na organização do trabalho com assembléias é a sua regularidade, pois seu
descumprimento traz sérias conseqüências, tanto para o processo de funcionamento da assembléia, quanto para
o seu papel de referência na construção de valores por parte dos membros da comunidade escolar” (p. 50).
“A certeza de que as assembléias ocorrerão no dia previsto, e com a periodicidade combinada, garante
que os membros que delas participam possam se organizar e construir maneiras de atuação que se mantêm ao
longo do tempo. Esse tipo de aprendizagem é essencial para a construção de valores e é o que permite que os
conflitos na escola sejam enfrentados constantemente – como um processo – e não apenas pontualmente” (p. 51-
52). Os professores ou a escola podem ser tentados a suspender a assembléia por excesso de trabalho, festas
escolares etc., mas se isso acontecer “os responsáveis estarão agindo como ditadores, autoritários, que
suspendem o espaço de participação popular” (p. 52). A periodicidade das assembléias poderá ser garantida pela
previsão em um calendário feito no início do ano letivo:
a) assembléia de classe: semanal;
b) assembléia de escola: mensal;
c) assembléia docente: mensal.
O autor propõe assim uma limitação dos temas pertinentes às assembléias, respeitando as limitações
legais e as atribuições específicas de professores e da diretora da escola. “Para exemplificar, os estudantes de um
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grupo podem discutir a violência na escola e apontar caminhos para seu enfrentamento, mas jamais podemos lhes
outorgar o direito de estabelecer sanções àqueles que descumprirem uma regra de não brigar. A sanção, quando
necessária, deve ser aplicada por quem tem a responsabilidade e a formação profissional para tal” (p. 56). Da
mesma forma, “a assembléia de uma classe não pode tomar decisões que afetem outras turmas”. Em uma
sociedade democrática, não se faz justiça com as próprias mãos e “existem espaços e níveis de responsabilidades
que precisam ser respeitados”.
Mas não se deve falar apenas de aspectos conflitivos ou negativos, pois isso seria “negar a riqueza das
relações humanas, a beleza das amizades e as conquistas coletivas que movem as relações humanas. Assim, [...]
é preciso trazer para o dia-a-dia das assembléias os momentos prazerosos da escola, falar de coisas positivas,
felicitar as conquistas pessoais e coletivas e discutir os projetos futuros [...] sob pena de tornar esse espaço em
algo pesado, sem prazer [...]” (p. 58).
Eu critico Eu felicito
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“Estando fixada em local visível, as pessoas vão escrevendo as críticas e sugestões que querem debater
durante a assembléia”. Para a assembléia docente, o cartaz ficará na sala dos professores, para a assembléia de
classe, na sala de aula; no caso da assembléia de escola, cada grupo (estudantes, docentes e funcionários)
apresentará à direção os temas sugeridos para a pauta, definidos em reuniões específicas. Dois dias antes da
assembléia, o cartaz deverá ser afixado no pátio (p. 61). “O fato de a cartolina estar À vista de todos
constantemente exerce um papel de regulação do grupo que contribui para um melhor funcionamento da escola
ou da classe. Assim, a visibilidade de que o tema das brigas será discutido brevemente ajuda a inibir possíveis
ações violentas; ou então, o elogio a um determinado comportamento pode servir como reforço positivo para um
aluno específico ou para o grupo” (63) [ não diria “um reforço”, mas é claro que quando a gente tem uma
avaliação positiva dos outros, a gente vê que está no caminho certo ].
Anonimato : “É importante que nas pautas as pessoas que anotarem algum tema não se identifiquem.
Poderão faze-lo no momento da assembléia, mas na escrita é melhor que a pauta não reflita uma personalização,
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pois tal fato pode interferir negativamente na sua construção”. Se a pauta se tornar um canal de recados entre
pessoas, será desvirtuada. Os conteúdos devem ser impessoais , referindo-se a temas e não a pessoas
concretas. “O objetivo de uma assembléia é discutir princípios, atitudes, e daí construir as regras de regulação
coletiva e as propostas de resolução dos problemas. Discutem-se as brigas na escola, a sujeira da classe, o
assédio moral ou sexual, o fato de as aulas estarem sendo prejudicadas por determinados comportamentos, e não
quem está cometendo tais faltas. Isso porque as regras não podem jamais ser personalizadas. Não podem ser
feitas para uma pessoa ou um pequeno grupo. Elas têm de ser coletivas” (p. 62).
