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DALAN BA DAME: RELATOS DE UM CONFLITO NA COMISSAO DA VERDADE EM TIMOR-LESTE Gabriela Lopes Batista’ (Ufsc) RESUMO O presente trabalho possui por objetivo analisar relatos colhidos pela Comissao de Acolhimento, Verdade e Reconciliagao (CAVR), inseridos na producao de video Dalan ba Dame, expresso em lingua tétum que significa Caminho da Paz, no periodo logo apés a saida dos indoné- sios de Timor-Leste, pafs onde permaneceram ao longo de 24 anos e caracterizado por uma série de violagdes dos direitos humanos. A partir da articulagao dos relatos notam-se as selegdes de meméria ara compor diversas narrativas, sejam elas individuais ou fornecidas no coletivo nos chamados seminérios comunitarios. Além disso, as marcas das memérias traumaticas a partir de repeticoes e permanén- cias sao relevantes para compreender o significado do periodo para as pessoas que emitem os relatos. Introdugdo Timor-Leste um pals asidtico que foi colénia de Portugal por um periodo que abrange desde o inicio do século XVI até a década de 1970. Este periodo foi caracterizado pelo pouco investimento da metrépole, tendo uma maior atengdo apenas ao longo do século XIX, porém com o intuito principal de explorar sandalo, café, bem como outros produtos e certificar a cobranga e o aumento de impostos dos liurais (reis). Com relacao as condigdes de Timor em diversos aspectos no século XIX, Pélissier (2007, p. 27) ilustra a partir do trabalho de Temminck (1849): Independentemente do tréfico de escravos que o governador e 08 oficiais deste estabelecimento (Dil) ainda praticam em segredo e na sombra, estes mesmos delegados praticam ali o comércio da madeira e do sandalo ede alguns outros emolumentos insuficientes que Portugal Ihes concede [..]. Os dois 14 | Vill Encontro Regional Sul de Histéria Oral PALAVRAS-CHAVE Timor-Leste, oralidade, meméri- as. Graduada em Historia, Pedagosia pés-graduada em psicopedagogia Pos-graduanda em Género © Diversidade na Escola pela Universidade Federal de Santa Catarina, Atuou em 2014 no Programa de Qualficagao Docente © Ensino de Lingua Portuguesa em Timor-Leste, trabalhando como professora em regime de co docéncia na Universidade Nacional de Timor-Leste. pequenos fortes esto. em mau estadoemal armados. Os Portugueses mantém muito poucas relagdes com os indigenas [.) As poucas relagées constatadas entre timorenses e portuguesesaolongodoperiododecolonizacaosejustificam, ‘em um primeiro momento, pelo pouco contingente vindo da metrépole, que acabava por se concentrar, em sua maioria, na cidade de Dili. Além disso, 0 fato do territério do pais ser montanhoso dificultou incursées e praticas etnocéntricas, como a catequizacao ou a imposicao da lingua portuguesa Para os administradores portugueses, a estratégia adotada pautou-se em acordos com os fiurais, reis de comunidades e destes arrecadar impostos e intervir no gerenciamento do cultivo, bem como garantir sua parte na colheita. 0 século XIX traz consigo a intensificagao do dominio. portugués na colénia e a partir desse processo comegam a surgir divergéncias nos acordos entre portugueses e timorenses. Os principais motivos paratais seriam otrabalho forgado a que timorenses foram submetidos, aumento da finta, imposto cobrado dos reinos e a imposicao do cultivo do café, bem como o compromisso de oferecer 20% da colheita aos portugueses (DURAND, 2009, p. 78). A partir das divergéncias conflitos podem ser identificados como forma de reprovagao do sistema colonial e da exploracao dos recursos que passa a vigorar. O levante contra 0 regime colonial mais conhecido é o de Manufahi, um dos distritos de Timor-Leste. Apés a instauragao da republica em Portugal, em 1910, a finta aumenta de forma consideravel, gerando descontentamento em /iurais, Dom Boaventura, liurai de Manufahi, organiza um levante no ano de 1912, em sequéncia a um levante anterior organizado por seu pai, mas é derrotado e capturado pelas tropas portuguesas. 