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ARTIGO ARTICLE 679

Declaração de Helsinki:
relativismo e vulnerabilidade

The Helsinki Declaration:


relativism and vulnerability

Debora Diniz 1,2


Marilena Corrêa 3,4

1 Mestrado em Psicologia, Abstract The Helsinki Declaration is a crucial ethical landmark for clinical research involving
Universidade Católica
human beings. Since the Declaration was issued, a series of revisions and modifications have
de Brasília. SGAN 916,
Módulo B, Asa Norte, been introduced into the original text, but they have not altered its humanist approach or its in-
Brasília, DF ternational force for regulating clinical research. A proposal for an extensive revision of the Dec-
70790-160, Brasil.
2 Anis: Instituto de Bioética,
laration’s underlying ethical principles has been debated for the past four years. If the proposal
Direitos Humanos e Gênero. is approved, international clinical research involving human beings will be modified, further in-
C. P. 04554, Brasília, DF creasing the vulnerability of certain social groups. This article discusses the historical process in-
70919-970, Brasil.
volved in passing the Helsinki Declaration and the most recent debate on the new draft. The ar-
debdiniz@zaz.com.br
3 Departamento de Ciências ticle analyzes the new text’s social implications for underdeveloped countries, arguing for a po-
Humanas e Saúde, litical approach to the vulnerability concept.
Instituto de Medicina Social,
Universidade do Estado
Key words Helsinki Declaration; Research with Human Beings; Bioethics
do Rio de Janeiro.
Rua São Francisco Xavier Resumo A Declaração de Helsinki representou um marco fundamental para a pesquisa clínica
524, 7 o andar,
Rio de Janeiro, RJ
envolvendo seres humanos. Desde a promulgação da Declaração, uma série de revisões e modifi-
20559-900, Brasil. cações foram feitas ao texto original, mas nenhuma delas modificou seu espírito humanista ou
4 Centro de Estudos de Saúde
diminuiu sua força como instância reguladora da pesquisa clínica. Nos últimos quatro anos, no
do Trabalhador e Ecologia
Humana, Escola Nacional entanto, vem sendo debatida uma proposta de modificação dos princípios éticos da Declaração.
de Saúde Pública, No caso desta proposta ser aprovada, a pesquisa clínica internacional com seres humanos será
Fundação Oswaldo Cruz.
radicalmente modificada, aumentando a vulnerabilidade de certos grupos sociais. Neste artigo,
Rua Leopoldo Bulhões 1480,
Rio de Janeiro, RJ apresentamos o processo histórico de promulgação da Declaração de Helsinki e os mais recentes
21041-210, Brasil. debates em torno da proposta de modificação. Trata-se de uma análise das implicações do novo
mcorrea@ism.com.br
texto para os países subdesenvolvidos e da defesa da necessidade de uma consideração política
do conceito de vulnerabilidade.
Palavras-chave Declaração de Helsinki; Pesquisa com Seres Humanos; Bioética

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Antecedentes históricos mo o Tuskegee Study, ou os experimentos der-


