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Maquiavel Os Pensadorés Os PensadoréS faquiavel “Aqueles que somente por fortu- na se tomam principes pouco trabalho idm para isso, € claro, mas se mantém smulto. penosamente, Nao tm nenhu- ma dificuldade em aleancar 0 posto, porque para al vos; surge, porém, to- da sorte de dificuldades depois da che- gada_ £ 0 que acontece quando o Esta- do foi concedido 20 principe, ou por dinheiro, ou por graca de quem o con- “Quem se toma senhor de uma ci- dade tradicionaimente livre © nao a destr6i sera destruido por ela. Tais ci- dades im sempre por bandeira, nas re- belies, a liberade e suas antiga: leis, que ndo esquecem nunca, nem com o comer do tempo, nem por influéncia dos beneficios recebidos.”” ~& mais prudente ter fama de mi- serivel, © que acarreta m4 fama sem dio, do que, para conseguir a fama de liberal, ser obsigada a incorrer tam- bém nia de rapace, © que coristitul uma infamia odiasa.” “Deve o principe fazer-se temer de mangira que, se ndo-se fizer ama- do, pelo menos evils 0 Gdio, pois ¢ fa- il ser a0 mesmo. tempo temido e nia “A um principe pouce deve im: portar a5 conspiragées se é amado lo povo, mas quando este é seu ini = € 0 odeia, deve temer tudo © 2 to» wy MAQUIAVEL: Principe Os PensadoréS CIP-Brusil. Catalogacgo-na-Publicugae Camara Brasileira da Livro, SP ML36p Jed. BROWS Machiavelli, Nicotd, 1489-1527. © Principe Escritos polsiens / Nicolas Maquiavel « tradiigoes de Livio Xavier. — 3. ed. — $40 Paula : Abril Cultural, 1983. (Os peasndores) Inelui vida #:obra cle Maquiavel, Bibliograft. 1. Politica 1, Xavier, Livio, 1900-11. Titulo: © Principe, 1M. Ti- tuto: Eseritos politicos. IV. Série, €DD-320 indices para catdlogo sistemation: 1. Citneia polities. 320 2 Politics 320 NICOLAU MAQUIAVEL O PRINCIPE ESCRITOS POLITICOS ‘Trudugdes de Livio Xavier 1983 EDITOR: VICTOR CIVITA Titus orig We Prancy Del Modo dl Tratare ? Popol della Vatldic hana Rite Dalle Lesesione a! Duea Valenti Deairiziont del Modo Tea Dal Daca Valentino nella Amvnaszare Vitellozea Vireli, Gitseroico da Ferm it Signor Pagato e 4! Oued wi diravina Orsini Discourse sopra Te Coie ai Alemagrce © Sepra Fomperatore Rupporta di Cost defla Magna Ritraun desl Coue del" Alegre Della Nature det Framcesi Ruiraty dette Cese dt Francia Descorso Fano at Magistraro dei Dic! Sopra fe Case di Pisa Diwan Sulle Praniviont det Oarae Semoraric: Bulle Cose delta Cad ai icrae ts © Copyright desia edie. Abel $A, Cultural, Say Paste, 1973 — 2 eeigio 1980 — 3. eign 1083, Treaurgirs pablicadas sob llseng de D: Giowa Inéisttiss Grafieas 5.4. Sav Paulo, ‘Dineilos exclusives sobre “MAQULAVEL — Vida e Obra” Abril S.A. Cultural, Sio Paulo. MAQUIAVEL VIDA E OBRA Coniultoria: Carlos Estevum Martins 9 ano de 1513, na cidade italiana de San Casciano, um exi- lado politico ocupa-se tadas as manh3s com a administra gao de pequena propriedade onde esti confinade. A tarde, joga car- {as numid hospedaria com pessoas simples do povoado, A noite, veste trajes de ceriménia e passa a conviver, através da leitura, com ho- mens ilusices do pasado. Chama-se Maquiavel, 6 de estatura média, magro, fronte larga, olhas penetrantes e ldbios finas, Ao meditar sobre assuntos politicos. alia o fecunda diilogo com autores antigos & longa experiéncia da mundo moderno, adquirida numa vida infeira dedicada acs negécios piiblicos dorentings. Um dos resultados dessa meditagio 6 um peque- no livre, O Principe, que contém ensinamentos de come conquistar Estados e Conse'vd-los sob dominio; em sintese, um manual para gb- vernantes. © autor dedicou-e a Lourenge II (1492-1519, putentade da fa~ mifia dos Médicis e duque de Urbino, mas o soberano acolheu mente a ddiva © ndo teve tempo para aprenderthe as licdes, pais f feceu loge depois. Outros, no entanto, parece que souberam aprcvei- té-las