0 século XX tem inicio com os conflitos coloniais, mas também é marcado por uma série de outros decorrentes de outros fatores. Em 1941, australianos e holandeses ‘ocupam Timor a fim de evitar a entrada do exército japonés no periodo da Segunda Guerra. A estratégia falha visto que os japoneses entram no pais no ano seguinte. Portugal, que vivia um regime ditatorial, manteve-se neutro com relacéo a guerra, fator este que fez com que os portugueses em Timor reagissem de forma passiva, o que gerou protesto dos timorenses que estabeleceram ages contra os japoneses (DURAND, 2009, p. 105). A década de 1970 é marcada pelo inicio do periodo mais emblematico no pais. Com a Revolugao dos Cravos em Portugal, movimento que em 1974 depés o regime ditatorial, tornam-se crescentes as movimentagées das ainda entao colénias para a conquista da independéncia. Em Timor-Leste sao criados partidos politicos, com destaque para a Unido Democratica Timorense (UDT) e a Associagao Vill Encontro Regional Sul de Historia Oral | 15 Popular Democratica de Timor (ASDT) que posteriormente torna-se Frente Revolucionaria de Timor-Leste Independente (FRETILIN). As divergéncias entre os partidos com relagao a independéncia do pais, bem como fatores secundarios relacionados a esta acabaram por desencadear uma guerra civil em 1975, Aproveitando-se do momento de instabilidade politica, os indonésios invadem Timor-Leste com o objetivo de integrar o pafs &Indonésia, Segundo o Relatério da Comissao de Acolhimento, Verdade e Reconciliagdo (2008, p. 19), os indonésios usaram a ameaga do comunismo como pretexto para a invasdo, em um contexto internacional de Guerra Fria. Como os Estados Unidos da América se organizavam para conter 0 comunismo, apoiaram e deram o aval para que a ocupagao indonésia se concretizasse. Por um perfodo de vinte e quatro anos, os indonésios permanecem em Timor-Leste na tentativa de anexar efetivamente o territério 4 Indonésia. Em 1976, 0 presidente indonésio Suharto assina a lei que formaliza o "Acto de Integragao de Timor-Leste pela Indonésia’, e, apesar deste nao ter sido reconhecido por Portugal e pela Organizago das Nagdes Unidas, nao fez com que os indonésios deixassem o territério ou reconhecessem qualquer direito a autodeterminacao timorense. A integragao referida foi realizada de forma que nao fosse possivel existir uma identificagao ou um processo sem violéncia Segundo Anderson (1993, p. 03), a violéncia foi utilizada em grande escala, seja em campos de concentragéo ou nos povoados que foram bombardeados, além do uso de napalm, e isso ndo gerou uma contrapartida para o que o autor nomeia como “verdadeiros indonésios”. Dessa forma, na auséncia de um processo de integragao que pensasse © timorense a partir da ocupagao como indonésio e a forte presenga da violéncia permitiu o desenvolvimento e 0 fortalecimento de uma resisténcia armada e diplomatica, que atuou ao longo dos vinte e quatro anos para que o pais fosse independente, e para também que cessassem mortes causadas pela violéncia ou por fome e doengas, causas estas decorrentes do conflito. No ano de 1999, apés anos de articulagao de forcas armadas e politicas timorenses ocorre um referendo instituido pela Organizagio das Nagdes Unidas para que os timorenses votassem pela integragao ou nao do territério & Indonésia. Mesmo com a grande pressdo de milicias organizadas pelos indonésios a maior parte da populago votou pela independéncia, Com o antincio o governo indonésio é convidado a se retirar, e, a partir do uso de milicias, causa uma ultima destruigao em massa onde a maior parte da estrutura do pais ¢ derrubada e/ou incendiada. Além disso muitas mortes e violagdes so registradas nesta derradeira aco indonésia. 