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A experiência do corpo na dança butô: indicadores

para pensar a educação

Terezinha Petrucia da Nóbrega


Larissa Kelly de O. M. Tibúrcio
Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Resumo

Neste artigo pretende-se refletir, apoiado em alguns ensaios de


Merleau-Ponty e com base na fenomenologia, acerca do corpo e
das narrativas e saberes que nele se anunciam na dança butô —
modalidade que combina dança e teatro, criada no Japão na
década de 1950. De modo geral, o corpo foi compreendido
como elemento acessório no processo educativo, e essa compre-
ensão ainda é predominante no contexto atual. Nossa reflexão
tenta apontar outros caminhos de entendimento do corpo na
educação, a partir de uma atitude que busca superar o instru-
mentalismo e ampliar as referências educativas, ao considerar a
fenomenologia do corpo, e sua relação com o conhecimento
sensível, como aquela capaz de amplificar a textura corpórea dos
processos de conhecimento. Considerando a experiência do cor-
po na dança butô, apresentamos indicadores para pensar a edu-
cação, relacionados à experiência estética. Dentre eles destaca-
mos: a plasticidade do corpo, a sua produção incessante de
ressignificações, a sua abertura à inovação, a sua condição
mutante, a sua ruptura com a mecanização gestual, a sua não
dissociação entre homem e mundo, pensamento e sentimento.
Todos esses aspectos que reúnem o saber recursivo, integrativo
e criativo do corpo, são indicadores para pensarmos na educa-
ção, por tratar-se de uma nova possibilidade de leitura do real, a
partir da linguagem do gesto, em que dialogam saberes e práti-
cas inscritos na experiência corporal.

Palavras-chave:

Dança Butô — Corpo — Epistemologia — Educação.

Correspondência:
Larissa Kelly de O. M. Tibúrcio
R. Estefânia Dias de Melo, 11
59066-420 - Natal - RN
e-mail: lari@natal.digi.com.br

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p. 461-468, set./dez. 2004 461
The body experience in the Butoh dance: pointers to
reflect on education

Terezinha Petrucia da Nóbrega


Larissa Kelly de O. M. Tibúrcio
Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Abstract

Butoh has emerged as one of the genres in evidence within the


contemporary scenario of Japanese dance-theatre aesthetics. The
present text intends to reflect upon the body in the Butoh dance,
the narratives and knowledges that it reveals, drawing from some
of Merleau-Ponty writings and based on the phenomenological
stance. Considering this aesthetic scenario, we approach the issue
of rationality and its unfolding in education. Generally speaking,
the body has been understood as an accessory in the educational
process, and such conception is still predominant. Our reflection
attempts to point to other ways of understanding the body in
education, starting from an attitude that seeks to overcome
instrumentalism and to expand educational references by
considering the phenomenology of the body and its relation to
sensitive knowledge as capable of amplifying the corporeal texture
of the knowledge processes. Considering the body experience in
the Butoh dance, we present pointers to reflect on education
related to the aesthetic experience. Among them we highlight: the
plasticity of the body, its incessant production of resignifications,
its openness to innovation, its mutant condition, its rupture with
gestural mechanization, its avoidance of the man-world and
thought-feeling fragmentations, all those aspects that bring
together the recursive, integrative and creative knowledge of the
body are indicators to help us think on education, because their
represent new possibilities for reading the real starting from the
language of the gesture, effecting dialogues between knowledges
and practices in the corporeal experience.

Keywords

Butoh dance — Body — Epistemology — Education.

Contact:
Larissa Kelly de O. M. Tibúrcio
R. Estefânia Dias de Melo, 11
59066-420 - Natal - RN
e-mail: lari@natal.digi.com.br