muito bem, Foi o que demonstrau, por exemplo, o monarca in- glés Henrique Vill (1491-15471, ao forjar o eélebre caso da anulagao. do matriménio com Catarina de Aragia: (1485-1536); esse andl fol que lhe permitiu separar a igreja britanica da Santa $é, espoliar siste- maticamente os mastairos ¢ consolidar seu poder absoluito, Diz-se que também Catarina de Médicis (1519-1589), rainha- mae da Franga, teria seguido es ensinamentos de Maquiavel ao jegar catdlicas contra protestantes e ordenar o famoso massacre de 1572 Com isso manteve 4 saberanie pare os filhos, indolentes e incapazes de agit maquiavelicamente coma a mae. Ela era filha de Lourenco, a0 qual tinka sido dedicada a obra que; adolescente ainda, certamen- te leu interessaca. Essa € outras histérias de ardis, assassinatos @ espoliacdes de go- vernanies tém sido atribuidas 3 inspiragao de © Principe, © chegam a ter algum valor para compreende-ihe 0 significadv. Mas, frequerite- mente, servem apenas para deformar-lhe o Conteddo mais protundo ¢ a relevancia dentro da histéria das iddias. Conteddo e relevancia que 86 podem ser apreendidos quande se conhecem as circunstancias em que a obra veio 3 luz, dentro do quadro da vida pessoal do autor e vail MAQUIAVEL das coordenadas econdmicas; sociais 2 politicas da Europa dos sécu- los XV e XVI. A essas candigdes vincula-se a situagdo especial da Ita lia, patria de Maquiavel. © panorama politico da Renascenca italiana Na italia de Renascimento reine grande confusao. A tirania impe- ra em pequenos principados, governados despoticamente por casas reinantes sem tradigaa dindstica ou de direitos contestéveis. A ilegiti midade do poder gera situacoes de crise instabilidade permanente, ‘onde somente o cdiculo politico, a astiicia & a acao répida e fulminan- te conta o5 adversdrios 340 capazes de manter o principe. Esmagar ‘ou reduzir 4 impoléncia a oposicao intema, atemorizar as stiditas pe- ra evitar a subversao a realizar aliancas com outros principados consti- quem 6 eixo da administragao. Come o poder se funda:exclusivamen- te em atos de forca, é previsivel e natural que pela farca seja desloc: do, desie para aquele senhor. Nem a religido, nem a tradigao, nem a yontade popular legitimam o soberano ¢ ele tem de contar exclusiva- mente com sua eneruia criadora. A auséncia de um Estado central © @ extrema multipolarizagao do pader criam um vazio, que as mais for- tes individualidades itm capacidade para ocupar. Os condottieri sao habeis nisso. Especialistas na técnica militar, aventureiros ¢ filhes da fortuna, vendem services de seguranca e can quista ao principe que melhor pague. Os pequenos Estados nae tm recursos para financiar tropas regulares e nao € politicamente possivel a crlagdo de exércita, 6 que implica a entrega de armas ao povo, fato perigose para governantes de populagdes descontentes, Os condettie~ 1 adquirem importancta crescente ¢ alguns Conquistam principades para si c-estabelocem aliangas com reis, cardeais e papas. Esse panorama fiuido © mutavel, de um pais dividide em multi- plos Estados, Contrasia com a situagaa da maior pare da Europa oci- dental, em que alguns governos enfeixam toda 0 poder, © sofre as conseauéncias de um permanente intervéncionismo. Os principadas italianns apelam freqfientemente para as monarguias absolutas euro péias, 2 fim de solucionar as disputas internas; com isso a Italia torna~ se vitima_impotente. Alguns pequenos Estades sofrem a soberania do Império Germanico, ¢ Franca e Espanha disputam a posse de warins de seus territories, E estainho qué tudo isso acontecesse num pais cuja economia ti- nha conhecido multe antes as formas responsaveis pelo poderio espa- nhol, frances @ inglés. Na verdado, © capitalismo comercial ja tinha quase dois séculos na Italia quando. surgi nos demais patses ¢ funda- mentou