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A06v30n3 PDF
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Resumo
Palavras-chave:
Correspondência:
Larissa Kelly de O. M. Tibúrcio
R. Estefânia Dias de Melo, 11
59066-420 - Natal - RN
e-mail: lari@natal.digi.com.br
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p. 461-468, set./dez. 2004 461
The body experience in the Butoh dance: pointers to
reflect on education
Abstract
Keywords
Contact:
Larissa Kelly de O. M. Tibúrcio
R. Estefânia Dias de Melo, 11
59066-420 - Natal - RN
e-mail: lari@natal.digi.com.br
462 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p. 461-468, set./dez. 2004
O butô é um dos gêneros da dança- lo no seu estado nascente. Um mundo que
teatro em evidência no cenário da estética existe anteriormente à nossa reflexão, como
contemporânea. Nasceu no ambiente da van- presença inalienável e inesgotável. (Merleau-
guarda japonesa, em fins da década de 1950, Ponty, 1994)
num contexto sociocultural marcado pela re-
pressão e agressão ocidentais. Seus espetácu- Partindo dessa proposição de que somos
los abordam temas como o nascimento, a corpos, e é essa a nossa forma de ser e de nos
morte, o inconsciente, a sexualidade, o grotes- relacionarmos no mundo, propomos uma incur-
co. Pretende-se neste artigo refletir acerca do são por esses contornos fluidos que se desenham
corpo na dança butô, sobre as narrativas e no espaço e tempo dos corpos na dança butô e
saberes que se anunciam nele, e discutir a que configuram elementos epistemológicos, éti-
questão da racionalidade que permeia essa cos e estéticos para pensarmos sobre o conhe-
dança. Num segundo momento, será feita a cimento sensível que se inscreve no corpo.
articulação desses saberes do corpo com os Adentrar esses contornos, que se reve-
saberes da educação. lam na gestualidade dessa dança, é considerar
O corpo aqui se destaca como condição o saber integrativo que é próprio do corpo, o
ontológica e epistemológica de o homem ser e seu saber não fragmentado, que imbrica a parte
estar no mundo. O corpo é afirmação da exis- no todo, a razão na emoção, a natureza na cul-
tência do ser. É como corpos, como sujeitos tura. É considerar, também, que o corpo nessa
encarnados que nos atamos ao mundo, que dança revela uma beleza que rompe com a me-
nele vivemos, que nele nos situamos, que co- canização gestual, isso porque há uma experi-
nhecemos. É como corpos que nos movemos ência de indivisibilidade entre a percepção e o
no mundo e que lhe atribuímos sentidos. Essa pensamento. Tal fenômeno é compreensível por
projeção do corpo no mundo é de natureza meio da ontologia do ser selvagem, proposta
sensível, dá-se por uma mobilização que, de por Merleau-Ponty, além de ser expressa comu-
uma só vez, num só instante, coloca-nos em mente por meio da obra de arte.
aderência com o objeto. Ao refletir sobre a obra de arte e a fi-
Esse corpo que conhece e que é con- losofia, Marilena Chauí (2002) discute a ques-
dição de existência não cria hierarquias entre o tão da criação como possibilidade de desfazer
pensar e o sentir, não os dicotomiza portanto. as amarras da tradição. Apoiando-se nas notas
É essa a noção de corporeidade que permeia de trabalho de O visível e o invisível, a filóso-
várias das obras de Merleau-Ponty (1980; fa retoma a idéia de diálogo entre esses sabe-
1992; 1994), segundo a qual se configura a res, filosófico e artístico, pois tanto o trabalho
tese do corpo fenomenológico e se estabelece do artista quanto o do filósofo exigem criação.
um trânsito entre sujeito e objeto, natureza e Não se trata da repetição em si, mas
cultura, irrefletido e refletido.
se esses trabalhos são criadores é justamen-
A fenomenologia trata do estudo das essên- te porque tateiam em redor de uma intenção
cias, mas de uma essência recolocada na de exprimir alguma coisa para a qual não
existência. Nessa direção, não há um sujeito possuem modelo que lhes garanta o acesso
absoluto que conheça a realidade, nem há as ao Ser, pois é sua ação que abre a via de
coisas em si mesmas, a realidade verdadeira. acesso para o contato pelo qual pode haver
O que há é um sujeito encarnado que está no experiência do Ser. (Chauí, 2002, p. 152)
mundo, que o visa e a ele se dirige, e o esfor-
ço da filosofia seria romper a nossa familiari- É o espírito selvagem, o espírito da
dade com esse mundo para reaprender a vê- práxis que amarra num tecido único experiência,
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criação, origem e Ser: “O Espírito Selvagem é técnica, pautando-se na disciplinarização do
atividade nascida de uma força — ‘eu quero’, conhecimento, traduzindo uma forma de pensar
‘eu posso’ e de uma carência ou lacuna que exi- unidimensional que não considera as relações
gem preenchimento significativo” (Chauí, 2002, entre o todo e as partes, reduzindo-as e simpli-
p. 153). Nesse movimento, o trabalho do artista ficando-as dentro uma única perspectiva. Esse
e o trabalho do filósofo podem ser realizados, tipo de pensar está infiltrado de forma conside-
numa não divisão entre sujeito e objeto, per- rável no campo da educação, ensinando-nos a
cepção e pensamento, como Ser Bruto: “separar, compartimentar, isolar, e não a unir os
conhecimentos” (Morin, 2000, p. 42).