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O butô é um dos gêneros da dança- lo no seu estado nascente. Um mundo que
teatro em evidência no cenário da estética existe anteriormente à nossa reflexão, como
contemporânea. Nasceu no ambiente da van- presença inalienável e inesgotável. (Merleau-
guarda japonesa, em fins da década de 1950, Ponty, 1994)
num contexto sociocultural marcado pela re-
pressão e agressão ocidentais. Seus espetácu- Partindo dessa proposição de que somos
los abordam temas como o nascimento, a corpos, e é essa a nossa forma de ser e de nos
morte, o inconsciente, a sexualidade, o grotes- relacionarmos no mundo, propomos uma incur-
co. Pretende-se neste artigo refletir acerca do são por esses contornos fluidos que se desenham
corpo na dança butô, sobre as narrativas e no espaço e tempo dos corpos na dança butô e
saberes que se anunciam nele, e discutir a que configuram elementos epistemológicos, éti-
questão da racionalidade que permeia essa cos e estéticos para pensarmos sobre o conhe-
dança. Num segundo momento, será feita a cimento sensível que se inscreve no corpo.
articulação desses saberes do corpo com os Adentrar esses contornos, que se reve-
saberes da educação. lam na gestualidade dessa dança, é considerar
O corpo aqui se destaca como condição o saber integrativo que é próprio do corpo, o
ontológica e epistemológica de o homem ser e seu saber não fragmentado, que imbrica a parte
estar no mundo. O corpo é afirmação da exis- no todo, a razão na emoção, a natureza na cul-
tência do ser. É como corpos, como sujeitos tura. É considerar, também, que o corpo nessa
encarnados que nos atamos ao mundo, que dança revela uma beleza que rompe com a me-
nele vivemos, que nele nos situamos, que co- canização gestual, isso porque há uma experi-
nhecemos. É como corpos que nos movemos ência de indivisibilidade entre a percepção e o
no mundo e que lhe atribuímos sentidos. Essa pensamento. Tal fenômeno é compreensível por
projeção do corpo no mundo é de natureza meio da ontologia do ser selvagem, proposta
sensível, dá-se por uma mobilização que, de por Merleau-Ponty, além de ser expressa comu-
uma só vez, num só instante, coloca-nos em mente por meio da obra de arte.
aderência com o objeto. Ao refletir sobre a obra de arte e a fi-
Esse corpo que conhece e que é con- losofia, Marilena Chauí (2002) discute a ques-
dição de existência não cria hierarquias entre o tão da criação como possibilidade de desfazer
pensar e o sentir, não os dicotomiza portanto. as amarras da tradição. Apoiando-se nas notas
É essa a noção de corporeidade que permeia de trabalho de O visível e o invisível, a filóso-
várias das obras de Merleau-Ponty (1980; fa retoma a idéia de diálogo entre esses sabe-
1992; 1994), segundo a qual se configura a res, filosófico e artístico, pois tanto o trabalho
tese do corpo fenomenológico e se estabelece do artista quanto o do filósofo exigem criação.
um trânsito entre sujeito e objeto, natureza e Não se trata da repetição em si, mas
cultura, irrefletido e refletido.
se esses trabalhos são criadores é justamen-
A fenomenologia trata do estudo das essên- te porque tateiam em redor de uma intenção
cias, mas de uma essência recolocada na de exprimir alguma coisa para a qual não
existência. Nessa direção, não há um sujeito possuem modelo que lhes garanta o acesso
absoluto que conheça a realidade, nem há as ao Ser, pois é sua ação que abre a via de
coisas em si mesmas, a realidade verdadeira. acesso para o contato pelo qual pode haver
O que há é um sujeito encarnado que está no experiência do Ser. (Chauí, 2002, p. 152)
mundo, que o visa e a ele se dirige, e o esfor-
ço da filosofia seria romper a nossa familiari- É o espírito selvagem, o espírito da
dade com esse mundo para reaprender a vê- práxis que amarra num tecido único experiência,

