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1 TRAGEDIA GREGA 1.1, TRAGEDIA GREGA; DIONISO OU BACO. ‘A tragédia nascou do culto de Dioniso: isto, apesar de algumas tentativas, ainda nfo se conseguiu negar. Ninguém pode, até hoje, explicar a génese do tragico, sem passar pelo elemento satirico. Comecemos pelo mito. Zeus mais uma vex apaixonou-se por uma simples mortal. Dessa feita, a vitima foi a prince: tebana Sémele, que se tornou mie do segundo Dioniso. B que de Zeus @ Perséfone nasceu Zagreu, o primeiro Dioniso. Pre- ferido do pai dos deuses e dos homens, estava destinado a sueedélo no governo do mundo, mas 0 destino decidiu 0 con- trério, Para proteger o filo dos climes de sua esposa Hera Zeus © confiou aos culdados de Apolo e dos Curetes, que 0 criaram nas florestas do monte Parnaso. Hera, mesmo assim, descobriu 0 paradeiro do jovem deus e encarregou os Tits de raptélo, Apesar das varias metamorfoses tentadas por Dioniso, os Titis surpreenderam-no sob a forma de touro e o devoraram. Palas Atend conseguiu salvar-lhe 0 coracio, que ainda palpitava. Foi esse coracio que Sémele engoliu, tornandose gravida do Segundo Dioniso. O mito tem muitas variantes, principalmente qual fora Zeus quem engolira o coragio do filho, antes de fecundar Sémele. Nesse caso, o filho de ambos se chamava Iaco, nome mistico de Dioniso, Zagreu ou Baco, isto 6, 0 jovem deus que conduzia misticamente a procissio dos iniciados nos Mistérios de Eléusis. © segundo Dioniso, no entanto, nfo teve um nascimento normal, Hera, ao saber dos amores de Zeus e Sémele, resolveu climiné-la, Transformandose na ama da princesa tebana, acon- selhowa a pedir ao amante que se apresentasse em todo’ o seu. esplendor. O deus advertiu a Sémele que semelhante pedido Ihe seria funesto, mas, como havia jurado polo rio Estige jamais contrariarthe os desejos, apresentouselhe com seus ralos & trovbes, © paldcio da princesa incendiouse e esta morreu car- honizada, Sémele se esqueceu de que um mortal somente pode contemplar um deus com forma hierofinica e néo epifanica, Na realidade, a princesa tebana nfo atentou para o mana de um deus! Zeus recotheu do ventre da amante fruto inacabado de seus amores © colocouo em sua coxa, até que se com- pletasse gestaclio normal. Nascido o filho, Zeus contiouo fos cuidados das Ninfas e dos Sdtiros do monte Nise, Lé, em sombria gruta, cercada de frondosa vegetagéo, © em cujas per redes se entrelacavam galhos de vicosas vides, donde pendiam maduros cachos de uva, vivia feliz o filho de Sémele. Certa vez, Dioniso colheu alguns desses cachos, espremoulhes as frutinhas em tagas de ouro e bebeu 0 suco em companhia de sua corte, Todos ficaram entio conhecendo 0 novo néctar: 0 vinho acabava de nascer. Bebendoo repetidas vezes, Sétiros, Ninfas e Dioniso comecaram a dancar vertiginosamente, a0 som dos cimbalos. Embriagados do delirio béquico, todos cairam or terra, semidesfalecidos, ‘Historicamente, por ocasiéo da vindima, celebravase a cada ‘ano, em Atenas, @ por toda a Atica, a festa do vinho novo, em que os participantes, como outrora os companheiros de aco, se embriagavam e comecavam a cantar e dancar freneticamente, A luz dos archotes e ao som dos etmbalos, até cair desfalecidos, Ora, 20 que parece, esses adeptos do deus do vinho disfarcavam- se em sétiros, que eram concebidos pela imaginagso popular como “homens-bodes”. Teria nascido assim 0 vocébulo tragédia (govebla, “tragoidia” = weiros, “trégos”, bode + Si, “oid6" canto + &, “ia”, donde o latim tragoedia @ 0 nosso tragédia). Outros acham que tragédia 6 assim denominada, porque se sacrificava um bode a Dioniso, bode sagrado, que eta o pro prio deus, no infcio de suas festas, pois, conscante uma lenda muito diftmdida, uma das tltimas metamorfoses de Baco, para fugir dos Tits, teria sido em bode, que acabou também’ devo- rada pelns fithas de Urano © Géis. Devorado pelos Tités, © deus ressuscita na figura de “trégos theios", de um bode divino: 6 0 bode paciente, o pharmakds, que 6 imolado para purificacio da polis, 10 1.2, METRON E TRAGEDIA. Na Grécia, todas as correntes religiosas confluem para uma bacia comum: sede de conhecimento contemplativo (gnésis), purificagio da vontade para receber o divino (ledtharsis) e bertago desta vida “geradora”, que se estiola em nascimentos e mortes, para uma vida de imortalidade (athanasia), Mas, essa mesma sede nostélgica de imortalidade, preconizada pelos