matológicos conduzidos no presídio de Hol-
Em 1947, logo após o término da Segunda mesburg, fizeram com que Allen Hornblum,
Guerra Mundial, uma corte formada por juízes autor de Acres of Skin: Human Experiments at
dos Estados Unidos reuniu-se para julgar os Holmesburg Prison, lançasse as seguintes per-
crimes cometidos pelos médicos nazistas em guntas: “...por que tais processos ocorreram no
campos de concentração. Este julgamento, Pós-Guerra dos Estados Unidos e aparentemen-
mundialmente noticiado em função das atro- te não ocorreram em outras nações industriali-
cidades cometidas em nome da ciência por zadas? Por que os experimentos humanos com
médicos do Estado Nazista, resultou na elabo- populações vulneráveis ou institucionalizadas
ração de um conjunto de preceitos éticos para foram tão tardios nos Estados Unidos?...” (Horn-
a pesquisa clínica, conhecido como Código de blum, 1999:XV. Tradução livre). Uma das possí-
Nuremberg (Nuremberg Code, 1949). Infeliz- veis respostas a este fenômeno foi exatamente
mente, durante os primeiros vinte anos de a ilusão nutrida pelos pesquisadores norte-
existência do documento, as diretrizes éticas americanos de que a ciência médica seria uma
de Nuremberg não atingiram o alvo desejado, entidade pura, livre da perversão nazista ou da
ou seja, não foram capazes de sensibilizar os desigualdade social que caracteriza as nações.
médicos para o respeito necessário no uso de Sendo assim, o problema estaria na política e
seres humanos em pesquisas clínicas, uma vez não na ciência, no nazismo e não na democra-
que “...o julgamento dos médicos nazistas em cia, enfim, nos outros e não entre nós. Este des-
Nuremberg recebeu pouca cobertura da impren- caso ético da medicina norte-americana em fa-
sa e, antes da década de 70, o próprio código ra- ce das conquistas do Julgamento de Nurem-
ramente era citado ou discutido nas revistas berg se estendeu para grande parte da medici-
médicas. Pesquisadores e clínicos americanos na de países periféricos, fazendo com que o de-
aparentemente consideravam Nuremberg irre- bate sobre direitos humanos na pesquisa clíni-
levante para seu próprio trabalho...” (Rothman, ca fosse relegado a segundo plano.
1991:62. Tradução livre). Erroneamente, e co- Somente vinte anos depois da promulgação
mo viria a demonstrar a história das pesquisas do Código de Nuremberg, a possibilidade de
envolvendo presidiários e deficientes mentais mau-uso da pesquisa clínica foi considerada
nos Estados Unidos, subentendeu-se que o uma hipótese concreta para todos os médicos
controle ético proposto por Nuremberg dire- e pesquisadores, fossem eles nazistas ou de-
cionava-se apenas aos bárbaros pesquisadores mocratas. Essa lacuna de tempo parece ter si-
nazistas, nada tendo a acrescentar aos pesqui- do necessária para que as denúncias de maus
sadores comuns, aos cientistas humanistas en- tratos e imprudências, fora do contexto e da
gajados no avanço da ciência e da cura para as moralidade da guerra, fossem investigadas. Nos
doenças. Para os médicos e pesquisadores clí- anos 60, o caso da primeira epidemia da Sín-
nicos norte-americanos, por exemplo, o Códi- drome da Talidomida, que assolou inicialmen-
go de Nuremberg se referia a uma espécie de te a Europa Ocidental e que, logo em seguida,
má medicina ou mesmo a uma medicina do atingiu centenas de mulheres norte-america-
mal, típica e exclusiva do nazismo, distante da nas que se submetiam a ensaios clínicos para a
prática médica de países com tradição política liberação nacional da droga, impressionou a
democrática. O documento seria, portanto, an- opinião pública, fazendo com que as entidades
tes o resultado de um julgamento político que de controle de medicamentos passassem a con-
mesmo um tratado universal de direitos huma- siderar não apenas a testagem de eficácia das
nos no campo da pesquisa científica. drogas, mas principalmente a segurança de
Foi assim que, muito embora o Código de prescrevê-las para determinadas populações.
Nuremberg tenha declarado logo nas primeiras Calcula-se que mais de 20.000 mulheres, den-
linhas que, para participação em pesquisas tre elas 3.750 em idade reprodutiva, foram sub-
científicas, “...o consentimento voluntário do metidas a testes de eficácia da Talidomida nos
ser humano é absolutamente essencial e isto sig- Estados Unidos, e muitas delas sequer sabiam
nifica que a pessoa envolvida deve ter a capaci- que estavam participando de experimentos e
dade legal de consentir...” (Nuremberg Code, tampouco tinham consentido ser pesquisadas
1949:181), experimentos perversos e abusivos (Rothman, 1991). Até este período, o processo
envolvendo comunidades vulneráveis, tais co- para a regulamentação e aprovação de novas
mo minorias étnicas ou pessoas institucionali- drogas guiava-se mais pelo cálculo otimista dos
zadas, foram largamente desenvolvidos nos Es- benefícios coletivos do que mesmo pela análi-
tados Unidos durante os anos 60 e 70. Casos já se dos prováveis riscos individuais, uma lógica
paradigmáticos na história da bioética, tais co- bélica que ainda persistia no ethos científico do