16 | Vill Encontro Regional Sul de Histéria Oral Conquistada a independéncia, surgem outras preocupacées com relagao ao novo pais. Muitas pessoas perderam familiares, foram alvo de violéncia fisica e psicolégica, mulheres foram violentadas. Os timorenses e as organizagdes que apoiavam o novo pais preocupavam- se em promover uma sensagao de maior estabilidade no mesmo, e para isso era necessario que se investigasse ‘os crimes cometidos e as necessidades emergenciais do momento. A primeira preocupagtio de muitos activistas dos direitos humanos timorenses foi de como ajudar a enfrentar a situagdo de emergéncia humanitéria gerada pela violencia de Setembro/Outubro (1999). Depois de criados os programas de socorro humanitério, em 2000 os activistas voltaram-se para a questo dos crimes do passado e do legado do conflito prolongado. Houve preocupagdes manifestadas relativamente a um possivel reacender sobretude nocontextodaquasecompleta impunidade de que beneficiavam o perpetradores dos iqualmente preocupagdes desenvalver,a longo prazo, ra de respeito pelos direitos humanos ¢ pelo Estado de direito, numa sociedade ha muito sitada de medidas nestas matérias (CAVA, 2006, p. 11). Tendo em vista os questionamentos levantados, a Organizagdo das Nagdes Unidas, através da missdo desempenhava no pais denominada United Nations in East Timor (UNTAET), cria no ano de 2001 a Comissao de Acolhimento, Verdade e Reconciliagao (CAVR). A Comissao, apés sua criagdo foi reconhecida pela Constituicao, em um mandato inicial de dois anos, posteriormente prorrogado até outubro de 2005, e tendo como principal objetivo a investigagdo das violagdes cometidas pelos indonésios no. perfodo que estiveram em Timor-Leste. Caminho da Paz (Dalan ba Dame) © telatério da Comissdo de Acolhimento, Verdade e Reconciliagdo recolheu na abrangéncia de todo o territério timorense depoimentos que tratam do periodo de ocupago indonésia, mas também dos acontecimentos que a precederam, ou seja, 0 conflito civil instaurado por partidos politicos timorenses e até de agdes que remetem ao periodo colonial. Entretanto, devido a violéncia da ocupacao indonésia e pelo fato de amaior parte dos direitos humanos terem sido violados neste periodo, a grande parte dos depoimentos trata dessa tematica. Vill Encontro Regional Sul de Histéria Oral | 17 Segundo a CAVR (2005, p. 26), no perfodo de seu mandato foram recolhidos 7.669 relatos nos 13 distritos € 65 subdistritos de Timor. Também foram recolhidos 91 relatos de timorenses residentes em Timor Ocidental, parte da ilha de Timor que pertence & Indonésia. Constatou-se que em decorréncia deste conflito o numero de vitimas fatais foi de 102.800 (+/- 12.000), sendo destes 18.600 (+/- 1.000) assassinatos e 84.200 (+/- 11.000) de ébitos causados por fome e doengas, estimado acima do que poderia ter sido em um contexto sem a invasao. Para a coleta de relatos, levou-se em consideragao os aspectos culturais, principalmente no que se refere a estrutura das comunidades, que, em sua maioria, utilizam a oralidade em diversas situagées do cotidiano.Deacordocom Paulino (2013, p. 107), na sociedade timorense a tradicaio oral possui um grande peso, e isso possui um grande valor e importancia funcional no cotidiano timorense. Nesse sentido foram estabelecidos semindrios comunitérios, como forma de oportunizar a socializagao das experiéncias no periodo de ocupacao, mas também para decidir em comunidade pela reinsergao de timorenses que cometeram delitos, em sua maioria membros de milicias pagas pelos indonésios. A produgao Dalan ba Dame, expresso em lingua tétum (uma das linguas oficiais do pais) que em portugués significa Caminho da Paz, retine uma série desses relatos que foram coletados individualmente ou nos seminarios comunitarios. © video assume por objetivo mostrar as violagdes de direitos humanos que ocorreram no perfodo em que os indonésios permaneceram em Timor-Leste (1975-1999), pelo fato de, neste periodo o pais estar fechado para entrada e saida de informagGes. Durand (2009, p. 141) argumenta que hostilidade indonésia foi reconhecida em ambito intemacional apés a divulgago do video do Massacre de Santa Cruz, no ano de 1991, feita pelo jornalista australiano Max Stahl, que