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A AQUISIÇÃO DO PORTUGUÊS COMO SEGUNDA

LÍNGUA
Tomando como referência um artigo publicado por Maria Augusta
Amaral e Amândio Coutinho em 2005, “Inovação, teoria e prática no
ensino bilingue de crianças surdas”, vou tentar falar um pouco sobre o
processo de aquisição do Português como segunda língua.

Em primeiro lugar, não podemos esquecer que, para se adquirir uma


segunda língua é necessário possuir uma primeira língua. E aqui reside o grande
problema das crianças surdas profundas pré-linguísticas. Enquanto as crianças
surdas, filhas de pais surdos têm acesso à língua gestual desde o nascimento, o
mesmo não acontece com as que são filhas de pais ouvintes. Como afirmam
Amaral e Coutinho, os problemas com estas crianças começam logo no berço.
Poucos meses depois do nascimento, o seu balbucio vocal, similar ao do das
crianças ouvintes, decresce e desaparece.
Esta ausência de balbucio traz uma grande alteração nos modelos de
interacção entre a mãe e a criança surda e a necessária interactividade vocal deixa
de seguir o percurso normal. Mais tarde, na idade em que o diálogo entre os pais e
a criança ouvinte a conduzem à interiorização das noções de causalidade, de
temporalidade e de eventualidade, noções que podem levar a criança a uma
reflexão generalizada sobre a realidade, o que dará coerência e sentido à vida,
permitindo o desenvolvimento da mente e das emoções, tal não se verifica com a
criança surda. A não existência de diálogo entre os pais ouvintes e a criança surda
vai privá-la da interiorização de todas essas noções. É por isso que, por volta dos 8
anos de idade, muitas crianças surdas apresentam um atraso na compreensão de
perguntas, utilizam palavras isoladas e não dão um conteúdo significativo às suas
respostas, possuindo uma noção deficiente de causalidade e raramente
projectando ideias sobre o futuro.
Esta questão da comunicação com os familiares mais próximos é, na minha
opinião, o grande problema das crianças surdas e não se conseguirá mudar a
educação destes alunos enquanto a formação e a intervenção não começar pela
família. É fundamental uma Escola de Pais, que lhes dê apoio e orientação, bem
como ferramentas que lhes permitam ajudar os filhos, dando continuidade ao
trabalho realizado na escola.
Actualmente as expectativas de resolução dos problemas são colocadas
quase exclusivamente na escola. Mas para esta os conseguir pelo menos
minimizar, teria que existir uma intervenção precoce para todos os alunos. Até
hoje, isso nunca foi conseguido. O serviço de intervenção precoce falta na maioria
das escolas e aquelas que querem avançar esbarram na actual lei portuguesa que
não permite que o ensino público receba crianças desde o momento em que
nascem, só a partir dos 3 anos de idade. No caso das crianças surdas, isso significa
um grande atraso na intervenção. Não há uma articulação entre a legislação
existente e assim, determinadas medidas são de certo modo inviabilizadas.
Deste modo, os alunos surdos continuam a chegar à escola sem uma
primeira língua adquirida, o que dificulta a aquisição da Língua Portuguesa, sua
segunda língua.
Vamos imaginar uma situação ideal, isto é, que todos os alunos surdos
adquirem a língua gestual precocemente. Como é que se deverá processar para
esses alunos a aquisição da segunda língua?
Segundo Amaral e Coutinho, a aprendizagem da Língua Portuguesa
também deve ser precoce. Se tomarmos como exemplo o que se faz na Suécia e nos
Estados Unidos, as crianças são desde tenra idade expostas à língua gestual, mas
esta não surge de forma isolada. Ao mesmo tempo que os educadores surdos
contam histórias a estas crianças em língua gestual, mostram-lhes imagens e o
registo escrito. A criança aprende a associar gesto e imagem, bem como a palavra
ou frase correspondente. As aprendizagens adquirem-se de uma forma lúdica e
informal.
Deste modo, as crianças vão evoluindo no domínio que têm das duas
línguas. Mais tarde, quando chegam ao primeiro ciclo já possuem conhecimentos
que lhes permitem ser capazes de reflectir sobre a sua primeira língua e
estabelecer correspondências gramaticais com a Língua Portuguesa, sua segunda
língua.
Esta reflexão metalinguística entre as duas línguas deverá continuar ao
longo de todos os anos de escolaridade, cada vez mais aprofundada. Um exercício
que poderá ser feito pelos alunos surdos é escrever textos simultaneamente em
glosa (LGP) e em Língua Portuguesa, comparando depois a estrutura da frase, a
forma como são utilizados os tempos verbais, etc.
Segundo Amaral e Coutinho, o docente de Língua Portuguesa L2 deverá:

 ser um modelo da Língua Portuguesa, devendo por isso ser ouvinte;

 possuir um bom conhecimento linguístico da Língua Portuguesa;

 dominar com fluência a Língua Gestual Portuguesa;

 possuir um bom conhecimento linguístico da LGP;

 ter capacidade de desenvolver a língua oral e/ ou escrita dos seus


alunos, tendo em conta a “ponte” que é necessário estabelecer entre as
duas línguas referidas;

 saber desenvolver o treino da leitura de fala.


Perante este perfil, a questão que se coloca é: Será que existem profissionais
com esta formação? Talvez, mas muito poucos. Nos últimos dois anos, a DGIDC
tem promovido cursos de curta duração (100 horas) para professores de Português
como segunda língua. É um começo, mas não chega, principalmente se
considerarmos que este profissional tem que ser fluente em LGP e dominar bem a
sua estrutura linguística.
Numa entrevista recente que fiz à Professora Doutora Maria Augusta
Amaral, fiquei a saber que, quando há uns anos atrás, o Instituto Jacob Rodrigues

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Pereira decidiu enveredar por uma educação bilingue, essa transição só aconteceu
após um ano de formação de docentes e técnicos. Durante esse ano, os professores
de Língua Portuguesa tiveram formação em LGP e em metodologias de L2,
enquanto os formadores surdos tiveram formação em pedagogia para poder
ensinar LGP.
A implementação do Português como segunda língua não é fácil, pois sem
uma formação e sensibilização adequadas corremos o risco de os professores
continuarem a dar as suas aulas como sempre o fizeram, só que com outro nome.
E em termos de língua, a utilizarem o Português gestualizado em vez da LGP.
Mas o mais grave de tudo e o que continuará a inviabilizar a obtenção de
melhores resultados académicos para os alunos surdos é a falta de uma verdadeira
intervenção precoce, seja na escola, seja na família. Esse é o pilar da educação de
surdos, sobre o qual tudo o resto assenta.

Bibliografia:
Amaral, Maria Augusta & Coutinho, Amândio (2005) “Inovação, teoria e prática
no ensino bilingue de crianças surdas”, in Orquídea Coelho (Coord.) Perscrutar e
Escutar a Surdez. Santa Maria da Feira: Edições Afrontamento.
tags: intervenção precoce, português segunda língua
publicado por Maria do Céu Gomes às 00:48
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6 COMENTÁRIOS:
Agradeço a resposta pronta e informada. Concordo em absoluto com tudo o
que diz. Mas infelizmente, ainda que se consigne na lei o direito à educação
bilingue, não vejo, na prática, mecanismos eficazes nesse sentido... Mas devagar...
Á LGP é a língua natural do Surdo, ainda que não seja a sua Língua
Materna, por isso, mesmo que no seio familiar ele não tenha tido exposição à LGP
creio que deve fomentar-se na escola a sua aprendizagem e contacto. Claro que
não podemos substituir a família, mas se começarmos logo ao nível do Ensino
Básico talvez ajudemos a formar indivíduos mais capazes e, sobretudo, mais
felizes.
Mais uma vez, agradeço a resposta e simpático mail . Comecei na LGP por
curiosidade e conveniência de serviço , mas estou cada vez mais interessada e
fascinada por esta língua.
Isabel Correia
Isabel Correia a 13 de Julho de 2009 às 22:18
responder | link do comentário | discussão

Concordo totalmente com o que aqui é dito pela Doutora Isabel Correia.
Creio que é por demais conhecida a minha posição a essa "treta" de L1 e L2,
relativamente às Pessoas Surdas.
O que eu considero importante é que todas as Crianças tenham acesso a
TUDO , como qualquer outra Criança, pois por muito que uma Pessoa Surda
domine a sua Língua Natural (Língua Gestual) não possuindo um mínimo de
conhecimentos básicos da Língua utilizada pela Sociedade Ouvinte que a rodeia (a
3
nível escrito e/ou falado...), JAMAIS TERÁ UMA AUTONOMIA PLENA NA SUA
VIDA.
Armando Baltazar a 14 de Julho de 2009 às 11:49
congelado | link do comentário | início da discussão