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pós-guerra. Entretanto, para que qualquer mo- sentimento como uma salvaguarda legal, mas
dificação ética fosse eficaz, era preciso que se que este deveria representar uma compreen-
estabelecesse a diferença entre a figura do mé- são livre do sujeito pesquisado diante do expe-
dico clínico e a do pesquisador clínico, ou seja, rimento, uma idéia que hoje é consensual en-
que se delimitasse o campo de atuação da me- tre os bioeticistas. Em nome desta fragilidade
dicina assistencial e o da pesquisa clínica (Roth- do termo de consentimento e de um certo vá-
man, 1991). cuo ético que dominava a pesquisa científica
A sobreposição da figura do médico à do no período pós-Segunda Guerra, o autor suge-
pesquisador proporcionou o silêncio necessá- ria uma freqüência em torno de 1/4 do total dos
rio para o avanço da ciência médica, seja du- estudos publicados referentes a pesquisas en-
rante a guerra ou nas duas décadas após seu volvendo maus-tratos com humanos. Ora, os
término. Não se questionava a eticidade dos números e os dados de Beecher, além do óbvio
experimentos, uma vez que não se duvidava mérito denunciatório, tiveram um efeito secun-
das intenções curativas e até mesmo afetivas dário inesperado: demonstrou-se que a imora-
da prática médica. A pureza das intenções hi- lidade não era exclusiva dos médicos nazistas.
pocráticas do médico manteve-se inabalável, Foi assim que Beecher conseguiu uma proeza
fato que justifica o argumento de David Roth- de fazer inveja aos sensacionalistas modernos:
man de questionar o porquê de o debate ético trouxe o horror da imoralidade da ciência, dos
na pesquisa clínica ter se iniciado em torno da confins dos campos de concentração, para o
atuação de laboratórios e indústrias farmacêu- meio científico e acadêmico hegemônico.
ticas e somente depois ter sido transposto para
a classe médica (Rothman, 1991). Para essa
aproximação da medicina e da ética com a pes- A Declaração de Helsinki em debate
quisa clínica, e, em alguma medida, para o sur-
gimento da bioética como disciplina acadêmi- Foi nesse contexto de medo e dúvida com rela-
ca, a publicação do artigo de Henry Beecher, ção à herança deixada pelo ethos utilitarista da
Ethics and Clinical Research, foi de fundamen- guerra na pesquisa clínica que, em 1964, a As-
tal importância (Beecher, 1966; Diniz, 1999). sociação Médica Mundial (AMM), uma entida-
Foi paralelamente à publicação do livro de reguladora de todas as associações médicas
Bioethics: Bridge to the Future, de Van Rensse- nacionais, instituiu a Declaração de Helsinki,
laer-Potter (1971), que Beecher divulgou o arti- um documento isento de poderes legais ou
go que mais assombro provocou na comunida- normativos, mas que, pelo consenso conquis-
de científica mundial, desde o anúncio das tado, é, ainda hoje, a referência ética mais im-
atrocidades cometidas pelos médicos engaja- portante para a regulamentação de pesquisas
dos no nazismo. Beecher colecionava relatos médicas envolvendo seres humanos ( World
de pesquisas científicas publicadas em perió- Medical Association, 1997), a ponto de alguns
dicos internacionais envolvendo seres huma- autores sugerirem que a responsabilidade pela
nos em condições pouco respeitosas. Da com- mesma deva sair dos limites da AMM e esten-
pilação original de 50 artigos, Beecher publi- der-se para outras instâncias supranacionais
cou 22 relatos em que os alvos de pesquisa de caráter não meramente profissional, como
eram os tradicionalmente tidos como subuma- a Organização das Nações Unidas (ONU) (Gar-
nos: internos em hospitais de caridade, adultos rafa, 2000; Schüklenk & Ashcroft, 2000). O fato
com deficiência mental, crianças com retardo é que a Declaração de Helsinki representou a
mental, idosos, pacientes psiquiátricos, recém- tradução e a incorporação, pelas entidades mé-
nascidos, presidiários, enfim, pessoas interdi- dicas de todo o mundo, dos preceitos éticos
tadas de assumirem uma postura moralmente instituídos pelo Código de Nuremberg, defi-
ativa diante do pesquisador e do experimento nindo uma base ética mínima necessária às
(Beecher, 1966). Da análise destes relatos de pesquisas e aos testes médicos com seres hu-
pesquisas, uma das conclusões de Beecher que manos, pois, como sugere Francis Crawley e Jo-
ainda impressiona pelo vanguardismo foi sua seph Hoet, ambos pesquisadores do Comitê
crítica ao uso do termo de consentimento in- Europeu de Ética para a Pesquisa com Seres
formado como mera prescrição de rotina cien- Humanos, “...somente a Declaração de Helsinki
tífica: “...a idéia de que o consentimento foi ob- teve algo próximo de um reconhecimento uni-
tido assume pouca importância a não ser que o versal para a definição da prática ética na pes-
sujeito ou seu responsável tenham capacidade quisa biomédica...” (Crawley & Hoet, 1999:10.
de compreender o que está sendo feito...” (Bee- Tradução livre). Ao contrário de Nuremberg,
cher, 1966:1360). Ou seja, Beecher sugeria que que supõe-se ter sido um julgamento sobre o
não bastava o recolhimento do termo de con- passado de crimes dos médicos nazistas, a De-

