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do Nascimento (UEJE) = QUESTGES PRELIMINARES: 0 “'POS-ESTRUTURALISMO FRANCES” ste estudo se propée rever no momento atual diversas ques- tdes relacionadas ao texto, que emergiram no Ambito da lite- ratura e da filosofia, sobretudo nos anos 1960, a partir do Jque se nomeia em alguns paises como “pés-estruturalismo” ancés. A designagdo, embora bastante utilizada, é extremamente pro smética. O termo “pés-estruturalismo” surgitt no final da década de 960 em solo americano para designar um conjunto de pensadores como eques Derrida, Gilles Deleuze, Michel Foucault, Roland Barthes, Jean- ois Lyotard, Julia Kristeva, dentre outros. O problema é que es- es pensadores jamais se autonomearam como “pés-estruturalistas”, nem ;pouco o rétulo é usual na Franca, correspondendo a uma leitura or parte de especialistas norte-americanos, que passaram a nomeé-los ssim, para Thes dar uma identidade que nunca tiveram. Porém, se isso 6 verdade, por que chamé-los desse modo? O princi- motivo 6 que esses autores compartilham o fato de, na virada dos nos 1960 para os anos 1970, tomarem distancia de um movimento que fivera seu auge em torno de 1966, ou seja, o “estruturalismo”, Essa corrente, fundamentada sobretudo nos estudos de lingiiistica (em par- ticular de fonologia) e de antropologia, pretendeu fornecer uma base Tigorosamente cientifica para a teoria e a prética das chamadas ciéncias humanas. Jacques Derrida, na célebre conferéncia sobre Claude Lévi- Strauss, “A estrutura, o signo e 0 jogo no discurso das ciéncias huma- 1.0 ponto de partida para este capitulo foi o convite para participar de uma mese-redonda fem torno da questio do texto, com Liicis Santaella e Maria de Lourdes Maténcio, no 53° Seminario de Rstudos Lingaisticos de So Paulo (GEL), em julho de 2005. 110. [REIISCUTIRTEXTO, GENEROE DISCURSO | Erando Nescimento nas”, publicada em A escritura e a diferenca’, pos em questao justamen- te o cientificismo da abordagem estruturalista, ainda vinculada ao positivismo racionalista do século XIX, com uma nogio fixa e centrada de “estrutura”, Era como se, por um gesto progressivamente indutivo, partindo da andlise de objetos especificos (como os enunciados lingtiisti- cos, os comportamentos étnicos, os elementos da narrativa etc.), 0 ci- entista estrutural devesse elaborar modelos cada vez mais abstratos até chegar a uma “estrutura geral da narrativa”, como se dizia entio. Essa estrutura sonhada era eminentemente formal e abolia dois fatores que 0s autores ditos “pés-estruturalistas” vao recolocar na ordem do dia: 0 sujeito e a histéria. Ou seja, em vez de uma estrutura abstrata que desse conta de todo tipo de enunciados e comportamentos, presentes nos mais diversos campos (lingiiistica, etnologia, literatura, psicologia/psi- candlise, sociologia), interessava no final dos anos 1960 retornar & particulatidade dos discursos, para ver 0 que neles permanecia como jrredutivel ao gesto generalizador, tipico do cientificismo estrutural, Nesse sentido, é exemplar o que Barthes diz. no livro que configura sua virada pés-estrutural, cle que fora, junto com Lacan, Lévi-Strauss, Jako- bson ¢ Greimas, um dos grandes lideres do estruturalismo: Diz-se que, por forca de ascese, alguns budistas conseguem ver toda uma paisa dem numa fava. Foi exatamente isso 0 que quiseram os primeiros analistas da narrativa: ver todas as narrativas do mundo (tantas hae houve) numa tinica cestrutura: vamos, pensavam cles, extrair de cada conto um modelo, em seguida fFaremos com esses modelos uma grande estrutura narrativa, que reverteremos (para verificagdo) sobre qualquer narrativa: tarefa exaustiva [..]efinalmente indesejavel, pois com isso o texto perde sua diferenca’. Desse modo, o que Barthes, principalmente nos anos 1970, vai cha- mar de “teoria do texto”, e que comparece em livros como O prazer do texto, L’Empire des signes, Fragmentos de um discurso amoroso, dentre outros, é uma proposta que dialoga com a nogao de texto desenvolvida anteriormente por ele mesmo e pelos demais estruturalistas, mas que tem a marca de nao se limitar mais ao horizonte lingiiistico. Ao contrério, 0 que Barthes sinaliza como “semiologia literdria” visa pensar os mais di- TEXTO, TEXTUAUDADE, CONTEXT. 111 vversos tipos de discurso, independentemente do modelo lingtifstico que prevalecera entre os anos 1950 ¢ 1960, B essa visada semiolégica, sem vinculo diteto com as teorias da lingiistica formal, que vai marear o tra- balho dele ¢ dos citados Foucault, Derrida, Deleuze, Lyotard ¢ Kristeva __ O dado a enfatizar € que, apesar de uma grande convergéncia de interesses ¢ disposigdes epistemol6gicas e pragméticas, esses autores jamais estabeleceram um programa comum, ao contrério do estrutura- lismo, que, este sim, efetivamente, visava desenvolver uma pesquisa consensual, com objetivos correlatos. Nunca houve, portanto, um mo- viento chamado “pés-estruturalismo”, mas existiram e existem auto- res que trabalham conceituagdes e propdem aniilises diferenciais, acer- ca do “texto”, do “sujeito”, da “diferenga”, do “estatuto do saber”, das “nstituigdes” ete. . Proponho a seguir uma reflexao a propésito do “texto”, prineipalmen- te a partir de dois de seus teéricos e praticantes, Roland Barthes e Jacques Derrida. Sublinho que pritica e teoria nao se separam nesses dois pensado- res; a0 contrario, ocorre sempre uma homologia: ao que é dito como con- tetido do enunciado deve corresponder um modo de enunciagéo igual- mente questionador de categorias de pensamento tradicionais*. . © TEXTO EM QUESTAO _O que resta entio do texto e da textualidade em geral? O que resta ainda do saber sobre o texto? Houve, hd, haverd um saber nificado homogéneo a respeito do texto? __ Deixo esses enuunciados como uma espécie de mote geral deste que ainda, @ apesar de tudo, se nomeia um texto. Parto do pressuposto de que uma “teoria do texto”, se tal houver, 86 pode ter 0 proprio texto como pritica correlata. Nada mais ineocrente do que recorrer a um 4.0 ir ual Sea ogiad oto Hara (109), oném wag de 112. _[REJOISCUTIR TEXT, OPNERO E DISCURSO | Fvondo Nascimento ‘mero metadiscurso textual, ignorando na pritica algumas das estratégi- as do que, como visto, sobretudo a partir da década de 1960, se nomeou texto. Trata-se de uma “abordagem” (as