Você está na página 1de 81
ae al Valea do 25 de Abril 5 sanches = osorio Este livro foi gravado e o texto corrigido e revisto pelo Autor em maio de 1975. © Reservados todos os direitos universais de acordo com a legislagao internacional. Editorial Intervencao Capa: Studio Jet Press SANCHES OSORIO O EQUivoCcOo DO 25 DE ABRIL “Quanta injustiga! quanta dor! quantas desgracas! Quantos suores sem proveito! quantas tagas A transbordar veneno em espumantes bocas! Quantos martirios, juantas cabegas loucas!’ Antonio Nobre NOTA DO EDITOR Se “‘escrever é lutar’’, entdo editar sera a forma de mate- rializar essa luta. Se um escritor escreve uma “bomba util”, o editor deve fazé-la explodir. Quando em 1973 escrevi ao general Sp{nola, entao gover- nador da Guiné, solicitando-Ihe os direitos do livro que veio a chamar-se ‘Portugal e o Futuro”, eu sentia que esse livro ia ajudar a derrubar o regime salazarista-marcelista. Em Abril de 1975 fiz igual pedido a Sanches Osério por- que sinto que este livro vai ajudar a derrubar o regime cunha- lista-‘rapazes da tropa’’. Salazar era 0 “‘manhoso de Santa Comba Dao”. Alvaro Cunhal é 0 manhoso do Baleizao. Nao foi facil dar vida a este livro simultaneamente em varios pafses do mundo. Muito mais tranquilo foi, para mim, editar o “Portugal e o Futuro” em plena época da PIDE/ DGS, Agora, no regime das “‘liberdades” do sr. Cunhal e dos seus ‘‘rapazes da tropa’’, a edi¢ao normal deste livro teria sido simplesmente impossfvel e eu estaria em Caxias, antiga priséo fascista da PIDE, e agora priséo dos novos fascistas do COPCON. Mas Caxias é apenas um s{mbolo: a grande prisdo chama-se Portugal. 0 O livro, porém, aqui esta. Para alguma coisa serviu a expe- riéncia adquirida a ludibriar a PIDE durante alguns anos. A nova PIDE é ainda uma brincadeira...e a sua inteligéncia deixa muito a desejar. Os “rapazes da tropa” provocam garga- Ihadas internacionais e as suas dinamizagGes ‘‘culturais’’ sao de morrer a rir. A sua viséo econdémica consegue ser pior do que a de Salazar: este, ao menos, tinha uma economia de merceeiro que dava sempre certo. O problema dele foi que, entretanto, apareceram os super-mercados . . . A propésito de economia, 0 que é feito do Plano Econo- mico do sr. Melo Antunes? (nado digo major, porque ele pode j ser general ou marechal graduado)! Com estes rapazes nun- ca se sabe. Ainda poderemos ver 0 soldado Etelvino de moné- culo e pingalim . . . Ha tempos um amigo meu recordou-me que em todas as graves crises da Historia de Portugal apareceu sempre um Punhado de portugueses que resolveu o assunto inespera- damente. Desta vez creio que uns tantos portugueses se vao Zangar a sério. O fascismo nao passara, mas o social-fascismo ou a ditadura militar fascista também nao passaro. Aminha mulher ¢ aos meus filhos, E tempo de dizer basta a todas essas tragicas brincadeiras corajosos companheiros de exilio. que ja desgracaram centenas de milhares de famflias. Igualmente aquela crianga que dizia: “Quando for grande néo vou combater”. Como ola seremos livres. Livres para o Amor. Livres para a Paz. Queremos de facto ser livres como as gaivotas que véam no céu ou como as papoilas que crescem ao vento num campo qualquer. Queremos que 0 povo seja de facto “quem mais ordena”. Queremos realmente ‘“‘olhar o sol que vai nascer’’”. Mas, para isso, Portugal nao podera ser nem uma base soviéti- ca, nem 0 reino do terror e da dentincia, nem uma cobaia. Caros “‘rapazes da tropa’: esta ainda na vossa mao evitar o pior. Facam as contas as eleigdes — que foram livres — e vejam 0 que o povo mais ordenou. Vao-se embora. Ja que se auto-nomearam generais, pois entaéo auto-reformem-se em marechais. O Orcamento aguenta e sempre da um certo sabor de opereta, bom para o turismo. Mas nado pensem em sovieti- zag&o, nem em “‘tribunais” populares, nem em “albanizacao”, Povo nao vai gostar e vai zangar-se muito a sério. Povo e os homens honestos da tropa a sério. Este livro € apenas o principio. Paradela de Abreu INTRODUCAO Apos ter apresentado a minha demissdo do 2.° Governo Provisério contava ter tempo para reflectir no muito que ti- nha vivido dos problemas do Pats, procurando “teimosamen- te” cumprir e fazer cumprir a esséncia do Programa Politico que unia o Povo portugués na busca da liberdade e da demo- eracia. As circunstaéncias nado me permitiram tal reflexéo na- quele momento mas, no meu espirito, nasceu a idéia de, um dia, quando houvesse oportunidade, passar a escrito alguns factos que pudessem contribuir para uma compreensao neces- séria dos acontecimentos do Movimento do 25 de Abril. Sei que muito se escreveu e comentou sobre a génese do Movimento; estou certo, também, que nao hd perspectiva his- térica para que os juizos elaborados sobre os factos possam conduzir 4 percep¢ao da totalidade do fendmeno. Todavia, 6 importante reunir 0 maior ndmero de acontecimentos e ini- ciar a sua andlise, em forma de relato, dando ao Povo portu- gués uma panordmica diferente da versao oficial ou oficiosa que a Imprensa, a gosto ou “contragosto”’, insiste em apresen- tar. Nesta altura que em Portugal, tudo se joga desesperada- mente, os portugueses esto a perder “com demasiada rapi- dez” a liberdade que fugazmente conquistaram. O Movimento das Forgas Armadas, que mereceu a adesio do Povo portugués, deixou de ser a expressdo actuante da vivéncia racional para se transformar num instrumento da Juta desesperada de um partido para incendiar uma sociedade disfarcando-se com flores que na realidade espezinham, e com sedutoras palavras de ordem cujo contetdo é puramente de- magégico. Se ainda alguém tem ddvidas peco-lhe que medite sobre os acontecimentos relacionados com o jornal Repiblica! Ju/go que deixaré de as ter. . . E preciso que o Povo portugués e 0 mundo saibam que o que esté em curso é um processo de sovietizacéo, sendo bem claro que o estilo de sociedade que /he querem impor é 0 de Cuba ou da Albania mas o caminho tragado por Moscovo continua a ser percorrido! Aos meus camaradas que se entregaram totalmente a um ideal e foram traidos por uma minoria comunista, 6 tempo de se darem conta do logro e do equivoco, dando-se também conta de que é tempo de reflectir e, reflectindo, 6 tempo de agir e participar na verdadeira salvagao de Portugal. Sanches Os6rio A CONSPIRACAO Foi num dia quente de verdo, em agosto de 1973, que o Maj. Mariz Fernandes' me deu conhecimento da existéncia do Movimento dos Capitdes. Explicou-me a necessidade, se- gundo ele, de haver pessoas com um alto sentido das respon- subilidades, mais velhas, que pudessem controlar o Movimen- to e evitar que ele descambasse para_objectivos nao aceitaveis. A motivacao basica do Movimento dos Capitdes n3o me dizia directamente respeito, na medida em que eu era oficial de Engenharia, no Estado Maior do Exército e, portanto, nao feria afectado pelos decretos que abrangiam os oficiais mili- Glanos e os do quadro permanente. Esses decretos referiam-se basicamente a problemas salariais e regalias sociais. Estava, porém, perfeitamente consciente de que a situagao no Exér- ito era péssima. Assim, aceitei de bragos abertos o convite que o Maj. Mariz Fernandes me fazia. Havia razGes subjectivas para isso. ee Em 1969 nao acreditei na abertura prometida pelo Dr. Marcelo Caetano”. Eu e os meus colegas tivemos varias reu- 13 nides na Escola Pratica de Engenharia sobre a atitude a tomar face as eleigdes e decidimos nao distribuir na Escola os bole- tins de voto da UN? que certamente nos seriam “‘oferecidos”’. Como tinhamos previsto, o representante pol/tico local apa- receu na Escola Pratica em dada altura e entregou os boletins de voto ao Oficial de Dia* o qual, porém, de acordo com o que t/nhamos combinado, recusou-se a recebé-los. O cavalhei- ro do partido Gnico queixou-se ao Comandante que lhe pro- meteu fazer a distribuig&o em toda a Escola. Conhecido este episédio, eu proprio tomei a decisdo de mandar buscar a Santarém boletins de voto da CDE.* Sucede que em 1969, como em todas as outras elei¢des, os quartéis ficavam de prevengao rigorosa, ndo podendo os oficiais ausen- tar-se. Isto originava que os oficiais nao podiam votar porque, naturalmente, ndo estavam recenseados no local onde se en- contrava o quartel:ou estavam recenseados em Africa, dado que estévamos em plena guerra colonial (caso de muitos), ou nas terras de residéncia, longe da Escola Pratica. Para meu espanto, no domingo das eleigées, um oficial do Servico Geral do Exército disse-me: “Ja cumpri o meu dever civico. Fui votar.”’ Perguntei-Ihe: “Mas como é que vocé pode votar aqui, se veio de Africa hd poucos dias onde esta recenseado? ” Disse-me que isso nao era problema pois o conheciam na regido e, além disso, tinha ido fardado. Ouvido isto, imediata- mente convoquei o meu grupo de oficiais amigos e disse-Ihes: “amos votar!’’. Fardémo-nos e dirigimo-nos a Praia do Ribatejo.6 Como €é dbvio, nao estavamos ‘recenseados mas manifestémos o nosso desejo de cumprir o dever civico pois garantiamos que estévamos todos recenseados em Africa. Os nossos momes foram acrescentados 4 lista. .. e votamos. Nessa noite ouvimos pela radio os primeiros resultados parce- lares. Na Praia do Ribatejo apareceram 900 votos pela UN e 27 pela CDE. O Com. da Escola Pratica de Engenharia volta- se de repente para mim e ‘‘dispara-me’’: “Estes 27 votos sdo 14 seus!”’. Eu respondi: ‘‘Talvez. Quem sabe? ’’. Podem testemu- nhar esta histéria, um pouco anedética, o Comandante da Escola, brigadeiro Carreiras, e o capito Fonseca e Almeida. Igualmente esteve envolvido neste episodio o major Correia (infelizmente j4 falecido), pai do major Pesarat Correia.” Re- cordo este facto para mostrar que a minha oposi¢ao ao Go- verno anterior néo nasceu em agosto de 1973 quando aderi ao Movimento dos Capitaes. Nessa altura eu j4 era um oficial de oposi¢ao ao regime. Ser oportuno aqui recordar que o Maj. Melo Antunes® se havia candidatado a deputado pela CDE, mas a candidatura havia sido recusada com base em que os oficiais nao deviam (ou n&o podiam? ) fazer polftica. Melo Antunes estava, j4 nessa época, ligado a José Tengarrinha,’ hoje dirigente do MDP/CDE, e o Dr. Mario Soares havia fundado a CEUD.'°® As divergéncias que depois do 25 de Abril iriam provocar conseqiiéncias trégicas para o pafs, em matéria de descoloni- zagao, estavam jd evidenciadas em 1969. A CEUD baseava-se no “Programa para a Democratizagao da Republica”, que pre- conizava uma descolonizagao negociada e calma, e a CDE fundamentava-se na Plataforma de S. Pedro de Muel, a qual previa uma descolonizagao com entrega imediata. Foi o que aconteceu em relagao a Mogambique e a Guiné. De qualquer modo, naquela época, havia um denominador comum: lutar contra o regime. A minha formagao crista e o contacto que desde pequeno tive com a miséria das gentes pobres do Casal Ventoso,!! onde estudei numa escola priméria oficial, fizeram de mim, mais tarde, um militante da Acco Catélica,'* sempre ansio- samente em busca da justi¢a social, tentando compreender o que estaria errado na estrutura da sociedade em que vivia. O 16 que estaria errado e porque é que estaria errado. Nessa época militavam também na Acgao Catdlica o Victor Wengorovius e José Manuel Galvao Teles, fundadores, depois do 25 de Abril, do MES (Movimento da Esquerda Socialista). Por tradigao familiar, aderi, muito jovem ainda, a Causa Monérquica.'* Para mim era uma forma de, através de uma acgao partiddria (a Causa Mondrquica poderia, de certo mo- do, ser considerada um partido) realizar-me como militante na assisténcia social, minorar os sofrimentos dos pobres que rodeavam ja a minha imaginagdo, fazer algo que me desse a sensacdo de combater a exploracao do homem pelo homem. Eu era muito jovem, mas depressa compreendi que na Causa Monérquica nunca atingiria os meus objectivos de cidadao consciente, preocupado com a injusti¢a e com o desequil fbrio sécio-cultural e econémico que eu sentia ser a nota dominan- te do meu pais. A repeti¢ao de um facto concreto, porém, fez-me abandonar a Causa Monarquica: sempre que havia elei- goes, a Causa anunciava aos seus militantes, 4 Ultima da hora, que deviam votar na Unido Nacional. Nunca o fiz e, se essa era a orientagao politica eleitoral, o melhor seria abandonar. Foi o que decidi. Mais tarde, na Academia Militar,,5 acompanhei sempre com grande interesse e inquietacéo todos os acontecimentos politicos da época. Posso afirmar que a maioria dos alunos e oficiais observava atentamente a chamada ‘‘ala liberal’’'® da Assembléia Nacional e dela tirou uma conclusio muito im- portante, dada a propaganda monocérdica do regime que, nessa altura, j4 se arrastava ha mais de duas geracées: era Possivel ser contra o governo sem se ser comunista; era possi- vel ser progressista sem ser comunista. Desmitificava-se a dua- lidade “‘ou salazarismo ou comunismo’’. Desde a minha infan- cia, em contacto com a miséria do Casal Ventoso, eu pressen- tia ter de haver uma outra solugdo, um outro caminho. A experiéncia observada da “‘ala liberal’ despertou-me para o 16 caso concreto, para solugdes concretas perfeitamente possi- veis sem “‘salazarismo nem comunismo”. A minha formacao crist& emoldurou as minhas op¢ées objectivas. Quando recordo a excitagao da maioria dos alunos da Aca- demia Militar perante as oposi¢des que iam surgindo ao regi- me, n&o compreendo o discurso que o brigadeiro Vasco Gon- galves'” proferiu hd uns meses na referida Academia e no qual a classificou de “‘elitista e fascista” quando, ele proprio, foi 14 professor durante dez anos. O brigadeiro ter4 levado dez anos a perceber que a Escola era “fascista” ou, perceben- do-o, sentia-se | bem? CR O primeiro contacto que tive com o Movimento dos Capi- tées foi, portanto, através do convite do major Mariz Fernan- des. Este contacto representou para mim uma possibilidade concreta pela qual tanto havia esperado. Desenvolvi uma acc&o imediata fazendo a difustio de um abaixo-assinado no Estado Maior do Exército. O Movimento dos Capitées tinha, porém, caracteristicas exclusivamente profissionais: eram apresentadas reivindicagdes que assentavam nas remuneracdes e que afectavam o prest(gio dos oficiais do quadro permanen- te. Esse prestigio iria ainda descer mais com o recrutamento dos milicianos'* para o quadro permanente. Houve variad{s- simas reunides e, em determinada altura, efectuou-se uma em casa do Cor. Marcelino Marques, préximo do Regimento de Artilharia 1. Este coronel estava na reserva mas creio ter hoje um lugar na administragdo da Empresa Nacional de Publicida- de, proprietaria do Didrio de Noticias. Nessa época ninguém suspeitava — eu pelo menos — que o Cor. Marcelino Marques pertencia ao partido comunista. Nessa reunido ia ser apresen- 17 tado, pela primeira vez, o Programa do MFA. Para a redaccdo desse Programa tinha sido encarregada a Comisséo Coordena- dora. Aquela Comissdo, criada muito antes do “16 de Marco’’, era constituida pelos Maj. Mariz Fernandes; Cap. Vasco Lou- rengo; Maj. Mendonca Frazéo; Maj. Campos Andrade e por mim préprio. Havia também representantes das regides Milita- res. Esta Comissao auto-constituiu-se durante os contactos iniciais mas, mais tarde, houve uma reunido para legitimar a Comissdo Coordenadora, reunido essa que se realizou parce- larmente em diversas residéncias em Lisboa. Eram sempre presididas por um oficial que ja fazia parte da Comissao ini- cial. Foi assim que, a partir de certa altura, se poderia consi- derar a Comissiéo Coordenadora eleita pois todos estiveram constantemente em contacto entre si. Foi uma elei¢ao defei- tuosa, sem diivida; mas a existéncia de uma PIDE/DGS!