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claração de Helsinki projetou-se para o futuro ciência Adquirida (AIDS), por exemplo, têm
como um guia ético obrigatório para todos os que assegurar aos participantes do experimen-
pesquisadores. Nestes quase quarenta anos de to o acesso ao método comprovado de trata-
existência, a Declaração sofreu uma série de mento, não importando se o mesmo está ou
pequenas modificações; todavia, nenhuma de- não disponível na comunidade ou país onde
las abalou seu espírito original de defesa e pro- está sendo desenvolvida a pesquisa (World Me-
teção dos direitos humanos de homens e mu- dical Association, 1997). Logo, em nome do ar-
lheres envolvidos em pesquisas clínicas. tigo 24, não podem ser desenvolvidas pesqui-
Em 1997, na reunião anual da AMM, a dele- sas com seres humanos que ignorem os trata-
gação da Associação Médica dos Estados Uni- mentos médicos já consolidados para determi-
dos apresentou uma proposta radical de modi- nada doença, conforme ocorreu no período do
ficação do texto vigente da Declaração de Hel- vácuo ético deixado pela urgência da guerra,
sinki, indicando uma nova redação do docu- quando a busca imediata pela cura das doen-
mento que, se aprovada, alterará por completo ças justificou rebaixamentos de critérios éticos.
o texto original (Crawley & Hoet, 1999). Dentre Entretanto, ao contrário do que está previsto
as propostas de modificação, algumas são con- neste artigo, a proposta da Associação Médica
sideradas particularmente perigosas para paí- dos Estados Unidos, ainda em discussão, suge-
ses pobres e com sérios problemas de saúde re o seguinte texto: “em qualquer protocolo bio-
pública, como é o caso do Brasil, além de re- médico de pesquisa, a todo paciente-sujeito, in-
presentarem um retrocesso ético em relação ao cluindo aqueles do grupo controle, se houver,
texto vigente. As reformulações definitivas se- deve ser assegurado que a ele ou a ela não será
riam decididas na reunião da AMM, em outu- negado o acesso ao melhor método diagnóstico,
bro de 2000, e os pronunciamentos nacionais profilático ou terapêutico que, em qualquer ou-
foram definidos e estruturados até março do tra situação, estaria disponível para ele ou ela”
mesmo ano. (WHO, 1999:20).
Na última reunião da AMM, em Tel Aviv, em Aparentemente, é uma tênue diferença o
1999, decidiu-se que, neste prazo adicional de que separa o “melhor método comprovado de
reflexão sobre a proposta de modificação da diagnóstico e terapêutica” do “melhor método
Declaração de Helsinki, algumas questões de- diagnóstico, profilático ou terapêutico que em
veriam ser consideradas prioritárias nas dis- qualquer outra situação estaria disponível”. Na
cussões nacionais para a reunião de Hamburgo verdade, o que há por trás desta aparente mu-
(Asociación Medica Mundial, 1999). Do con- dança semântica não é um mero jogo de adje-
junto de sugestões registradas no relatório da tivos, e sim o que deve ser a referência ética de
reunião, duas parecem ser particularmente controle e julgamento para a eticidade e a jus-
problemáticas para a regulamentação da pes- tiça das pesquisas envolvendo seres humanos
quisa internacional. A primeira delas, alvo de em todo o mundo. Para o texto proposto pela
importantes controvérsias nestes últimos anos, Associação Médica dos Estados Unidos, a refe-
diz respeito à modificação do artigo 24, em que rência de julgamento não deve ser o que a ciên-
se estabelece a garantia de acesso aos melho- cia pode fazer por determinada pessoa e sua
res métodos de tratamentos disponíveis aos doença, mas o que determinada sociedade ofe-
participantes de uma pesquisa clínica. As enti- rece para a pessoa doente. Segundo Robert Le-
dades brasileiras que se posicionaram diante vine, um médico da Universidade de Yale e tal-
da possibilidade de modificação da Declaração vez o principal defensor desta proposta de mo-
têm, de forma geral, se concentrado neste pon- dificação, o nó da discussão poderia ser resu-
to (Asociación Medica Mundial, 1999; Carta de mido da seguinte maneira: “...é necessário reco-
Brasília, 2000a). O segundo ponto da análise é nhecer com um certo pesar que há grandes de-
sobre a proposta de redefinição do conceito de sequilíbrios na distribuição de saúde entre as
vulnerabilidade, um pressuposto fundamental nações do mundo. Deve-se permitir aos países
para uma série de outras modificações tam- em desenvolvimento, que não dispõem de todos
bém discutíveis da Declaração. os bens e serviços para promover saúde que se
Segundo a redação ainda válida da Declara- encontram disponíveis aos habitantes das na-
ção, “em qualquer estudo médico, para todos os ções industrializadas, que desenvolvam os tra-
pacientes – incluindo aqueles do grupo de con- tamentos e as intervenções preventivas que este-
trole, se houver – deve ser assegurado o melhor jam ao seu alcance...” (Levine, 1999:532. Tradu-
método comprovado de diagnóstico e terapêuti- ção livre). Vale dizer, a eticidade de uma pes-
ca” ( World Medical Association, 1997:925), o quisa seria definida pelo grau de carência de
que significa que pesquisas clínicas que bus- cada sociedade, um argumento economica-
quem a cura para a Síndrome da Imunodefi- mente agradável que se reveste de um huma-