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criação, origem e Ser: “O Espírito Selvagem é técnica, pautando-se na disciplinarização do
atividade nascida de uma força — ‘eu quero’, conhecimento, traduzindo uma forma de pensar
‘eu posso’ e de uma carência ou lacuna que exi- unidimensional que não considera as relações
gem preenchimento significativo” (Chauí, 2002, entre o todo e as partes, reduzindo-as e simpli-
p. 153). Nesse movimento, o trabalho do artista ficando-as dentro uma única perspectiva. Esse
e o trabalho do filósofo podem ser realizados, tipo de pensar está infiltrado de forma conside-
numa não divisão entre sujeito e objeto, per- rável no campo da educação, ensinando-nos a
cepção e pensamento, como Ser Bruto: “separar, compartimentar, isolar, e não a unir os
conhecimentos” (Morin, 2000, p. 42).
Desatando os liames costumeiros entre as É, pois, essa racionalidade aberta que
coisas, o Ser Bruto abre acesso a uma rela- move o corpo na dança butô e se funda em
ção originária entre elas como diferenças itinerários mítico-imaginários, restaurando o sen-
qualitativas que se exibem e se interpretam timento de religação do humano e sua condição
a si mesmas enquanto família de cores, das corpórea, de religação dos saberes, de religação
texturas, dos sons, dos odores que reenviam entre o homem e o cosmos. Tal sentimento é
à substancialidade impalpável do que as faz importante para pensarmos em uma educação
vir a ser. (Chauí, 2002, p. 154) que, seja como campo produtor de saberes e de
aprendizado da cultura, seja como campo de
Essa comunicação entre o Espírito Sel- aprendizagem das relações de convivência entre
vagem e Ser Bruto constitui a natureza, a carne os sujeitos e de posicionamentos diante do
do nosso corpo, não se resumindo à mecaniza- mundo, possa ressignificar a cultura e fazer re-
ção dos músculos, gestos, movimentos. Esse ver os valores e as relações sociais estabelecidas.
enlace entre obra de arte e filosofia selvagem E faça também com que o elo entre o ser huma-
pode permitir ampliar os espaços de comunica- no, seu corpo, o corpo do outro e os processos
ção da experiência do corpo, da experiência de conhecimento se concretizem.
estética no campo da educação, ao abrir espa- Pensar numa educação nessa perspecti-
ço para que o corpo possa ser experienciado, va é incorporar aos saberes educativos um tipo
não se fixando em formas preestabelecidas ou de conhecimento mais integrativo, que dialoga
em um padrão de temporalidade. A beleza na com a ciência, com a arte e com o mito, aco-
dança pode então se revelar nessa dimensão lhendo dessa maneira o belo, o criativo e o inu-
sensível do corpo, que é ao mesmo tempo éti- sitado, que estão presentes na dança butô.
ca e estética e que é capaz de religar o homem
ao mundo da cultura e ao Ser Selvagem, Ser Experiência do corpo na dança
Bruto, ser da indivisão e da práxis. butô
A dimensão sensível do corpo não se
opõe à razão, mas opera por uma lógica O butô questiona o corpo como um ins-
presencial, dialógica, que une saberes, práticas, trumento e o afirma como um processo, como
atitudes, valores, modos de ser, de fazer e de condição de existência de um corpo em crise,
viver, articulando as antinomias. É uma razão que que tenta dissolver constantemente as sedimen-
admite as incertezas e as contradições. É uma tações que nele estão acumuladas. A matéria-
razão aberta, que abarca estratégias diversas de prima do butô é a incompletude e a precarieda-
reflexão da realidade, como o pensamento de humanas. Aqui, os códigos tradicionais são
mítico e a arte, por exemplo. É uma razão que desconstruídos, e a gestualidade dos dançarinos
rompe com a racionalização, que opera pela revela corpos que dançam num espaço e tempo
disjunção e especialização fechada e que ainda de contornos não nítidos, marcados pela inser-
se insere em grande parte na cultura científica e ção de descontinuidades dos movimentos.