aspas em torno do termo se justificardo mais adiante) de cunho principalmente tedrico, porém al- guns exemplos serdo inseridos ao longo do pereurso., Dentro do atual contexto das discussdes no ambito da literatura e da filosofia — a partir das quais me proponho a falar —, parece-me que de algum modo a questao do texto perdeu seu prazo de validade, Nao que tenha se tornado irrelevante ou inécua. Ao contrério, é como se todos os debates levantados entre o final dos anos 1950 e os anos 1980* tivessem esgotado certo horizonte da problemética textual, que, por assim dizer, teria sido assimilada como teoria e como pratica nas mais diversas pesqui- sas, acabando por desaparecer progressivamente da ordem do dia das discussées literérias ¢ filos6ficas, mas com novos desdobramentos, Dito de outro modo, a hipétese que aqui se articula é a de que pro- vavelmente 0 texto deixou de ser um problema em si, para se tornar uma ferramenta operacional com que se conta de antemao. Isso, claro, nao elimina engodos, nem a conseqiiente necessidade de esclarecimen- to. Ao supor que nos entendemos com toda evidéncia a respeito do que seja (ou nao seja) um texto, podemos estar abrindo caminho para um TEXTO, TEXTUAUDADE, CONTEXT. 113, sempre mobilizou o desejo de pesquisa. E possivel que para certa teoria do texto, como se configurou historicamente, o problema fosse nao mais partir simplesmente do signo verbal, mas, recorrendo a outras categorias de pensamento, desmobilizar 0 que o verbal tem de mais hegeménico em nossa cultura, como limite mesmo de um estégio cultural, uma certa episteme — para recorrer a um velho-novo termo de Michel Foucault’ Nessa altura, este texto inevitavelmente assumird contornos auto- biogréficos. Nao que se trate aqui de levantar a histéria midda, a fatualidade do que me (ou do que nos) aconteceu nas iiltimas décadas, fim de dar conta de mais esse capitulo da historia das idéias. A aposta seria justamente a de que a categoria texto nio cabe mesmo em ne- nhum volume da histéria das idéias, pois como a vejo ainda hoje, passa- dos alguns anos, ndo se trata, com efeito, de uma idéia. Menos, ou mais, do que um conceito, com sua unidade de sentido e seu alcance de aplicagao minimamente delimitado, o texto pretenderia de fato assumir a forga € 0 alcance de um operador. Tratar-se-ia, pois, de um valor ope- tatorio, de uma categoria de intervencao historica, cultural, epistemol6gica, em todo caso pansemi ica e multidiseiplinar. Mais ou menos, aquém ou além de um conceito em si, referido a um contetido determinado e fixo, a nocao de texto apontaria para a neces- fidade, em determinada época, de rever justamente certos paradigmas demasiado consolidados, dentre eles o “conceito de conceito” como unidade semantica. Dentro desse jogo operacional, alguns nomes fo- tm e continuam sendo agenciados para o que esté em causa sob 0 nome “texto”, embora o termo mesmo jé no seja empregado com tanta freqiiéncia como outrora, quando chegou a ser fetichizado como um ta nao mais apenas para enunciados lingiiisticos estruturados, seg Vilor tnico*. Embora, com o dito, a palayra texto tenha nos tiltimos determinadas regras ¢ dotados de coesdo, mas justamente para N08 sua utilizagdo reduzida em determinadas reflexées, 0 valor que, partindo do lingitistico, vai além dele, Suspeito até que “partindo. lingiistico” ndo seja um sintagma conseqtiente para 0 que de fato desvirtuamento daquilo que as discusses passadas tinham de mais ori ginal e que talvez possamos resumir, no ambito da literatura e da filoso= fia contemporaneas, como os limites do lingiiistico, ou, se se desejar, 08 limites da verbalidade, ou ainda do signo verbal’. No dominio até certo ponto restrito do que na “teoria do texto” interessou — e que sinalizarei logo em seguida —, 0 termo “texto” apo a —— 7Cf, Foucault (1966), 48 ‘Tudo era texto; "to hl nada fora do texto” foi uma frase aribuida a Derrida, que na ttizcoisa bem diferente, apontando justamente os limites entre o dentro eo fora. Cito ‘orignal que gerou tantos equivocos: "Se no hs nada forado texto, isso inplia, com a odo coneeito de texto em eral, que este no seja mais o interior protegido de uma ‘outde uma identidade a (ainda que motivo do fora a to custo’ possa is veues ‘um papel tanqdilizante; certo dentro pode ver texrivel), may outeo empreyo dos do aberturae de fochamento" (1974,p.A2). ny ab buslarvony saan 5. No em grandes problemas de interpretaglo, a melhor fonte de iformagies sobre o continuasendoolivro em dois volumes de Frangois Doss Hise dustraturalisme (1902). Jarno capi "Eecritn egramatologia”(p. 114. REISCUTITEXTO, GENERO EDISCURSO | Evondo Nascimento operacional que ele implicou em certo momento nio se perdeu, ao con trério, continua cada vez mais determinante naquilo que, a titulo de exemplo, hé pelo menos quatro décadas se chama de desconstruciio, sob © nome da qual alguns dos trabalhos que tenho realizado nos siltimos anos foram desenvolvidos. Como diz Derrida, a propésito do que est ‘em causa nas estratégias desconstrutoras: A légica opositiva, que é necesséria e legitimamente uma légica do ‘tudo ou nada’, sem a qual a distinglo ¢ os limites de um conceito nao teriam nenhuumia chance, no oponho nada, nao oponho sobretudo uma légica do apraximada: ‘mente, um simples empirismo da diferenga de grau, mas actescento uma com plicagéo suplementar, que exige outros conceitos, outros pensamentos part além do conceito, e outra forma de ‘teoria geral’, ou antes outro discurso, ou \égica’, levando em conta a impossibiidade de fechar uma tal teoria geral” Desse modo, assinalaria que, de boa vontade ow a contragosto, fo formados por tudo o que a categoria “texto” exigin que penséss durante todo esse tempo. Renegando-a ou endossando-a, muitas ve denegando-a no sentido psicanalitico (ou seja, confirmando-a por negativas), todos nés, eis a hipstese, tivemos de nos entender em ‘momento com 0 “texto”, conscientemente ou nao. Mas a teversibil entre consciéncia e inconsciente, dentro do referido quadro psicr co, tem sido certamente um dos lances decisivos da teoria textual. pela vertente freudiana estrita, quanto pela vertente de Lacan térprete de Freud, muito do que o texto tem sido pode ser eluci meio de outras tantas nogdes psicanaliticas, tais como as de inconsciente freudiano, bem como de significante lacaniano!, 9, Derrida (1990), p. 212. 