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nismo imperialista incapaz de abalar as estru- cidos ( World Medical Association, 2000). Al-
turas de desigualdade da humanidade, pois guns pontos cruciais, considerados duvidosos
parte-se da desigualdade para se reforçá-la ain- na proposta de revisão feita pela Associação
da mais. Médica dos Estados Unidos, foram postos à
Na última reunião da AMM, em 1999, repre- parte, mas outros, não menos importantes, fo-
sentantes de países latino-americanos, Espa- ram sugestivamente reescritos e realocados no
nha e Portugal, assinaram a “Declaración de Tel texto final, tendo ganhado com isso um certo
Aviv”, um documento no qual se comprome- vigor. O artigo, ainda vigente, sobre a diferen-
tem mutuamente a buscar saídas e alternativas ciação entre pesquisa médica com fins tera-
éticas para os problemas semelhantes que en- pêuticos e pesquisa médica com fins científi-
frentam no campo da saúde. O fato é que o ar- cos, foi retirado, assim como os artigos que nor-
gumento de que “...buscaremos constituir um teavam a inclusão de pessoas incapazes como
grupo de trabalho permanente como firme pro- sujeitos de pesquisa foram amplamente rees-
pósito de acrescentar e fortalecer a visão e a par- truturados. A novidade, no entanto, foi a inclu-
ticipação ibero-luso-latino-americana no seio são do artigo 24a, uma clara alusão à regula-
da Associação Médica Mundial...” (Associação mentação do CIOMS (Council for International
Médica Mundial, 1999:1), aponta para essa Organizations of Medical Sciences) acerca do
busca de inclusão de vozes periféricas na pau- retorno dos benefícios da pesquisa para a co-
ta temática da AMM. O Brasil, por sua vez, des- munidade onde a mesma será executada: “...a
de o início deste debate internacional, apre- pesquisa médica somente será apropriada se
senta uma postura crítica firme de oposição a houver a garantia de que as populações nas
qualquer forma de rebaixamento ético das ga- quais a pesquisa for conduzida sejam beneficia-
rantias universais da Declaração (Greco, 1999), das com os resultados da pesquisa...” ( World
haja vista o papel fundamental que exerceu de Medical Association, 2000:5).
crítica ao rebaixamento ético proposto pela co- Curiosamente, a discussão em torno do ar-
missão da ONU de pesquisa para a vacina da tigo que determinava a mudança quanto aos
AIDS, fato assim descrito por Ruth Macklin: padrões de julgamento para os critérios adota-
“...na reunião final em Genebra, a maioria dos dos para a pesquisa científica, isto é, se o me-
presentes apoiou o critério de que o nível de lhor tratamento disponível pela ciência ou se o
atenção e tratamento devem ser decididos em tratamento disponível pelo país e/ou comuni-
conjunto com os países anfitriões e patrocina- dade onde a pesquisa será realizada, foi con-
dores, mas não se deve ficar atrelado ao nível tornada. O novo texto proposto pela AMM sub-
‘mais alto possível’. Os participantes do Brasil, dividiu o artigo 24 em três partes com o seguin-
apoiados por outros presentes, discordaram. Re- te conteúdo nas duas últimas seções: “...24b:
clamaram o ‘melhor método terapêutico de efi- em qualquer estudo médico, todos os pacientes
cácia comprovada’, em conformidade com a De- – inclusive aqueles de grupo controle, se houver
claração de Helsinki...” (Macklin, 1999:56. Tra- – devem ter assegurados os métodos, os diagnós-
dução livre). Essa posição de crítica do Brasil ticos e as terapêuticas provadas e efetivas; 24c:
foi reforçada por ocasião do Fórum Nacional Isto não exclui o uso de placebo inerte em estu-
Declaração de Helsinki: Perspectivas da Socie- dos em que não haja diagnóstico provado ou
dade Brasileira, ocorrido em fevereiro de 2000, mesmo não exista terapêutica disponível...”
em Brasília, onde foi assinado o documento ( World Medical Association, 2000:5). De me-
Carta de Brasília, registro oficial do repúdio lhor método comprovado passamos agora para
brasileiro a qualquer forma de mudança do métodos com eficácias comprovadas, nova-
texto original que implique a possibilidade da mente uma aparente mudança semântica sem
adoção de metodologias diferenciadas, a de- maiores conseqüências. Contudo, uma análise
pender da situação sanitária dos países (Carta conjugada do artigo 24b com o artigo 22 “...no
de Brasília, 2000). A Carta de Brasília tornou-se tratamento de pacientes nos quais a profilática
o documento representativo da posição brasi- provada, o diagnóstico e os padrões de terapêu-
leira perante a proposta de modificação, tendo tica tenham se mostrado inefetivos, o médico,
sido remetida à AMM, em março de 2000. com total consentimento informado do pacien-
Desde a reunião de Tel Aviv, os debates in- te, deve ser livre para usar medidas ou novos
ternacionais sobre a ética na pesquisa envol- diagnósticos ainda não comprovados, se no seu
vendo seres humanos foram revigorados. Em julgamento isto oferecer esperança de salvar a
maio de 2000, a AMM propôs um rascunho de vida, restabelecer a saúde ou aliviar o sofrimen-
sua autoria, coordenado por Nancy Dickey, Ju- to...” ( World Medical Association, 2000:6) nos
dith Kazimirski e Kati Myllymäki, com a nítida leva a concluir que não há diferenças éticas en-
intenção de amenizar os confrontos estabele- tre a proposta feita pela Associação Médica dos