Desatando os liames costumeiros entre as É, pois, essa racionalidade aberta que
coisas, o Ser Bruto abre acesso a uma rela- move o corpo na dança butô e se funda em
ção originária entre elas como diferenças itinerários mítico-imaginários, restaurando o sen-
qualitativas que se exibem e se interpretam timento de religação do humano e sua condição
a si mesmas enquanto família de cores, das corpórea, de religação dos saberes, de religação
texturas, dos sons, dos odores que reenviam entre o homem e o cosmos. Tal sentimento é
à substancialidade impalpável do que as faz importante para pensarmos em uma educação
vir a ser. (Chauí, 2002, p. 154) que, seja como campo produtor de saberes e de
aprendizado da cultura, seja como campo de
Essa comunicação entre o Espírito Sel- aprendizagem das relações de convivência entre
vagem e Ser Bruto constitui a natureza, a carne os sujeitos e de posicionamentos diante do
do nosso corpo, não se resumindo à mecaniza- mundo, possa ressignificar a cultura e fazer re-
ção dos músculos, gestos, movimentos. Esse ver os valores e as relações sociais estabelecidas.
enlace entre obra de arte e filosofia selvagem E faça também com que o elo entre o ser huma-
pode permitir ampliar os espaços de comunica- no, seu corpo, o corpo do outro e os processos
ção da experiência do corpo, da experiência de conhecimento se concretizem.
estética no campo da educação, ao abrir espa- Pensar numa educação nessa perspecti-
ço para que o corpo possa ser experienciado, va é incorporar aos saberes educativos um tipo
não se fixando em formas preestabelecidas ou de conhecimento mais integrativo, que dialoga
em um padrão de temporalidade. A beleza na com a ciência, com a arte e com o mito, aco-
dança pode então se revelar nessa dimensão lhendo dessa maneira o belo, o criativo e o inu-
sensível do corpo, que é ao mesmo tempo éti- sitado, que estão presentes na dança butô.
ca e estética e que é capaz de religar o homem
ao mundo da cultura e ao Ser Selvagem, Ser Experiência do corpo na dança
Bruto, ser da indivisão e da práxis. butô
A dimensão sensível do corpo não se
opõe à razão, mas opera por uma lógica O butô questiona o corpo como um ins-
presencial, dialógica, que une saberes, práticas, trumento e o afirma como um processo, como
atitudes, valores, modos de ser, de fazer e de condição de existência de um corpo em crise,
viver, articulando as antinomias. É uma razão que que tenta dissolver constantemente as sedimen-
admite as incertezas e as contradições. É uma tações que nele estão acumuladas. A matéria-
razão aberta, que abarca estratégias diversas de prima do butô é a incompletude e a precarieda-
reflexão da realidade, como o pensamento de humanas. Aqui, os códigos tradicionais são
mítico e a arte, por exemplo. É uma razão que desconstruídos, e a gestualidade dos dançarinos
rompe com a racionalização, que opera pela revela corpos que dançam num espaço e tempo
disjunção e especialização fechada e que ainda de contornos não nítidos, marcados pela inser-
se insere em grande parte na cultura científica e ção de descontinuidades dos movimentos.
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cia desse corpo, sempre aberto, inacabado. estão apenas olhando o mundo exterior, mas sim
Seus gestos trazem também a dor do o próprio corpo. São olhos que “sabem olhar
corpo morto, tema central quando nos referi- através do corpo” (Luisi; Bogéa, 2002, p. 33). O
mos ao butô e que conduz à inovação de cada olho, portanto, no butô, não só está no rosto,
instante, a uma condição de vida que se refaz mas pode estar no centro da cabeça, no meio do
e se afirma na morte. Nesse sentido a morte é pé, nas costas ou na sola dos pés.
necessária e fundamental para que a vida pos- Para Merleau-Ponty (1980, p. 91), o olho
sa florescer, para que possamos renascer. é “aquilo que foi comovido por um certo impac-
Akaji Maro, criador da primeira com- to do mundo, e que o restitui ao visível pelos
panhia de dança butô, assim se refere ao cor- traços da mão”. Os limites de uma disjunção entre
po morto: “Primeiro, você precisa matar seu o visível e o vidente, o sensível e o sentiente, um
corpo para construir um corpo como uma fic- sujeito e um objeto aqui se diluem, pois há uma
ção maior. E você poderá ser livre naquele aderência que os liga, que os afirma no seu
momento” (Greiner, 1998, p. 22). O corpo entrecruzamento, na recursividade de um corpo
morto é capaz de desvendar outras possibili- que se entrelaça no mundo e é por ele entrela-
dades para o corpo que dança, gerando novos çado, na reversibilidade dos seus sentidos que se
tipos de organização. Degradar o corpo para comunicam, o tangível e o visível.