10, No capitulo intitslado “Sentido edisseminagio”, do citado Derrida ei nota 3), desenvolvi toda tima teoria do sentido eda sigificagao a partir das nogdes| de inconsciente recalgue e pulsio. Constats-se af que o recalque no deve spor externa atuando a partir de fora do sistema psiguico, mas com resultado do ‘quer dizer, da elago diferencia de forgs em permanente recomposig Um fore itn, Se existe mas de modo incomenstrdvel com uma rlagio simplesde Ingar, ee & impensével fora da relagdo de forgas que o produ, diferindo © ‘maneira permanente, For isso mesmo, no hi nunca o sentido vinieo, nas un 2 rodnsem de coms a coast ‘porta ingua nfo mais como uma positividade preexintente iautivel, mas dn eelagodiferoncial entre os wiyjetos falantes, {Wave teatunsnomranersnnnene oo Certamente um dos fatores decisivos em minha formagio nos anos 1980 foi o contato com a referida teoria do texto de Roland Barthes. Essa teoria, que Barthes mais praticou do que formalizou a partir de sua referi- da virada pés-estrutural no final dos anos 1960, merece uma consideragio ‘especial, 2 qual se juntardo em seguida algumas das categorias de Derrida. Na abertura de $/Z, livro que publicaré a partir de seus seminérios do final dos anos 1960 e que sera langado em 1970, Roland Barthes toma distancia em relagdo ao movimento que ajudara a liderar até en- tio, o estruturalismo das ciéncias ditas humanas. Barthes fala entio desse “sonho de cientificidade” que teria servido como motor de pes- (uisa para os estruturalistas: “ciéncia com paciéncia, o suplicio é cer- 10", dizia citando um famoso verso de Rimbaud’, Falava pela experién- $i propria de quem pubticara um dos estudos mais elaborados dentro ‘motodologia estruturalista, 0 Sistema da moda, de 1967". Até aquele nto de distanciamento ou de ruptura, Barthes compartilhara com is colegas franceses e estrangeiros o sonho de, a partir da andlise rien de narrativas particulares, e por meio de um processo de abs- jo progressiva, chegar a uma “estrutura geral da narrativa”. Segun- Whe método indutivo, era como se cada texto particular abrigasse isl, em germe ou de modo relativamente explicito, as regras discursivas tentam toda e qualquer narrativa. Era também como se a narra- esse fornecer o modelo geral para o funcionamento dos discur- iillo apenas para um género especifico do discurso literdrio ou, ‘Ae dizin entao, por influéncia de Roman Jakobson e dos formalistas lo discurso poético”. Parece-me que entender por que a narra- penhou tal papel naquele momento histérico é decisivo para ‘4 episteme entio vigente. A codificacao estrutural, embora na sumido intimeras configuragdes, foi credora ¢ devedo- sadigma épico-narrativo de natureza hiperconceitual: como Aplea que finda o Ocidente, desde pelo menos a Odisséia e os (1004), p.587, Os versos “Science avec patience, Le Suplice est 301" foram ‘Avjusto de Campos como *Ciéneia e paciéneta, suplicio seguro”, ef. Campos “10401, nie, 1116. [Re}DISCUTRTEXTO, GENEROE DISCURSO | Fondo Nomen estudos aristotélicos (a Poética afinal define 0 texto homérico como a fonte de todas as outras histérias), encontrasse finalmente seu método tedrico-analitico: o estruturalismo. Cabia a0 pesquisador-cientista formalizar as regras gerais da narrativa, como informadoras do discurso em geral, através de um método comparati- vo e amplamente abstratizante, numa linguagem rigorosamente l6gica € conceitual. Dois fatores permitiram a Barthes o salto além do estruturalismo, sem recair num novo movimento, escola ou estilo de época investigativo. O primeiro fator foi a chegada em seus semindrios da imigrante biilgara Julia Kristeva, que transformaria o dialogismo de Mikhail Bakhtin num dos vetores do que se passou a nomear como teoria da “intertextualidade”, Pela imensa fortuna critica que adquiriu posteriormente, esse termo sozinho (inter- textualidade) demandaria um amplo comentério para o qual falta espago’ aqui", Gostaria de sublinhar nele apenas um aspecto que me parece decisiva ‘para o corte epistémico promovido por Barthes. Se a intertextualidade fasci- now o autor de O prazer do texto, foi pelo fato de propor que todo texto, ett vex de existir como entidade em si mesma, detentora de uma estrutura versal, funciona em rede, ¢ isso se deve fandamentalmente ao papel do leit que articula a massa dos escritos preexistentes. Insidiosamente a propos intertextual reintroduzia o sujeito, que, tanto do ponto de vista da produk quanto do da recepgio, parecia ter sido banido do horizonte da pesquik estruturalista"s. Se, jé em 1968, Barthes encenava a “morte do autor”, era em nome de uma alucinagao neopositivista chamada estrutura geral narrativa, mas por amor a essa antiga e novissima figura: o leitor. Cite final de “A morte do autor”: “O nascimento do leitor deve ser pago com ‘morte do autor”. 0 leitor € antigo por ter existido desde sempre, desde primérdios de nossa literatura, na civilizagao grega. Todavia, a partir do. dos anos 1960 (e de modo concomitante, embora com outras perspec em relagao ao que faz, Hans-Robert Jatiss em Colonia, abrindo o cat para a teoria do efeito estético)", 0 leitor batthesiano assumiré uma 14. Doislivrossiio fundamentals para seiniciar nas questes de intertextusidad, recherches pour une sémanalyse, de Kristeva (1969), e Testo, oriiea esritura, de Leyla “Moisés (Sto Paulo: Atiea, 2008). 15. CF, Dosse (1992). Leretour du refoulé lest p 408-42. 17.Jauas (1908), ‘TEXTO, TEXTUAIIDADE, CONTEXT. 