° nao. deixava permitir, naquela altura, outra forma mais eficaz. Naquele perfodo eu trabalhava na Quarta Reparticggo do Estado Maior do Exército, cujo chefe era o Ten. Cor. Cha- rais,?7° 0 qual tinha como adjunto o Maj. Vitor Alves. Assim que fui contactado pelo Movimento dos Capitées — e como sou amigo do Maj. Vitor Alves — tratei de o aliciar para uma parte muito activa do Movimento. De qualquer modo, Vitor Alves s6 compareceu a uma primeira reunido em casa do Maj. Mendonca Frazdo uma ou duas semanas depois, pois receava que o Movimento redundasse num Movimento exclusivamen- te politico. Tive de garantir-lhe que nao havia nada de pollfti- co mas sim reivindicagdes de cardcter profissional. S6 depois desta garantia 6 que o Maj. Vitor Alves decidiu comparecer. Posteriormente afastei-me da Comisséo Coordenadora pois nao podia conciliar as minhas actividades civis, profissionais e militares com as reunides da Comissdo, que demoravam noi- tes inteiras. Deste modo, eu e Vitor Alves alternavamos nas reunides uma vez que estavamos ambos perfeitamente identi- ficados com os objectivos do Movimento. “INTERLUDIO” KAULZA DE ARRIAGA?! Nessa fase, e antes de ie reuni&o em casa do Cor. Marce- lino Marques, houve um incidente relacionado com o golpe militar que se dizia organizado pelo Gen. Kaulza de Arriaga. Estou em condigées de afirmar que esse golpe nao tinha de modo algum origem no Gen. Kaulza de Arriaga mas sim numa determinada facgao no Movimento dos Capitdes. Essa faccio contactou o Gen. Kaulza de Arriaga utilizando para o efeito o Cor. Frade Junior. Este oficial convidou o Gen. Kaulza de Arriaga a encabecar o golpe pedindo-Ihe que fizesse algo para modificar a situagdo em que se encontrava o Exército. Mais tarde, tudo foi apresentado a ptiblico exactamente ao contré- rio, tendo porém o Cor. Frade Junior sido afastado para o Funchal, e o Gen Arriaga continuou a fazer a sua vida nor- mal. Em sintese, esse golpe da ultra-direita, encabecado pelo Gen. Kaulza de Arriaga, partiu nfo do general mas sim dos oficiais mais novos do Movimento. Esses oficiais mais novos eram quase todos tenentes e estavam saturados de fazer peti- gdes e abaixo-assinados ao Chefe do Estado Maior que era, nessa altura, o Gen. Costa Gomes. Queriam acgdo e foram pedi-la ao Gen. Kaulza de Arriaga. E evidente que podemos admitir que muitos desses tenentes sdo hoje oficiais do MFA e que devem ter-se adaptado a nova circunstancia ultra-esquerdista. Este “‘golpe” falhou no plano concreto mas a populacao ficou sempre com esta idéia no subconsciente. Muita gente, na madrugada do “25 de Abril’, levou um certo tempo a perceber que nao se tratava de uma revolucdo de extrema-direita. Mesmo em Caxias,?? os pré- prios presos tiveram esse receio. 19 DINAMIZAGAO DO MOVIMENTO Foi na altura do incidente Kaulza de Arriaga — traduzido num pequeno “interludio” na organizago do Movimento — que Vitor Alves, com as suas caracteristicas de homem extra- ordinariamente activo, passou a dedicar-se de alma e coracéo ao MFA. Devo dizer, com toda a justica, que Vitor Alves foi uma das pecas fundamentais do Movimento no aspecto de planeamento e de conduc4o da Comiss&o Coordenadora. No entanto, quem estava em contacto com o Gen. Costa Gomes era Mariz Fernandes, o qual manteve sempre uma grande leal- dade, diplomacia e ética militar, considerando que o que esta- va a acontecer no Movimento poderia ser visto como indisci- plina. Voltando a reuniao em casa do Cor. Marcelino Marques, foi nela apresentado um Programa que procurava ser uma sintese das reivindicagdes mantendo ao mesmo tempo a uni- dade entre os oficiais do quadro permanente e os oficiais milicianos, pois qualquer cisdo podia ter graves consequiéncias nas operagdes militares em curso em Africa. A essa reunido dirigi-me com o Ten. Cor. Costa Brés. Foi ali apresentado pela primeira vez o Programa que tinha sido praticamente redigido por Vitor Alves. Devo dizer que esse Programa foi recusado nessa reunido. Por varias razdes: uma delas de ordem politica, levantada por mim. Foi a primeira vez, desde que o Movimento existia, que se levantava uma questdo politica e nao meramente profissional. Entendi que as Forcas Armadas tinham responsabilidades historicas perante 0 Povo e nao po- diam ficar por aumentos de salérios ou melhoria de condicdes sociais. O meu ponto de vista foi apoiadissimo pelo Cor. Marcelino Marques o qual, a certa altura, até afirmou: ‘Por muito menos do que isto se fez o ‘28 de Maio’.2? Foram os 20 nossos camaradas que fizeram o ‘28 de Maio’. Portanto nés temos obriga¢ao de fazer um novo ‘28 de Maio’. “ O Programa, porém, foi recusado e votou-se uma Comissiio Para redigir um novo texto. Essa Comissao ficou constituida pelo Ten. Cor, Costa Bras, Maj. Melo Antunes e Maj. Moreira de Azevedo. A seguir a esta reunido o tempo passou com grandes dificuldades. De qualquer modo, eu estava em constante contacto com o Ten. Cor. Costa Bras, pois trabalhdvamos os dois no Estado Maior do Exército. Devo acrescentar que o Ten. Cor. Bras assistiu 4 reuniao em casa do Cor. Marques muito a contragos- to e foi metido na Comissio de Redacc&o do Programa por mim e por Vitor Alves. Como sabfamos ser 0 Ten. Cor. Costa Br&és um homem muito ponderado e sensato, actudmos assim — convencendo-o a ficar na Comissio — para compensar o esquerdismo ja conhecido do Maj. Melo Antunes e do Maj. Moreira. Desde as eleigdes de 1969 que v/nhamos observando a vira- gem para a esquerda da CDE apesar do Dr. José Tengarrinha trabalhar para o grupo Borges** e parecer um homem de confianga do Dr. Miguel Quina: ora, Melo Antunes tinha sido candidato pela CDE mantendo estreitas relagdes com Tengar- rinha. A situacao era amb{gua, sabendo-se que o pai de Melo Antunes pertencia aos Servicos Secretos da Legido.?* Era preciso, portanto, um oficial moderado para que o Programa sa(sse equilibrado. Fui mantido ao corrente das dificuldades da elaboragao do Programa pelo Ten. Cor. Costa Bras, que se queixava do Maj. Melo Antunes pretender uma descoloniza- Gao imediata (compromisso com a Plataforma de S. Pedro de Muel), enquanto ele era apologista de um processo de desco- lonizagéo mais calmo (Programa para a Democratizacéo da Repablica). Sobre a descolonizaco foi decidido arranjar umas frases que nao comprometessem a nivel de Governo. Foi marcado 21 um plendrio para se discutir e assinar o Programa, tendo-se escolhido para o efeito uma sala da Sinase. Esta empresa de aluguel de salas, mais tarde muito falada porque teriam |4 sido realizadas reunides do partido Liberal,?® havia sido admitida como hipétese por possuir optimas condi¢des para o efeito. A ultima da hora, e por razdes de seguranga, cance- lamos a Sinase e eu fui encarregado de obter outro local. Pensou-se num saldo paroquial, tendo sido contactados dois, mas surgiram dificuldades. Acabei por descobrir uma casa em Cascais e exactamente por tras do Restaurante Jodo Padei- ro.” Nesse plendrio estiveram presentes cerca de 195 oficiais representantes de todas as regides militares do pafs, dos quais apenas faziam parte dois ou trés da Forga Aérea e dois ou trés da Marinha. Devo frisar que nem a Forga Aérea nem a Marinha tinham uma participagdo activa no Movimento. Havia conversacdes nesse sentido conduzidas por Vitor Alves e, na noite desse plendrio, a Marinha estava ali apenas como observadora. No plenario foi feito o ponto da situagao e lido.o Progra- ma. As reacgdes foram muito diversas, 0 texto era muito controverso, 0 que n3o admira se considerarmos que o plend- rio se realizou oito dias antes do golpe das Caldas** e em pleno langamento do livro do Gen. Spinola, Portugal e o Futuro, que a Arcadia havia publicado 15 dias antes, exacta- mente no dia 22 de Fevereiro. O Programa era controverso: alguns argumentavam haver ja um Programa transparente no livro Portugal e o Futuro pelo que o Movimento dos Capitdes (nessa altura 0 Movimento ainda se chamava dos Capitaes) nao precisava de mais nada. Além disso, tinham ali um Chefe. Referiam-se evidentemente ao Gen. Spinola. Quem defendia a tese exposta em o Portugal e o Futuro era o Cap. miciliano Varela o qual ja tinha contactado com o Gen. Sp{nola e que, igualmente, concordava em fazer a ligagdo com os oficiais do quadro permanente. Nesse plendrio, foi aprovado, porém, um 22 Ponto muito importante: o Movimento dos Capitaes precisava nao de um mas de dois chefes, tendo sido entdo escolhidos os Gens. Spinola e Costa Gomes. O Gen. Spinola porque tinha manifestado no livro Portugal e o Futuro idéias coincidentes com a corrente predominante do Movimento; e o Gen. Costa Gomes porque sempre tinha manifestado simpatia pelo Movimento dos Capitées, pondo em risco a sua prépria posicao como chefe do Estado Maior das Forcas Armadas, nunca se tendo recusado a receber Mariz Fernandes e o Cap. Pinto Soares que eram, normalmente, os contactos entre 0 Movimento e o Gen. Costa Gomes. Con- cluiu-se contudo que o livro Portugal e o Futuro nao era suficiente como Programa pol{tico, pelo que teria de haver um comprometimento do plenario de oficiais em relago ao Programa elaborado pela Comissdo de Redacgio. Esse com- Pprometimento traduzia-se na assinatura do referido Programa. Nessa altura, a data do plendrio, estavamos ainda numa fase clandestina e por isso muito perigosa, pelo que muitos oficiais se esquivaram a assinar o documento. Alguns desses oficiais alegaram que ainda n&o estavam bem esclarecidos; outros de- clararam no estar de acordo com a parte relativa ao Ultramar e outros ainda insistiram que o Programa continha uma lin- guagem comunista. A Forga Aérea, por exemplo, pela voz do Maj. Seabra, simplesmente nao concordou com o Programa, tendo no entanto o Maj. Seabra declarado que ele pessoal- mente estava de acordo mas, como representante da Forga Aérea, a resposta tinha de ser nao, por considerd-lo demasia- do esquerdista. Quando agora, mais de um ano passado sobre essa reuniao, aparece o ‘‘general’’ Morais da Silva, actual Che- fe do Estado Maior da Forc¢a Aérea, a afirmar em entrevista publicada no Didrio de Lisboa, de 17 de Maio que a ‘’Forca Aérea havia rejeitado o nome de Spinola na célebre reunido de Cascais” mente descaradamente. O que se passou naquela reuniado foi exactamente o que atras descrevo, A Forca Aérea 23 considerou o Programa “demasiado a esquerda’’ e nem sequer pds em causa o nome de Spinola’. Morais da Silva mente por oportunismo ou por medo. Ou simplesmente porque é menti- roso. A Marinha n&o votou porque estava ali apenas como obser- vadora. No entanto, opinou que considerava o Programa de- masiado direitista. A Marinha pretendia avangar muito mais, sobretudo no campo social e na descolonizagao. Nessa altura os oficiais que tinham trabalhado na elaboracdo do Programa sentiram-se frustrados, pois que tinham tido um trabalho enorme e, para uns, o Programa era demasiado a esquerda, Para outros, era demasiado a direita. A Comissao Coordena- dora sentiu ser diffcil obter uma unidade de pontos de vista, além de ter percebido nao possuir a confianga dos delegados das unidades, pelo que declarou nao estar disposta a seguir sozinha. De qualquer modo assinaram nessa altura o docu- mento apenas cerca de 90 oficiais. Nao sei onde se encontra o original desse documento e é pena, pois seria interessante analisar as assinaturas que l4 se encontram e concluir quais foram os oficiais que tiveram coragem e os que a nao tiveram. Ha hoje oficiais altamente colocados no MFA e que, naquela altura, se recusaram a assinar o Programa. O Cor. Vasco Gongalves apareceu pela primeira vez numa reuni&o realizada em Obidos. Foi nessa reunido, a de Obidos, que o Ten. Cor. Barasol se insurgiu contra a calma com que os planos estavam a ser feitos e defendeu a tese de tomar o Poder pela forca, concretamente propondo a safda da sua unidade. Isto teve como resultado quase imediato o embar- que do batalhdo do Ten. Cor. Barasol para a Guiné, 0 que leva a admitir que a essas reunides assistiam oficiais delatores ou em ligagéo com a PIDE. Concretamente, nés tinhamos a certeza de que havia oficiais da PIDE misturados no Movi- 24 mento, mas sempre pensdmos que a PIDE nao nos incomoda- ria grandemente enquanto, aparentemente, se tratassem de problemas do quadro permanente para serem resolvidos entre oficiais deste quadro. Estou absolutamente convencido, po- rém, de que a PIDE sabia perfeitamente o que se passava mas nao quis actuar. De qualquer modo, pouca gente acreditaria que a polfcia politica nada soubesse dado que, por exemplo, a reuniao de Cascais teve quase duzentas pessoas, num prédio habitado e localizado no centro da vila. A reuniao tinha ne- cessariamente que dar nas vistas. Nessa altura, correram muitos boatos por Lisboa acerca do Movimento dos Capitaes, nomeadamente um que dizia terem sido mortos dois oficiais com golpes de Karaté, numa reunido realizada no Alentejo. Posso garantir que este boato néo tem o minimo fundamento. Ao fim e ao cabo, nesse plendrio de Cascais foi decidido que a Comissdo refundisse o Programa, que néo podiamos continuar com reunides tao amplas e que o Poder tinha de ser tomado pela forca (afinal a tese do Ten. Cor. Barasol). Assim, © plendrio deu poderes 4 Comisséo Coordenadora para no- mear uma Comissdo articulada numa parte militar e outra politica, as quais fariam respectivamente o planeamento mili- tar da revolugao e o Programa polftico. Essa Comissdéo era secreta, mas tinha a possibilidade de contactar e ouvir as pessoas que entendesse sem consultar a Comissao Coordena- dora. Hoje considero que essa possibilidade foi muito perigo- sa. Foi esta a razdo que permitiu ao Cor. Vasco Goncalves colaborar com a Comissao Secreta, suponho que a convite do Cap. Pinto Soares, na medida em que este trabalhava com Vasco Goncalves na Direccfo da Arma de Engenharia. Essa Ppossibilidade permitiu também a colaboracdo do Ten. Cor. Charais e dos comandantes Crespo e Contreiras, da Marinha. Eu era informado constantemente por Vitor Alves de que aqueles oficiais tomavam posi¢Ses radicalmente esquerdistas. 