Veja-se um exemplo de pauta de assembléia:
Eu critico Eu felicito
- Pessoas que atrapalham a aula; - [...] que conseguimos organizar a mesa redonda
- Pessoas que roubam o lanche do outro; do projeto;
- Meninos que passam a mão no bumbum das - que a professora deixa usar o material do
meninas; armário sem pedir;
- Que eu não tenho nenhum amigo; - o Marcos porque está levantando a mão para
- Quem faz muita falta no futebol; falar;
- Quem não segue a regra para ir ao banheiro. - o João pela melhora na ortografia;
- o Rodrigo por não fazer mais faltas no futebol.
“[...] no item ‘Eu felicito’ aparece a personalização dos fatos. Nesse caso temos observado ser positivo,
pois auxilia, muitas vezes, a construção de uma auto-estima positiva por parte dos alunos e, também, do grupo” (p.
64). A assembléia não seguirá necessariamente essa ordem. Temas semelhantes ou repetidos devem ser
agrupados na preparação prévia da assembléia; tal organização, para a assembléia de classe, pode ser feita em
uma rápida reunião do professor e dois estudantes, por exemplo. No caso da assembléia docente, pela direção e
dois docentes. “Para as assembléias de escola, [...] a direção se reúne com um representante de cada um desses
segmentos, pelo menos 48 horas antes da assembléia, para organizar a pauta definitiva” (p. 65). Deve-se garantir:
1) uma hierarquia das temáticas; 2) o agrupamento dos temas semelhantes e 3) que todos os temas propostos
estejam presentes na pauta definitiva. “Se um estudante escrever um tema na cartolina e não sentir que sua
proposta está contemplada na pauta definitiva, a tendência é que ele não legitime o espaço da assembléia” (p. 67).
Os temas “mais sérios e complicados devem ser os primeiros a serem discutidos”. Por exemplo, os
assuntos referentes à violência (de qualquer tipo) devem ser priorizados, e os temas que afetem menos pessoas
devem ficar para o final (p. 66). Os critérios para o agrupamento de propostas semelhantes devem ser claros e
explicitados na assembléia. “Se um estudante não concordar que seu tema” tenha sido incluído da maneira
adequada, “deve lhe ser assegurado o direito de colocar sua temática na pauta. Não é preciso polemizar durante a
assembléia quando tal fato ocorrer, pois caso o estudante esteja equivocado, isso será evidenciado no momento
de discutir o tema” (p. 67-68). Mesmo que os organizadores julguem que determinado tema não é relevante, ele
deve ser incluído. [precisamos acreditar no poder elucidativo do diálogo! ].
a) 1a assembléia:
Representantes de classe: alunos A e B
Representantes docentes: professores 1, 2, 3 e 4
Representantes dos funcionários: F1 e F2
b) 2a assembléia:
Representantes de classe: alunos B e C
Representantes docentes: professores 3, 4, 5 e 6
Representantes dos funcionários: F2 e F3
c) 3a assembléia:
Representantes de classe: alunos C e D
Representantes docentes: professores 5, 6, 7 e 8
Representantes dos funcionários: F3 e F4
“Desse modo, mantém-se sempre a metade dos representantes de uma assembléia para outra, de
maneira que esses representantes que permanecem tenham a história da assembléia anterior [...]. Com essa
sistemática, no final de um ano escolar, pensando em dez assembléias no ano, onze alunos de cada classe, 22
professores e onze funcionários terão a experiência de representar seu grupo nas assembléias de escola” (p. 72).
“No caso das assembléias de classe, além do docente que coordena as primeiras assembléias, para dar
um modelo sobre o funcionamento aos estudantes, existem dois estudantes-coordenadores em cada assembléia.