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Estados Unidos e o rascunho oficial da AMM. nos Estados Unidos seria um procedimento
Na verdade o que ocorreu foi um certo cuidado consensualmente considerado como eticamen-
com a nova redação. Sem sombra de dúvida, a te inaceitável, ao contrário da avaliação feita
obviedade do relativismo perverso sugerido quando as mulheres são africanas e pobres, já
pela Associação Médica dos Estados Unidos foi que, segundo D. Resnik, um defensor das me-
deixada de lado. Em nome de tratamentos ou todologias científicas diferenciadas entre paí-
diagnósticos considerados inefetivos, muito ses ricos e pobres, “...as situações variam de
embora se desconheçam as razões que darão acordo com o contexto social e econômico...”
suporte para esta inefetividade que permitirá o (Resnik, 1998:288). O fato é que não são apenas
uso de placebos ou tratamentos experimentais as mulheres africanas que são pobres, negras e
segundo o rascunho proposto pela AMM, o re- vítimas da desigualdade social que assola a hu-
sultado ético de ambos os textos será o mesmo. manidade. Essa, infelizmente, não é uma reali-
Em nome dessa semelhança dos pressupostos dade exclusiva de países como Uganda ou a
éticos entre os dois textos, o originalmente Tailândia, onde a epidemia da AIDS constitui
proposto pela Associação Médica dos Estados um grave problema de ordem sanitária e social.
Unidos e o mais recente da AMM, optamos por Na verdade, a proposta de modificação do
referenciar o texto que mais longamente vem artigo 24 é o que mais intensamente vem sus-
sendo alvo de discussões, haja vista que o ras- citando debates, porque condensa o que julga-
cunho da AMM ainda não foi amplamente ab- mos ser o pressuposto sociológico de todos
sorvido pela comunidade internacional, tendo aqueles que defendem a modificação radical
sido pouco debatido. do texto vigente da Declaração. Nas palavras de
Levine (1999:1852), “...para os países em desen-
volvimento, a Declaração de Helsinki tem pou-
Universalismo, relativismo e AIDS co a oferecer...”. Acrescida a esta pouca impor-
como paradigma tância que, segundo ele, a Declaração teria nos
países pobres, qualquer proposta de atuação
O fato é que não são todos os países pobres ou no campo da pesquisa médica deveria deixar
em desenvolvimento que defendem o univer- de lado “...visões idealizadas sobre o mundo...”,
salismo previsto pela Declaração ou mesmo sendo o espaço reservado para este romantis-
que possuem opiniões consolidadas sobre o mo os prefácios e anexos das declarações, lim-
assunto. Tendo a AIDS como paradigma, por pando-se, com isso, qualquer vestígio de idea-
exemplo, pesquisas já foram desenvolvidas lismo da redação final desses documentos (Le-
utilizando-se o argumento de que o princípio vine, 1999; Diniz, 2000). Segundo Levine (1999),
ético norteador deveria ser o “padrão local de Helsinki deve manter seus pés atrelados à úni-
tratamento” e não “o tratamento consolida- ca instância incontestável do mundo: o real e
do” (Connor et al., 1994; Lurie & Wolfe, 1997; suas estruturas perversas de dominação e opres-
McIntryre, 1998). Para os casos de se controlar são, onde diferença tornou-se sinônimo de de-
a transmissão vertical mãe-feto, o tratamento sigualdade. Ou como sugerem ironicamente Udo
já é amplamente difundido e aceito como a Schüklenk e Richard Ashcroft (Schüklenk & As-
melhor rotina disponível. Entretanto, em pes- hcroft, 2000), em International Research Ethics,
quisas desenvolvidas em países africanos e o novo texto da Declaração deve seguir a carti-
asiáticos, muito embora financiados por em- lha determinada pelos grandes laboratórios,
presas norte-americanos, não se utilizou tal possibilitando que a Glaxo-Wellcome determi-
medicamento ou ao menos a dosagem reco- ne o padrão local de tratamento pela imposi-
nhecida de eficácia, isto é, “o melhor método ção de preços inacessíveis aos países pobres.
comprovado de terapêutica”, sob a alegação de Seguindo a ironia de J. Cohen (1988, apud Mac-
que, para as mulheres africanas carentes de to- klin, 1999), estaríamos nos preparando para
do e qualquer tratamento, quaisquer benefí- substituir os pressupostos de inferioridade ra-
cios resultantes do experimento estariam além cial e social dos imperialistas do passado pelo
do que lhes é socialmente oferecido pelos sis- reconhecimento da autoridade da inferiorida-
temas de saúde de seus países. O que funda- de econômica no presente: “...a exploração dos
menta este argumento é o fato de que diferen- países industrializados dos recursos humanos e
tes sociedades necessitam de diferentes proto- naturais do mundo em desenvolvimento tem
colos de pesquisa e, portanto, de diferentes uma grande e trágica história. Nunca foi difícil
graus de julgamento ético (Diniz & Ibiapina, para os países economicamente ricos justificar
2000). Não utilizar o tratamento consolidado seus atos em nome, por exemplo, de uma supos-
em estudos com mulheres gestantes portado- ta inferioridade genética e moral dos explora-
ras do vírus da imunodeficiência humana (HIV) dos. Substituí-la por inferioridade econômica