25 Nao sera de admirar se soubermos que as ligagdes politicas do Com. Crespo eram com os homens que, depois do 25 de Abril, fundaram o MES. Com este pormenor ja o leitor pode- ra compreender a actuacdo do Alto Comissdério Crespo, em Mogambique, que custou milhares de vidas. 16 DE MARCO "A ideia encarna em peitos que palpitam: © seu pulsar sdo chamas que crepitam Paixdes ardentes como vivos séis!"’ Antero de Quental Todas aquelas comissdes e reunides comecaram a gastar tempo demais pelo que, a certa altura, um grupo de oficiais no qual eu me inclufa comegou a insistir para actuarmos rapidamente antes que 0 Governo desmantelasse 0 Movimen- to, o que lhe teria sido extremamente facil. Um simples pro- blema burocratico de transferéncias e trocas de oficiais para locais distantes teria desorganizado todos os contactos. Certo dia, porém, chegou a boa noticia: estava eu em Cola- res?® e recebi um telefonema do Maj. Vitor Alves dizendo-me © seguinte: ‘Do teu ponto de vista (entenda-se accdo imedia- ta) esta tudo a correr bem. O COE de Lamego saiu e vem em direcgao a Lisboa, bem como o Regimento das Caldas”. Pos- teriormente verificou-se que a informa¢do sobre o Comando de Operagdes Especiais de Lamego era falsa. Ha que esclarecer que a safda do Regimento das Caldas foi espontanea e nao determinada pela Comisséo Coordenadora. Foram os “‘peitos que palpitaram” nesse dia tendo a decisdo sido tomada pelo Maj. Casanova Ferreira e Maj. Monge, que Prestavam servico naquele quartel. Recebido o telefonema, fui imediatamente para a minha casa do Estoril onde me encontrei com Vitor Alves e Otelo Saraiva de Carvalho,?° ambos preocupadissimos, pois a iniciativa dos Majs. Casanova 29 e Monge podia pér em risco todo o trabalho posterior do Movimento. Considerando, porém, que o Regimento das Cal- das j4 vinha a caminho, tentémos de minha casa obter o maior apoio possivel para aquele Regimento. Assim, eu falei com o Ten. Cor. Lopes Pires, o qual estava na Academia Militar e o Maj. Vitor Alves e Otelo Saraiva de Carvalho fo- ram, falar com o Maj. Almeida Bruno,*' mas nao consegui- mos qualquer apoio efectivo. De qualquer modo, 0 caso das Caldas serviu-nos de ensinamento pois pudemos apreciar a reacgao dos altos escalées do Exército, a qual foi absoluta- mente desordenada. Igualmente a experiéncia do Regimento das Caldas precipitou o 25 de Abril. No dia seguinte apresentei-me no Estado Maior do Exérci- to, onde prestava servico, e pude verificar que a confusdo tinha sido total. Como é evidente, a revolta das Caldas provo- cou sangées, tendo sido presos, além dos oficiais revoltosos, 0 Maj. Almeida Bruno e o Cap. Ferreira. As prisdes foram efec- tuadas por agentes da PIDE e da Legido Portuguesa. O major Casanova Ferreira foi 0 homem das Caldas, o homem do 16 de Margo. Foi a espoleta que precipitou a “revolucdo das flores’. Preso pela PIDE/DGS, sé foi liberto no dia 25 de Abril. Mas Casanova nao é comunista. Veio a ocupar, como recompensa just/ssima, o lugar de comandante da PSP*? de Lisboa. Lugar-chave para a escalada do Partido Comunista. Tinha de ser eliminado, Assim, depois da arma- dilha do 11 de Marco, o Major Casanova voltou a ser preso, desta vez pelo COPCON,?? comandado por Otelo Saraiva de Carvalho. Ha, de facto, demasiados equ{vocos para que pos- sam ser simples coincidéncias e para que ainda possa haver alguma divida. Como curiosidade Posso relatar que tinha sido nomeado para uma Comisséo de Trabalho do Estatuto de Oficial do Exército presidida pelo Brig. Reis. No ponto que se prende com a participacao politica dos oficiais do Exército, eu, que 30 estava secretamente metido no Movimento dos Capitdes, de- fendia a tese de que os oficiais do Exército nao deviam meter- -se em pol/tica, enquanto oficiais. O Brig. Reis, que veio de- pois a ser 0 comandante da resisténcia do Governo de Marce- lo Caetano no 25 de Abril, defendeu a tese contraria, susten- tando que os oficiais do Exército podiam e deviam participar na polftica. Entre estes acontecimentos do 16 de Margo e o 25 de Abril, a historia é conhecida: a reunido do Prof. Marce- lo Caetano com os generais em S. Bento, conhecida pela “Reunigo do Reumatico” e a demissdo dos Gens. Spinola, Costa Gomes e Almirante Bagulho por se terem recusado a comparecer aquela reuniao. Convém frisar que o discurso do Gen. Paiva Brandao na célebre reunigo em S. Bento foi extremamente cauteloso, pois declarou falar apenas em nome dos generais presentes. Este detalhe é importante, permitindo compreender a atitude Posterior de muitos outros oficiais generais que aproveitaram este discurso de Paiva Brand&o para nao se sentirem moral- mente obrigados a solidarizarem-se com os Gens. Sp{nola e Costa Gomes. . . pois que o Gen. Brando tinha apenas falado em nome dos presentes. . . Com efeito, no seu discurso, aque- le general frisou o seguinte: “Como mais antigo dos chefes de Estado-Maior dos ramos das Forgas Armadas e ainda em no- me dos que compée esta qualificada representagdo de oficiais- -generais. .."” 25 DE ABRIL “Ea Patria! o meu amor! a Patria bela!... Em que mingua eu a vej Quem a abraga, Quem vai lutar até morrer por ela? Nao tarda a hora... como vem brilhante! que mar de luz! que aurora!, Quase liberto Sorri-me a Virgem Deus! quanta luz!, Guerra Junqueiro Perante as sangdes aplicadas aos revoltosos das Caldas e a reuniao dos generais em S. Bento foi decidido pelo Movimen- to desencadear uma acco imediata. Essa decisdo foi tomada numa reunido realizada em casa do Brigadeiro Ferreira de Macedo, pai do Cap. Ferreira Macedo, e a ela assistiram o Com. Contreiras e o Cap. Costa Martins,?* este convocado a Ultima da hora. Como iria verificar-se mais tarde, este capitdo estava destinado a ser convocado sempre ‘a ultima da hora!” Parece haver pessoas que nasceram com este signo e, como se vera adiante, o Cap. Costa Martins tornou-se ministro na “‘il- tima meia hora’’. A reaccio consistiria numa manifestacdo maciga de oficiais fardados junto ao Ministério do Exército, exigindo a liberta- ¢o dos camaradas presos. De madrugada, porém, desistiu-se dessa manifestagao por se considerarem imprevisiveis as rea- ges da Policia e 0 comportamento da populagao a uma ma- nifestagdo de oficiais fardados. Considerou-se que as conse- qiiéncias poderiam ser altamente negativas e prejudicar irre- mediavelmente 0 nosso Movimento. Em alternativa, o Com. Contreiras sugeriu ir falar, ele proprio, nessa madrugada, com 0 Ministro da Marinha, Almirante Crespo, a quem colocaria perante a hipétese da manifestagao, pedindo-lhe simultanea- 35 mente que actuasse junto do Governo. Esta sugestao do Com. Contreiras foi muito contestada pelos outros ofi is presen- tes mas acabou por ser aceite. E, assim, aquele oficial falou com 0 Ministro da Marinha as quatro da manhd, o qual Ihe respondeu que ia fazer tudo o que estivesse ao seu alcance e, de imediato, dar conhecimento ao Presidente do Conselho. A este contacto entre o Com. Contreiras e 0 Ministro da Mari- nha assistiu o Com. Crespo, mais tarde Alto-Comissdrio em Mocambique. Nesta situacdo houve varias atitudes de oficiais que convém frisar. O Cap. Vasco Lourengo, por exemplo, néo compareceu ao embarque para os Acores, para onde tinha sido transferido pelo Governo, como represdlia. E o Cap. Pinto Soares tomou uma atitude digna, pois que demitiu-se de oficial do Exército declarando que o fazia por entender que o Movimento deve- ria ter sido solidaério com os oficiais das Caldas. Como o Movimento nao tinha tomado nenhuma reaccio ostensiva, ele Pessoalmente demitia-se do Exército. Esta atitude valeu-lhe a prisdo: foi esta de facto a razdo pela qual o Cap. Pinto Soares foi preso e nao por ter estado directamente implicado no caso das Caldas, porque néo estava. Dadas estas circunstancias, 0 governo deu ordens para se constituir uma Comissdo dentro do Estado Maior do Exército a fim de refazer os planos de defesa no caso de uma revolta militar. Pela presenga do Ten. Cor. Costa Brés na Comissao e pelo facto de eu e o Maj. Vitor Alves trabalharmos no Estado Maior, havia perfeito conhecimento dos planos do Governo. Entretanto, toda a estrutura para um golpe militar levado a efeito pelo Movimento comegou a tomar corpo e foi decidido que esse golpe teria lugar antes do dia 1.° de Maio. A raz&o era de que havia noticia de que se preparavam graves distur- bios no 1.° de Maio pelo que, obviamente, o Exército ficaria de prevengao rigorosa, o que dificultaria a nossa missdo. Assim, foi decidido ser antes daquela data e aconteceu no dia 36 25 de Abril porque unicamente nesse dia se reuniram e com- pletaram todos os preparativos. O dia 25 nao foi escolhido por nenhuma razao especial, pois se os preparativos tivessem ficado concluidos no dia 23 ou no dia 26 teria sido num desses dias. O importante era ser antes do 1.° de Maio. E de admitir que a preocupacdo em o golpe se realizar antes do 1.° de Maio fosse também relacionada com o facto de haver necessidade de imediato apoio popular. Assim, um golpe realizado poucos dias antes da festa dos trabalhadores poderia ter grande significado. A verdade é que houve contac- tos entre 0 Movimento dos Capitdes e certas for¢as pol /ticas, pois que no dia seguinte ao golpe militar apareceram milhares de cartazes dizendo ‘’Viva o Movimento das Forgas Armadas’’ e “Viva o General Spinola’. Ora, estes cartazes nao se fazem de um dia para o outro. . . As ligagdes polfticas do Movimen- to dos Capitaées foram realizadas pelo Maj. Melo Antunes o qual estava estreitamente ligado, através da CDE, ao Dr. José Tengarrinha. Tudo leva a crer, assim, que 0 tom que foi dado as manifestagdes populares de apoio ao Movimento foi orien- tado pelo MDP/CDE, com o conhecimento de Melo Antunes. De certo modo, podemos considerar 0 comprometimento po- \ftico do Movimento das Forgas Armadas, através de alguns dos seus oficiais, com o MDP/CDE. Como este partido, um ano depois, obteve apenas 4% dos votos do Povo Portugués, podemos hoje concluir que 0 equivoco do 25 de Abril come- ou antes do 25 de Abril. . . Chegdémos enfim ao dia da revolugdo com muitas ligagdes politicas j4 feitas e com um sinal que marcava o inicio das operagées, Esse sinal, como toda a gente sabe, foi a ‘‘Grando- la,3§ Vila Morena’’. O que talvez pouca gente saiba é que esta cangao foi escolhida por Otelo Saraiva de Carvalho. A frase da cangdo “‘o Povo é quem mais ordena’”’ era inter- pretada pelos oficiais democraticos como uma palavra de or- dem para uma democracia em que a vontade do Povo fosse 37 respeitada. Nao passou pela cabega de muitos de nés que, mais tarde, essa mesma vontade popular viesse a ser menos- prezada passando a “‘ordenar” uma minoria alienada do Povo. Desconhe¢o os contactos pol(ticos, a nivel civil, de Otelo Saraiva de Carvalho, mas posso afirmar que Vitor Alves tinha ligagdes nos meios tecnocratas, digamos ligados a uma direita progressita; e o Com. Crespo, por exemplo, tinha ligagdes muito activas — como ja disse — com elementos que vieram depois a criar 0 Movimento da Esquerda Socialista. Como sabemos hoje, o MES obteve 1,5% dos votos nas eleigdes, 0 que nos leva a supor que naquela altura o MFA estaria apenas unido em dois objectivos comuns: derrubar 0 Governo de Marcelo Caetano e caminhar para 0 progresso e a justi¢a so- cial. A forma de obter esse progresso e essa justi¢a social é que no foi analisada na altura. Mais tarde verificamos que estavamos profundamente divi- didos quanto a este ponto: a forma ou a pratica politica de atingir estes objectivos. Em linguagem militar, por exemplo, realizar 0 objectivo de conquistar uma aldeia pode traduzir-se em duas formas simples: cercar o objectivo, destruir os pon- tos de resisténcia e mentalizar a populagao da aldeia a render- -se perante a evidéncia. A outra forma é a do napalm: arrasar a aldeia, queimando-a. E a polftica da terra queimada. O “equivoco do 25 de Abril” resume-se exactamente nisso: 0 Povo portugués, na sua larga maioria, queria uma mudan¢a profunda, incluindo o fim da guerra em Africa. Mas nao que- ria — nem quer — uma polftica da terra queimada. E, porém, O que esta a acontecer. De qualquer modo e de uma maneira geral, creio que 0 Movimento dos Capitdes nao tinha qualquer comprometimen- to polftico definido com qualquer corrente da Oposi¢ao ao regime deposto. Nessa altura quem dominava de facto a Co- missdo Coordenadora era Vitor Alves, pelas suas qualidades de dinamismo e vivacidade. O Cor. Vasco Goncalves era, no 38 activo, o mais graduado de todos nds e por isso, e s6 por isso, era respeitado. E justo, porém, recordar que numa reuniao dos Comandos de Engenharia realizada uns dias antes da revo- lugdo, a qual eu assisti como representante do Estado Maior, 0 Cor. Vasco Goncalves defendeu com todo o calor o Movimen- to. Nessa reunido eu fiz uma s{ntese da situagao, declarando aos oficiais que o Movimento ja estava numa fase irrevers{vel. As minhas palavras foram recebidas com certa frieza. Foi a oportunidade de o Cor. Vasco Goncalves interferir defenden- do o Movimento, e, inclusivamente, informou o Gen. Oliveira e Sousa®* do que se passava, pedindo-Ihe o seu apoio. Aproximavam-se os preparativos do seu fim légico e era necessdrio 0 acordo dos Gens. Sp{nola e Costa Gomes para 0 Programa. Spinola introduziu algumas alteragdées afirmando que nao podia dar o seu apoio se elas nao fossem aceites. Igualmente Costa Gomes introduziu outras alteragdes, acres- centando também que nao daria o seu apoio se elas nao fos- sem aceites. Ambos os Generais nao estavam de acordo com o que classificavam de posi¢ao demasiado “‘radical em relagao ao Governo’ e quanto a descolonizagao. Tudo, porém, se arranjou, embora esta ainda nao tenha sido a versdo definitiva do Programa. Com efeito, j4 depois da revolucao vitoriosa, 0 célebre documento voltou novamente a ser discutido no Quartel da Pontinha,?” desta vez por toda a Junta de Salva- cao Nacional. Eu préprio levei varias cépias do Programa para a Pontinha e, numa reuniao no gabinete do Oficial de Dia, onde estavam varios oficiais, nomeadamente o Gen. Spinola; o Alm. Rosa Coutinho;?