117 vvisada: deixard de ser 0 consumidor passivo de contesidos pré-formadoss ou ainda, levando em conta a abordagem estruturalista, deixar de de- sempenhar o papel de mero analista de estruturas narrativas, para se tornar um novo tipo de inventor. De inspiragdo explicitamente nietzschiana, o intérprete do S/Z, bem como WO prazer do texto, nao apenas recebe o texto, mas, ao ler, trans- forma-o num novo tipo de escritura: Uma vez que se afasta o Autor, a pretensio de ‘decifrar’ um texto se torna {ntetramente inttil. Darum Autor ao texto é impor-Ihe um entrave, é prové-lo de um significado tltimo, ¢ fechar a escritura. Essa concepedo convém muito critica, que se atribui entio a tarefa importante de descobrir 0 Autor (ou suas hhipdstases: a sociedade, ahist6ria, a psiqué, a liberdade) sob a obra: encontran- do-se 0 Autor, o texto esta ‘explicado’,o critico venceu; no hé ento nada de ‘espantoso no fato de, historicamente, o reinado do Autor ter sido o do Critico, hem tampouco no fato de a critica (mesino a nova) ser abalada ao mesmo tempo em que o Autor". ‘A eseritura seria o que liberaria, no texto, aquilo que Derrida cha- hou de “estruturalidade da estrutura”, seu jago, € a possibilidade minadora da significacao. Jnstaurava-se assim uma nova nogdo de signo, de texto ¢ de escritu- sob a mediagao do “jogo”, que se dava através de miiltiplos jatramentos provocados pelo pensamento de Freud, de Nietzsche Jscontecimento deruptura, airrupedo a que ex aludia no inicio, produziu-se ‘10 momento em que se precisou comecar a pensar a estruturalidade da ou sea, Tepet-la, epor isso en dria que essa irrupsio era repeticao, ‘ossertidos da palavra™, ‘niais interessava a positividade do signo textual, pois nlo ha mais ‘i, Todo texto, todo signo, é tomado num jogo de semissoes Jhaja a referéncia tiltima que venha interromper o fluxo das refe- das inscrigdes, Foi nesse sentido que Barthes declarou, num ap. lt pA. 10187), p. 410 0, depoimento sobre Derrida, que ele ipo es ceed entenda-se, da cadeia sintagmética, pois a liberou do signfiet-® transcendental que a retinha, significado que, em cone ig tas, era assimilado a estrutura geral, “gerativa”, da Sees formalizacao de uma narratividade geral tivesse sustent eae ina significagéo controlada em iiltima ae por a ae pal, sujeitos histéricos. 3 Fe er tera e Dvr, 6 exist evelidade Pr - Vito miele muitas vezes no sentido autobiogréfico estrito, to ene sempre ar th enunciated duos de ls gu se nc roe eta, gen i ‘rando livros como a belissima viagem ao Japao de Bart eh co des signes (1970), pais que o fascina justamente por ajudat a “guerra dos sentidos”: ‘0 autor nunca fotografou o Japdo em nenhum sentido. Seria antes 0 oa oo multpicow em flashes; ou melhor ands: Japloo pos emsituaciod aaarvien Essa siteagio 6a mesma emetic #oper4 um certo abalo da pes Sea revered das antiga litras mba sacudida do sentido, ace ‘uma reversdo das ant ; dia, ado até 0 vazio insubstitufvel, sem que 0 objeto jamais deixe de ser signific desejavel™. ilavra e imag Em L’Empire des signes, pal i textualidade desdobrada em duas modalidades ao mesmo tempo si ‘res e distintas, As imagens “comentam” as palavras, vice-versa, que se encontre a origem simples do diseurso. gem compéem uma tini ida ai cont Se, nos anos 1960, Derrida ainda precisou recorrer 20 con ‘ i colo saussuriano de signo, em livros seminais como Gramatolog} i jidade de dialo; jerenca, isso se deu pela necessi ant 10 vigente. Até meados dos anos 196 romper, com o estruturalism sas yao fines sp" um tam cnet oe etc See see ae Besa cpaisee ’ sempre foi compreendida ¢ determinada, em seu 2 ps ae against aie gia teen al entre significante ¢ si icado, € a palavra signi so Sena lc pas 20, Barthes (1994), p. 748. Europa, ¢ ainda nos anos 1970 no Brasil, “falava-se” muito em es- truturalismo, como “lingua” que se pretendia universal e que con- Seqtientemente forjava sua universalidade pela abstragao positiva do signo, do texto e da estrutura, conceitos regidos por oposicdes metafisicas que a escritura derridiana procurou justamente desconstruir, Ao enfatizar a materialidade do significante (por exem- plo, em Positions} préprio a escrita ou a escritura, Derrida preten- lia desmobilizar 0 aparato idealizante que se armou em torno do toneeito de signo, a partir do privilégio de um dos termos nos pares positivos: o significado como referéncia tiltima a transcendentalidade tla lingua, em detrimento da precariedade da fala, do discurso parti- tular, do “texto” se quiserem: Poi entdo [quando se descobre a auséncia de um centro absoluto] o momento fem que a linguagem invadiu o campo problemtico tniversal: foi entao 0 mo- ‘mento em que, na auséncia de centro ou de origem, tudo se torna discurso — om a condicdo de nos entendermos sobre esta palavra — isto 6, sistema no ual significado central, origindrio ou transcendental, nunca estd absoluta- mente presente fora de um sistema de diferencas. A auséncia de significado {ranscendental amplia indefinidamente o campo eo jogo da significagao™. Assim, a escritura ¢ o texto serao vistos na Proposta derridiana como iNe-transcendentais, como operadores de leitura que nao se reduzem lina deciséo simples em relagao aos pares opositivos, implicando 0 iF igualmente operacional dos chamados indecidiveis, tais como 0 akon no texto de Plato ¢ o suplemento no texto de Rousseau, A da suplementaridade procurava dar conta de estruturas que sio We especificas, histdricas, relativas a enunciag6es particulares, daf ila afirmar estratégica e pontualmente na Gramatologia praticat “ompitismo radical”, empirismo que, no entanto, desde sempre se It a uma vertente minimamente transcendentalizante, tedrica em lo amplo, de que resulta a categoria hibrida de quase-transcen- |, Como diz Marges — De la philosophie: Iuneira bastante esquemtica: uma oposigio de conceitos metafisicos (por plo: fula/escrita, presenga/auséncia etc.) nunca é um face-a-face entze ida (1972), p. 87-88, Perrida (1967), p. 411 120. [REIISCUTIRTEXTO, GENERO EDISCURSO | Frondo Noscimento dois termos, mas uma hierarquia e a ordem de uma subordinagio. A desconstrugdo nao pode limitar-se ou passar imediatamente a uma neutralizagdo: ela deve, por um duplo gesto, uma dupla ciéneia, uma dupla escrita, praticar uma reversiio da oposigio classica e um deslacamento geral do sistema, E'somente sob essa condigdo que a desconstrugao achars os meios para intervir no campo das oposigdes que ela critica, que é também um campo de forcas nao discursivas’, Todavia, esse didlogo de Derrida com Ferdinand de Saussure seus herdeiros serd interrompido a partir dos anos 1970 por um inte- resse progressivo em relagio & teoria dos speech acts de Austin, ¢ nao, como no caso de Foucault, em relacao a Searle, Isso gerou uma res- posta bastante polémica de Searle e uma tréplica de Derrida, euja do- cumentagdo est4 compilada em Limited Inc.