mitos naturalistas de divindades da vegetacio, que morre e ressuscita, divindades (Dioniso, sobretudo) essencialmente populares, cho- cava-se violentamente com a religifio oficial e aristocrética da polis, cujos deuses olimpicos estavam sempre atentos para esmagar qualquer “démesure” (desmedida) de pobres morta que aspirassem imortalidade. Os douses olimpicos sentiam-se ameacados e o Estado também, uma vez que o homo dionysiacus, integrado em Dioniso, através do éxtase e do entusiasmo, se Ubera de certos condicionamentos e de interditos de ordem ética, politica e social, Assim se explicam tantos “avisos” na Grécia antiga, concitando todos % moderagio: w6% oariv, “gnothi sautén”, conhecete a ti mesmo, unbév dyay, “medén dgan", nada em excesso.... Ora, os devotos de Dioniso, apés a danca vertiginosa de que se falou, caiam desfalecidos. Nesse estado acreditavam sair de si pelo proceso do Fxowumc, “ékstasis", éxtase. Esse sair de si, numa superagio da condigso humana, implicavs num mer- gulho em Dioniso e este no seu adorador pelo processo do Svovonouis, “enthusiasmés”, entusiasmo. O homem, simples mor- tal, t0quxcs, “nthropos”, em éxtase © entusiasmo, comungando com a imortalidade, tornavase évie, “anér”, isto é, um herdi, um varfo que ultrapassou 0 whee, “métron”, a medida de cada um. Tendo ultrapassado 0 métron, o anér 6, ipso facto, um ‘ewectis, “hypocrités”, quer dizer, aguele que responde em éxta- se e entusiasmo, isto 6, 0 ATOR, um outro. Essa ultrapassagem do métron pelo hypocrités 6 uma “dé- mesure”, uma Was, “hybris”; isto 6, uma violéncia feita a si préprio e aos deuses imortais, 0 que provoca a vivems, “néme- sis”, o citime divino: 0 anér, o ator, 0 hersi, tornase émulo dos deuses, A punigdo é imediata: contra o herdi é langada én, “até”, cegueira da raziio; tudo o que o hypocrités fizer, realizalod contra si mesmo (i8dtpo, por exemplo). Mais um passo e fechar- sefio sobre eles as garras da Meigs, “Moira”, 0 destino cego. u Bsquematizando; Matron (medida do cade um) I Fr a Antiropes (simples mora)... ultrapassagam (Bntese © entuslesme)... Anée ible (d6mesure,viiéets) + nemesis (clime evino, castigo pela Ink (copiers de reso) otra (destine cago: punicto) Bis ef o enquadramento trégico: a tragédia s6 se realiza quando © métron é ultrapassado. No fundo, a tragédia grega, como encenacdo religiosa, ¢ 0 suplicio do leito de Procrusto contra todas as démesures. EH mais que isto: como obra-dearte, a tragédia 6 a desmitificagao das bacchanalia, Eis af por que © Estado se apoderou da tragédia e £12 um apéndice da religiso politica da pélis, 1.3, ARISTOTELES DEFINE A TRAGEDIA. "6 pols, a tragédla imitaeto de uma aplo sérla ¢ completa, dotada de exterisio, em linguagem condimentada para cada uma das partes (Amitagio que se efetua) por melo de atores « nao mediante narrativa © gue opera, gracas ao terror ea piedade, a purificagdo de lois oe Pi urificaco A definigéo de Aristételes, além de distinguir a tragédia da epopéla, possui duas palavras chaves que tantas interpreta- Ges tém provocado: basta dizer que até 1928 havia cento e cingiienta “tomadas de posicio” em relagéo & catarse, Isso mos. tra 0 interesse niio apenas, mas sobretudo desespero diante do enigma da uhmas, “mimesis” (imitaglo) e da xducos, “kéthar. sis” (purificagio). Néo se pretende aqui solucionar o problema, mas dizer francamente o que pensamos acerca do asi totele Platio o poeta 6 um zecria A palavra mimese, mimesis, recoboun 2 mestre Platiin, rejeitando, parém, in mine, a dis da esséncia e da aparéncia. Para s, Poiice, 40h, Tred de 12 inconselente, Re w téio-somente reprodugGes existentes, por- quanto a matriz original, criacdo divina e perfeita, bela e boa, fonte e razio dos exemplares existentes neste mundo, encontra- se na regifio do eldos, no mundo das idéias. Dai concluir Platio que a arte (a tragédia...), sendo mimese, imitagio, 6 técnica imperfeita, A arte, alimentandose da imitagio, vive nos don nios da aparéncia e afasta os espiritos do alethés, da verdade, sendo, por isso, intrinsecamente imoral. Aristételes separa argutamente a arte da n teorla da mimese e da catarse. A tragédia é a imitagio de rea dades dolorosas, porquanto sua matériaprima 6 0 mito, em sua forma bruta, Acontece, todavia, que essa mesma tragédia nos proporciona deleite, prazer, entusiasmo. Que tipo estranho de prazer pode ser esse? Um delelte motivado por realidades dolorosas? Mais: tais obras adquirem seu perfil pela historia relatada — um catélogo de cenas dolorosas que tem um desfe cho, as mais das vezes, trdgico, infoliz, A tragédia 6, nfo raro, a passagem da boa & mé fortuna, oral com a Ora, se o belo é equilforio, ordem, simetria, proporcéo, como se explicam esses assuntos dolorosos, essas paixdes vio entas, que andam muito longe dos tipos conhecidos de ordem e proporgio? A resposta niio é dificil com Aristoteles. Todas as paixdes, todas as conas dolorosas © mesmo o desfecho tré gio sio mimese, “imitagio”, apresentados por via do postico, nfo em sua natureza trégica e brutal: nfo sio reais, passamse num plano artificial, mimético, Nao so realidade, mas valores pegados & realidade, pois arte é uma realidade artificial 6 arte m imora Mimese que 6, a arte néo é moral, simplesmente... Catarse, kdtharsis, significa na linguagem médica grega, de que se originou, purgacio, purificagao. Diz Aristoteles que a tragédia, pela compaixio e terror, provoca uma catarse prdpria a tais emogées, isto é, relativa exclusivamente ao terror e & piedade e ndo a todas as paixdes que carregamos em nossa alma, A matéria-prima da tragédia, como ja se disse, é a mito. Todos os mitos sio, em sua forma bruta, horriveis e, smo, atrigicos. O poeta teri, pois, de introduzi iviar essa matéria bruta com o terror e a pledade, para eadas ‘aseim bruta alcangam pureza , tornando-se, jo do Mstagirita, uma alegria Destarte, os sentimentos em bruto da realidade passam por uma filtra torné-los esteticamente operantes. As 1B gem e a tragédia “purificada” val provocar no espectador senti- mentos compativeis com.a razio, Assim poderd Aristoteles afir. mar que a tragédia, suscitando terror e piedade, opera a purgagio propria a tals emogées, por meio de um equilibrio que contere aos sentimentos um estado de pureza desvinculado do real vi- vido. 1.4. HERO! E DESFECHO, Aristételes delimita com muita preciso o cariter do herdi trigico e a causa de sua metabolé, ou seja, de sus transformacio ou mutago da fortuna, ‘Vejamos de perto o que ele nos ensina:? como a composicdo das mais elas tragédias nto simples, mas complesa, ‘e além disso deve imilar casos que suscltem terror e pledade, porque este ¢ 0 fim proprio desta imitaglo, evidentemente 4e segue que nfo devem ser representados nem homens muito bons que possem da boa para amd fortuna, nem homens muito Maus que paisem da mé para a boa fortuna (...) O mito também nfo deve Tepresentar 1m matoodo que so precipite da felicidade para a infe- Heidade", J4 que “os muito bons” nfo devem passar da boa pera a mé fortuna; os maus, da desdita para a felicidade, e nem tampouco o perverso, da felicidade para a desdita, todos essen- clalmente por no preencherem o fim préprio da tragédia, que ¢ suscilar terror e piedade, resta, portanto, e apenas, a sifuagao intermedidria, isto 6, “a do homem que no se distingue muito pela virtude e pela justica". O herdi hé de ser, por conseguinte, consoante Aristételes, o homem que, se caiu no infortinio, nio foi por ser perverso e vil, mas 5: duagriav wé, “di” hamartian tina”, isto 6, “por causa de algum erro”. No mito bem estru- turado, pois, o her6i nfo deve passar da infelicidade para a felict- dade, mas, ao revés, da fortuna para a desdita e isto, nfo por- Que seja mau, mas por causa de alguma falta cometida, Tal falta, hamartia, Aristételes o diz claramente, nio é uma culpa moral e, por isso mesmo, quando fala da metabolé, da revire- volta, que faz 0 herdi passar da felicidade & desgraca, insiste em que essa reviravolta néo deve nascer de uma deficiéncia moral, mas de grave falta (hamartia) cometida. A reviravolta, @ passagem da boa & mé fortuna, todavia, nao implica neces. sarlamente num desfecho irdgico ‘ou infeliz da peca. E bem verdade que para Aristételes a mais bela das tragédias 6 aquela 2 Poles, 1652; san “4 em que se passa da felicidade a desdita (Poet, 1483), mas tal juizo nfo o impediu de admitir o transe da infelicidade & feli- Cidade. (Post, 1451 a). O que € preciso ¢ distinguir conflito trdgico fechado — da ventura & desdita (Edipo Rel, Antigona) de situagdo trdgica — da desventura a felicidade (Alceste, loctetes, Ion, Helena, Oréstia. ..) E que o trégico pode no estar no fecho, mas no corpo da tragédia, Chamamos, por isso mesmo, tragédia & peca cujo contetido 6 trigico e nao necessariamente 0 fecho. 15

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