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São eles que auxiliam o docente na organização da pauta definitiva da assembléia, e são eles também que, com
supervisão docente, coordenam o funcionamento da assembléia após os primeiros meses” (p. 72). “A cada mês,
são dois novos estudantes que exercem essas funções (que podem ser, por exemplo, de coordenação e de
relatoria)” nas assembléias semanais (p. 73). Essa “experiência contribui de modo significativo para a
aprendizagem da cidadania, bem como permite construir a consciência coletiva sobre a importância e as
dificuldades de se atuar em distintas funções sociais. Uma vez que um determinado estudante passou pela
coordenação de uma assembléia e sentiu as dificuldades de controlar ‘a vez de falar dos colegas’, por exemplo,
existe maior tendência de que levará isso em consideração quando estiver do outro lado, participando da
discussão, e perceber a dificuldade do colega que está agora na coordenação” (p. 73). O professor só deve passar
a coordenação para os alunos quando sentir que eles são capazes de garantir o equilíbrio das discussões. Mesmo
assim, seu papel é sempre ativo e ele mantém o poder de retomar a coordenação quando considerar adequado (p.
74).
4. As felicitações
Os passos anteriores ocuparão a maior parte do tempo da assembléia, mas pelo menos os 10 minutos
finais devem ser reservados “para refletir sobre as ‘felicitações’ apontadas”. O coordenador pode ler
individualmente cada item da pauta e perguntar “se o autor ou autora da felicitação gostaria de explicar as razões
que a levaram àquela proposição. Na seqüência pode-se perguntar se existe mais alguém que quer se manifestar.
Ao final de cada felicitação, o grupo pode cumprimentar a ação com uma salva de palmas” (p. 85). Assim, depois
de todas as felicitações, encerra-se “a assembléia em um clima positivo, em que o grupo percebe os avanços
obtidos nas relações, assim como reconhece as conquistas individuais dos membros da comunidade” (p. 85).
5. Encerrando a assembléia
Não se deve esquecer de organizar as ações e os encaminhamentos aprovados: por exemplo, montar
uma comissão para fazer determinado estudo, ou um grupo que produzirá cartazes, tudo deve ser acordado
coletivamente e registrado em ata.
Resumido pelo professor André A. Fonseca – 12 de outubro de 2005.
15
FONSECA, André Augusto da. O ensino de história e a formação para a
democracia. Dissertação: (Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. Faculdade de Educação. Porto Alegre, 2006.
As Assembléias de turma
Deixou-se claro a professores e alunos que essa metodologia não era uma
panacéia, uma cura milagrosa para todos os males, mas que servia para se criar uma
cultura de paz e de diálogo, na qual os conflitos sejam cada vez mais resolvidos pelo
diálogo - e menos pela violência (coação de um aluno sobre outro) ou pela coação dos
adultos. Como diz Araújo no vídeo utilizado, busca-se manter os conflitos em níveis
democraticamente controláveis. Não se eliminam os conflitos.
Uma semana antes da primeira assembléia da turma 63 (23/05/2006), referi-
me a esse objetivo realista lembrando aos alunos que era simplesmente impossível que
os adultos na escola resolvessem todos os conflitos entre eles. Portanto, a assembléia
servia para que a gente aprendesse e praticasse a resolução de conflitos pelo diálogo.
Deixei o painel pronto para que os alunos e as alunas escrevessem nele as críticas e as
felicitações para a discussão na assembléia.
Inicialmente, percebi que algumas das críticas eram personalizadas. Isso me
levou a pedir que os alunos reformulassem essas críticas, conforme havia sido definido
anteriormente.
No dia marcado, sentamo-nos no chão, em círculo, e uma aluna ofereceu-se
para ser a relatora. Iniciamos a discussão das felicitações e das críticas, para que todos
pudessem falar e para que o grupo chegasse a uma proposta de solução para os
problemas levantados. Como era de se esperar (e como de resto acontecera em todos os
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júris simulados), cada aluno e cada aluna, ao falar, dirigia-se ao professor: "Sôr, acontece
que tem muita fofoca..." E eu tinha que lembrar a todo momento que a pessoa que estava
com a palavra tinha que dirigir-se ao grupo, não a mim, pois tratava-se justamente de
diminuir a dependência (heteronomia) do grupo em relação ao arbítrio do adulto.