® Na impossibilidade de referir toda a complexidade das nogdes que Derrida desenvolverd a partir da famosa conferéneia de 1971, “Assinatura Acontecimento Contexto”, reproduzida tanto em Margens — da filosofia (1972) quan- to em Limited Inc, aponto sumariamente que o interesse estratégico de Derrida pela categoria do texto em si mesmo seré deslocado histo- ricamente pelos valores de acontecimento € contexto, em relagdo 20s quais se constituem as nogdes cortelatas de assinatura e de contra- assinatura. Estas, por sua vez, tém tudo a ver, embora com conseqiiénci- as bastante distintas, com o leitor-intérprete barthesiano. Ainda de modo sumério, levanto a hipétese de que tudo o que interessa & chamada desconstrucio, se ela existe, passa por questdes institucionais, mais espe- cificamente pelas humanidades no ambito da universidade, desde sempre articulada a um “fora” que a excede. O texto s6 interessa agora como operador de leitura visto dentro de um contexto pragmatico de interpre= taco, que é tanto o do espaco universitirio quanto o de seu entorno, de alguma forma o “mundo”, hoje em sua fase de globalizagao ou de mondialisation, como se diz em contexto frances. 25, Derrida (1972),p. 392, TETO, TEMUALDADE,CONTEXTO. 121 A awrroporacia, Por EXEMPLO Assim, texto é “para mim” (categoria barthesiana retirada de Nietzsche)”, o que resiste a idéia mesma de “idéia” enquanto recorte na idealidade da significagao. Texto se relaciona ao que atualmente chamo de ‘materialidade, uma insténcia que seria da ordem de um quase-transcendental, dotada ao mesmo tempo de uma poténcia transcendentalizante ou generalizante, se se quiser, e de uma dissimétrica poténcia empirica. Trata-se de um “idealismo empirico”, se tal coisa pode ser pensada. Algo como a forga de um pensamento que necessita do acaso para acontecer, mas que s6 se efetiva em tais ou quais circunstancias, em didlogo intensivo com tais ou quais interlocutores, a partir de textos especificos, datados, localizados: Os vinculos entre as palavras, 05 conceitos e as coisas, a verdade e a referéncia nio sio absoluta e puramente garantidos por alguma metacontextualidade ou ‘metadiscursividade, Por mais estabilizado, complexo e sobredeterminado que seja, hd um contexto apenas relativamente firme, sem firmeza nem fechamento absolutos, sem pura e simples identidade asi, Hé nele jogo, dferenca, abertura; ‘hd o que chamei noutro lugar de ‘suplementaridade’ (Gramatologia) ou de “parergonalidade’ (La Veritéen peinture). Elas vem embaralhar ou complicar Derigosamente os limites entre o dentro eo fora, numa palavra o enquadramento de um contexto®, Desconstruir, dentro de determinados contextos (politicos, econd- micos, filos6ficos) traz a ambivaléneia de uma reflexdo que desmobiliza campos constituidos de sentido (até certo ponto o que Barthes nomea- va como daxa)” quando, por essa via mesma, possibilita outra perfor- mance dos sujeitos falantes, escreventes, multiplamente atuantes, Dai 28, Cf Barthes (1994), p, 1493-1530, 29, Derrida (1990), p. 279-280, 30, Daxa 6 um termo grego que significa, nos textos de Plato, por exemplo, a opiniio ‘corrente, irefletida, em contraposigto ao pensamento filos6fico, o qual, or meio do método dialtico, visava compreendera verdade profurda das coisas, desprendida da visto superficial da vida cotidiana. Em Barthes, otermo designs os esterestipos ou clichés culturas, sobretudo ‘aqueles que sioconsumidos ireefctdamente pela pequena e mdi burguesia, Barthes se relerie ‘Adaxa como um grande inimigo de seu pensamento ertico, sobretudo nos anos 1970. Todavia, _Podemos remontar essa reflexdo ds Miolagias, publicadas no fal dos anos 1950, ivro no que texto © desconstrugio, relacionados a contextos histéricos, resul- tem sempre em intervencoes politicas, estéticas, éticas, pois poem pragma- ticamente em questiio valores pré-dados, Se é preciso dar um exemplo de “abordagem’” do texto do ponto de vista da desconstrugio, 86 posso fazé- lo individualmente, como aquilo que tem sido possivel até aqui “para mim”, Porém, antes de referir sumariamente tal exemplo, chamo atengao para 0 fato de que o termo “sbordagem” supée ainda uma exterioridade do sujeito intérprete em relacdo a seu suposto objeto. Ora, tudo o que importa na visada desconstrutora é exatamente a impossibilidade de se parar de modo asséptico o sujeito do objeto do saber". De modo sucinto, diria que 0 sujeito de um discurso s6 interessa em sua articulagdo perma- nente com seus objetos, que nunca sio inteiramente passivos. Certa subjetivacio do objeto ¢ fundamental para entender que a interpretagio nao é em hipétese alguma simples aplicacdo de método. Método, se ha, este se faz no acontecimento da leitura, como caminho ou via de acesso ao outro, essa alteridade investida como objeto-sujeito da interpretagao. De tal modo que, bem longe de uma andlise distanciada, essa outra “pi tica de leitura” (como se dizia outrora) implica investimentos de subjetivagdo, contextualizagao biografante e efeitos de sentido. Menos do que a significagio ou a estrutura que se possa retirar de um texto, ‘importam os efeitos (sempre pragmiticos) obtidos nos atos de ler. Ler & sempre uma agdo, um ato, uma préxis dentro de determinadas circuns- ‘tancias, segundo certas convencdes, que engendram sentidos jamais pre- viamente controliveis de maneira absoluta. Daf a leitura desconstrutord ser dotada de uma forga que também consiste numa fraqueza: $6 @ alteridade radical do inteiramente outro (tout autre) responde pelas conseqiiéncias, inesperadas, do ato de ler: “A desconstrugéo nao exist em algum lugar, pura, propria, idéntica a si mesma, fora de suas inset des em contextos conflituais e diferenciados, ela sé ‘é’ o que ela faze que se faz. com ela, ali onde ela tem lugar”. Cito entdo neste ponto a releitura da antropofagia que venho faze como a eventualidade de uma pragmitica politica ¢ estética, amplas ética, dentro do contexto nacional. A antropofagia é um ritual antigo 31. Oposieao metafisica que compareeejé no Crate de Plato, por exemplo, ‘32, Derrida (1990), p. 261 deglutigio do homem pelo homem, mas teve todo o destaque na corres- poncéncia e nos textos dos primeiros navegantes e dos missiondrios em torras brasileiras, a partir do século XVI. Deram testemunhos de repulsa ou relativa compreensio do assunto autores como Pe, Manuel da Nobrega € 0s franceses André Thevet e Jean de Léri, dentre outros. Em 1928, 0 eseritor paulista Oswald de Andrade lanca seu famoso “Manifesto Antro- péfago”, fundando igualmente a Revista de