causou a suspensao de ajuda de varios. paises & Indonésia, Stahl conseguiu realizar a difusdo do video pelo fato de ter escondido a filmagem no momento do massacre, pois se encontrada a fita seria destruida. © video foi editado de forma que os depoimentos seguissem uma ordem cronolégica dos acontecimentos. Dessa forma, as pessoas que esto no video contribuindo com seu relato aparecem em diversos momentos de acordo com o que se fala e a que perfodo aquele trecho corresponde. Algumas contextualizagdes do periodo podem ser identificadas entre um ou outro relato, principalmente quando se deseja anunciar um acontecimento importante, antncio este que precede a tematica do conjunto de relatos que se segue. Além disso, a CAVR foi composta por timorenses e em cada disttito foi designado um representante local para que nao houvesse o temor de represéllias na coleta de relatos. 18 | Vill Encontro Regional Sul de Histéria Oral No que se refere aos relatos, a maior parte destes & realizada de forma a identificar o alto grau de memorizacao que permite que sejam lembradas datas, dias da semana, momentos bem especificos edetalhados. Este fator pode ser relacionado a importancia dada a oralidade, que faz com que otimorense, ao longo de sua vida, desenvolvaamemorizagao com 0 objetivo de perpassar os acontecimentos para as geragées futuras por intermédio da oralidade. Com relagao aimportancia da Comissdo e dos eventos comunitarios um lider comunitario do distrito de Maliana ressalta Para a nossa comunidade, hoje terminam 24 anos de sofrimento, violéncia e divisdo. Em 1999 vimos partida dos soldados e da milcia indonésios, No dia 20, de maio de 2002, celebramos a nossa independéncia como uma nagdo. Mas sé hoje € que nés, como uma comunidade, nés podemos libertar do nosso sofrimento causado por este passado terrivel. Vamos enrolar a esteira 0 que, para nds, ird simbolizar o fim de todas estas questées, A partir de hoje s6 iremos olhar em frente. Vamos agora comer e dangar juntos e comemorar o futuro (CAVR, 2008, p. 26). © depoimento ressalta a importancia que dialogar sobre as violagées dos direitos humanos cometidas pelos indonésios tinha para a comunidade do relatante. O fato de Timor-Leste ter conquistado a independéncia nao seria suficiente para resolver as questées individuais e coletivas. Com os semindrios comunitarios, as pessoas tiveram a oportunidade de expor o que Ihes havia acontecido, bem como se identificar com as violagées sofridas pelo préximo. Dessa forma, o didlogo permitia a reconciliacao dos integrantes das comunidades e sua reinser¢ao, naquele momento, o que o lider comunitario caracteriza como “o fim de todas estas questdes”. E pertinente salientar que, em um primeiro momento, diversas questées foram solucionadas a partir dos semindrios comunitarios, porémissonao apagaas violagdes que aconteceram individualmente. Pollak (1992, p. 204) afirma que as memodrias sao constituidas de acordo com ‘© momento social e politico, e, no que se refere a memoria individual, o modo de construg’o pode ser consciente e inconsciente, em um processo de organizagao que grava, recalca e exclui. Dessa forma, em cada depoimento do video Dalan ba Dame constatam-se as permanéncias de momentos que foram marcantes no ambito individual: Os indonésios queimaram as casas e seguiram para Ainaro. Estavamos num sitio chamado Kolokau Durante trés dias € trés noites houve combates em Kolokau. Pareciam criangas a brincar. Durou trés dias € ttés noites. Tomou-se um sitio horrivel, © unico abrigo era na natureza, Nao conseguiamos dormir VIII Encontro Regional Sul de Histéria Oral | 19 durante trés dias e trés noites. Durante trés dias e trés noites tentamos encontrar um abrigo ou uma maneira de sair dali, Também fomos atingidos por um morteiro. © trecho acima foi relatado por um homem nao identificado, como todos os depoimentos, que nao possuem identificagdo de nome ou localidade. 