Antes de tudo, foi digno de nota o volume de demandas dos alunos para a
discussão coletiva: houve apenas nove críticas e duas felicitações publicadas pelos
alunos da turma 63 nas folhas de papel pardo, no painel exposto na sala, próximo à porta.
Mas na discussão essas onze frases desdobraram-se em muitas queixas acumuladas
pelos meninos e pelas meninas, que se referiam principalmente a problemas de
convivência entre eles. Nas felicitações, o comentário foi de que os membros da turma
eram muito amigos, e que os alunos da 63 sabiam cooperar nos trabalhos em grupo. A
aparente contradição entre essas duas felicitações e os conflitos explicitados nas críticas
e nas aulas anteriores não passou desapercebido a alguns alunos durante o debate.
Muitos queixaram-se de brincadeiras de mau gosto, envolvendo tapas ou
puxões de cabelo, do tipo “passar adiante”, ou gritar no ouvido de outro colega para
assusta-lo. O relato dessas atitudes, mais detalhadas pelos alunos durante o debate,
mostrava que esse tipo de agressão se fazia na fila após o recreio e mesmo em aula.
Alguns alunos alegaram que determinados monitores do recreio (alunos da
mesma turma 63) “não davam [bom] exemplo”, pois faziam esse mesmo tipo de
“brincadeira”, dando um tapa em um colega e depois saindo a correr. Além disso, “em vez
de não deixar os outros pularem o valão 1, também pulam e isso não pode ser”. A solução
proposta por Heitor e Eduardo foi fazer uma placa para ninguém mais pular o valão. A
proposta, que pode ser julgada como fantasiosa ou socialmente ingênua, foi anotada pela
relatora, mas não foi concretizada.
A relatora anotou: “Nós não queremos mais que ninguém coma chicle na
sala de aula e nós queremos que não tenha mais apelidos e eu acho que isso talvez vai
mudar. Nós queremos que os apelidos parem porque algumas pessoas não gostam de
brincadeiras de mau gosto”.
Várias críticas refletiam diretamente as rivalidades entre meninos e meninas
- os primeiros sendo alvo das críticas às brincadeiras de mau gosto, envolvendo tapas na
cabeça e empurrões, e as últimas sendo retaliadas com críticas às fofocas. Este último
tópico foi um dos mais interessantes para esta pesquisa, pois foi o que proporcionou a o
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Há um arroio (ordinariamente chamado pela comunidade de “valão”) que corta a praça cercada em que
os alunos passam o recreio. Duas pontes de madeira servem para passar de um lado a outro, ligando a
escola a duas quadras esportivas improvisadas e uma área arborizada onde as crianças pulam corda,
brincam de pegar, jogam bolita (bola de gude), pulam elástico. Mas as margens lamacentas do arroio
contaminado parecem exercer uma atração irresistível para alguns meninos e meninas, que preferem
pular de um lado a outro.
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diálogo mais equilibrado e uma solução consensual. Em primeiro lugar, os alunos
apelaram o tempo todo para a reciprocidade: a aluna que acusou determinados meninos
de fazerem fofocas foi lembrada de ter feito o mesmo em algumas ocasiões; em segundo,
a meu pedido, os alunos procuraram definir o que caracterizaria uma situação como de
"fofoca", começando por um exemplo concreto em que as meninas não procuraram
resolver o conflito dialogando com os envolvidos, mas foram diretamente reclamar a um
adulto; as meninas imediatamente lembraram aos meninos que eles fizeram uma
reclamação sobre elas a uma professora, mas eles retorquiram que primeiro tentaram
resolver conversando com elas. Assim, chegou-se a uma definição aplicável a qualquer
situação: "fofoca é quando, havendo um problema entre alunos, alguém vai direto contar
ao professor". A partir dessa definição geral, pedi que os alunos criassem a regra, que
ficou mais ou menos assim: "Quando tiver um problema entre os alunos, primeiro tentar
resolver entre eles; se não resolver, só então procurar o professor".