as monarquéas absolutistas. Mas seu desenvolvimento na pe- ninsula foi diferente e a congclagio do capitalisme italiano parece ter resultada da. prépria éxito econdmica, expressada sob, a forma de uma expansao bem sucedida da capital mercantile financeiro. A nas- cenfe economia comercial italiana, a partir do século XI, articulava- se como mundo feudal circulante, estreitande vinculos de dependén- cia reciproca, A clientela era constituida pela Igreja, Estados feudais, grandes senhores de terras, cortes aristocraticas © camadas superiores VIDA E OBRA x da burguesia, assim como pelas coroas-representativas dos interesses dos noves Estados nacionais curopeus. As necessidades de consume desses selores especializaram a economia na producao de tecidos ca~ 13, no comercia de especiarias do Oriente ¢ nos nagécios bancarins com 05 patentados dos demais pafses. Essa solidariedade entre a eco- homia Raliana e as. condigdes e conttadighes caracteristicas da Eurv- pa medieval acarretard sua muina, quando ocorrer a decadéncia da or dem feudal, Por outro lado, a relativa facilidade com que os senhores feudais sao aiastaias do poder nos niicleos burgueses mais fortes eli- mina a necessidade de unificag30 nacional come larela socialmente necesséria. A burguesia dispense o monarca comic pega essencial pa- ra submeter os senhores feudais, como ocarre no caso classica da Franca. Ela mesma se concebe como aristocracia reinante, mas. a or- ganizagao estatal resultante sofre de uma debilidade insandvel, mos- trando-se totalmente incapaz de fazer frente aas gigantescos apare- Ihas de Estadka, em vias de aparecimento. A producao manufatureira, instalada nos territories das antigos clientes jtalianos, procura ampliar mercados, abaixando os precos dos produtds e etinbelecendn mitdides de rigida palltica, prenmcioni- ta, Apesar disso, a decadéncla acentua-se, especialmente depois da queda de Constantinopia para 9s turcos, em 1453, e da descoberta do caminho maritime para as Indias, em 1494, acomtecimento que deu primazia: aos partugueses € espanhdis no comeércio com o Orien- te. A fraqueza militar © politica da peninsula, jd no comego do sécu- lo XIV, representa fore impedimento pera Expansde.¢ acumulacae de capital, Perindicamante, organizam-se prograns antilombardos & as ci dades italianas no tm como se garantir das declarages de faléacta dos reis curapeus. A lidlie é, assim, desarmada politica, militar e insti- jucionaimente pelo anacranismo da organizagao das cidades-Fstado # pela auséncia de lideranga central incontrastével. A cssas razées acrescenta-se a politica tempcral de papado que, nao sendo suficien- tementé forte para reduzir todos os Fstadas ao seu dominio, nao também to fraca a ponto de impedir a unificagao, através da figura de um principe secular. No século XV sido evidentes 0s simtomas da decadéacia. Florencs envie seu Ghine nevie para lyglaterea ear 1480. Lourengo, & Magni= fico (1449-1492), @ Julio de Medicis (1453-1474) insialam marutan- fas de lanificio no arquipélago briténico e 33 bancos florentinos trans- ferem suas sedes para Lyon, na Franca, Um jovem entra na historia E nesse panorama de ctise ecanémica ¢ politica que Nicolau Ma- quiavel vern a luz, em Florenga, no dia 3 de maio de 1469, filho de Bernardo, advegado pertencente aos ramos mais pobres da nobreza toscana. Pouco se sabe des primeiras anos de vida de Nicolau ¢ de sua edueagay, do mde as infermagges além de que leu muito vs classicos jatings e italianas, mas nao dominau a grego Do fim da adolescéncia em diante sua biografia confunde-se x MAQUIAVEL com 2 hisidria de Florenga e da Itdlia, da qual nao pode ser desligada sob pena det nao ser possivel compreender-Ihe « significado, Em 1494, quanda 0s Médicic s40 expulsos de Florenca @ instala~ $@ © severo regime republicano co monge