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Esse conteúdo crítico da dança butô se O próprio Hijikata se referiu a esse en-
deve a uma atitude em face das mudanças que contro com o corpo. Nas suas palavras:
se processaram no Japão após a Segunda Guerra
Mundial: Não estou em busca da superficialidade
entre as pessoas. Prefiro ir fundo dentro da
O butoh1 surgiu de uma crise de identidade pessoa, me perder no seu corpo e assim
que marcou o Japão de pós-guerra. Numa encontrar com seu corpo e sua alma. Eu
época atormentada entre a obsessão pelo poderia, por exemplo, desmascará-lo dizen-
progresso — como uma revanche em rela- do-lhes: seus olhos são terríveis, você que
ção à desfeita da guerra — e a vontade de sempre viveu assim como todo mundo, e
voltar ao nostálgico Japão de antes da in- isso é porque você esteve sempre tão alie-
vasão ocidental, o butoh vai agitar a apatia nado da sua carne e do seu sangue. (Apud
reinante nos meios artísticos e marcar os Greiner, 1998, p. 88)
pontos de reflexão sobre a vida e a identi-
dade do corpo cultural. O ideograma “bu” Assim como o mito, a dança butô se
evoca as danças xamânicas, as miko da inspira em imagens arquetípicas que nos ligam
Antigüidade, realizadas pelas sacerdotisas ao sagrado, ao cosmos, que nos ligam a nossa
que rodopiavam para provocar chuva. Ou as origem, ao útero da Terra, da mãe. Kazuo Ohno,
tamafuri , movimentos vibratórios dos cor- um dos expoentes mais expressivos do butô,
pos dos xamãs em transe. (...) O caractere ressalta essa ligação do butô com o útero do
“toh” simboliza o fato de pisar a terra, uma universo. Ele diz que o lugar do butô, da sua
ação que consiste em chamar para si as dança, é na barriga da mãe (Luisi; Bogéa, 2002).
forças dos espíritos da terra ou ainda a Da mesma maneira que o mito, a dança
vontade de sacudir, acordar ou abalar o butô nos remete a um tempo que não segue uma
mundo. (Baiocchi, 1995, p. 11-12) cronologia linear de um antes distante, de um
agora imediato e de um depois que se distende
O corpo na dança butô é carne, não é para o amanhã, isolando passado, presente e
matéria, nem espírito, operando por uma tenta- futuro. Ela assume que carregamos o que nos
tiva de pensar sem pensamento, fazendo falar o antecede, carregamos a nossa ancestralidade ao
instinto e o desejo, conjugando a alma e o nosso redor e guardamos os mortos em nosso
corpo, ligando-os, fundindo-os de uma manei- corpo. Os gestos ancestrais estão em nós, estão
ra indissociada (Lins, 2002). A sua lógica é a de gravados em nosso corpo e necessitam ser ape-
um corpo que fala sem subterfúgios, refazendo- nas reconhecidos e explorados (Baiocchi, 1995).
se como uma experimentação rigorosa, ativando O corpo na dança butô é ambíguo e re-
as suas ações inteligentes. Uma carne em revol- vela o obscuro e o luminoso na nossa natureza.
ta, às avessas, que busca perverter os padrões de É um corpo mutante, que se metamorfoseia. É
um corpo domesticado. A dança realizada por um corpo que é sendo, que é em processo, que
esse corpo começa no coração. Um coração que respira com a vida-morte do mundo. É um cor-
em japonês é pensante. po que admite a sobreposição da vida e da
O butô trilha um caminho que tenta rom- morte, do nascimento e do envelhecimento,
per com o enfrentamento de si e se entrega à força admite uma contingência caótica, a possibilidade
do corpo próprio. É uma busca pelo reencontro de criação incessante de novos mapeamentos, a
com um corpo perdido, um corpo que deseja ser possibilidade de mudar a condição de existên-
ele mesmo, não mais rejeitado e saqueado, como
1. Nesta citação respeitamos a grafia usada pelo autor, diferente da que
diz Kayo Mikami (2003), dançarina de butô e dis- adotamos para este artigo, a forma butô, já dicionarizada (Dicionário Au-
cípula de Hijikata, um dos criadores dessa dança. rélio Eletrônico. Século 2001, 1999).