Durante a discussão, ficou claro que meninos e meninas com mais crédito
v(x) gozam de credibilidade, pela coerência em situações anteriores (ou seja, pela
conservação dos valores assumidos anteriormente); meninos e meninas com menor
crédito (i.e., que não conservam uma norma ou proposição anterior) são constantemente
lembrados de suas contradições entre discurso e prática, ou entre as exigências que
formulam e seu próprio comportamento observado pelos colegas.
Isso vale também para o professor, que não está isento de ser cobrado em
sua coerência pelos alunos. O princípio de identidade, que prende os sujeitos
interlocutores à invariância de suas proposições – ressalvados novos acordos – e o
princípio da não-contradição (PIAGET, 1973: 111) são reais nas discussões livres entre os
alunos, com a coordenação do professor.
Esse crédito que um(a) colega tem frente a outro(a) revela-se nas alianças
feitas nos grupos ou “facções” em que a turma eventualmente se divide e nas redações
das biografias do R.P.G., como veremos na seção 6.1.5.
Também foi relevante, como se disse, a polarização entre meninos e
meninas: ecoando o conflito vivido na escolha da música da semana anterior, uma menina
escreveu: “eu critico quem chama a gente de apelidos e quem não canta a música!”
Essa polarização entre meninos e meninas na primeira assembléia é
traduzida no quadro abaixo. Organizei as frases de acordo com o gênero de quem
provavelmente as escreveu, pois apesar do anonimato durante o debate não houve quem
negasse o caráter de rivalidade nem a marca de gênero das frases. Além disso,
virtualmente nenhuma frase foi escrita em segredo pelos sujeitos: durante as aulas, os
alunos pegavam a folha espontaneamente, colocavam-na sobre sua mesa e escreviam o
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que desejam. Não faziam questão do anonimato. Entretanto, em mais de uma ocasião,
quando os meninos viam as meninas escrevendo algo, esperavam que elas terminassem
e, muito educadamente, iam ao painel e pegavam a folha para escrever outra queixa,
como se fosse uma retaliação de um grupo (de meninos) contra o outro (de meninas).
Essa tendência diminuiu com o tempo, e em nenhum momento envolveu todos os
meninos nem todas as meninas. Luísa, Victor, João e Celso não se envolveram nessa
rivalidade, mas Bárbara e Joana, cansadas das brincadeiras de mau gosto de alguns
meninos, não puderam se abster da discussão. Suas intervenções, entretanto, tinham o
sentido de pedir relações de respeito mútuo.
Eduardo, Inácio, Roberta, Heloísa e Moacir, por outro lado, engajaram-se
como verdadeiros militantes nessa disputa, que não levava a lugar algum: esses cinco
sujeitos repetiam-se e não conservavam os argumentos e razões dos interlocutores; não
havia espaço para o estabelecimento de trocas equilibradas.
Mantive a grafia utilizada pelos sujeitos no painel da Assembléia:
2
Presenciei também outro indício bastante interessante: o grupo de teatro da escola, com crianças de
quartas a sextas séries, é quem escreve as peças que encena, sob a coordenação da professora de
Educação Artística. A professora pediu que eles criassem uma história sobre conflitos, e eles
espontaneamente colocaram nessa história a realização de uma assembléia de turma.
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A polarização anterior entre meninos e meninas diminuiu bastante, mas
surgiram outros conflitos, principalmente uma divisão entre dois grupos de meninas.
Embora os sujeitos tivessem o cuidado de não explicitar a rivalidade entre meninos e
meninas, evitando o termo “meninas” ao usar “pessoas”, por exemplo (Eduardo), a pauta
definida pelos sujeitos ainda revela um pouco da polarização verificada na assembléia
anterior. Os sinais de exclamação dão uma idéia da indignação das autoras das frases!
3
Essa crítica, que nada mais era que um gracejo obsceno, foi a única manifestação escrita de
desvalorização da assembléia.
4
Essa era a forma de Bárbara mostrar aos meninos como ela considerava infantis algumas de suas
atitudes.
23
As frases (críticas) 18, 21, 22, 23, 24, 25 e 26 foram de autoria de um
mesmo sujeito (menino ou menina) e revelam, com exceção da última, a reprodução
direta de queixas de professores (as). Ou seja, são antes a expressão de conformidade
com a autoridade dos adultos que demandas do (a) aluno (a) que escreveu.