* o Gen. Costa Gomes e os seus ajudantes, major Ravara e Ten. Cor. Ferreira da Cunha, ou- tros oficiais ali se encontravam, com o Maj. Mariz Fernandes. Nessa reunido discutiu-se a oportunidade de comunicar ou no ao Pafs o Programa. A corrente dominante, nomeada- mente dos trés oficiais da Junta presentes, era a de que n&o: nao se deveria ler o Programa ao Povo pois nao havia a certe- 39 za de ser cumprido. Deveria unicamente anunciar-se uma co- municacéo do General Spinola, ficando o Programa como uma espécie de pacto entre o Movimento e a Junta. Nao se chegou naquele momento a outras conclusdes pois nao esta- vam ali os restantes membros da Junta. COSTA GOMES E ROSA COUTINHO QUERIAM MANTER A PIDE Discutiram-se, entretanto, outros pontos de pormenor, um dos quais extremamente importante: desmantelar ou nao ime- diatamente a PIDE/DGS. Posso afirmar com toda a veemén- cia que eu e todos os outros oficiais do Movimento ouvimas o Gen. Spinola defender a extingao imediata da PIDE, acres- centando que isso ‘’n&o o chocava absolutamente nada’’. O Gen. Costa Gomes e o Alm. Rosa Coutinho, porém, defende- ram a tese de que a PIDE no era dispensdvel e que deveria ser mantida tanto no Uitramar como em Portugal. Estabele- ceu-se discussio e o Gen. Spinola foi o Gnico que esteve de acordo com o Movimento: acabar com a PIDE. Foi, alias, por causa da oposicgéo do Gen. Costa Gomes e do Alm. Rosa Coutinho que o Programa declara que se mantém a PIDE nas colénias como organismo de informagao militar. Realmente o Programa é bem claro quando afirma: “No Ultramar a DGS manter-se-4 como policia de informacao militar enquanto as operagées militares 0 exigirem’’. A tese do Gen. Costa Gomes e do Alm. Rosa Coutinho em relagdo a Portugal nao venceu. Mas é de importancia histérica saber-se que — por vontade de Costa Gomes e Rosa Coutinho — a PIDE/DGS teria continuado. Cada um tire a ilac¢&o que entender. O fascismo é, antes de mais, um estado de esp/rito, uma atitude, uma certa maneira de estar no mundo. A PIDE 40 acabou por imposi¢ao do Gen. Spinola. Mas quem esté no Poder séo Costa Gomes e Rosa Coutinho. . . e assim o espiri- to da PIDE continua com as prisées arbitrdrias, sem mandato, sem julgamento, sem assisténcia judicidria. As coisas nao acontecem por acaso. . . HA um estado de espfrito, uma atitu- de determinada por detrés delas. Entretanto chegaram a Pontinha os restantes membros da Junta mas a reunigo foi interrompida para que Spinola lesse na TV uma declaragao ao Pais na presenca de toda a Junta. Essa declarac&o, unicamente da autoria do Gen. Spinola, con- tinha porém as grandes linhas do Programa e tinha 0 acordo de todos os oficiais do Movimento. Acabada a emissdo da TV, a Junta e os oficiais do Movimento voltaram a reunir-se na Pontinha para continuarem a discutir o Programa, pois argu- mentava-se que 0 exemplo do “28 de Maio” aconselhava a que existisse um documento que tragasse os objectivos e as raz6es da Revoluco, evitando futuras eventuais traicdes dos politicos. N&o pude assistir a esta parte da reunido pois tinha de estar Presente no Posto de Comando da Revolucdo. Nessa altura a situac¢ao ainda nado estava completamente dominada em todo 0 Pais. Eu estava, porém, apreensivo com toda a discussio a que tinha assistido nesse dia, nomeadamente com a oposi¢ao do Gen. Costa Gomes ao desmantelamento da PIDE. Alguns dias mais tarde, porém, compreendi. Com efeito estava eu em Pedroucos?’ quando me aparece o Com. Silveira Pinheiro, ajudante do Gen, Costa Gomes, com uma “‘encomenda” para mim: nada mais nada menos do que o Dr. Sdo José Lopes, Director da PIDE em Angola, com instrugdes do Gen. Costa Gomes para eu o levar ao Aeroporto da Portela de Sacavém a fim de que ele pudesse fugir para Angola. Efectivamente cum- pri as ordens pois vinham de uma membro da Junta. 4 Analisando, porém, este episodio a distancia e relacionan- do-o com a tese defendida igualmente pelo Alm. Rosa Couti- nho, nio podemos deixar de ficar perplexos. A imprensa, sempre deliberadamente mal informada e muito bem orques- trada, noticiou a fuga de Sao José Lopes de Angola para a Africa do Sul onde, submetido a uma intervengao cirtirgica, teria morrido. A reunido em que foi discutido o destino da PIDE realizou-se no dia 26 de Abril. Nos dias seguintes ao dia da Revolugao, certos cfrculos de Lisboa pensavam que teria havido uma espécie de acordo secreto com o Governo de Marcelo Caetano o qual teria assim perfeito conhecimento do que se ia passar. Isto n&o é verda- de. Ser verdade que o Governo saberia algo do que se passa- va pelas informacdes da PIDE, mas desde a reuniao dos gene- rais em S. Bento que as posigdes se tinham radicalizado. An- tes dessa reunido o Gen. Costa Gomes teria tentado um acor- do com o prof. Marcelo Caetano, mas esses contactos néo foram muito nitidos. De qualquer modo, embora o Governo tivesse conhecimento do que se ia passar, ndo podia fazer praticamente nada na medida em que, de facto, o regime estava podre. Os aspectos militares do “25 de Abril’ estéo largamente descritos e eu nao irei repeti-los. Mas nao ha divi- da de que se tivesse havido uma reac¢ao forte da Guarda Nacional Republicana*! do Carmo*? a vitéria teria sido ex- tremamente dificil. Os carros de combate estavam velhos e em més condicdes mecanicas; o abastecimento de combusti- veis para os carros e de alimentacdo para os soldados era muito precario e, a acrescentar a estas condigées, havia ainda © treino das tropas que era muito mau na medida em que a maior parte dos soldados néo tinha sequer a instrugao militar completada. O que se passou no Carmo, ao fim e ao cabo, foi uma acco pessoal, uma acco psicolégica e a presenga do préprio Povo. Se o regime no estivesse moralmente podre, teria disposto de chefes que desencadeariam o contra-ataque. 42 N&o houve qualquer atraso no ataque a PIDE, na R. Anto- nio Maria Cardoso, como se tem dito largamente. O que acon- teceu 6 que, para o Movimento, a PIDE nao era um objectivo militar. N&o se considerou a PIDE como uma organizacao capaz de defender o Governo pela for¢ga das armas. Isso nao. ocorreu a ninguém e, quando se tomou conhecimento de que a PIDE se preparava para resistir nas suas instalacdes, j4 o Ministro do Interior, Dr. Moreira Baptista, se encontrava pre- so na Pontinha. Quando isso se soube, o Gen. Spinola ordenou ao Dr. Mo- reira Baptista que telefonasse ao major Silva Pais, director da PIDE, dizendo-Ihe que se rendesse. O proprio Spinola pegou a certa altura no telefone e falou directamente com o Major Silva Pais, ordenando-lhe que cessasse qualquer resisténcia Pois 0 poder jé se encontrava nas maos do Movimento das Forgas Armadas. O general acrescentou que, se nao se rendes- se imediatamente, mandaria destruir a PIDE. Eis alguns por- menores dos bastidores do “25 de Abril” e que talvez nao tenham ainda sido ditos. Parece-me também que nunca foi revelado que a pedra angular da Revolugao residiu no Ten. Cor. Garcia dos San- tos** encarregado das transmissées. Sem a eficdcia do Ten. Cor. Garcia dos Santos ndo teria sido possivel a impressionan- te sincronizagao das operagdes militares. Todas as ordens do Governo chegavam até nés no préprio momento em que eram dadas devido a escuta/rédio montada por Garcia dos Santos, no Batalhdo de Transmissdes de Lisboa. Como curiosidade Posso recordar que era eu quem estava encarregado das infor- maces. No desempenho dessas fungdes pude detectar uma conversa telefénica na qual o Governo discutia a seguranca do Alm. Américo Tomas na viagem que devia fazer no dia se- guinte a Tomar, e a do General Andrade e Silva** a Beja. No momento em que esta preocupagao do governo foi detectada j4 tinha ido “para o ar” a ‘‘Grandola, Vila Morena” e j4 toda 43 a revolugdo estava em marcha. Daqui se pode concluir a deso- rientagdo total do governo, pois que, em plena revolucao que ainda desconheciam, organizavam visitas e discursos na pro- vincia. O elogio que aqui fago ao Ten. Cor. Garcia dos Santos nao menospreza o papel extremamente importante desempe- nhado por Otelo Saraiva de Carvalho. Mas é é6bvio que um Posto de Comando instalado num local isolado como a Ponti- nha nao poderia ter tido a eficdcia que teve se as transmissdes nao tivessem permitido, a esse Posto de Comando, manter-se em constante contacto com todas as tropas que estavam nesse momento na rua. Essa eficdcia, da qual resultou o éxito do 25 de Abril, deve-se ao Ten. Cor. Garcia dos Santos. As tropas que defendiam o governo, comandadas pelo Brigadeiro Reis, nado dispuseram de um esquema de transmissGes eficaz e, tal- vez por isso mesmo, falharam. Deve ter feito confuséo a muita gente o facto de o Gen. Spinola ter entrado em contacto telefénico, na manha do 25 de Abril, da sua residéncia para o Quartel do Carmo onde se encontrava o prof. Marcelo Caetano. Deve ter causado confu- sao porque o Posto de Comando se encontrava na Pontinha, Quartel do Regimento de Engenharia 1. A estranheza deve derivar de as pessoas se perguntarem se o Gen. Sp/nola era ou nao o chefe da Revolugdo. Convém esclarecer que a Revolu- Gao, e conseqiiente tomada do Poder, foi feita pelo Movimen- to. O Gen. Spinola sabia na noite de 24 para 25 de Abril exactamente tudo o que se ia passar, mas nao era o chefe operacional do Movimento. O que estava combinado — e no espfrito dos oficiais — era que, ganha a Revolucao, o Movi- mento delegava numa Junta de Salvacdo Nacional para a qual, 4 priori, j4 estavam designados os Gens. Spinola e Costa Go- mes. Os outros membros da Junta de Salvacdo Nacional se- riam nomeados posteriormente pela Forga Aérea, Marinha e Exército. Estas Armas designaram respectivamente os Gene- rais Galvao de Melo e Diogo Neto; Almirantes Pinheiro de 44 Azevedo e Rosa Coutinho e, pelo Exército, o General Jaime Vilvério Marques. E dificil tentar perceber, pelo critério da escolha, as ten- déncias politicas dos oficiais que elegeram os seus represen- tantes na Junta. De qualquer modo parecia-nos um elenco equilibrado. O General Galviio de Melo, por exemplo, tinha abandonado a For¢a Aérea em 1966 por discordancia frontal com o governo. Esta atitude mereceu-lhe uma referéncia elo- giosa e politica no livro Rumo 4 Vitéria, do Dr. Alvaro Cunhal. Com efeito, é deste Ifder comunista a seguinte passa- gem: “Depois da participa¢ao de uma esquadrilha portuguesa num festival aerondutico em Franga, o coronel Galvao de Melo, comandante da base aérea de Monte Real, afirmava corajosamente no seu relatério que a Aviaco Portuguesa ti- nha deixado de ser uma vergonha nacional para passar a ser uma vergonha internacional. O governo puniu-o com a demis- s4o e dois dias de cadeia, mas com isso a Aviagdo nao deixou de ser 0 que era’’. Isto explica porque na manha do 25 de Abril, nao estando ainda formada a JSN, o Gen. Spinola se encontrava na sua residéncia de onde telefonou para a Pontinha pedindo, muito democratica e eticamente, para ser mandatado pelo Movimen- to a fim de poder receber a rendi¢&o do governo que se encontrava no Quartel do Carmo. Posso registrar algumas curiosidades verificadas nesse dia e que hoje talvez possam clarificar algumas incégnitas. O Gen. Jaime Silvério Marques,‘ * por exemplo, foi preso no préprio dia 25 e da prisdéo foi nomeado pelo Exército membro da JSN. Quer dizer: da situagao de preso pelos revoltosos passou a ser um dos chefes da Revolucdo. Outra curiosidade sera a de sabermos que nao s6 o prof. Marcelo Caetano mas também Silva Cunha, Moreira Baptista e Rui Patricio*® seguiram to- dos do Quartel do Carmo num “‘Chaimite’’*” para a Ponti- nha, onde ficaram detidos. 45 De notar que o Gen. Spfnola nao os recebeu nem Ihes apareceu, tendo apenas falado com o Dr. Moreira Baptista para Ihe ordenar a rendi¢do da PIDE visto ser ele o Ministro do Interior. Foi na Pontinha que a Junta e os oficiais do Movimento decidiram, por unanimidade, enviar os presos para o Fun- chal*® unicamente por uma questéo de seguranga fisica para os presos. Nessa decisdo foi também englobada a ida do Alm. Américo Tomés e exclufda a ida do Dr. Rui Patricio por se considerar que este nao tinha importancia suficiente para cor- rer perigo. Nesse momento ndo se pensava em Brasil: eles iam para o Funchal unicamente para estarem afastados dos locais mais excitados. A priséo do Alm. Américo Tomas processou-se da seguinte forma: sabfamos que o Presidente da Republica estava na sua casa do Restelo pelo que para la se dirigiu o Ten. Cor. Almei- da Bruno com uma companhia de para-quedistas a fim de o prender. Acontece que o velho Almirante se recusou a sair de casa ou a deixar-se prender. Almeida Bruno telefonou para a Pontinha informando o sucedido, dizendo que néo era ético forgar fisicamente o almirante e pedindo instrugdes. Foi o préprio prof. Marcelo Caetano que lhe telefonou da Ponti- nha, explicando-Ihe que tudo estava perdido e que tinha de obedecer 4 forga comandada pelo Ten. Cor. Almeida Bruno, cujas instrugdes eram as de o levar para o Aeroporto da Porte- la, de onde seguiria para o Funchal. O Gen. Spinola mandou acrescentar que ‘‘toda a seguranga seria dispensada a familia” do Almirante Américo Tomés. S6 posteriormente, porém, foi decidido que também a familia de Tomas seguiria para o Funchal. Em todas as Revolucdes acontecem coisas extraordinérias. Uma delas foi a que se passou com o Alm. Henrique Ten- 46 reiro.*° Estava refugiado no Quartel do Carmo juntamente com os outros membros do governo e, simplesmente, nao seguiu no “Chaimite” para a Pontinha. Continuou no Quartel do Carmo de onde saiu calmamente e s6 alguns dias depois se entregou. Talvez nao tenha tido possibilidades de fugir entre- tanto, ou tenha decidido pessoalmente entregar-se. A verdade € que, durante alguns dias, ninguém soube dele. Para finalizar 0 “25 de Abril” nalguns dos seus detalhes menos clarificados, bastaré agora dizer que o Programa que foi lido ao povo portugués nao era, ao fim e ao cabo, da responsabilidade de ninguém individualmente considerado. O Programa que foi lido era da responsabilidade colectiva pois todos colaboraram na sua redaccao final, nomeadamente os restantes membros da Junta os quais tinham tomado conheci- mento desse Programa apenas no préprio dia 25. E evidente que posteriormente cada um Ihe deu a sua propria interpreta- ¢&o: o Programa permitia varias leituras, exactamente porque na sua constituic&o houve imensas divergéncias. A titulo de exemplo, para alguns a expressdo “estratégia anti-monopolis- ta’ tinha um sabor neo-capitalista; para outros teria um sabor comunista. O prof. Palma Carlos,°° inclusivamente, pediu num Conselho de Ministros que Ihe explicassem o sentido — 0 sentido pretendido, entenda-se — e ninguém soube explicar- the! PARTIDOS POLITICOS Era ponto assente no Movimento das For¢as Armadas, an- tes do ‘25 de Abril’, de que nao seriam permitidos partidos politicos mas sim associagdes ou movimentos politicos dos quais nasceriam mais tarde os partidos. Este ponto, alias, esté bem claro no Programa quando diz: “... ser4 permitida a 47 formacao de associagées pol{ticas, poss{veis embrides de futu- ros partidos politicos. . .”” Compreende-se a razdo das declaragdes do General Galvao de Melo no Brasil, quando afirmou que ‘nao ha partidos politicos em Portugal”. O general limitava-se a cumprir o Programa e o que estava determinado pelo Movimento. Fomos porém completamente ultrapassados pois verificou-se um auténtico assalto as instalagdes das organizagdes da ANP, LP e MP5! para sedes de partidos. O Movimento foi assim colocado perante factos consumados. O Dr. Pereira de Moura’? e Dr. José Tengarrinha chegaram ao ponto de mandarem ocupar de assalto pelos seus militan- tes o Palacio da Independéncia que destinavam a sede do MDP/CDE, o que Ihes foi terminantemente