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cia desse corpo, sempre aberto, inacabado. estão apenas olhando o mundo exterior, mas sim
Seus gestos trazem também a dor do o próprio corpo. São olhos que “sabem olhar
corpo morto, tema central quando nos referi- através do corpo” (Luisi; Bogéa, 2002, p. 33). O
mos ao butô e que conduz à inovação de cada olho, portanto, no butô, não só está no rosto,
instante, a uma condição de vida que se refaz mas pode estar no centro da cabeça, no meio do
e se afirma na morte. Nesse sentido a morte é pé, nas costas ou na sola dos pés.
necessária e fundamental para que a vida pos- Para Merleau-Ponty (1980, p. 91), o olho
sa florescer, para que possamos renascer. é “aquilo que foi comovido por um certo impac-
Akaji Maro, criador da primeira com- to do mundo, e que o restitui ao visível pelos
panhia de dança butô, assim se refere ao cor- traços da mão”. Os limites de uma disjunção entre
po morto: “Primeiro, você precisa matar seu o visível e o vidente, o sensível e o sentiente, um
corpo para construir um corpo como uma fic- sujeito e um objeto aqui se diluem, pois há uma
ção maior. E você poderá ser livre naquele aderência que os liga, que os afirma no seu
momento” (Greiner, 1998, p. 22). O corpo entrecruzamento, na recursividade de um corpo
morto é capaz de desvendar outras possibili- que se entrelaça no mundo e é por ele entrela-
dades para o corpo que dança, gerando novos çado, na reversibilidade dos seus sentidos que se
tipos de organização. Degradar o corpo para comunicam, o tangível e o visível.
experimentar outras formas. Tentar esvaziá-lo A noção de reversibilidade é discutida
e libertá-lo dos automatismos que nele se em várias das obras de Merleau-Ponty (1980;
sedimentam, torna-se dessa forma uma busca 1992; 1994). Refere-se à comunicação que
constante desse corpo, quando nos referimos reúne o sensível e o visível e que os integra,
à dança butô. reduplicando um sobre o outro no corpo. Dessa
Todo o período de experimentação, maneira, quando toco algo, sou ao mesmo tem-
que fez o próprio Hijikata e os dançarinos que po tocado por ele; quando vejo algo, sou tam-
com ele trabalharam, ultrapassar seus limites, bém visto por ele. E não há que se separar o
tinha como objetivo testar a possibilidade de ir tangível do visível, pois podemos dizer que as
além. Além dos registros habituais da consciên- mãos, ao tocarem algo, visualizam um possível,
cia. O corpo morto parecia capaz de abrigar e os olhos só conseguem vislumbrar alguma
novos começos. Fazer renascer o corpo, a irmã coisa envolvendo-a num duplo enlace que a
morta. Viver outras vidas. Carregá-las o tempo perscruta e apalpa numa única ação. Nesse sen-
todo no corpo (Greiner, 1998, p. 92). tido, “não traduzo os dados do tocar para a
A dança butô revela um corpo que linguagem da visão ou inversamente; não reú-
pode “ver com a pele, respirar com o ventre” no as partes de meu corpo uma a uma; essa
(Deleuze; Guattari, 1996, p. 11). Nesse sentido, tradução e essa reunião estão feitas de uma vez
o interior do corpo permanece vedado ao órgão por todas em mim: elas são meu próprio cor-
da visão, aberto por uma faculdade do “sentir”, po” (Merleau-Ponty 1994, p. 207).
de um território incomum, de estados singulares É dessa maneira que compreendemos o
de percepção. corpo na dança butô, um corpo que se vê ven-
Os olhos na dança butô podem ser um do, um corpo que não demarca linhas divisó-
exemplo bastante interessante para pensarmos rias entre os sentidos e a inteligência, entre a
nessa possibilidade de deslocamento e amplifi- visão e o tato, entre a cabeça e os pés, entre
cação de um corpo que se refaz o tempo todo, uma interioridade e uma exterioridade, integran-
descolonizando-se e recolonizando-se em fluxos do um saber sensível que comporta uma infi-
contínuos de intensidade, numa criação sempre nidade de sentidos, possíveis de serem
móvel. Kazuo Ohno interroga-se sobre o que reformulados a cada acontecimento, inclusive
são os olhos para o corpo e afirma que eles não na Educação.