A felicitação 1 e a crítica 23, que a contradiz, referem-se a um conflito vivido
pela turma com a professora X. Certo número de alunos, insatisfeitos com a metodologia
dessa professora, organizaram-se para fazer um abaixo-assinado dirigido à direção da
escola, envolvendo inclusive alunos de outras duas turmas (as quintas séries – que
estiveram longe de ser passivas nesse episódio) do turno da tarde. Àquela altura, a
iniciativa provocou um constrangimento considerável para a professora envolvida, para a
diretora e para mim. Expliquei aos alunos que, em muitos momentos na vida deles, seria
necessário tomar atitudes como essa. A iniciativa de organizar-se e exigir seus direitos,
em si mesma, é correta. Mas o que foi errado foi pular as etapas. O grupo não se dirigiu
nem à própria professora para dialogar, nem a mim (que sou o professor conselheiro da
turma). Após o episódio, os alunos submeteram-se à autoridade (unilateral) da professora.
Não houve reciprocidade.
Outro sujeito também sentiu a necessidade de trazer vários assuntos para
esta assembléia, pois escreveu as frases 27, 28 e 29. O caráter destas queixas é bem
diferente da heteronomia do autor das frases anteriores. Este sujeito colocou até mesmo
um exemplo do problema que trouxe para discussão.
Com essa discussão tão intensa, não houve tempo para se criar uma regra
que possibilitasse superar algum desses problemas. Mas os sujeitos precisavam muito
desse espaço para expressar o que pensavam sobre a convivência na escola.
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Notei que Clara acabou substituindo as alianças do primeiro momento (Roberta e Renata) por outras
(em um segundo momento, procurou consistentemente cooperar com a ex-rival Bárbara nos trabalhos
em grupo, na sala de aula; depois tornou-se companheira inseparável de duas meninas (Antônia e
Jurema) que sempre foram mais retraídas na escola, um pouco isoladas do grupo, pouco participativas
em aula e com um histórico de depressão; Clara, com sua facilidade de aprendizagem e sua
extroversão, acabou constituindo uma relação de amizade muito rica em trocas recíprocas com as duas
alunas. Observou-se neste caso uma relação constante de troca entre as ações r(Clara), a
correspondente satisfação s(Antônia e Jurema), o crédito v(Clara) e a dívida de gratidão e
reconhecimento t(Antônia e Jurema).
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recusaram-se a aceitar a coação dos meninos em determinados momentos. Alguns
meninos negaram a legitimidade da votação no caso da escolha da música, pois seria
uma coação exercida pela maioria numérica (não foram convencidos pelos argumentos).
Tanto o egocentrismo quanto a opressão constituem formas de desequilíbrio (PIAGET,
1973, p. 110).
A incapacidade de cooperar pode significar a incapacidade de ajustar as
operações de cada colega por meio de novas operações de correspondência,
reciprocidade ou complementaridade. A criação da regra sobre a “fofoca” implicou uma
descentração, que consistiu em coordenar as ações umas às outras de modo a criar um
sistema geral (PIAGET, 1973, p. 105).
Cooperação não é laissez-faire. Não é uma simples troca espontânea. É
nesse ponto que se mostra a importância da intervenção atenta do professor.
É claro, com efeito, que sem uma disciplina assegurando a coordenação dos
pontos de vista por meio de uma regra de reciprocidade, a ‘livre troca’ fracassa
continuamente [...]. À passividade da livre troca, a noção de cooperação opõe
assim a dupla atividade de uma decentração, em relação ao egocentrismo
intelectual e moral e de uma liberação em relação às coações sociais que este
egocentrismo provoca ou mantém (PIAGET, 1973, 110).
Temer decair perante os olhos alheios e ser humilhado não são a mesma coisa.
No primeiro caso, age-se de forma a manter a dignidade; no segundo, ela já está
perdida, e tem-se ou pessoas acanhadas ou que rompem com o olhar alheio,
passando a ser ‘desavergonhadas’. A solução é justamente contrária: reforçar, no
aluno, o sentimento de sua dignidade como ser moral (LA TAILLE, 1996: 23).