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A (des)construção da aparência

A vida é feita de aparência. Penso nisso, porque fui tantas vezes compelido a
construir um mundo falso, que se sugere seguro, feito para o reconhecimento ligeiro e
superficial. Penso nas vezes em que me abriguei em castelos de cartas, ou em casas
erguidas sobre a areia, aquelas que o Filho usou em suas metáforas. Tudo para manter a
casca, o jogo da sobriedade, do moralmente aceitável. Porém, embrulhado em coragem,
às vezes, abandono o jogo, o lado certo da rua, a sombra da marquise e me arrisco por
buscar o inusitado no asfalto quente. O que fazer quando não o encontro e as solas dos
pés já começam a arder? Estou sem identidade, desnudo frente ao caos. Será por que o
mundo está vendo a morte atravessar a inocência? Será por que não tenho a visão
necessária para ter fé? Este alimento e veneno. A fé alarga horizontes, mas também traz
infernos aos vivos. E eu não sei conduzir ambivalências maiores que as minhas.
E os escuros que carrego? Os escuros que qualquer um, porque humano, carrega?
O que fazer com eles? Sempre tão cercados numa ilha de fantasia, de onde só merecem
sair para as obras artísticas. Para os Nelson Rodrigues e as Hilda Hilst: estes que
chafurdam na alma enlouquecida dos personagens. Parece que a literatura, o cinema, o
teatro podem mostrar os avessos. A vida real não. A vida real quer otimismo, alegria, livros
e mensagens positivas. A vida real não gosta de pensar na inutilidade de tudo. Mas, e
quando os avessos se intrometem na aparência calma e alienada dos viventes? Quando
tenho que fugir da aparência para reconstruir uma nova identidade, seja por que a anterior
cansou-me, ou derruiu-se, ou me foi tirada? O que fazer quando não sei mais quem sou?
O que fazer naquele momento em que estou no limbo, na zona de fronteira?
Quando preciso assumir o novo exílio, e ainda a saudade do que fingi ser se amontoa em
mim? Eu sei qual o castigo que virá se eu olhar para trás, no entanto, estátua de sal, eu
insisto que meu espírito se mantenha preso à aparência. Largar tudo é penoso. Também
me pesa o não estar contente, o não estar em sintonia com os acasos do destino,
carregar por dentro a inquietação, a inadequação. Ser um discursador vazio.
Tantas tragédias reais desmoronando vidas e eu por aqui vagindo umas agonias
mínimas. Tanta sabedoria nos abnegados felizes que se interpõem no meu caminho e eu
por aqui, expelindo um pessimismo inócuo. Olham-me de alto de suas felicidades corretas
e decentes: um misto de piedade e condenação sai de suas bocas e desperta-me a
lembrança de que eu nunca li Poliana: nunca tive a coragem de fugir por este caminho.
A vida é feita de aparência. Se não participo do coro dominante dos contentes, é
porque me faltam técnica e talento. “Porco-poeta que me sei”, prefiro destruir e reconstruir
minhas cascas em paragens mais escuras.

Rubens da Cunha: escritor

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