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não faz a proposta menos ofensiva...” (Cohen, sigualdade de dignidade, ou, nos termos do
1988, apud Macklin, 1999:51. Tradução livre). novo texto, pela desigualdade de acesso ao tra-
tamento entre as mulheres ugandenses e as
francesas, obviamente não é de Levine ou de
Declaração de Helsinki: nenhum de seus companheiros convictos da
o prefácio do mundo urgência da modificação de Helsinki. Sair à
procura dos responsáveis pela desigualdade é
Paradoxalmente, e muito provavelmente por definitivamente uma tarefa sem sentido e que
argumentos diferentes dos nossos, Levine está não acrescentaria nada a este debate (Angell,
certo. O idealismo é o prefácio do mundo. O 1997). Isso, no entanto, não é o mesmo que
prefácio que anuncia o que está por vir, o que perguntarmos sobre quem se envergonha des-
poderá ser descoberto caso se trilhe um deter- se quadro mundial de diferença-desigual em
minado caminho. Levine e todos aqueles que que o uso de mulheres pobres, tal como vem
defendem que ético é a imobilidade das estru- ocorrendo nos ensaios clínicos africanos, é
turas, ou seja, o reconhecimento de que a imo- ainda indicativo dos valores norteadores desta
ralidade da desigualdade deva ser a realidade proposta de mudança. Se a tarefa de sairmos
representada pelos tratados internacionais, es- ao encontro do responsável pela desigualdade
tão certos por assumirem a cegueira e o como- é um exercício impossível, se não estéril, que a
dismo, características dos que gozam dos pri- introjeção da vergonha seja o ponto de partida
vilégios da desigualdade. Mas, felizmente, so- para o reconhecimento de que não é intrínseca
mente quando recorremos à ironia, um artifí- à natureza do mundo a pobreza para as mulhe-
cio dos subdesenvolvidos, é que Levine e seus res africanas ou a riqueza para inglesas porta-
companheiros acertam. O prefácio de que fa- doras do HIV. Esse relativismo econômico, an-
lam esses humanistas enviesados não é o mes- tes mesmo que sociológico, uma característica
mo prefácio de que todos nós necessitamos que domina os argumentos dos defensores do
para a defesa da dignidade humana, uma pro- novo texto, comprova apenas que Uganda gas-
posta que deve ser considerada indiscutível pe- ta pouco mais de oito dólares per capita em
la Declaração. O idealismo, ou como preferi- saúde e que o protocolo de controle da trans-
mos dizer, a certeza de que as coisas podem ser missão vertical pressupõe algo em torno de oi-
diferentes do que são, não deve ser relegado ao tocentos dólares. Nada além disso. Nada sobre
prefácio esquecido de Levine. A incorporação a natureza das africanas ou das francesas. Na-
do espírito da mudança, isto é, a certeza de que da sobre a desigualdade como algo caracterís-
o problema em discussão não é a solidariedade tico de certos grupos humanos em detrimento
com as mulheres ugandenses e seus filhos ór- de outros.
fãos, mas sim as estruturas sociais de domina- A verdade é que o reconhecimento de que
ção e de desigualdade que oprimem a humani- as ugandenses não nasceram vulneráveis e sim
dade e que fazem com que mulheres ricas li- que se tornaram vulneráveis, exige uma re-
vrem seus filhos do HIV enquanto as mulheres análise de alguns dos pressupostos fundamen-
pobres ofereçam altruisticamente suas vidas à tais do texto da Declaração. E isso serve tanto
ciência, é o que deve ser trazido para a mesa de para o texto vigente quanto para a proposta de
discussões entre nós. O realismo que necessita modificação. Vulnerável é toda a pessoa que se
ser representado pelos tratados internacionais encontra menos apta a se proteger. O conceito
com a força da Declaração de Helsinki não é de vulnerabilidade foi incorporado aos debates
este realismo vulgar, incapaz de provocar as es- bioéticos nos últimos anos, mais especifica-
truturas de interesses, sejam elas econômicas, mente na década de 90. O susto provocado pe-
farmacêuticas ou de qualquer outra ordem. lo amplo crescimento da epidemia causada pe-
Sendo assim, aceitar o fatalismo de que a lo HIV/AIDS entre populações social e econo-
ausência de tratamento é já a realidade das mu- micamente menos favorecidas parece ter sido
lheres em Uganda e por isso não há problemas um fato fundamental para a consolidação do
no uso de placebos, ou que o problema econô- conceito na bioética (Corrêa, 2000; Guilhem,
mico dos países pobres não é da responsabilida- 2000). No campo da pesquisa clínica, a Confe-
de dos cientistas e por isso justifica-se o rebaixa- rência da Organização Mundial da Saúde (OMS),
mento do patamar ético é o mesmo que relegar realizada em Genebra, em 1992, que resultou
para o campo do imutável a única saída possí- no livro Ethics and Research on Human Sub-
vel para o confronto verdadeiramente ético jects, foi um marco para a delimitação do con-
com o problema (Asociación Médica Mundial, ceito de vulnerabilidade nos estudos éticos en-
1999; Glantz et al., 1998; Levine, 1999; Troyen, volvendo pesquisas com seres humanos (Ban-
1999). É certo que a responsabilidade pela de- kowski & Levine; 1993). Neste livro, Sweemer-