0 mesmo refere-se ao inicio da ocupagao indonésia, A expressio “trés dias e trés noites" demonstra no campo da meméria individual como este perfodo foi marcante e selecionado para a permanéncia, visto que a repetigo da expressiio ao longo da fala sugere esta permanéncia. Para esta meméria individual, em particular, os trés dias e trés noites representam a instabilidade gerada em uma vida que passa a buscar um abrigo seguro. A selegdo dessa meméria individual ainda salienta com relagao ao vivenciado neste perfodo marcante: Nao havia tempo para lamentar a situag3o. S6 mais tarde, & distancia, € que pudemos olnar para trés e lamentar a destruigao provocada pelo fogo, os restos carbonizados das pessoas AS pessoas que tinham side apanhadas pelo fogo tinham a pele aberta como quando se assa um porco. A principio era impressionante, mas passado um bocado jé se pisavam os mortos ou se saltava por cima deles e nem sequer se pensava nisso. Era como se parte de nds tivesse morrido e ndo penséssemos mais nisso. ‘A destruigao causada pelo fogo a que o relatante se refere é uma mengao do que o mesmo vivenciou com o uso de napalm pelos indonésios. Esta pessoa se impressionou ao ver outras pessoas sendo carbonizadas e efetua a analogia & pele do porco, num exercicio de reconstituigao de uma meméria visual que permaneceu. Posteriormente, coloca a importancia do comunitario, quando trata do fato dos que estavam vivos terem de buscar a sobrevivéncia (e © abrigo como colocado no trecho anterior), e para isso ndo poderiam, naquele momento, velar ou chorar pelos mortos. Outro depoimento detalha como se deu 0 uso do napalm: ‘As pessoas tinham mortes horriveis. Eles largavam bombas e eu vi com meus préprios olhos, essas bombas que queimavam pessoas, Também queimavam cavalos. Cavalos enormes que arciam e fieavam reduzidos a nada. As pessoas chamavan- Ihes bombas de napalm, Estas bombas queimavam pessoas e reduziam-nas a cinzas. Os relatos que foram recolhidos e divulgados nao apenas no video Dalan ba Dame como também nos registros do relatério da CAVR, séo importantes ao historiador quando da produgao em histéria oral. Alberti (2008, p. 170) 20 | Vill Encontro Regional Sul de Historia Oral ressalta que "cabe ao pesquisador estar atento ao fato de significados atribuidos a acées e escolhas do passado serem determinados por uma vis4o retrospectiva, que confere sentido &s experiéncias no momento em que sdo narradas”. Os sentidos presentes nas narrativas contidas no video so passiveis de atenta andlise, visto que o perfodo da coleta das mesmas se deu logo apés o conflito. A visdo retrospectiva, no caso dos timorenses, esté permeada pela riqueza de detalhes, porém isso nao isenta os mesmos de selegdes de memérias que estarao ou nao presentes nas narrativas. Um tema recorrente nos relatos presente no discurso de diversas memérias individuais a partir da experiéncia no coletivo é a fome. Considerando que a maior parte da populagao veio a ébito no periodo de ocupagao por este motivo, € pertinente a andlise dos diversos caminhos que levaram & fome e aos ébitos. Muitas pessoas morreram de fome. A principal razao era que na altura as pessoas nao podiam ficar no mesmo sitio tempo suficiente para plantar e colher alimentos para comerem, Tanta fore. Algunsmorriam porque nao havia comida. Os velhos € os mais novos nao conseguiam arranjar comida, e a comida de ma qualidade que havia nd dava as grdvidas as vitaminas de que precisavam, ¢ por causa disso muitas morriam. Acerca das causas da fome tem-se o seguinte relato: ‘As pessoas viviam em condigdes miserdveis. Os soldados disparavam sobre elas e obrigavar-nas a cotrerem para salvar a vida, 0 que significava que tinham que deixar as suas colheitas e a sua comida. Conseguiam levar alguma comida com elas, mas quando acabava tinham que comer folhas ¢ tudo 0 que conseguissem para poderem sobreviver.