recusado pela Junta de Salvaco Nacional. O que a Junta ja nao conseguiu impedir foi a destruig¢éo dos arquivos da MP, os quais foram langados 4 rua e queimados. Ao contrério dos arquivos da PIDE, os da Mocidade Portuguesa nao interessavam ao MDP/CDE. Por razdes obvias. J4 imaginaram uma fotografia de um dirigente ou militante do MDP/CDE fardado de “chefe de Quina” ou “chefe de Castelo’®* fazendo continéncia a bandeira da Juventude “‘fascista’’? Pois essas fotografias exis- tiam. . . e as centenas. Analisar estes factos a distancia tem 0 seu qué de curioso e de irénico. Extinguir a MP era uma necessidade dbvia, por todas as razdes de coeréncia. Mas entregar um dos mais belos paldcios de Lisboa ao MDP/CDE para sua sede, partido ao qual a populaco portuguesa nao deu resposta significativa nas eleigdes, teria sido demais. O problema da vinda do Dr. Alvaro Cunhal para Portugal e da legalizagao do Partido Comunista foi levantado no dia 28 de Abril durante uma conferéncia de Imprensa na Cova da Moura’* dada pela Junta. O Dr. Pereira de Moura, dirigente do MDP/CDE, levantou o problema acrescentando que era 48 catélico mas “nao tinha medo dos comunistas”. Foi o Alm. Pinheiro de Azevedo que Ihe respondeu dizendo que “‘tam- bém nao tinha medo dos comunistas” e, portanto, eles que viessem. Acrescentou Pinheiro de Azevedo que certamente terfamos (entenda-se a Junta) a “aprender muito com eles e eles conosco”. E foi assim que regressou o Dr. Alvaro Cunhal e naturalmente se legalizou o PCP. Alguns dias depois pés-se um novo problema: sede para 0 PCP. Foi 0 Cor. Vasco Goncalves, ele proprio, que me pediu Para arranjar uma sede para o PCP. Deste modo, e cumprindo instrugdes do Cor. Vasco Gongalves, andei pela cidade de automével com Jaime Serra, membro do Comité Central do PCP. Comecdémos pela Escola Técnica da PIDE Para sede da- quele partido mas Jaime Serra considerou as instalagdes dema- siado grandes. Na altura nao reflecti. Eu estava de boa fé e cumprindo instrugdes. Mais tarde, porém, analisando o dis- curso de Alvaro Cunhal no Barreiro,S> proferido na quinta- feira Santa, e o de Rogério Carvalho, membro do Comité Central do Partido, em Aveiro,5* compreendi: o PCP ja pen- saria nas 6ptimas instalagdes (sob o ponto de vista técnico) da PIDE/DGS para a nova pol (cia pol {tica controlada pelo Parti- do. Com efeito, Alvaro Cunhal e Rogério Carvalho afirmaram — naqueles discursos — a necessidade da criac¢o de uma pol/i- cia politica. Acabamos por descobrir que a sede de um Batalhdo da LP, na Rua Anténio Serpa, oferecia condigdes razodveis. E foi assim que o PCP ficou instalado inicialmente na Rua Antonio. Serpa, cujas. instalagdes j4 haviam sido entretanto ocupadas pelo Movimento de Libertagao dos Presos Pol/ticos. Este Mo- vimento estava ultrapassado pois j4 nao existiam quaisquer Presos politicos comunistas. O que havia naquela sede de Batalhdo da LP, soube-se mais tarde, eram armas e instrumen- tos de tortura pertencentes 4 ex-Legido. O entendimento en- tre Jaime Serra e o MLPP foi extremamente facil. . . 49 | | I? GOVERNO PROVISORIO Com que passo tremente se caminha Em busca dos destinos encobertos! Como se estado volvendo olhos incertos! Como esta geracdo marcha sozinha! Antero de Quental Para a constituigao do 1.° Governo Provisério, o Movimen- to indicou para o lugar de 1.° Ministro os nomes de Raul Régo e prof. Pereira de Moura. O MFA considerou também 0s nomes do prof. Miller Guerra e do Dr. Sa Carneiro, os quais porém foram postos de parte por terem sido considera- dos demasiado a direita e demasiado complacentes com o regime deposto. Os oficiais mantiveram a proposta de Raul Régo e Pereira de Moura mas o Gen. Spinola, depois de ter recebido a con- fianga da Junta para nomear o Governo, indicou o prof. Pal- ma Carlos. O nome de Palma Carlos havia sido recomendado pelo prof. Fernando Olavo, amigo pessoal de Spinola. Ser4 curioso saber-se que 0 pai de Fernando Olavo tinha sido, muitos anos atrds, assassinado ‘por militantes da extrema-di- reita. Nos primeiros anos do salazarismo a pratica do que hoje se chama “‘terrorismo selectivo” atingiu uma certa dimensdo. Fernando Olavo, ligado a Palma Carlos por lacos de amizade “fraternal”, indicou-o ao Gen. Spinola como chefe de Gover- no capaz de polarizar as forcas da Oposigao classica (a qual alids pertencia Raul Régo) e moderar o desvio para a extrema- -esquerda ou para o comunismo, moderacdo que Pereira de Moura no inspirava. 63 O facto de, imediatamente a seguir, a Maconaria portugue- sa ter reivindicado as instalagées (antigas) do Grande Oriente Lusitano, entretanto ocupadas pelo PPD,°” parece no ter qualquer ligacao com a nomeagao do prof. Palma Carlos para © cargo de 1.° Ministro. O que é certo 6 que o PPD saiu e as instalagdes foram entregues a Maconaria. ee Convém aqui afirmar que o Programa do 1.° Governo Pro- visorio presidido pelo prof. Palma Carlos teve o total apoio do Movimento das Forgas Armadas. Igualmente é importante esclarecer que a representacdo do Movimento no Conselho de Estado se deve exclusivamente ao Gen. Spinola. Foi o Gene- ral quem, na qualidade de Presidente da Repdblica, sugeriu que o Movimento estivesse representado no Conselho de Esta- do. Porém, os sete oficiais do MFA que constitufram essa representacdo naquele Conselho foram nomeados pelo Movi- mento sem qualquer interferéncia do Presidente da Repdbli- ca. O convite feito ao Dr. Alvaro Cunhal para fazer parte do 1.° Governo Provisério é da responsabilidade unanime dos membros da JSN e dos oficiais do MFA. Mais tarde, depois do “28 de Setembro’, procurou-se responsabilizar apenas o Gen. Spfnola por forma a desacreditd-lo perante a Opinido Publica, na sua largu(ssima maioria néo-comunista. Isto nao foi verdade. Contudo, apesar da unanimidade, havia duas mo- tivacdes diferentes: uma era de que estando o PCP (pensava- -se) fortemente implantado nas classes trabalhadoras, seria importante que fizesse parte do Governo para ajudar a man- ter a ordem no sector do trabalho; outra era a de que estando 0 1.° Governo Provisério condenado ao desprestigio, seria importante comprometer nessa perspectiva todas as forcas politicas. De qualquer modo foi posta ao Dr. Alvaro Cunhal a 54 necessidade de respeitar escrupulosamente as regras do jogo democratico, o que ele aceitou e a isso se comprometeu! Ocorreu a alguns de nds os eventuais inconvenientes do facto de um pais pertencente 4 NATO e cujo Programa revo- lucionario pressupunha a manuten¢&o naquela organizagao, ter 0 PCP como membro do Governo. Ocorreu a alguns de nés individualmente, mas nem a Junta nem o Movimento levantaram esse problema. Este detalhe, que se revelou mais tarde ser de extrema importancia, demonstra a generosidade e a boa fé da maioria dos oficiais que fizeram a Revolugao das Flores. E de admitir que os jovens do “25 de Abril’, vindos de uma guerra colonial completamente afastados das intrigas da politica e dos esquemas internacionais, n&o se tivessem apercebido do terrivel equivoco que representava para Portu- gal ter no Governo um politico como o Dr. Alvaro Cunhal. Legalizar o Partido Comunista teria sido uma decisio inte- ligente, justa e perfeitamente aceitavel no plano nacional e internacional. Ter convidado o PCP para o Governo define muitas das inexperiéncias dos homens do “25 de Abril’. . , ou muitas determinagdes de alguns desses homens. Efectiva- mente o argumento de que o Governo da Islandia, pafs mem- bro da NATO, engloba o PC local 6 irrelevante por duas raz6es: primeiro, porque a Islandia nao tem Forgas Armadas; segundo, porque 0 PC islandés insere-se no Panorama politico do Norte da Europa onde os partidos comunistas, além de ndo serem ortodoxos moscovitas, sdo considerados um folclo- re Util. De qualquer modo a Islandia era o Gnico exemplo sem conseqiiéncias. .. e Portugal passou a ser o segundo exemplo. com tremendas conseqiiéncias. Um outro detalhe que mostra a boa fé dos homens do "25 de Abril” refere-se aos jornais. No 1.° Governo Provisério eu era o Director-Geral da Informacao e, nessas fungdes, obser- vei de perto a actuacao do Ministro da Comunicagao Social, Raul Régo. Se, por um lado, os jornais eram empresas priva- 55 das onde o Governo nao devia, dentro do esp{rito democrati- co que nos animava, interferir autoritariamente nos conflitos de gest&o que neles se processavam, 0 mesmo jd nao se podia considerar em relagao ao Didrio de Notfcias. Este jornal, co- mo se sabe, pertence ao Estado na sua grande maioria, desde hd muitos anos, através de um esquema simples: a Caixa Geral de Depdsitos (Estado) dominava a empresa ‘Portugal e Col6- nias” e esta, por sua vez, a Empresa Nacional de Publicidade, proprietaria do Didrio de Not/cias. Portanto aqui a situagao era diferente: competiria ao Governo, por proposta do Minis- tro da Comunicagcio Social, fazer 0 saneamento da Direcgao e da Administragdo. Mas isso nao se fez apesar daquela mesma Direcc%o, algumas semanas antes, apoiar 0 governo de Marce- lo Caetano e estar agora a apoiar a Revolucao. Era evidente que esse apoio nao tinha a m/nima honestidade e era perfeita- mente indigno. Mas como o Ministro Rau! Régo nao fazia o saneamento, os trabalhadores entraram em greve, fecharam a Direcgdio nos gabinetes e exigiram a sua expulsdo. Raul Régo e o seu secretério Manuel Serra decidiram dialogar com os trabalhadores, tendo Manuel Serra ido as instalagdes do Dié- rio de Noticias falar com eles. Manuel Serra fez promessas e ameagas aos trabalhadores mas nem umas nem outras se con- cretizaram, 0 que alids se deve atribuir a confusdo do contex- to geral em que se vivia. A confusao era tal que eu ouvi do proprio Ministro Raul Régo um queixume nestes termos: “Calcule vocé que eu fui toda a vida anti-fascista e chamam- me agora fascista e reacciondrio’’. Penso que a ninguém ocor- reu, nessa altura, a regra elementar dos ensinamentos de Leni- ne a qual consiste em manter e fomentar constante agitagao em todos os sectores da vida de um pafs, como forma de luta para a vitoria final da ditadura do proletariado. Raul Régo, que falava frequientemente em “‘caos na im- prensa”, desenvolveu contudo um esforgo muito grande, en- istro, para que o PS‘® (partido a que pertencia), 56 conquistasse o Didrio de Noticias, o que efectivamente acon- teceu. Tudo isto demonstrava a confusdo e a anarquia em que de facto se vivia (e vive) e para o que até alguns oficiais do Movimento contribufam. Serd o caso, por exemplo, da toma- da de posse de Otelo Saraiva de Carvalho como 2.° Coman- dante do COPCON. Nessa ceriménia o Brigadeiro graduado insultou os generais, nomeadamente o Gen. Jaime Silvério Marques. Esse incidente desagradou a toda a JSN e ao MFA, até porque a ceriménia tinha sido transmitida em directo pela TV e milhdes de portugueses a ela assistiram. Se 0 caos no Pafs ja era grande, em termos de accdo psicolégica esse inci- dente facilitava-o ainda mais. Foi uma atitude impensada e impulsiva do Brig. graduado Otelo no que, alids, ele se tem refinado com o tempo. As afirmagées, ainda como exemplo, que proferiu sobre o embaixador americano e sobre o proprio Gen. Spinola demonstram a sua insensatez, reflexo e reflector do ambiente dominante. O Gnico sector onde, nessa altura, ainda havia uma certa firmeza era nas Forgas Armadas em tudo o que dissesse res- peito a disciplina militar. Apesar de toda a anarquia foi em nome daquele conceito (0 da disciplina militar) que foi preso © dirigente do MRPP,S° Saldanha Sanches.°° Foi preso nao por ser do MRPP mas por ter incitado 4 desercao e a indisci- plina os soldados. CORONEL VARELA GOMES Toda a gente conhece a luta anti-fascista desenvolvida pelo Coronel Varela Gomes e o seu papel no assalto ao quartel de Beja.°' Era pois de toda a justica e perfeitamente natural Sy: que fosse reintegrado no posto a que tinha direito, considera- do o tempo decorrido desde quando era capitao, posto em que foi preso pela PIDE: assim foi promovido a coronel. Sim- plesmente o coronel Varela Gomes, que nao era e nunca foi do Movimento, teve a preocupacao de se integrar imediata- mente e de se envolver em todos os sectores que estavam sobre controle do MFA. Varela Gomes comecou pela PIDE/ DGS introduzindo-se nas instalacdes daquela policia na R. Antonio Maria Cardoso, tendo tomado conhecimento e posse (!) dos arquivos e fichas da DGS. Posteriormente foi nomea- do, apés a sua “‘missdo’’ na PIDE/DGS, secretdrio do Coronel Vasco Gongalves, nessa altura da Comissdo Coordenadora. Simulténeamente com aquela funcdo, Varela Gomes ten- tou introduzir-se no Ministério da Comunicagao Social, onde eu era Director Geral da Informacao, procurando controlar a minha actividade o que, evidentemente, ndo consenti. Talvez por isso o coronel Varela Gomes chegou a propor o meu saneamento ao Maj. Vitor Alves, dizendo que eu seria um elemento perigoso dadas as minhas idéias “pouco democrati- cas” ou “demasiado democraticas’’, fiquei sem perceber bem. O comportamento de Varela Gomes tornou-se de tal ma- neira estranho que foi preso. Esteve 24 horas preso na Trafa- ria’? por ordem undnime da JSN. A ordem de prisao foi dada Por unanimidade da Junta e n&o pelo general Jaime Silvério Marques, como foi dito na altura. O pretexto para a prisdo foi o de exorbitar a sua competéncia, dando ordens e introduzin- do-se nos servicos mais secretos e importantes sem para isso ter sido nomeado, pois que, na realidade, nao tinha sido no- meado para coisa nenhuma: era apenas o secretério do Cor. Vasco Gongalves. A sua libertagdo foi pedida por um porta- -voz da faccao da extrema-esquerda do MFA. Essa faccdo ja comegava a ser detectada e era encabegada por Diniz Santos de Almeida. Creio que o Cap. Diniz de Almeida pode ser 58 classificado politicamente como “maoista” ou da UDP.*? Vasco Lourenc¢o, que nio tinha qualquer preparacao pol{tica, estava a ser mentalizado e politizado pelo Cor. Varela Gomes e pelo Maj. Melo Antunes: daf as relagdes de amizade que entretanto se estabeleceram entre eles e o facto de ter sido escolhido para porta-voz. Naquela época confusa era dificil perceber a verdadeira razJo das coisas ou de certas situagdes. Hoje torna-se mais facil arrumar o puzzle. Talvez nao tenha sido por acaso que Varela Gomes se tornou Secretdrio do Cor. Vasco Gongalves. Talvez n&o tenha sido por acaso que ele se introduziu, na confusao inicial, na sede da PIDE, se soubermos que os arqui- vos estao hoje na posse do Partidc Comunista. Devo recordar aqui, como elemento de raciocfnio, que Jaime Serra, membro do Comité Central do PCP, me disse que Maria Eugénia Vare- la Gomes tinha prestado grandes servicos ao Partido durante a clandestinidade e que era um elemento muito valioso. Maria Eugénia é mulher do. Cor. Varela Gomes. . . we E de admitir que varias cépias dos arquivos da PIDE, parce- lares ou nao, estejam hoje na posse de outras organizacdes. Quando o Dr. Sa Carneiro visitou a Regiao Militar do Porto, o comandante ofereceu-Ihe a gravagdo de uma conversa telef6- nica do Dr. Sa Carneiro, a qual havia sido gravada pela PIDE do Porto. Como esta gravaco, muitas outras devem estar na posse de outras entidades e podem tornar-se meios de chanta- gem. Muitas provas desapareceram, nomeadamente as listas de jornalistas que recebiam dinheiro do ex-SNI.