Savonarala (1452-1498), Maauiavel iniciase na vida publica, trabalhando na chancelaria em €argos de pouca importincia. Quatro anos depois, a opasican: inter- na, sustentada pelo papa Alexandre Vi (1431-1503), depée, enforca & queima Savonarola, e Maquiavel & indicada para o posto de Segundo Chaneeler da Republica. Como funcionsria permanente, & mero executor das decisdes dos aitimati, em nome dos quais administre os negécios ¢ relagoes ex- ternas da repdblica, £ comissionado no Canselho des Dez da Guerra ¢ enlrents os problemas decorrentes da decadéncia do imperialismo florentino em relac3o as cidades vizinhas, apoiadas por poténcias es- trangeiras, Especialmente importante & a longe guerra Contra Pisa, has- tide. comercial © principal escoadouro dos produtos de Florenca. O episédia mais marcante de conilito é 0 da participacio do condattie~ re Paolo Vitelli, camandante das’ tropas florentinas. Depois de algu- mas vilérias significatives, Vitelli cetém-se as portas da cidade inimi~ ga, nao desfecha o ataque final © € acusade de fazer jogo duplo, Ale- ga razdes de conveniéncia miltar a nega todas as acusacoes de ter-se vendide ads pisanos, mas, apésar dos protestas de inacéncia, é execu- ado. A “questag Vitelli” suseita pela primeira vez um dos temas per- manentes da obra de Maquiavel: a necessidade de organizacao de uma militia nacional, formada por soldados locais cisciplinados. 4 soberania politica — pensa ele — denende de exército préprio, cons- tituiéo por soldados leais e convictos de que lutam pela causa da pa- sri, Em sotembro do mesma ano do. ataque frustrado a Pisa celebra- se finalmente a paz entre Florenca © Franca, que até entao apeiava Pi- 94, las agura necessitava de mans livres Para dominar o reino de Né- poles, Ao mesmo tempo, a intrincada politica italiana da Renascenga faz com que os franceses se aliem também ao papado, pando em xe- que os interesses florentinos em Rimini, Pesaro, Urbino, Faenza e Imola. Apesar disso, em 1499, as trapas franco-florentinas atacam € sitiam Pisa, mas no conseguem a viétia. Q soberano francés, Luis XII (1462-1515), alribui © fracasso a estreiteza da burguesia de Flo- renca, incapaz de cuidar devidamente do anrovisionamento das for- gas, © Maquiavel € enviado a corte do monarca, como assessor de Francesco della Casa Com os franceses aprende como ere insignificante 9 peso de um pequeng Estado como Florenca nas relagbes intermacionais e, princi- palmente, que se deve confiar pouco em aliados demasiadamenté po- dernsos. Qutras embaixadas seriam feitas pelo secretirio Florentine, junto a ‘César Borgia (1475-1507) e ao papa julio Il (1445-1513), € com am- bos aprenderia também ligées fundamentais sobre a cidncia & a téni- cada politica, César Bérgia, filho do papa Alexandre VI e poderiso condottie- VIDAEOBRA XI re. invade Faenza em 1501 & avanca sobre Flarenga, oxiginda 0 retor- no dos Médicis.¢ um contrafo como defensor da cidade. © territdrio florentino do Val de Chiana se subleva e facilita a enteada do invasor. Enquanta isso, os aliados franceses hesitam em sacorrer Flarenca © a blica ameacada envia Maquiavel, juntamente com Francesco So- spo de Volterra, para parlamentar e yanhar tempo do inva- Sof, Finalmente as tropas francesas decidem intervir e as torgas do condottiese abandonam 05 territérios o¢upados. © episdcio tem grande importancia para Maquiavel, porque foi 9 Primeiro encontro com aquele que viria a ser o madela de Q Princi- pee por fazer germinar uma parie de sua producdo teérica posterior Encarregado de fazer um relaiérie sobre como tratar os revoltados do Val da‘Chiana, Maquiavel afirma ser a histéria a mestra dos ates hu- manos; especialmente dos governantes, & que-o mundo sempre fai hae bitado por homens com as mesmas paixdes, sempre existindo gover- antes © governadas, bons e maus