Antropofagia, em que colabora- ram diversos escritores modernistas. A proposta de Oswald era tirar pro- veito da antropofagia como simbolo de selvageria dos indios brasileiros, a fim de rediscutir as relagdes de dependéncia cultural com a Europa. O ato simbélico de “comer” carne humana perdia seu caréter negativo para se tornar um gesto afirmativo: nés, brasileiros, intelectuais, artistas, professo- es, pessoas comuns “devoramos” o outro europeu para dele retirar as ‘melhores quatidades. Desse modo, nossa nacionalidade cultural sera sem- pre um hibrido do mais autenticamente “primitivo” (termo a ser utilizado ‘com todas as aspas depois de um século de novos estudos etnolégicos) e do ‘civilizado”, que assimilamos por meio dos mais variados rituais e gestos sntropofigicos: leituras, viagens & Europa, didlogos com o estrangeiro ete. O movimento antropéfago terd desdobramentos amplos muito além do prdprio Oswald, tornando-se uma espécie de “bandeira” modernis- a, que atravessard praticamente todo o século XX, como possibilidade de reduzir os efeitos negativos da dependéncia cultural em relacdo a Huropa e, depois, aos Estados Unidos. Artistas e intelectuais como Maroldo © Augusto de Campos, Caetano Veloso, José Celso Martinez Corréa e Silviano Santiago legitimaram a antropofagia, a qual interessa amente agora, na abertura do século XXI, comegar a desconstruir, io para negé-la, mas sim para reavaliar sua heranca. Desse modo, para mim, a “questéo antropofigica” hoje por excelén- feria: 0 que posso fazer com o outro além de “devoré-lo”? O que 8) Para una bibiografi minima sobre a antropofagia no Brasil, lém das pr6prias ds obras ld cle Andrade, pela editora Globo, que contam com excelentes estudos assinados pot Prado, Faroldo de Campos, Benedito Nunes Antonio Candido (ef. 1995), vale destacat nes Seguintes publicagSes: Tours, G. M.et ali. Oswald plural, Rio de Janciro: EAUERI, Goes, H. T. Antropofaga, in: Fovsexpo, B. (org). Canceitos de literatura e cultura Juiz de Fora: EAUFF/EAUFJF, 2008; Varoso, C. Verdade topical. Sao Paulo: Cia, das 1 1907; BasvextUna, M.E. A vanguarda antropofigica. So Paulo: Atica, 1985. fazer entao com a linhagem antropofigica que vigorou a partir dos tex- tos de Oswald de Andrade, dentre outras referencias? Ao acontecimen- to de relativa inversio do legado colonial que foi a antropofagia, é pre- ciso propor estratégias que mostrem a necessidade hist6rica daquele esto e, por isso, mesmo seus limites filos6ficos, interpretativos, estéti- cos, existenciais. Nisso, a problematica da devoragao do outro é decisiva para desmobilizar essa forma de violencia, a antropofagia, que apenas repe- te, na diferenca, a violéncia colonial original, violéncia que, nao se deve esquecet, é também criadora ou instauradora de paradigmas culturais, rastro colonial abre novas possibilidades para 0 movimento de disse- minago de sentidos. Trata-se de ler ¢ reler os textos assinados (ou performados) por Oswald de Andrade como formuladores de uma teo- tia e de uma praxis — de uma intervengao cultural — da antropofagia, visando reverter ¢ deslocat 0 paradigma devorador, através de mecanis- ‘mos que chamo de interversao, ou seja, outro modo de verter a narrati- va ou a ficgio do outro, ou dos outros, sejam os europeus, sejam os autéctones “caratbas”. Essa “abordagem” 6 pansemiolégica ¢ multidisciplinar, na medida em que se interessa nao s6 pelos escritos de Oswald, mas por tudo o que se fez a partir deles, como na pintura (Tarsila do Amaral), no cinema (Jilio Bressane, Glauber Rocha), no teatro (Zé Celso), na mtisica (Caetano e Gil), dissecando e reelaborando 08 pressupostos filoséficos — hegelianos, kantianos, platonicos — da deyoragio antropofigica. “$6 a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filoso- ficamente”, diz, o “Manifesto Antropéfago”, apontando para uma su- posta identidade nacional. O que nos une é a devoragao, havendo nisso uma inversio do mito canibal, que viria evidentemente para destruir os acos e confirmar 0 dogma de Hobbes, segundo o qual o homem é Jobo do homem. Para Oswald, o que nos identifica é 0 selo da degluticao, como lembra a data comemorativa dos 374 anos da Deglutigao do bispo Sardinha, data da assinatura do Manifesto, o que em calendario cristao 34, Andrade (1995), 47. corresponde a maio de 1928, quando se dé a publicagio do texto na Revista de Antropofagia, ano I, n. 1. © que me interessa nos textos “antropéfagos” ou sobre antropofa- {gia de Oswald, muito longe de um conceito pontual, uno, homogéneo™, €0 modo como a textualidade (termo que me parece hoje mais perti- nente do que texto, pois assinala um proceso conceitual aberto, uma articulagiio em rede e nado um campo fechado) antropofigica vai se ar- mando nos mais diversos registros (manifestos, textos ficcionais, te- ses), interagindo polemicamente com os diversos outros conceitos da época, sobretudo 0s conceitos-chave de vanguarda e de modernidade ou modernismo, e construindo uma maquina textual que terd seus efei- tos muito além da década de 1920. A seu modo, a antropofagia é tam- bém uma ferramenta de intervengdo cultural-contextual. Em suma, a questo fundamental 6: saber como, a partir do “Manifesto Antropéfa- 0” de 1928 (texto ambiguo entre o manifesto estrito senso eo epigrama), com Oswald mas para além dele, se arma um novo mito nacional, como tentativa de dar conta da heranga colonial, em moldes ndo mais estrita- mente romanticos, mas ao mesmo tempo, tanto quanto as vanguardas, sendo legitimo herdeiro do romantismo. E a questo da antropofagia é paradigmatica para se pensar como a problemstica do texto é sempre institucional, e muitas vezes em intime- 108 sentidos. Se 0 “Manifesto” ¢ publicado primeiramente em jornal (como também é 0 caso do “Manifesto do futurismo”, de Marinetti)", ele acaba por se situar nas fimbrias da instituicdo literdria, no sentido de que ela igualmente passa pela midia para atingir o grande piblico. Contudo, a meu ver, a literatura como instituigao é, sobretudo, univer- sitéria, académica no sentido mais estrito. Nao por acaso, hoje prolife- ram ensaios e teses sobre a antropofagia, em sua maioria aliando-se & postura oswaldiana, que sem diivida é genial e revoluciondria em sua proposta (embora certo conceito de revolugao deva ser justamente desconstruido). Porque