°* Sabemos que muitos desses jornalistas continuam nos érgdos de infor- 59 magao fazendo a ‘‘nova pol({tica’’ mas, quando fui Director Geral e depois Ministro, nado consegui obter dados concretos. Essas listas desapareceram logo apés o 25 de Abril, e 6 possi- vel que sejam hoje utilizadas também como factor de chanta- gem. EXILIO DE TOMAS E MARCELO PARA O BRASIL Este facto — o da ida de Tomas e Marcelo para o Brasil — Pode ser tomado como marcando o in{cio da luta pelo Poder entre a JSN e o MFA. Na realidade a decis&o foi tomada pela Junta sem consultar 0 Movimento, com base no facto de este Ihe ter delegado os poderes. O critério foi o da tradic&o nos paises civilizados da Europa: os chefes de Estado nao se fuzi- lam, exilam-se. Foi este 0 critério que envolveu os chefes do Estado e do Governo depostos. Os dois Ministros que com eles se encontravam — Moreira Baptista e Silva Cunha — nado tinham, digamos, a dignidade de chefes de Estado. De qual- quer modo a revolugdo do ‘’25 de Abril” foi — e sempre pretendemos que fosse — uma revolu¢ado sem tiros nem vio- léncia: uma revolugao de flores. Dai o ex{lio dos dois princi- pais dignitarios do regime. Dai nao se ter considerado a PIDE um objectivo militar. Daj, talvez, a proteccdo dispensada pelo General Costa Gomes ao Director da PIDE de Angola. Daf o equivoco. Agora o que se ira fazer aos 1.200 agentes da DGS presos? Aos milhares de presos posteriores? Caiu-se num circulo vi- cioso. Existiam fortes ligagdes entre a PIDE e os oficiais das Forgas Armadas, por razdes de servico em Africa. Bem sabe- mos que, no Ultramar, as fungdes da PIDE eram diferentes das da Metrépole, ou melhor: eram as mesmas, simplesmente 60 dirigiam-se a um contexto diferente. Sera extremamente diff- cil julgar essas pessoas quando, no Governo e no Conselho da Revolugao, estio homens que com elas trabalharam e convi- veram. E até se criaram relagdes de amizade pessoal. “QUINTA-FEIRA DA ESPIGA’* A reuniao conhecida com o nome de “Quinta-Feira da Espiga’’ foi precedida, e talvez motivada, por uma outra reali- zada também na Manutenc¢ao Militar e esta presidida pelo Cor. Vasco Gongalves. Esta reuniao ficou marcada por varios incidentes pois que, logo no infcio, Vasco Gongalves mandou sair da sala todos os oficiais que nao pertencessem ao MFA. Tratava-se de um pedido estranho na medida em que era extremamente dif(cil definir “quem era’ e “quem nao era” do Movimento. Com efeito seriam considerados os oficiais que aderiram até 25 de Abril? Ou os que aderiram no dia 26? N&o havia um arquivo e, antes do 25 de Abril, quando era preciso assinar algum documento, poucos o faziam (caso da reunido de Cascais, j4 referido). Como conseqiiéncia, mui- tos oficiais abandonaram a sala e foi decidido que os que ficassem preenchessem um papel de identidade a fim de que se pudesse constituir uma espécie de arquivo dos oficiais do Movimento. Parece ridiculo mas foi assim mesmo. O importante, porém, desta reuniao foi o seguinte: decidir © cessar-fogo imediato no Ultramar. Isto espantou-me extra- ordinariamente visto que, nesse momento, o Governo estava empenhado na descolonizagado. Perguntei como é que o Go- verno podia negociar com capacidade de manobra se os ofi- ciais do MFA estavam a decretar unilateralmente o cessar-fo- go!? Foi esta talvez uma das situagdes mais graves que fize- ram avolumar o equfvoco do ‘’25 de Abril’: um Governo que 61 Pretendia ganhar a paz acabando com a guerra, e um plenario de oficiais que decidia, em termos praticos, perder a guerra! Seré bom recordar e frisar que esse plendrio foi presidido pelo Cor. Vasco Gongalves. A referéncia a esta reunido é importan- te para se compreender a reuniao seguinte, a da “‘Quinta-feira da Espiga’’, cujo objectivo era, afinal, esclarecer sobre quem governava 0 Pafs. A reuniao foi presidida pelo Gen. Spinola e a ela assistiram, entre outros membros da Junta, o Alm. Rosa Coutinho e o Gen. Galvao de Melo. Foram convidados os Drs. Sa Carneiro e Vieira de Almeida. O primeiro, na altura ministro-adjunto do 1.° Ministro Pal- ma Carlos, fez uma exposicao sobre a situacdo geral do pats, referindo-se 4 descolonizacdo nestes termos: ‘Seria uma ilu- s&o perigosa que rapidamente se pudesse resolver esse proble- ma (o da descolonizagao). Ele demorara necessariamente tem- Po a solucionar. As negociagées sero conseqiientemente dif /- ceis e morosas. Nao estamos numa situacdo de impasse. Hou- ve dificuldades, haverd dificuldades. A resolucao do problema nao depende unicamente de nds.” O segundo, na altura ministro da Economia, focou o caos econdémico para onde o pafs caminhava e acentuou: “Haverd Portanto que velar para que a abertura econdmica ao Leste nao venha conduzir a uma acentuacdo desta tendéncia e a consolidacae de um esquema que, se aplicado em larga escala, nao andaria muito longe do modelo célebre do “pacto colo- nial, Estas duas exposicdes foram lidas durante a manha, apés o que houve um intervalo para o almogo. A maioria dos oficiais foi de facto almogar mas na sala ficou um pequeno grupo chefiado pelo Cor. Vasco Gongalves que redigiu uma mogao de critica ao Governo sobre tudo o que tinha sido dito duran- te a manhd. Logo no inicio da sessdo da tarde, que era desti- nada a uma votacao do plenario de oficiais sobre a proposta 62 do Gen. Sp/fnola e da JSN, apoiada pelo tom das exposicdes dos Drs. SA Carneiro e Vieira de Almeida, o Cor. Vasco Gon- galves apresentou uma proposta assinada unicamente por ele préprio, sem consultar o plendrio de oficiais. Essa proposta foi vaiada e apupada. O Cap. Vasco Lourengo pediu entio a palavra, comegando por declarar: ‘‘Reafirmamos todo o nosso apoio e confianga no Gen. Spinola, mas’’. .. Neste momento o plenério irrom- peu numa salva de palmas e nunca mais se conseguiu saber qual era o “mas” do Cap. Vasco Lourenco. Hoje jé podemos imaginar qual seria. Mas naquela altura, perante aquela salva de palmas do plendrio, o Gen. Sp{nola abandonou a sala con- victo de que a sua proposta tinha sido aceita e que a mogao do Cor. Vasco Gongalves tinha sido recusada. Em todo aquele plendrio, um unico oficial, o Maj. Fontao, discordou frontalmente da proposta do Gen. Spinola, além evidentemente do pequeno grupo chefiado por Vasco Gongal- ves. De qualquer modo a reunido da “‘Quinta-feira da Espiga” acabou sem uma defini¢ao clara da autoridade continuando- -se no impasse governativo, Para mim, na minha opiniao pes- soal, esta reuniao marca a decisdo que foi tomada por outras forcas em relagdo a um “28 de Setembro” e a viragem a esquerda do MFA. CRISE PALMA CARLOS Creio que tudo ja tera sido dito sobre a chamada ‘Crise Palma Carlos’’. Na realidade a crise foi conseqiiente a uma Proposta de Constitui¢ao Proviséria que vigoraria até as elei- g6es e na qual o Chefe do 1.° Governo Provisério propunha 63 um reforgo de autoridade do Presidente da Republica e do 1.° Ministro. Esta proposta estava condenada ao insucesso, pois que a faccdo esquerdista do MFA nao estava disposta a perder o controle dos acontecimentos embora mantendo-se numa posicdo pela qual podia sempre atribuir 0 caos econd- mico a anarquia ao Governo e a Junta. De qualquer modo a proposta foi apreciada em plendrio das trés Comissées Coordenadoras do Exército, Marinha e Forga Aérea. A este plendrio assistiu, inexplicavalmente, o Cor. Varela Gomes pois nao pertencia e nunca tinha perten- cido nem ao Movimento nem a qualquer das suas Comissdes Coordenadoras. Apesar disso o Cor. Varela Gomes nao sé “comandou” as intervencdes do Cap. Diniz de Almeida como interveio ele préprio para afirmar que ‘‘se 0 plenario aceitasse a proposta do 1.° Ministro Palma Carlos o PCP sairia do Governo e passaria 4 clandestinidade”’. Este talvez seja um dos poucos detalhes ainda nao conhecidos da crise Palma Carlos. Mas trata-se de um detalhe extremamente importante € que ajuda a compreender muitas das situacdes posteriores, nomeadamente o “28 de Setembro”. Apesar do plendrio se destinar exclusivamente a discutir a Proposta do prof. Palma Carlos, discutiu-se também a insti- tucionalizagao do MFA. Insurgi-me contra esse tema afirman- do que nao queria que os meus netos sem a ter de fazer uma revolugao para destruir uma institui¢ao sinistra chamada MFA, como nés tinhamos destrufdo uma outra institui¢ao sinistra nascida do golpe militar do ‘'28 de Maio”, chamada Legiao Portuguesa. Por estranha coincidéncia este plendrio realizava-se no Quartel da Penha de Franca, sede da LP. Soube mais tarde que o prof. Palma Carlos, numa reuniao entre amigos, afirmara que teria avisado o Gen. Spinola da importancia da sua proposta para uma Constitui¢ao Provis6- 64 ria, acrescentando que, no caso contrério, Spfnola pouco tempo se manteria como Presidente da Republica. A Unica forma de “parar” a escalada comunista era criar uma certa estrutura de autoridade mesmo provis6ria. Os acontecimentos posteriores demonstraram que Palma Carlos tinha razdo, pelo menos no respeitante a escalada do PCP, APONTAMENTOS SOBRE O 2? GOVERNO PROVISORIO ‘*Para uns a vida é de abrolhos! Para outros moita de lirios!... Bem o revelam seus olhos, Pisados pelos martirios!’’ Gomes Leal A crise Palma Carlos culminou naturalmente com a sua demissio de chefe do 1.° Governo Provisério, j4 que o profes- sor tinha condicionado continuar naquelas fungGes a aprova- ¢&o da sua proposta. O Gen. Spfnola, na qualidade de Presi- dente da Republica, designou entdo para formar 2.° Governo Provis6rio o Ten. Cor. Firmino Miguel. Firmino Miguel aceitou condicionando, porém, esse facto a continuacao na Pasta da Economia do Dr. Vieira de Almeida. Este esquema para o 2.° Governo Provisério estava de tal modo assente, que o Ten. Cor. Firmino Miguel chegou a fazer convites a varias individualidades para aceitarem determina- das pastas ministeriais. A ultima da hora, porém, o Dr. Vieira de Almeida recusou continuar no Governo, o que levou tam- bém o Ten. Cor. Firmino Miguel a nao aceitar o cargo de 1.° Ministro. Isto foi um facto. E deste facto nasceu o Cor. Vasco Gon- calves como Chefe do segundo Governo Provisdrio, Na realidade tinha-se cafdo num impasse e o Gen. Costa Gomes, para resolver a situac¢do, propés e apadrinhou a candi- datura do Cor. Vasco Gongalves. E de admitir que o Gen. Costa Gomes tenha pensado que sendo 0 1.° Ministro mem- bro da Comisséo Coordenadora se solucionasse 0 problema da 69 autoridade. Fosse qual fosse a razdo, a verdade é que a hist6- ria faz-se de uma sucesso de factos: e o facto de Vasco Gongalves se tornar 1.° Ministro deve-se ao facto de Vieira de Almeida ter recusado a Pasta da Economia. Estranhamente, porém, o Dr. Vieira de Almeida aceitou mais tarde a Pasta de Economia do Governo de Angola. Disse-se, na altura, que a fam/{lia da esposa de Vieira de Almeida teria grandes interes- ses financeiros a defender em Angola. Nao sei se 6 verdade, mas é triste pensar que a generosidade dos homens que fizeram a Revolucdo das Flores correspon- deu, em muitos casos, 0 ego{smo feroz e o oportunismo mais primério. COSTA MARTINS: MINISTRO POR ACASO Designado o Cor. Vasco Goncalves para 1.° Ministro, havia que formar Governo. Neste aspecto, o Presidente da Republi- ca, Gen. Spfnola, teve forte influéncia na medida em que recomendou uns e vetou outros. Concretamente recomendou- -me a mim para Ministro da Comunicagao Social, bem como © prof. Magalhaes Godinho®® para Ministro da Educa¢ao. Foi o Gen. Spfnola e nao o Primeiro Ministro quem insistiu e defendeu a tese do prof. Magalhdes Godinho tomar conta da Pasta da Educag&o e Cultura. Igualmente o Gen. Spinola vetou a proposta de Vasco Gongalves para que o Dr. Herbert Goulart fosse nomeado Ministro do Trabalho. Esse veto foi justificado pelo facto do Dr. Herbert Goulart ser comunista. Caiu-se em novo impasse. A certa altura, faltava cerca de meia hora para anunciar o Governo ao Pajs, e ainda nao havia Ministro do Trabalho. Discutia-se este ponto na antecémara do Gabinete do Presi- dente da Republica quando alguém reparou que nessa sala e 70 Nesse pequeno grupo estava o Cap. Costa Martins. Nunca nin- guém tinha pensado neste capitdo para ministro fosse do que fosse e muito menos para Ministro do Trabalho. Mas o Cor. Vasco Gongalves nomeou-o ali mesmo ministro. E foi assim que o Gen. Spinola tomou conhecimento desta proposta e a aceitou. Por estranho que parega, o entdo j4 Ministro Costa Martins propés posteriormente ao Presidente da Repiblica a nomea- ¢ao, para Secretdrio de Estado do Trabalho, do Dr. Herbert Goulart! Novamente o Presidente da Republica vetou esta nomeac&o com base no mesmo argumento: o Dr. Herbert Goulart era comunista. Contou-se entdo que Costa Martins teria dito ao Gen. Spfnola ter sido ele proprio quem tinha Posto a circular o boato de que o Dr. Herbert Goulart seria comunista a fim de a Pasta do Trabalho Ihe ficar reservada. Esta histéria tem aspectos anedéticos mas explica bem o caos que o Governo tem vindo progressivamente a fomentar no Pafs. Dias depois o Brig. Otelo Saraiva de Carvalho declarava numa entrevista publicada no jornal A Capital: Se o Cap. Costa Martins soube resolver os problemas no Aeroporto de Lisboa durante a Revolucdo porque nao hé-de saber ser Minis- tro do Trabalho? ” Tem havido ‘‘acasos” demais em todo o processo desenca- deado pelo ‘25 de Abril’’ para que possam ser meros acasos. Hoje penso que — dada a impossibilidade do Ministro do Trabalho ser comunista por intransigéncia de Spinola — o “‘acaso”” de Costa Martins foi inventado com base na tactica dos “‘idiotas Uteis’. Como o Dr. Goulart continuou a ser recusado, mesmo para Secretdrio de Estado, foi proposto um desconhecido para o Gen. Spfnola: o Dr. Carlos Carvalhas. . . também comunista. Naquela altura ninguém percebeu que o PCP preparava o terreno para langar o principio da “unicidade sindical’”’. Indis- 71 Pensavel, portanto, se tornava haver um Ministério do Traba- tho conivente e décil. . . Muitas outras situagdes s6 agora podem ser compreendidas. O caso do jornalista Luis de Barros, por exemplo. Quando fui nomeado Ministro da Comunicacao Social convidei para Se- cretério de Estado da Informagio o jornalista que era nesse momento presidente do Sindicato de Jornalistas: Luis de Bar- ros. Convidei-o por definig&o de presidente eleito pelos cole- gas de profissao. Nessa altura fui informado, na minha quali- dade de Ministro, que Luis de Barros tinha pertencido a uma organizagéo da extrema-direita chamada “Jovens de Portu- gal’, informagao que confirmei. Igualmente