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Ba (1993) e Mariner (1993) propõem a diferen- já que a morte das mulheres ugandenses é ine-
ciação entre populações vulneráveis e popula- vitável, seja ela ao menos oferecida pela ciên-
ções exploradas, uma sutil recategorização que cia. Esta é a parceria mórbida com a qual al-
os autores tiveram sérias dificuldades em sus- guns acreditam que a Declaração de Helsinki
tentar. A partir desse momento, formou-se o deveria compactuar: a parceria entre a curiosi-
consenso de que, apesar de não serem sinôni- dade científica do Primeiro Mundo e o abando-
mas, desigualdade e vulnerabilidade seriam no inevitável da pobreza. Essa é a solidarieda-
categorias muito próximas, especialmente no de que está por trás da preocupação humani-
campo da pesquisa científica, ainda que ins- tária que vem justificando os testes realizados
tâncias internacionais de debate ético tenham com uso de placebos em quinze países subde-
recentemente procurado esvaziar a força polí- senvolvidos nos últimos anos. Foi exatamente
tica e social do conceito, ao propor abandonar essa apartação histórica entre vulnerabilidade
“...o critério protecionista que define todos os e pobreza que fez com que as pesquisas sobre
países em vias de desenvolvimento como popu- a AIDS fossem feitas em países com sérios pro-
lações vulneráveis...” (Macklin, 1999:54. Tradu- blemas econômicos e sanitários. As 17.000 ges-
ção livre). tantes soropositivas da Etiópia, do Zimbábue,
Historicamente, subentendeu-se que os do Quênia ou da República Dominicana eram
vulneráveis seriam os deficientes mentais, físi- apenas mulheres pobres e com baixo nível de
cos, as crianças, os senis e os institucionaliza- educação formal, qualidades que não as defi-
dos de qualquer ordem, mas foram deixadas de niam nem protegiam como vulneráveis, segun-
lado todas as pessoas que se encontram em si- do o texto vigente da Declaração. A fragilidade
tuações de vulnerabilidade, como ocorre, por não necessita ser biológica nem tampouco o
exemplo, com as populações subdesenvolvidas constrangimento necessita ser legalizado para
(Diniz & Guilhem, 2000). Vulneráveis e subde- que as pessoas encontrem-se em situações de
senvolvidos são categorias apartadas para os vulnerabilidade, como acontece nos países
autores da proposta de modificação de Helsin- subdesenvolvidos. Por isso, não hesitaríamos
ki, ao contrário das Diretrizes Éticas Internacio- em afirmar que é urgente uma revisão crítica e
nais para a Pesquisa Envolvendo Seres Huma- politicamente comprometida da definição dos
nos, que os resgata aproximando-os definitiva- sujeitos participantes da pesquisa clínica e da-
mente. Ora, as mulheres ugandenses não pre- queles a serem considerados como vulneráveis.
cisariam ser deficientes mentais ou presidiá- Porém, esta necessidade de revisão de al-
rias para serem consideradas vulneráveis. A guns dos artigos do texto vigente da Declara-
vulnerabilidade na qual se encontram confina- ção não implica aceitar as propostas encabeça-
das é a vulnerabilidade social, fruto de contex- das pela Associação Médica dos Estados Uni-
tos de opressão e pobreza. E é exatamente a dos. O fundamental de qualquer processo de
vulnerabilidade dessas mulheres o que tornou mudança é que não se perca de vista o espírito
a pesquisa com elas uma proposta tão seduto- inicial que motivou a consecução do docu-
ra (Greco, 1999), uma vez que, como afirmam mento: a vergonha diante das denúncias dos
Glantz et al. (1998:39. Tradução livre), “...os ci- crimes cometidos pelos médicos-pesquisado-
dadãos de países em desenvolvimento encon- res durante o regime nazista. Com certeza, essa
tram-se comumente em situações de vulnerabi- distância de quase meio século entre Josef Men-
lidade em nome de sua falta de poder político, guele e nós talvez contribua para que a lem-
falta de educação formal, pouca familiaridade brança da vergonha se perca. Sim, afinal não
com as intervenções médicas, extrema pobreza e somos mais a humanidade que permitiu o nas-
ainda necessidade de saúde e nutrição...”. cimento e fortalecimento do nazismo. Acredi-
Mas, felizmente, a doença de que estas mu- tamos na democracia, no humanismo, temos
lheres padecem, a AIDS, não lhes é exclusiva. mecanismos internacionais e supranacionais
Para o controle do HIV, há tratamento e terapia de controle de abusos contra os direitos huma-
disponíveis. O que não há é cura para os efei- nos. Mas, paradoxalmente, ainda acreditamos
tos da pobreza, a única doença aparentemente que a desigualdade faça parte da natureza dos
incurável segundo a ironia de Glantz et al. humanos e não das sociedades. Desgraçada-
(1998). O que não há é justiça na distribuição mente, o princípio que iguala a diferença à de-
mundial de recursos. Por isso 90% dos novos sigualdade está tão naturalizado que facilmen-
casos de AIDS surgem nos países subdesenvol- te nos seduziríamos pelos argumentos da soli-
vidos, e boa parte deles resulta em morte indig- dariedade com a pobreza das mulheres, tal co-
na. A nova proposta de redação da Declaração mo inúmeros outros países subdesenvolvidos
proposta pela Associação Médica dos Estados o fizeram. Curiosamente, os principais parcei-
Unidos pressupõe exatamente este argumento: ros, e talvez os mais legítimos, desta proposta

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DECLARAÇÃO DE HELSINKI: RELATIVISMO E VULNERABILIDADE 687

de modificação do texto da Declaração são os por ricos e pobres, homens e mulheres, de que
próprios países onde as pesquisas serão reali- não há como vencer a desigualdade. A fim de
zadas. Vale citar trechos apaixonados, como o que a nova proposta de redação seja aprovada,
de Danstan Bagenda, pesquisador ugandês, é preciso que não apenas Levine e seus compa-
que proclamou em defesa dos experimentos: nheiros acreditem na natureza da pobreza das
...nós estamos tentando ajudar nossos doentes, mulheres pobres portadoras do HIV, mas prin-
não explorá-los... (Bagenta & Musoke-Mudido, cipalmente que os ugandenses, os tailandeses
1998:130). Tais declarações não demonstram a e todos os outros 13 países onde foram realiza-
eticidade dos procedimentos, e sim a que cus- das as pesquisas também estejam convictos de
to as estruturas de dominação se mantêm: o que a igualdade na diferença é uma utopia pa-
preço é exatamente a crença, compartilhada ra os prefácios.

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