[..] AS pessoas morriam de fome. A nossa situagao era tao ma que éramos obrigados a comer coisas que eram comestiveis, Muitas familias acabaram por se render aos indonésios para nao morrer de fome: Tentavamos encontrar comida, mas néo havia nenhuma, Os indonésios diziam-nos para descermos das montanhas e nos rendermos, Nessa altura estévamos tdo fracos que acabamos par nos render. ‘Apés alguns anos, os meus pais decidiram que nos deviamos render. Tinha visto com meus proprios olhos © meu tice tio, 0 irmo mais novo da minha mae, ser abatido a tiro no rio. Também a minha avé ha sido baleada na coxa, Assim nao tivemos outra escolha a nao ser renderma-nos. VIII Encontro Regional Sul de Histéria Oral | 21 A rendigdo foi uma alternativa para muitos timorenses que nao desejavam morrer de fome ou por meio de ataques dos indonésios. Porém, a rendi¢ao nao garantia que os mesmos tivessem um tratamento melhor ou respeitoso, no que se refere aos direitos humanos. A maioria era levada para campos de concentragao onde a comida também era escassa, a propagagao de doengas frequente e a oferta de comida e medicamentos nao eram suficientes. Além disso, sofriam com espancamentos ou acabavam sendo mortos pelos soldados. Quando algumas pessoas se renderam, foram espancadas ¢ atingidas com pedras até sangrarem A noite foram levadas para outro lado, a fim de serem mortas. Muitas pessoas morreram. Eram espancadas até a morte. Quando estavam a ser espancadas, gritavam e nés podiamos ouvilas. Era muito perturbador. Algumas pessoas morreram porque estavam —doentes, Dormiamos no chao, mesmo em cima do cimento, Nao tinhamos comida, Algumas pessoas ficavam doentes por causa do frio. Algumas apanharam tuberculose e morteram. 0 facto de alguns de nés terem sobrevivido para ver o dia de hoje é um milagre. Durante esse periodo ndo havia qualquer conceito de diteitos humans. Nessa altura nao tinhamos direitos humanos. Por vezes sofriamos terrivelmente, Sentiamo-nos impotentes. Naquele momento partimos do prinefpio que famos morrer, Deixamas de pensar em viver. A rendig&o nao foi um consenso, pois muitos, mesmo sem alternativas e sofrendo com a fome, sabiam que a entrega aos indonésios significava receber um tratamento violento, que poderia causar inclusive a morte. Nessa altura eu era o tinico filho, Tinha uma itma mais velha que estava com a minha mae. Decidiram que ndo me podia render porque havia propaganda dos nnossos soldados que dizia que quando nos rendiamos 0s indonésios retalhavam nossos filhos e matavam 0s pais. Tinhamos medo. As criangas também tinham, medo e 0s pais ndo queriam arriscar perdéas, As narrativas individuais e coletivas evocam momentos marcantes vivenciados, mas também partem do conjunto de valores individuais. Existiram timorenses que sofreram com as violagdes, assim como existiram timorenses que trabalharam em milicias indonésias por op¢ao e outros que aceitaram trabalhar para os indonésios devido o contexto, como forma de assegurar a sobrevivéncia. De qualquer modo, os militares indonésios conseguiram o que em séculos os portugueses nao fizeram: ocupar todo © tertitério, bem como impor sua lingua, pois a populacdo deveria se comunicar em lingua indonésia. Muitas pessoas viviam em suas comunidades, vigiadas constantemente 22 | Vill Encontro Regional Sul de Historia Oral pelos indonésios. A maior parte dos que se refugiavam nas montanhas possufam, geralmente, alguma relacio com a FRETILIN. Ainda que fosse apenas um agricultor que oferecesse alimento a membros ou simpatizantes do partido, 0 ato era condenado pelos indonésios. A destruicao de lavouras foi uma tentativa de conseguir a rendi¢do dos timorenses, e este é um dos fatores que causou 0 grande numero de mortes pela fome. O ato de lembrar é, ele mesmo, um ato fundador. Nao importa qual seja, ao lembrar,recria-se, redescobre-se lum fato. E, independentemente de suas motivagdes, bem como de seus autores, nesses momentos, vozes de uma identidade sempre mullifacetada sao redimensionadas, conflitos so expostos, disputas por significagdes esvaziam ou fortalecem as Tepresentagoes politicas (BREPOHL, 2013, p. 51) Nas