as duas teses que Oswald escreve, utilizando a 35.0 proprio Oswald confessou que iso cra impossive,aleomo Duchamp jamais conseuin lleinirde modo absolsto seu ready-made, outro termo operatériofandamental do século XX. 36. Marinetti (1983), antropofagia como instrumento operatério, confirmam a necessidade de legitimagao tanto do conceito antropofigico quanto de seu autor". Ambas. carecem de uma legitimagiio no dmbito das humanidades, legitimagao que 4 universidade, em primeira instincia, nao Ihes dard. Num primeiro mo- mento, 0 autor Oswald de Andrade e o texto antropofiigico terio as por- tas vedadas na bem jovem instituigio chamada USP. Serio preteridos por outro conjunto de valores que faré escola, e esse é um capitulo ainda nao muito bem narrado da cultura nacional. Mas se numa primeira insténcia 4a universidade thes fecha as portas, hoje ela Ihes abre, com outros inte- resses e valores. © professor frustrado que Oswald foi também hoje faz ‘escola, & sua maneira, incomodando certamente a muitos que se alinham 4 outras escolas e correntes. A antropofagia agora profere, professa, voci- fiera seu desejo de devoracao, e é isso o que justamente interessa. Minha questo, repito, seria: 0 que posso fazer do outro (europeu ou autécto- ne) além de devoré-lo? Como diz, Derrida, em “II faut bien manger — Ou le calcul du sujet”, respondendo a Jean-Luc Nancy: [.Jeomo se deve comer bem? 0 que isso implica? O que € comer? Como regula essa metoniiia da introjecdo? Eem que a formulago mesma dessas questdes na linguagem ainda da de comer? Em que a questo, se vocé quiser, écarnivora? A ‘questo infinitamente metonimica a respeito do ‘il fautbien manger’ [é preciso comer bem/é preciso de fato comer] nao deve ser nutritiva apenas para mim, para um eu, que entio comeria mal, ela deve ser compartithada, como voce talvez diria, e nfo apenas na lingua. ‘I faut bien manger’ no quer dizer primei- ramente prender e compreender em si,mas aprendere dar de comer, aprender-2- dar-de-comer-ao-outro. Nunca se come 56, eis a regra do ‘il faut bien manger: uma lei da hospitalidade infinita.E todas as diferengas, as rupturas, as uerras (pode-se mesmo dizer as guerras de religiéo) pdem em jogo esse ‘comer bem™. Como se encontra explicitado nesta citagdo, “II faut bien manger” tem uma ambivaléncia em francés, que Derrida vai explorar em toda essa entrevista-artigo com o filésofo Nancy: “Il faut bien manger” significa: 87, Andrade, op. cit. 38, Essas questbes sobre antropofagia foram desenvolvidas na conferémcia de abertura, A Aesconstrugao'no Brasil’ uma questio antropofigica?”, que realize no Simpésio Desconstrucio «Contexios Nacionsis, organizado pelo Grupo de Estudos em Critica Contemporinea (GRECC), tna Unesp de Araraquara, em 20 de junho de 2005 39, Derrida (1992), p. 296-297. Toda a aposta do trecho ests na duplicidade da expresso francesa “il fautbien manger": é preciso comer bem ou de fato é preciso comer, 1. “Fi preciso comer bem" (no sentido qualitative, mas também quantitativo); 2 “Ei preciso de fato comer”, ou seja, no se pode viver sem co- mer — pouco ou muito, € preciso comer. Para Derrida, o problema consiste entdo em saber 0 que € como comer, ja que é inevitavel devorar algo ou “alguém” para viver ou so- breviver. Comer deve necessariamente incluir o dar-de-comer ao outro para poder comer-junto, coisa para a qual os adeptos da antropofagia simbélica no Brasil e em outros lugares jamais atentaram, pois sempre pensaram a devoracao como um ato afirmativo e individual, O texto, ou a textualidade, da antropofagia” nao é, portanto, jamais, esgotivel. Mas isso acontece nao porque seja dotado de uma maravi- Ihosa polissemia, como durante muito tempo se acreditou, apegando-se desse modo a uma imanéncia do sentido, que estaria sempre lé no fun- do, como um tesouro a ser resgatado. Imanéncia que se resolvia numa transcendéncia absoluta, na medida em que, uma vex descoberto que 0 Significado xiltimo permanecia para sempre inacessivel, descambava-se — alguns ainda o fazem — num culto mistico da Obra, como dotada de uma significagdo inefivel, um segredo preservado para a Eternidade. Hoje podemos pensar que, se a forga de um texto reside em sua inesgota- hilidade, isso se deve ao fato de que ele sempre pode ser rearticulado a novos contextos, confirmando o que havia dito acima, que nao ha o texto em si, mas uma organizagdo de signos, marcas e vestigios que se organizam historicamente como formacdo ligada a um contexto espect- fico. E essa organizacdo signica e vestigial serd redimensionada em perinanéncia pelos novos contextos que vao emergindo no curso da his- t6ria. De modo tal que munca hé 0 mesmo texto, a despeito de todas as, aparéncias de preservagio da estrutura original (atitude filol6gica sem- pre louvavel e absolutamente necesséria), mas um devir-texto do texto que ganha sua materialidade no didlogo com outros textos (livros, en- saios, falas, proferigies de toda ordem, em miiltiplos registros), didlogo que depende sempre dos ativos leitores para continuar existindo. De 40. Chamo, assim, de “textualidade da antropofagia” tudo 0 que se produziu em termos culturais no Brasil, tomendo como referénciao legado antropotégico de Oswald de Andrade, para corroer os aspectos nocivos da heranca colonial ‘um modo ou de outro, um texto 6 passa a existir nessa atividade de interpretagdo que, com toda ambivaléncia, o confirma em sua fatura original ¢, por outro lado, o leva a dizer coisas jamais previstas por seu autor, traindo mesmo certa camada da intencionalidade autoral que toda obra enquanto tal carrega: (Quer se trate de experiéncia pré-discursiva, quer de speech-acts, a plenitude é, de uma s6 vez, o que orientae ameaga 0 movimento intencional, seja este ou niio consciente, Nao hé intengdo que nao tenda para ela [a plenitude), mas tampouco nfo ha intenco que nfo a atinja sem desaparecer com ela Um texto nao é jamais esgotavel porque, de modo correlato, ne- nhum contexto 6 saturdvel, pois nenhum contexto detém o conjunto potencial das significagdes passiveis de se manifestarem’, A potencialidade existe e deve ser levada em conta, mas também deve-se contar com aquilo que hé de mais incalculavel num contexto, ou seja, a imprevisibilidade das derivas de leitura. Ha sempre um fator de acaso (azar ou sorte) que permite