Discordo em absoluto. Há casos e casos, ninguém pode veemente impor a


autoridade e obrigatoriedade no acto de confiança e certezas no uso da LGP como
primeira língua natural da Pessoa Surda.
Tapo os ouvidos e os olhos por tamanha incoerência e discrepância, há
muito questiono o porquê de encobrir uma ampla DIVERSIDADE dentro da
própria Surdez - surdos gestualistas, surdos oralistas, surdos bilingues e
surdocegos - onde estão os estudos? Em lugar nenhum, senão trilharem os
mesmos caminhos já explorados e conhecidos.
Que tal irem um pouco mais longe? Observando crianças surdas de pais
ouvintes, conhecendo a sua autonomia e modos de vida, abrirem um pouco os
horizontes amplos.
Sou uma Cyborg a 14 de Julho de 2009 às 19:51
responder | link do comentário | discussão

Já aqui referi várias vezes que quando falo em Surdos neste blog, me estou
a referir aos surdos profundos pré-linguísticos que nunca tiveram contacto com o
som. Para esses a língua gestual é a sua língua natural e a primeira língua. Não há
dúvidas.
Isso não quer dizer que ignore que existe uma grande heterogeneidade de casos na
surdez. Claro que há. Para um surdo pós-linguístico, a língua gestual não é a
primeira língua, embora muitos a acabem por adoptar como tal.
Temos ainda os surdos severos, moderados, ligeiros… Mesmo dentro dos
graus mais profundos, há indivíduos com mais ou menos resíduos auditivos, o
que se reflecte em resultados e opções diferentes, tanto em termos de opção
linguística, como em termos de opção educativa.
Dentro de toda esta diversidade, cada indivíduo é livre de escolher o seu
caminho. Uns sentir-se-ão melhor com uma opção, outros com outra. Nem todos
se identificam com os valores da comunidade surda ou com movimentos como o
“Deafhood”, o “Deaf awareness” ou o “Deaf pride”, mas ninguém é obrigado a ir
por aí.
Não sendo surda, identifico-me com aqueles que encaram os surdos como
pertencendo a uma minoria linguística e cultural, com uma identidade e cultura
próprias. É uma posição, a minha. Isso não quer dizer que ignore outras
perspectivas. Este é um blogue aberto, podem-nos fazer chegar testemunhos de
outras experiências.
Maria do Céu Gomes a 15 de Julho de 2009 às 09:12
responder | link do comentário | início da discussão

Cara Cyborg...
Tem o pleno direitod e discordar... Eu próprio, surdo pós-locutivo e oralista
embora totalmente integrado na Comunidade Surda, por vezes entro em "choque"
com os meus pares relativamente a esta questão.

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Mas atenção NINGUÉM PODE DISCORDAR QUE UMA CRIANÇA
NASCIDA SURDA TENHA UMA LÍNGUA NATURAL´BASEADA NO VISUAL:

A LÍNGUA GESTUAL.

Cumprimentos.
Armando Baltazar a 17 de Julho de 2009 às 12:42
congelado | link do comentário | início da discussão

Acho que é importante a distinção entre língua primeira, língua natural e


língua segunda seja o que for que estivermos a considerar. Não posso esperar o
mesmo nível de português de um estudante erasmus (estrangeiro) e de um seu
colega nativo. A situação da pessoa surda é, como se lê no comentário anterior,
mais complexa, talvez se aproxime da do imigrante. è esperado a um romeno que
viva em Portugal que aprenda essa língua para conviver na sociedade em que se
insere, mas sem relegar a sua cultura e identidade.
No caso da pessoa Surda, a meu ver, acresce a complexa definição de uma
identidade colectiva: há diversos graus de surdez e há, sobretudo, várias maneiras
de a encarar. Já cheguei a ter uma aluna surda que, por oralizar e fazer a leitura
labial, se recusava a usar a LGP e prescindia de intérprete... Como para o caso da
LGP , em que é preciso reflectir, urgem de facto estudos de cultura e identidade no
âmbito da surdez

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