comunidades timorenses, as significagdes partem do coletivo, em que os conflitos expostos sao avaliados e geridos a partir do comunitario, bem como o que sera transmitido para as préximas geracées. Epertinente ressaltar, que neste processo, as narrativas se articulam no que Nora (1993, p. 9) caracterizaria como uma verdadeira memoria, aquela que nao é formulada pela historia, que parte geralmente de comunidades tradicionais que é carregada ao longo de geragées por estes grupos. Contudo, existe em contraponto os lugares de memoria, que podem ser verificados de diversas formas, seja em arquivos, instituigdes, museus, comemoragées, entre outros. Trata-se de um processo em que a cada dia o lugar de memoria se institui e ocupa os espagos, sendo validada em detrimento ao conjunto de praticas das comunidades tradicionais. Os relatos fornecidos & CAVR foram validados e tidos como verdadeiros, e tanto os relatos registrados de forma escrita como no video Dalan ba Dame, os mesmos servem constituigdo do lugar de meméria em favor de uma identidade nacional a partir de um sentimento de nacdo que se deseja fortalecer gradativamente. As praticas das comunidades tradicionais e das instituigdes se relacionam e se articulam, onde memoria e lugar de memoria possuem espagos pré-determinados, e a cada dia se transformam ‘em um processo que valida ambos, mas que afirma desde a saida dos indonésios o lugar de memoria. Conclusées A produgao Dalan ba Dame juntamente com o relatério da Comisséo de Acolhimento, Verdade e Reconciliagéo foram instrumentos importantes para que, em um primeiro momento, houvesse a reinsergao das familias nas suas Vill Encontro Regional Sul de Histéria Oral | 23 respectivas comunidades e que os relatos pudessem gerar a identificagao do grupo com as diversas violagdes dos direitos humanos. Este momento foi importante, pois se tratava da reconstrugdo de um pais e de diversas vidas que resistiram ao conflito Dessa forma, a partir dos relatos do video, foi possivel identificar elementos de selegdio das memérias de um evento traumatico, permanéncias, consequéncias e violagdes dos direitos humanos. A narrativa orientada pela lembranga pode revelar, ainda que nao se saiba o que foi relegado ao esquecimento, elementos importantes que marcaram a meméria individual apartir dos acontecimentos individuais e suas repercussdes no coletivo, bem como acontecimentos do coletivo, que podem ter gerado, ao longo dos anos posteriores aos relatos, um discurso semelhante entre diversas pessoas € © que Pollak (1992, p. 201) caracteriza como um fenémeno de projecao, onde, atualmente, a geracdo posterior que provavelmente era crianga e possui poucas lembrancas do conflito tenha lembrangas projetadas do que seus pais ou avés lhes contam, mas com tal identificagdo que podem relatar o acontecimento como se tivessem o vivenciado. Referéncias ALBERTI, Verena. Fontes orais: hist6rias dentro da Histéria. in PINSKI, Carla (org). Fontes histéricas. Sao Paulo: Contexto, 2008. ANDERSON, Benedict. Imaginando Timor-Leste, Arena Magazine, vol. 4, 1993, BREPOHL, Marion. Testemunho, meméria, fonte e Historia. In: BREPOHL, Marion (org). Eichmann em Jerusalém: 50 anos depois. Curitiba: UFPR, 2013. CAVR, Relat6rio CHEGA! Histéria do conflito. Timor-Leste, 2005, Relatério CHEGA! Resumo Executivo. Timor-Leste, 2005. DURAND, Frédéric. Historia de Timor-Leste: da Pré-Historia a Actualidade, Lisboa: Lidel, 2009. NORA, Pierre. Entre meméria e histéria. A problematica dos lugares. Revista Projeto Historia, So Paulo, (10), dez. 1993. PAULINO, Vicente (2013). Céu, terra e riqueza na mitologia timorense. Revista VERITAS. Dili: PPGP-UNTL, 2013, p.103-129 PELISSIER, René. Timor em Guerra: A conquista Portuguesa (1847-1913). Lisboa: Editorial Estampa, 2007. POLLAK, Michael. Meméria e Identidade Social. Estudos Histéricos, Rio de Janeiro, vol. 5 n°. 10, 1992, 24 | Vill Encontro Regional Sul de Histéria Oral

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