experimentar outras formas. Tentar esvaziá-lo A noção de reversibilidade é discutida
e libertá-lo dos automatismos que nele se em várias das obras de Merleau-Ponty (1980;
sedimentam, torna-se dessa forma uma busca 1992; 1994). Refere-se à comunicação que
constante desse corpo, quando nos referimos reúne o sensível e o visível e que os integra,
à dança butô. reduplicando um sobre o outro no corpo. Dessa
Todo o período de experimentação, maneira, quando toco algo, sou ao mesmo tem-
que fez o próprio Hijikata e os dançarinos que po tocado por ele; quando vejo algo, sou tam-
com ele trabalharam, ultrapassar seus limites, bém visto por ele. E não há que se separar o
tinha como objetivo testar a possibilidade de ir tangível do visível, pois podemos dizer que as
além. Além dos registros habituais da consciên- mãos, ao tocarem algo, visualizam um possível,
cia. O corpo morto parecia capaz de abrigar e os olhos só conseguem vislumbrar alguma
novos começos. Fazer renascer o corpo, a irmã coisa envolvendo-a num duplo enlace que a
morta. Viver outras vidas. Carregá-las o tempo perscruta e apalpa numa única ação. Nesse sen-
todo no corpo (Greiner, 1998, p. 92). tido, “não traduzo os dados do tocar para a
A dança butô revela um corpo que linguagem da visão ou inversamente; não reú-
pode “ver com a pele, respirar com o ventre” no as partes de meu corpo uma a uma; essa
(Deleuze; Guattari, 1996, p. 11). Nesse sentido, tradução e essa reunião estão feitas de uma vez
o interior do corpo permanece vedado ao órgão por todas em mim: elas são meu próprio cor-
da visão, aberto por uma faculdade do “sentir”, po” (Merleau-Ponty 1994, p. 207).
de um território incomum, de estados singulares É dessa maneira que compreendemos o
de percepção. corpo na dança butô, um corpo que se vê ven-
Os olhos na dança butô podem ser um do, um corpo que não demarca linhas divisó-
exemplo bastante interessante para pensarmos rias entre os sentidos e a inteligência, entre a
nessa possibilidade de deslocamento e amplifi- visão e o tato, entre a cabeça e os pés, entre
cação de um corpo que se refaz o tempo todo, uma interioridade e uma exterioridade, integran-
descolonizando-se e recolonizando-se em fluxos do um saber sensível que comporta uma infi-
contínuos de intensidade, numa criação sempre nidade de sentidos, possíveis de serem
móvel. Kazuo Ohno interroga-se sobre o que reformulados a cada acontecimento, inclusive
são os olhos para o corpo e afirma que eles não na Educação.
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do sensível; ao convidar a uma abertura ao mun- cesso contínuo e inconcluso, que não se fecha
do e às configurações desenhadas pelo gesto. Ao em sínteses acabadas, pois sendo um fenômeno
convidar, pela reversibilidade dos sentidos, ao corpóreo está sempre sendo refeito além de
enlace com a cor, forma, sonoridade, olhares e descerrar uma pluralidade de perspectivas de
imagens do mundo e dos outros corpos, perce- compreensão do mundo. Pode também fazer ver
bendo a profundidade do encontro e dos acon- a experiência do vivido sob outros prismas. Pris-
tecimentos. Ao convidar a tomar parte na história mas que vão ao encontro do belo, aguçando e
e na cultura por meio da experiência do corpo. ampliando os nossos sentidos e nos auxiliando
Acolher essa experiência estética do a criar novas paisagens cognitivas, que promo-
corpo na educação pode favorecer uma reflexão vam relações dialógicas entre os saberes, entre
sobre o próprio ato de conhecer como um pro- natureza e cultura, entre indivíduo e sociedade.
Referências bibliográficas
Terezinha Petrucia da Nóbrega é doutora em Educação pela Unimep (Piracicaba). Professora do Programa de Pós-
Graduação em Educação da UFRN. Professora do Departamento de Educação Física da UFRN. Membro do Grupo de
Pesquisa Corpo e Cultura de Movimento. E-mail: pnobrega@ufrnet.br.
Larissa Kelly de Oliveira M. Tibúrcio é mestre em Educação pela Unimep (Piracicaba). Doutoranda em Educação pelo
Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRN. Professora do Departamento de Educação Física da UFRN. Membro do
Grupo de Pesquisa Corpo e Cultura de Movimento.