me foi dito que Luis de Barros tinha “evolufdo” e era agora membro do Parti- do Comunista. Nesta ultima informacao nao acreditei. Hoje, porém, vejo Luis de Barros director do Didrio de Noticias e comeco efectivamente a perceber o que me pareceu simples oportunismo. Quando eu era Ministro e ele Secretério de Estado, o Com. Montez era o Director Geral da Informagao. Tivemos muitas reunides sobre a situagdo da Imprensa e ambos — Luis Barros e Com. Montez — eram apologistas de um forte controle e dominio por parte do Ministério sobre a Imprensa: eu, como Ministro, opus-me constantemente a esse dominio e defendi sempre a liberdade da Imprensa. Hoje sou acusado de “‘fascis- ta’’ e reacciondrio. Mas nas situagées concretas vividas nessa altura, eles — um como secretério de Estado e outro como Director Geral — 6 que se comportavam como fascistas ou, como classificar? , sociais-fascistas, o que afinal esté certo: tanto podiam ser “‘Jovens de Portugal’’ como membros do PCP. A GREVE DA LISNAVE®’ A falta de autoridade do Governo para diminuir ou contro- lar a anarquia que se verificava (e verifica) em todo o Pals ficou bem demonstrada com o caso da chamada greve da Lisnave. Tinha sido anunciada e 0 Governo tinha-a proibido. Os promotores da greve insistiam em realiz4-la. O assunto foi discutido em Conselho de Ministros e o Dr. Alvaro Cunhal, Cujas intervengdes eram sempre, embora partiddrias, modera- das e patridticas, disse a certa altura: ‘‘Se o Governo autorizar que os militantes do meu Partido se armem com matracas,** agreve da Lisnava é resolvida em 24 horas”. E evidente que aquela greve era um desafio as Forgas Ar- madas mas a verdade 6 que se realizou. Mais tarde o Dr. Carlos Carvalhas acusou 0 Partido Socialista de ser 0 fomenta- dor da greve da Lisnave. Mas constatava-se uma triste realida- de: as Forgas Armadas com “‘Chaimites’’ e G-3°° nao podiam reprimir manifestagdes ou greves selvagens, Isso tinha de ser feito com jactos de dgua, gases lacrimogéneos e matracas. Os soldados nao estavam preparados para isso. Alvaro Cunhal tinha portanto razdo, mas é pena que essa raZao circunstan- cial viesse do PCP e nao de um Governo normalmente consti- tuido. CASO PITEIRA SANTOS’° Com a minha nomeagio para Ministro da Comunicagao Social considerei que tinha de reunir 4 minha volta uma equi- pa com a qual pudesse trabalhar. Nao considerei o Dr. Piteira Santos com caracter{sticas para se integrar na minha equipa, embora Ihe reconhecesse altas qualidades para o desempenho 73 de cargo de responsdvel pela Cultura. Assim decidi afastar o Dr. Piteira Santos. De qualquer modo o Ministério da Comu- nicagao Social tinha sido tomado de assalto pelo Partido So- cialista. Na minha maneira de ver, a cGpula do Ministério devia ser apartidaria: foi esta uma outra raz3o que me levou a afastar o Dr. Piteira Santos. Nao tomei, porém, essa decisdo sem a discutir longamente com o 1.° Ministro Vasco Gongal- ves, 0 qual concordou com ela inteiramente. Na realidade o Dr. Piteira Santos n&o inspirava confianca politica e havia uma grande indefini¢do acerca dos “Centros 25 de Abril” por ele criados. Na altura constou até que ele teria sido afastado por presses do PCP. A decisdo foi minha e o Brig. Vasco Gongalves concordou com ela. CASO FEITOR PINTO O Min. Raul Régo, no ultimo dia do seu Ministério, demi- tiu o Dr. Feitor Pinto. Quando eu tomei posse do Ministério deixado pelo Dr. Raul Régo entendi que devia manter o Dr. Feitor Pinto nas suas funcdes. E entendi isso porque se trata- va de um funciondrio muito competente e a razdo apresenta- da pelo Dr. Raul Régo era para mim insuficiente. Com efeito, o Dr. Raul Régo afirmava que o Dr. Feitor Pinto teria feito um circulo a vermelho sobre uma fotografia de uma manifes- tagdo realizada em Londres contra a visita do Dr. Marcelo Caetano naquela cidade. Dentro desse circulo estava a cara do Dr. Mario Soares. Nao considerei isso grave pois que sendo o Dr. Mérig Soares Min. dos Negécios Estrangeiros ainda ndo tinha saneado dezenas de embaixadores e outros funcionérios diplomatas que ao longo de 48 anos de ditadura devem ter feito centenas de circulos idénticos em centenas de fotogra- fias idénticas. Nao me pareceu portanto grave e, considerando 74 as qualidades profissionais do Dr. Feitor Pinto, pedi para con- tinuar no seu lugar. Mais tarde, porém, ele proprio me pediu a Passagem a situac&o de licenca ilimitada com que o que eu concordei. Convidei ent&o para o substituir o Dr. Teixeira da Mota que, ainda hoje, em Abril de 75, se encontra no lugar. ENCONTRO SPINOLA-MOBUTU. O encontro secreto na ilha do Sal entre o Gen. Spinola e o Presidente Mobutu do Zaire foi longamente preparado pelo Ten. Cor. Dias de Lima. A intengao do Gen. Spinola era a de evitar para 0 processo de descolonizacao de Angola os mes- mos erros que tinham sido cometidos em Mocambique. Na realidade a descolonizagao estava a ser (e foi) mal executada. Com efeito Mogambique havia sido entregue a uma facgo, injusta e erradamente, pois havia outras faccdes com legitimi- dade para negociar. Pretendia-se fazer 0 mesmo com Angola. Alias, ainda hoje © Governo de Lisboa pretende entregar Angola a uma Gnica e determinada faccdo o que, necessariamente, leva a convulsdes internas. Concretamente o Governo de Lisboa pretende entre- gar Angola a facc4o comunista representada pelo MPLA.”' O Gen. Spfnola pretendia arranjar uma soluc3o de equilfbrio entre as varias faccdes, incluindo o MPLA e a populagao bran- ca a qual, atingindo cerca de 800.000 pessoas, tem também uma palavra a dizer. Daf 0 encontro com o Presidente Mobu- tu, ao qual assistiram os Tens. Cor. Rubin de Andrade, Dias de Lima e Firmino Miguel. Era perfeitamente legitima a preo- cupagao do Gen. Spinola em querer controlar a descoloniza- gao de Angola pois que, no caso de Mogambique, nem sequer 0 Ministro dos Negécios Estrangeiros Mario Soares e 0 Minis- tro da Administragao Interterritorial Almeida Santos af pude- 75 ram fazer fosse o que fosse. De facto, quando estes dois Ministros chegaram a Lusacka, j4 os Acordos para a indepen- déncia de Mocambique estavam praticamente elaborados por Melo Antunes e a Frelimo. Parece inconcebivel que assim tenha sido mas foi. Na verdade é de admitir que Melo Antu- nes tenha sido colocado perante uma derrota militar de facto, dado que as unidades militares de Mocambique se haviam rendido. E dificil negociar a independéncia de um territorio quando as tropas portuguesas estacionadas nesse territorio se recusavam a dar um tiro. Parece ter sido esta a situagdo en- contrada pelo Maj. Melo Antunes e, talvez por isso, ele tenha precipitado os acontecimentos. A ser assim, ele teria até con- seguido salvar mais do que a Frelimo poderia ter permitido. E triste dizé-lo, mas 0 que aconteceu em Mocambique e na Guiné foram duas derrotas militares. Com o 25 de Abril pre- tendiamos, de facto, dar a paz aqueles territérios, negociando com justi¢a e bom senso a sua independéncia. A paz acon- teceu, mas porque perdemos a guerra. De qualquer forma nao devemos esquecer que Melo Antu- nes tinha aderido a Plataforma de S. Pedro de Muel a qual, recordamos, preconizava a descolonizacio imediata. Sobre es- te ponto recordo que um dos argumentos utilizados pelos descolonizadores era o da “exportagao igndbil” da mao-de- -obra mogambicana para a Africa do Sul. Mais tarde, e depois de tudo consumado, Aquino de Bragan¢a, porta-voz da Fre- limo, afirmou o seguinte ao jornal Expresso do dia 10 de Maio: “E de bom senso pensar-se que nao se poderé acabar de um dia para o outro com esta exportaco de mao-de-obra. A Frelimo nao tem uma politica suicida. E preciso primeiro criar estruturas para absorver toda esta gente.” A Frelimo n&o tem uma “politica suicida”. .. E Melo An- tunes e Vasco Gongalves com que direito a podem ter? 76 Custa-me a acreditar, porém, no boato que correu insisten- temente em Lisboa — e em certos meios da Europa — de que a Frelimo teria comprado a “‘boa vontade” de certos negocia- dores portugueses. Mas quando as coisas sao feitas precipita- damente e sem dar explicagdes, correm-se estes riscos de in- terpretagao. . . 77 28 DE SETEMBRO “Escutal é a grande voz das multidées. Sao teus irméos, que se erguem! sdo cangéesw. Mas de guerra... e sdo vozes de rebate!” Antero de Quental Sei que o meu pedido de demissdo foi lido e analisado em Conselho de Ministros tendo o Brig. Vasco Goncalves critica- do o comunicado que eu |i aos microfones da EN. Ora, acon- tece que esse comunicado havia sido redigido e assinado pelo proprio Brig. Vasco Gongalves como se pode verificar na cé- pia inserta neste livro. ee Vou tentar reconstituir 0 que se passou na sexta-feira, 27 de Setembro de 1974. Com esta reconstituigéo entraremos nos bastidores dos acontecimentos que fizeram cair a mascara a estratégia do PCP. Era o dltimo dia da semana para os Ministros, visto termos estabelecido que, na semana seguinte, nao haveria reuniao do Conselho, para possibilitar alguns dias de descanso. O problema de fundo do Conselho de Ministros deveria ser a manifestacao da ‘‘maioria silenciosa’’. Sobre ela ja em Con- selho anterior os representantes dos partidos se tinham mos- trado apreensivos, sugerindo com veeméncia que a manifesta- 81 ¢40 nao deveria ser autorizada: liderava esta corrente o repre- sentante do Partido Comunista, Dr. Alvaro Cunhal. A sua argumentacao era basicamente esta: “’Trata-se de uma manobra da reacc4o”. “As informagdes recebidas dos camaradas comprovavam que eram os fascistas que se iam manifestar envolvendo abusi- vamente 0 nome do Presidente da Republica’. “Independentemente da atitude do Governo os camaradas tudo iam fazer para desmontar a manifestagao que tanto os preocupava’’. O Ifder comunista foi bem claro e coerente com os objecti- vos do seu Partido: demonstrou que tinha um servigo ou policia de informagées e que the era indiferente a decisdo que 0 Governo pudesse tomar. A sua vontade sobrepunha-se os- tensivamente a do Governo. O Dr. Salgado Zenha (PS) pronunciou-se no mesmo senti- do, no que foi apoiado pelo Ministro Melo Antunes. Eu contrariei a opiniao geral argumentando com a legalida- de democratica. Tratava-se de uma manifestacio legal, néo Poderia ser legalmente proibida. O Dr. Almeida Santos, Ministro das Colénias, referiu que a lei da reuniao permitiria com certeza uma interpretagao para colocar na ilegalidade a manifestagao, acrescentando o Dr. Zenha que, se fosse preciso, se Promulgaria um decreto-lei Para legalizar a proibic¢ao! ‘’Isso no tinha qualquer importan- cia — frisou o Ministro — 0 que era importante é que a manifestacdo fosse considerada ilegal e nao pudesse realizar- “i Estes dois Ministros, Drs. Zenha e Almeida Santos — am- bos habilidgsos e bem pagos advogados — sugeriam a “mani- pulacdo”’ da Lei. Consoante os interesses pol/ticos de cada um, se interpretava a legislacdo ou se faziam decretos! Nao admira portanto que o mesmo Dr. Salgado Zenha, Ministro da Justiga, tenha declarado a Imprensa portuguesa, 82 em célebre entrevista, que ‘‘ndo havia presos pol/ticos” e, mais tarde, continuando como Ministro da Justi¢a, declarasse a Imprensa estrangeira que “nunca tinha havido em Portugal tantos presos pol({ticos’’! Qual é a coeréncia deste Ministro? E porque nao se demite em vez de declarar que ‘sé sairé aos empurrées”’? (sic) O prof. Magalhaes Godinho, verrinoso como era habitual, referiu-se ao saneamento e, por razdes “pedagégicas”, consi- derou enfaticamente ser impensdvel e incoerente com o pro- cesso de democratiza¢ao em curso a projectada manifestagao. Talvez por qualquer complexo estranho todos seguiram a “palavra de ordem’” do I(der comunista. No entanto, tempos depois, o prof. Magalhades Godinho declarava 4 Vida Mundial: “A institucionalizagao fraccionada do Poder neste momento no nosso pafs constitufa obstdculo suplementar’. E mais adiante: ‘O que ha de mais grave na actuagdo comunista é a tendéncia ao compadrio ideolégico — a colocar nos diferentes lugares pessoas da cor ou aparentados”. E num outro passo: “Andam a brincar com a Patria”. O Prof. Godinho, apés a sua demissdo, fez estas e outras declaragées do mesmo género a Vida Mundial mas, enquanto ministro, foi um dos que se opés a manifestagao da qual, talvez, tivesse resultado mais autoridade para o Presidente da Repdblica. E com essa autoridade normal, o Prof. Magalhdes Godinho teria encontrado condigdes para ser ministro da Educacio. . . O Conselho de Ministros de quinta-feira acabou portanto sob o signo da proibi¢éo da manifestagao sem que, no entan- to, qualquer decisdo tivesse sido tomada. Convém referir aqui o problema da tourada organizada pe- la Liga dos Combatentes.’? O Dr. Alvaro Cunhal havia proposto que o Governo proi- bisse também a tourada. Tal proposta foi rejeitada tendo-se travado animado didlogo entre Cunhal e o Ministro da Defesa, 83 Ten. Cor. Firmino Miguel; 0 Ministro do Interior, Ten. Cor. Costa Bras; 0 1.° Ministro Vasco Gongalves e eu préprio. No decurso desta controvérsia interrompi a reuniao para atender uma chamada telefénica da Presidéncia da Republica. O Gen. Spfnola deu-me as seguintes instrucdes: “Comunique ao Conselho que o Presidente da Republica vai 4 tourada. Primeiro, porque é tradicional que o aconteci- mento seja presidido pelo Presidente da Republica e segundo, Porque sou combatente e nao deixarei de o ser. Julgo que a melhor maneira de desmistificar qualquer hipétese de reaccao é a comparéncia de alguns Ministros’’. Respondi ao Gen. Spinola que eu iria, bem como o Minis- tro da Defesa, tendo-me ent&o o Presidente da Republica recomendado para convidar também os Drs. Almeida Santos e Salgado Zenha. De regresso ao Conselho de Ministros comuniquei as instru- ges recebidas o que originou um certo gelo e a declaragao, em termos dolentes, do 1.° Ministro de que ele também iria & tourada “‘embora nada soubesse de touros”’. O Dr. Alvaro Cunhal chamou a atencao do Ten. Cor. Fir- mino Miguel e Ten. Cor. Costa Bras para o facto de que a reaccdo os tinha “‘debaixo da mira’’.”> Nesta altura, o 1.° Ministro “‘heroicamente” declarou que ele se sacrificaria, indo expor-se a tais atentados e representar o Governo. Esta infor- magao “‘piedosa” de Alvaro Cunhal é espantosa. Qual é a légica para os Combatentes pretenderem assassinar Firmino Miguel e Costa Bras? N&o teria passado, numa fraccao de segundo, pelo espfrito maquiavélico do {der comunista, a idéia fugaz de uma “‘inventona’? 74 O Ministro Miguel, apés defender a Liga dos Combatentes afirmando que nada tinha de reacciondria agora, nem de fas- cista no anterior regime, declarou que iria. Eu fiz idéntica declarago apés o que o Conselho de Ministros foi interrom- pido para recomegar na sexta-feira de manha. 