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Experiência do corpo e cepção e pensamento, sensorialidade e conheci-
educação mento. Indivisão essa extremamente relevante para
redimensionarmos os cenários de aprendizagem na
É possível encontrar várias referências à educação, retomando a experiência do corpo
experiência do corpo na educação. A cultura do como significativa para a leitura do mundo.
corpo faz parte do ideário da Escola Nova, por
exemplo, sendo “assegurada pela ginástica natural Considerações finais
e pelas viagens a pé ou de bicicleta, e acampa-
mentos e tendas” (Manacorda, 1999, p. 311). Esse O corpo na dança butô busca novos
discurso do corpo, fundado na instrumentalidade, acordos, busca romper com a estabilidade, com
na disciplina e na aprendizagem da civilidade a fixação em um espaço-tempo. Seu estado é de
encontrou solo fértil e foi construído no interior passagem, atualizando potencialidades invisíveis.
das diferentes disciplinas escolares, referendadas É um corpo mítico, poético, que integra esse
pelo ideário das pedagogias ativas. movimento paradoxal da morte-vida, criando,
De modo geral, essa compreensão do dessa maneira, conexões fluidas de espaços para
corpo como elemento acessório no processo a afirmação da vida. É um corpo livre, que não
educativo ainda é predominante, ao considerar- se prende a territórios fixos e integra o novo
mos que a perspectiva moderna empenhou-se em como condição de existência.
demonstrar os poderes da razão em conhecer o Considerando a experiência do corpo na
mundo e excluiu os saberes do corpo, tidos como dança butô, apresentamos indicadores para pen-
demasiado imprecisos para garantir o conheci- sar a educação, relacionados à experiência esté-
mento da verdade universal (Nóbrega, 1999). tica. A plasticidade desse corpo enquanto expe-
Nossa reflexão tenta apontar outros riência estética, a sua produção incessante de
caminhos de compreensão do corpo na educa- ressignificações, a sua abertura à inovação, a sua
ção, por meio de uma atitude que busca superar condição mutante, a sua ruptura com a mecani-
o instrumentalismo e ampliar as referências zação gestual, a sua não fragmentação homem-
educativas, ao considerar a fenomenologia do mundo, pensamento-sentimento, todos esses
corpo e sua relação com o conhecimento sen- aspectos que reúnem o saber recursivo, inte-
sível, como aquela capaz de amplificar a textura grativo e criativo desse corpo, são alguns dos
corpórea dos processos de conhecimento. elementos, que configuram esses indicadores
Ao comportar esse saber sensível, que para refletir acerca da educação, por tratar-se de
permite a comunicação entre os sentidos e o uma nova possibilidade de leitura do real, a
entrelaçamento do sujeito e do mundo, que per- partir da linguagem do gesto inscrita no corpo.
mite, ao mesmo tempo, a criação ininterrupta de Para a educação apresenta-se a tarefa de
novas possibilidades de se organizar, o corpo proceder a um reexame e reinvestimento dos
oferece indicadores para pensar em uma educa- modelos existentes, como condição para se criar
ção que ressalte a visão não dicotomizada do novos meios de expressão. Nessa trajetória, com-
humano. Um humano que aprende e ensina preendemos o estético como possibilidade de
criando, um humano que tem seus canais de co- despertar e reconvocar o nosso poder de expres-
municação sensoriais sempre à disposição para sar para além das coisas já ditas ou já vistas,
estabelecer relações de troca e produzir signifi- redimensionando as perspectivas objetivistas do
cados para o seu viver. conhecimento, retomando a experiência do corpo.
A experiência do corpo na dança butô, Nessa direção, a reflexão de Merleau-
por não reduzir o corpo à condição de objeto, Ponty continua desafiadora, ao convidar a uma
instrumento didático para a composição da obra atitude concreta de convivência poética com o
coreográfica, revela o ser da indivisão entre per- corpo, através do logos estético e da redescoberta

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do sensível; ao convidar a uma abertura ao mun- cesso contínuo e inconcluso, que não se fecha
do e às configurações desenhadas pelo gesto. Ao em sínteses acabadas, pois sendo um fenômeno
convidar, pela reversibilidade dos sentidos, ao corpóreo está sempre sendo refeito além de
enlace com a cor, forma, sonoridade, olhares e descerrar uma pluralidade de perspectivas de
imagens do mundo e dos outros corpos, perce- compreensão do mundo. Pode também fazer ver
bendo a profundidade do encontro e dos acon- a experiência do vivido sob outros prismas. Pris-
tecimentos. Ao convidar a tomar parte na história mas que vão ao encontro do belo, aguçando e
e na cultura por meio da experiência do corpo. ampliando os nossos sentidos e nos auxiliando
Acolher essa experiência estética do a criar novas paisagens cognitivas, que promo-
corpo na educação pode favorecer uma reflexão vam relações dialógicas entre os saberes, entre
sobre o próprio ato de conhecer como um pro- natureza e cultura, entre indivíduo e sociedade.

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Recebido em: 08.03.04


Modificado em: 19.05.04
Aprovado em:25.08.04

Terezinha Petrucia da Nóbrega é doutora em Educação pela Unimep (Piracicaba). Professora do Programa de Pós-
Graduação em Educação da UFRN. Professora do Departamento de Educação Física da UFRN. Membro do Grupo de
Pesquisa Corpo e Cultura de Movimento. E-mail: pnobrega@ufrnet.br.
Larissa Kelly de Oliveira M. Tibúrcio é mestre em Educação pela Unimep (Piracicaba). Doutoranda em Educação pelo
Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRN. Professora do Departamento de Educação Física da UFRN. Membro do
Grupo de Pesquisa Corpo e Cultura de Movimento.

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