um tipo de leitura que nenhum programa inscrito no texto original faria prever. Alids, as interpretagdes que se dio como verdadeiros acontecimentos dependem dessa imponderabili- dade da leitura, que articula determinadas marcas textuais a fatores que estdo circulando num determinado contexto, muitas vezes na pers- pectiva de contextos anteriores, abrindo assim para outros tantos ain- da por vir. Esse jogo entre determinacao ¢ indeterminacao, regularida- de e acaso se inscreve no préprio uso da lingua: Porém, a lingua é apenas um dos sistemas de marcas que témn todos como pr0- priedade essa estranha tendéncia: expandir simultaneamente as reservas de indeterminacao aleatéria e os poderes de codificacao ou de sobtecodificagao, emoutras palavras, de controle e de auto-regulacéo, Essa concorréncia entreo aleatério ¢ 0 e6digo perturba a sistematicidade mesma do sistema, cujo jogo todavia ela regula em sua instabilidade. Qualquer que seja a esse respeito sta singularidade, o sistema lingiistico desses rastros ou dessas marcas nao seria sendo, parece-me, um exemplo dessa lei de desestabilizagdo®. ‘Aquilo que Derrida chama de contra-assinatura seria dessa ordem, pois no apenas visaria desenrolar o programa previsivel do texto, mas 41. Derrida (1990), 234 42. Bid, p. 46. 43, Derrida (1984), p. 20, também permitiria, em determinado contexto, a enunciagio de algo total- mente diferente, que possa mesmo abalar o todo da obra dita original, revertendo os antigos sentidos em um fator radicalmente diferencial. Porque o que chamamos de sentido sé emerge como de fato novo, como fato novo, na diferenga, no diferimento ¢ na dilatagao do contetido pri- meiro de outro texto. Sentido nunca é o que jé esti lé (por mais precioso que seja 0 contetido da arca), mas se torna aquilo que emerge na articu- lagio contextual, a que apenas a leitura intensiva dé vez e lugar. Se 0s métodos de “abordagem” proliferam hoje, tornando quase im- possivel um recenseamento exaustivo das iniimeras possibilidades, 6 por- que 08 contextos de recepedo ¢ leitura cada vez menos se deixam saturar. Por mais que isso nos aflija, nao hé como desejar um método hegeménico de leitura, mesmo porque, como dito, a questo do método nao se coloca em termos de aplicacdo de regras e conceitos a textos especificos. Embo- 1a isso possa continuar acontecendo dentro de uma linha exegética tradi- cional, a riqueza, a meu ver, absolutamente inédita dos anos 1990 em diante, esté em que cada pesquisador pode inventar seu método pessoal a partir das multiplas ferramentas conceituais existentes. Mantendo evi- dentemente um minimo de coeréncia, para nao cair no ecletismo indcuo, pode-se escother dialogar com virios pensadores do século XX, bem como ‘com os dos séculos anteriores ¢ os de agora. Interessa a congruéncia do percurso e um ménimo de lucider.na opcao dos valores. Pois, afinal, nem todos os métodos ou, como prefiro, nem todas as estratégias se equiva- lem. Hé que se reconhecer a forga de cada estratégia, a fim de instru- mentalizé-la num contexto especifico, que, como dito, é sempre institucional. Quando falamos de texto ¢ de leitura, estamos sempre tra- tando de contexto institucional, mesmo que no nos demos conta disso. Eas instituigdes existem pela convergéncia de regras preexistentes e de individuos que remanejam tais regras e valores prévios, a partir de textos coneretos. De modo que daf resulta uma combinagdo complexa de atitu- des individuais, de reagdes coletivas, de mapas conceituais, de estratégias polfticas, éticas e estéticas de comportamento, tudo isso sendo determinante para a elaboragdo final das leituras: ‘Tentei mostrar noutro lugar [em La Carte postale] porque a inscrigao do nome préprio, de certa autobiografia ¢ de uma projegéo ficcional deviam ser cconstitutivas do discurvo psicanalitico, na estrutura de seu acontecimento, Este tiltimo coloca em si mesmo as questOes da sorte eda literatura, Nao é que toda Fiogio e toda inserigio do nome préprio tenham wana dimensdo literdria ou uma relagio com a obra de arte como tal. Mas elas surgem nesse lugar em que, entre 0 ‘movimento da ciéncia —notadamente quando ela diz respeito a estruturas alea- t6rias —, 0 da filosofia, o das artes —literdrias ou nfio —, os limites nfo podem ser reais e iméveis,sélidos, apenas os efeitos de um recorte contextual. Nesse sentido, cada sujeito-eitor detém uma histéria que permite ‘uma interlocugdo diferenciada com os miiltiplos textos e contextos, Des- se modo, exponho a questo decisiva para a abordagem textual ou para a estratégias de aproximacdo textual que ¢ a formacao do leitor especia- fizado, assunto capital que ainda no encontrou a sistematizacdo neces- sdria. Noutras palavras, ler um texto é uma atitude que resulta de um percurso formativo (sempre aberto, e no como uma Bildung completa e fechada)*, dentro de regimes institucionais estritos, e numa temporalidade relativa, Certamente nao se léem hoje textos na PUC/RJ como se liam na déeada de 1980, época de meu mestrado, nem na USP, nem na PUC/SP, nem na UFMG, nem na UFRJ, onde me doutorei. Certamente hé sempre uma continuidade entre as épocas, dentro da mesma instituicao; porém, se 0s sujeitos que ensinam vo mudando, a escotha e a estratégia textual decerto mudam também. Os textos de hoje nao sio mais os mesmos de ‘ontem — ainda que possam ser nominalmente “repetidos”, ou seja, cita- dos —, porque as instituigdes e os métodos correlatos vao se transfor- mando no meio do camino. E, em termos de método, estamos sempre no meio do caminho, por isso somos eternos insatisfeitos, precisando muitas vezes reformular os conceitos, sob risco de imobilidade. Barres, R(sd.). Aula. Trad. Perrone-Moisés. Sio Paulo: Cultrix. (1984). A cdmara clara: nota sobrea fotografia. Trad: Jilio Castafion Guimaraes, Rio de Janeiro: Nova Fronteira 44, Ibid, p. 41. 45. Cf. Lyotard (1979). (10982). cCrticaeverdade, Trad. L. Perrone Moisés. Sto Paulo: erspectiv (1981). Fragmentosdewm discurso amoraso. Trad. Horténsia dos Santos. Feaneisco Alv (19913), Oeuvres completes. v.1. Pars: Sei (1994). Oewsres comptes v- TL. Paris: Sei (1995), Ocwres competes. v. 1H. Paris: Seuil. (197), O praserdo texto. Trad. J. Guinsburg, Sao Paulo: Pesspectiva (1988). O rumor da lingua. Trad: M. 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