84 Fui jantar 4 casa do Dr. Duarte da Cunha, chefe do meu Gabinete e, com as nossas mulheres, fomos ao Campo Peque- no’* onde ficdmos no camarote 78. Longe do camarote Pre- sidencial permitia-nos apreciar o que 14 se passava. Confesso que ia completamente seguro de que nada se passaria. Na tribuna Presidencial estavam o Presidente da Republica; 0 1.° Ministro; 0 Ministro da Defesa; o Ministro Almeida Santos; os generais Galvao de Melo, Jaime Silvério Marques e Almeida Viana, este na qualidade de presidente da Liga dos Combatentes, além dos membros das Casas Civil e Militar do Presidente da Republica, a saber: Ten. Cor. Dias de Lima; Ten. Cor. Almeida Bruno; Maj. Zuquete da Fonseca; Cap. Anténio Ramos e Com. Sameiro. Da tourada vou apenas falar de dois aspectos: 0 ambiente muito festivo em relacdo ao Gen. Spinola e tremendamente hostil em relacdo ao Brig. Gongalves. A praca estava cheia. Cantou-se o Hino Nacional, deram-se vivas a Spinola o qual, em cada “sorte’’,”® era ovacionado. No intervalo houve um pequeno beberete onde compareci com minha mulher. Era patente o isolamento dos dois clas: 1.° Ministro e ajudantes, e Presidente da Republica e ajudan- tes. Apés 0 intervalo, ao reentrar no camarote sozinho, o Gen. Spinola foi triunfalmente recebido. Pouco depois, ao dar en- trada o Brig. Vasco Goncalves, verificou-se uma vaia formida- vel e intensa. Era gritante a inimizade pelo Governo e por aquilo que Vasco Gongalves representava! A No fim da tourada novamente se deram vivas a Portugal e a Spinola. No exterior, entretanto, havia-se organizado uma pequena manifestaco com o s/ogan: ‘’Fascista escuta, o Povo esta em luta’”’; ““Abaixo a reaccdo’; ‘Viva o MFA”; etc.. Presenciei esta manifestacdo, mesmo no centro dela, junta- mente com minha mulher, Luisa Sobral e Filipe Vieira da 85 Rocha, tendo encontrado também como espectador o Dr. Francisco de Sousa Tavares. Além dos s/ogans, houve algumas agressdes e correrias e um pelotdo a cavalo da GNR ia pacientemente desmontando a manifestacdo. Um ponto considero, no entanto, muito importante: verifi- quei a presenga, como | {deres da manifestagao, de oficiais da Comisséo Coordenadora da Armada. Eram dois e convém di- zer que a manifestacdo havia sido organizada pela Unido dos Estudantes Comunistas. Igualmente vi, nao sei se como espec- tador se como manifestante, o Dr. Piteira Santos! Teria ele ido 4 tourada? Ou estaria a ‘‘analisar” o comportamento dos dois oficiais da Armada? Dezenas de pessoas estavam nessa altura a ser detidas. Mais tarde soube que eram cerca de 62 individualidades. Com estas andangas se passou a noite de 26 para 27 de Setembro. No dia seguinte, 27 de Setembro, cheguei ao Ministério, no Palacio Foz, por volta das dez horas. Logo a seguir recebi uma chamada telefénica do Gen. Spinola. A conversa foi a seguinte: “Ouga, falei hoje com o 1.° Ministro sobre a manifestagao Prevista para amanh&, mas convém que vocé saiba o teor da conversa. Informei-o que aceitei a manifestacdo, mas que o nao recebia mais nem despachava mais nada enquanto o 1.° Ministro, em nome do Governo, nao fizesse uma declaragao inequivoca esclarecendo o Pafs de que a manifestacdo estava autorizada. Por outro lado, os sindicatos e os partidos deviam acabar com os incitamentos a violéncia e a coaccoes fisicas e psicolégicas’’. Comuniquei ao Gen. Spinola a minha incondicional adesdo aquela linha e que tudo faria no Conselho de Ministros para a apoiar. O General referiu ainda que era natural que o 1.° Ministro me contactasse e que haveria 4 tarde uma sessdo do Conselho 86 a que ele presidiria, mas isso ‘‘s6 na hipétese de o Governo se manifestar inequivocamente na linha atrds referida’’. Logo apés esta conversa, fui para a Residéncia do 1.° Mi- nistro, na Rua da Imprensa, n.° 8, onde se realizaria o Conse- lho. Mesmo no momento da safda do meu Gabinete, o Com. Montés, Director Geral da Informac¢&o, mostrou-me um co- municado assinado pelo Gen. Galvio de Melo, membro da JSN, e por ele enviado ao Ministério para proceder 4 difusdo pelos 6rgaos de Informagao. Ao apresentar-me o documento disse-me que nao estava de acordo com a difusdo, mas que faria o que eu determinasse. Confesso que nem li 0 texto, mas de acordo com o princfpio de liberdade sempre por mim seguido e tratando-se, como se tratava, de um membro da JSN, ordenei a difusao do comunicado. Com estes problemas cheguei atrasado ao Conselho de Mi- nistros mas nada perdi pois, mais uma vez, se tinha discutido © saneamento e outras questées do estilo. Ao atingirmos a questaéo da manifestagdo, novamente os partidos se manifestaram contrdrios a sua realizago, bem co- mo 0 1.° Ministro. Foi ent&o lido um comunicado feito por Melo Antunes para ser emanado do Conselho de Ministros. O Dr. Zenha discordou e propés que o comunicado fosse pela Administragao Interna. Esta, por sua vez, transferiu para o Governo Civil de Lisboa a responsabilidade da sua difusao. Nesta altura, em que o comunicado andava de mao em mao como uma bola quente, fiz uma intervencao discordando do procedimento por incoerente, uma vez que o Governo contrariava a manifestacao. Vitor Alves, visivelmente perturbado, teceu varias conside- ragdes sobre a delicadeza do assunto e o prof. Magalhaes Godinho, apés afirmar -“‘vejo com muita perplexidade a mi- nha presenga no Governo”, concordou comigo que nao deve- ria haver comunicado. Perguntei se nao haveria votagao sobre a minha proposta, mas Vitor Alves disfargou e evitou a res- 87 posta. Chegara-se 4 hora do almoco sem nada se concluir a nao ser 0 comunicado redigido por Melo Antunes e a afirma- gao, por parte do 1.° Ministro e Vitor Alves, de que os parti- dos continuariam o seu trabalho para isolar a manifestacdo. Ja estava saturado de aturar tantos aprendizes pol(ticos e resolvi nado almogar em S. Bento. Dirigi-me ao Grémio Literd- rio onde almocei e, ali, encontrei um casal amigo que me informou que a filha e o genro nao viriam passar o fim-de-se- mana a Lisboa visto que, na estrada do Norte, estavam a revistar os automéveis. Naquele momento tomei isto como exagero. Na realidade tinham comecado as barricadas. . . 88 AS BARRICADAS Tinta de sangue, palida, orgulhosa, Em farrapos, na fria escuriddov. Buscando 0 grande dia da batalha, — E ela! E ela! A livida Canalha! Gomes Leal Fui para S. Bento a seguir ao almoco no Grémio Literario e, apds a votacado de um qualquer decreto-lei e resolugdes de rotina, abandonei o Conselho e passei pelo Ministério onde, com surpresa, me comunicaram haver as 19 horas outra ses- so do Conselho de Ministros, mas em Belém.’” Digo surpre- sa pois eu sabia que o Governo nio estava interessado nessa reunido do Conselho. Dirigi-me entao a Belém, visto que queria ter uma conversa prévia com o Presidente da Republica a propésito do comuni- cado do Gen. Galvao de Melo o qual tinha sido, afinal, proibi- do pessoalmente pelo 1.° Ministro. O Gen. Spfnola ainda nao estava, pois encontrava-se no Ministério da Coordenacio Interterritorial em reuni&o com os representantes de Angola e o respectivo Ministro Almeida Santos. Aguardei a chegada de Spinola e conversei com ele durante dez minutos, a seu pedido, antes de se iniciar a reuniado. Co- municou-me a sua decisdo de “‘despedir o Governo e ser mui- to duro para com o 1.° Ministro’. Ao perguntar-me das démarches da manifestacdo ficou surpreso e irritado ao saber que o Governo apenas aceitara a emisso do comunicado. 91 Este famoso Conselho de Ministros, realizado em Belém, presidido pelo Gen. Spfnola, iniciou-se as 19 horas com a Ppresenga de todos os Ministros excepto o Ministro dos Estran- geiros, o qual estava, porém, representado pelo Secretario de Estado dos Negécios Estrangeiros, Jorge Campinos. O Gen. Spinola abriu a sesséo informando-nos das razdes que o levaram a presidir aquela reunido. Em sintese, queria saber se o Governo estaria na disposi¢ao de tomar medidas imediatas para restabelecer a autoridade e a ordem, sem o que ele ver-se-ia obrigado a retirar a confiang¢a no Governo. Fez entéo uma detalhada exposi¢ao da sua andlise da situa- ¢40 nos varios aspectos: econdmico, trabalho, finangas e in- formaco. No decurso da exposi¢ao tocou os pontos-chave da proximidade do caos econémico, recessio e desemprego. Tu- do isto, declarou, derivado da falta de confianga dos investi- dores nacionais e estrangeiros perante o clima de anarquia em que se vivia. A responsabilidade maior da crise de confianca cabia sem duvida a informagao tendenciosa da Esquerda e Extrema-Esquerda, a qual gerava constante intranqiilidade nos esp/ritos e nas relacdes de trabalho. Um outro facto —e aqui atacou pessoal e nominalmente o PCP e>o seu lider Alvaro Cunhal, presente na reuniao: 0 excessivo avanco do seu Partido instalara o panico na popula¢ao, bem como o facto de nio se tratar de um partido Nacional, mas antes de um partido as ordens de Moscovo, ameacando-o de o colocar na ilegalidade. ‘O Gen. Spinola concluiu a sua declaragao afirmando que os Orgdos de informagao geravam constantemente um clima de propaganda eleitoral, incitavam as lutas das massas traba- Ihadoras com os patrdes, nunca tendo estes razao. O PCP confundia deliberadamente os patrdes que tinham sido privi- legiados pelo regime anterior com os que dele tinham sido vitimas de agresséo econémica. O importante — parecia — era acabar com os “patrées”’. A exposigao foi longa, firme e cal- 92 ma, tendo-se baseado em consultas a economistas alemdes e franceses. O 1.° Ministro Vasco Goncalves, em resposta, comegou por defender o Governo utilizando os seus argumentos preferidos, que foram afinal frases feitas, “chavdes” e palavras de ordem: os 48 anos de fascismo; o processo de democratizacio que estava em curso com pleno éxito; 0 processo de descoloniza- g&o, Gnico no mundo sem incidentes de monta(!? ); a uniao das forcas democraticas e do MFA contra a reaccao; as medi- das econdémicas que o Governo preconizava e eram suscepti- veis de fazer de Portugal um pafs desenvolvido(!? ); o seu grande amor a Patria e ao Programa do MFA o qual seria rigorosamente cumprido (!? ). Concluiu afirmando que a ma- nifestaco, “‘apesar’’ de ser da reaccdo, como se verificava pela vaia que ele sofrera na tourada, ir-se-(a realizar e tudo caminharia no melhor dos mundos. Quase entre cada dois argumentos de Vasco Goncalves, o Gen. Spinola interrompia-o, discordando e repondo o proble- ma da autoridade e das medidas imediatas. Finda esta interven¢ao, falou o Dr. Alvaro Cunhal, que defendeu a posi¢ao democratica do seu partido; a extrema moderagao com que estava a actuar; o infundado das acusa- ges do General; as provas evidentes que possu/a das mano- bras da reaccdo ligadas 4 manifestago da ‘’maioria silen- ciosa’’; o firme apoio aos processos de democratizacao e des- coloniza¢ao; o papel vivo e operante que até aqui tinha sido muito positivo da parte dos érgaos de informacao; etc., etc.. Falou a seguir o prof. Magalhdes Godinho, que referiu o seu desacordo com a interpretacao da situacao e informou o Presidente da Republica da sua decisado de se demitir. Consi- derando a posterior entrevista que o prof. Magalhaes Godinho concedeu a4 Vida Mundial (ja citada) ficamos hoje sem perce- ber com qual das “‘interpretagdes da situacdo0” o prof. nao estava de acordo, pois houve varias. . . 93 O Cor. Fernandes, apés declarar-se nao pol{tico partidario e anticomunista, mas admirador do Dr. Alvaro Cunhal, cujo Pprocedimento elogiou no tocante a bom-senso e permanente espirito de equipa, via com grande preocupagao a sua conti- nuacdo no Governo, uma vez que o Presidente da Repdblica nele nao depositava confianga. O Dr. Rui Vilar, mais uma vez e inexplicavalmente, referiu um relativo optimismo sobre as questées econdmicas. Devia certamente estar a pensar no ‘‘famoso” Plano Econémico de Emergéncia, feito por ele e por Melo Antunes, Plano que, mesmo antes de ser publicado, jé estava ultrapassado e conde- nado a nao se falar mais nele. . . A Eng.@ Maria de Lurdes Pintassilgo congratulou-se com o facto de Ihe serem permitidas “‘reformas de fundo” no seu sector, reformas de evidente cardcter socializante. Tinha ra- z4o para se congratular pois o Programa do MFA néo permi- tia reformas de fundo... Recordemos que o Programa diz sobre este ponto: ‘’. . .tendo em atengao que as grandes refor- mas de fundo s6 poderdo ser adoptadas no ambito da futura Assembléia Nacional Constituinte’’. Resolvi interferir a certa altura, apontando quase textual- mente o seguinte: “Considero que o Governo nao tem autoridade e jamais a teré enquanto néo for resolvido o problema do policentrismo dos centros de decisdo. Sem autoridade nao é possivel disci- plinar os drgdos de informacao. Estes, anarquicos, néo séo mais do que a imagem fiel da anarquia generalizada sobre a qual o pais vivia’’. O Dr. Almeida Santos também falou. Falou muito e pouco disse, como é préprio de um advogado habilidoso mas nao de um Ministro, sobretudo detentor da Pasta ministerial (pelo menos teoricamente) mais importante naquele momento. O Dr. Magalhdes Mota fez, como ja se vinha tornando habi- tual, uma sintese final, nada acrescentando de novo. 94 O Dr. Salgado Zenha manifestou-se com certa hostilidade disciplinada ao Presidente da Republica, exprimindo a opi- nigo dos seus “companheiros”. Nao esclareceu, porém, se se referia aos companheiros de “‘ctipula” ou aos de “‘base”’. Nao devia estar muito seguro disso pois, um pouco mais tarde, verificou-se uma grave ciséo no seu partido tendo o PS per- dido as suas bases marxistas. Finalmente todo o Conselho ouviu uma gravagao da emis- sio da Rédio Ribatejo, em que o povo era incitado a levantar barricadas de modo a evitar a manifestacao prevista para 28 de Setembro. Com a ambigijidade caracter(stica, o Conselho de Ministros acabou, e os Ministros comegaram a retirar-se. Todos ouviram a noticia das barricadas. Todos, excepto os que apoiaram abertamente o Presidente da Republica naquele Conselho, concordaram tacticamente com as barricadas. Mais tarde, todos eles tiveram medo, incluindo Alvaro Cunhal, que decidiu “‘descansar’’ numa determinada embaixada de um Pais socialista. A todos eles — afinal ministros circunstanciais — faltou uma qualidade elementar em qualquer estadista: a previsao. Eu havia ficado para o fim e, antes de sair, fui ao Gabinete Militar da Presidéncia, onde se encontravam, além dos seus membros inerentes, as seguintes pessoas: Gen. Galvao de Me- lo; Gen. Silvério Marques; Gen. Diogo Neto; Gen. Fontes Pereira de Melo; Ten. Cor. Firmino Miguel; Ten. Cor. Engré- cio Antunes; Ten. Cor. Xavier de Brito; Maj. Simas; Alf. Dinis de Melo e Castro, além de outros oficiais cujos nomes me nao ocorrem. O ambiente era muito tenso por causa das barricadas — que estavam a ser feitas em todos os acessos a Lisboa e em todo o pais — e por causa dos apelos a sua intensificagao e a intran- sigente vigilancia das massas populares. Aguardei na sala en- quanto os generais da Junta entravam para o Gabinente do Presidente da Republica.

Você também pode gostar