séditos. Aqueles que so. rebelam devem, portanto, ser punides. Agrova a iwlerancia para com os habi- tanves do Val. mas discorda do tratamento aplicade em relagio a Arezzo. As tropas de César Bérgia ainda estavam por perto ¢ era peti- g050 permitir um loco de rebelizo nos limites da cidade. Maqujavel acha que Arezzo deveria softer punigao excmplar, tal como fizeram 05 romanos cam Cartago, Nas povas condigdes de guerra ¢ da politica interna flaventina, fortalece-se o pader executive e Maquiavel transfarma-se na eminén- cla parda de regime, com a dosignagao do Piero Soderini para 6 car- 8 de gonialoneiro vitalicio. Em 1503 € designado para nova musa junto a César Bérgia e com ele passa uma temporada de trés mesos. 0 filho do papa Alexandre VI representa para Maquiavel o hamem providencial, capaz de unir a Itdlia, opondo barreiras as intervencdes estrangeiras. A reflexdo sobre o destino de César Bei estard assim sempre presente .a seu espirito quando elaborar sob forma ledriea 3 pratica politica vivida. © tema da distingdo entre meios © fins pol{ti- £05, do panto de vista ético, a arte de governa e 0 projota de unifica- Gio italiana inspirar-se-do na vida © nos atos do condottiere. Ume nove fase de guerra contra Pisa encontra Maquiavel transtor mado em propugnadar das milicias locais, formadas por elementos nag mercendrios. Depois de vencer a resisténcia dos cidaddos 2 idéia, consegue vé-ia transformada em realidade cam a ctiagao des Nove das Milicias, organismo do qual sera chanceler. Em 1506 esere- ve um Discurso Sobre a Preparegao Militar Florentina, onde afirma que os Estados @ governantes dependem de dois fatores parincipais: jus» tica @ armas. Por justica entende um conjunto de boas instituigdes, mantenedoms da ordem © da esiabilidade. sociais, bases sobre as quais_poisam ser construidas as virmdes civicas. Florenga no tem nem armas nem justiga, mas podérla possuir ambas com a criacso da Milicia Nacional, capaz de originar a transiormacao moral dos floren- Hinos, Outro tema tipico de Maquiavel. allorade no Discurso, @ 0 da religiao cama icieologia, O autor dé énfase 3 necessidade de os salda- dos receberem cuidadosa preparacae religiosa, a fim de se lornarem mais obedientes. xi MAQUIAVEL Da pritica politica nasce o pensador A despeite da eriagdo das milicias @ de tade 0 empenhe de seu chancoler, a carreira politica de Maquiavel estava para sofrer sério abalo, Enquanto Florenga aliasse aos franceses, 0 papado inclina-se pela Espanha ea eposicao de interesses tem como resullado a derro- cada dos governanes da cidade. Lim pequeno exticito cerca Floren ca 2, ap mesmo tempo, eclode um levante interno pelo retorno dos Médicis. © gonialoneira Piero Soderini 6 destituido de poder © Ma- quiavel nio lem mais lugar na nova ordern de coitas. £ preso, tortura~ do, acusado de sedigao & confinedy em sua propriedade particular de San Casciano Em San Casciano, Maquiavel procura reconquistar as favores da familia que reassumira o poder; éscreve O Principe e 0 dedica a Lou- renco de Médicis. Nao ating o intento na extensio desejada, mas de qualquer farma Consegue valtar para Florenca. Gesse periode de exi- lio, & dos anas seguintes, sho 0§ Discursos Sobre a Primeiéa Década de Tito Livie, lalvex 2 mais imporante de suas obras, do ponto de vis- ta estritamente cientifico. Escreve também um poema chamado O As~ no, um agradével conte, O Deménie que se Casou, também conheci- Uo como Bellagor, e a comédia teateal A Mandragora, obra-prima do teatro italiano. £m 1520 redige o didlogo A Ante da Guerra e, logo depuis, a Vie da de Cistruccio Castracani, uma expécie de biografia romanceada do cendattiere Lucano, no qual vé a figura ideal — come jd tinha vis~ pen César Bérgia — do novo principe, necessdrio para a unificagao ja India. No mesa ano torna-se historiador oficial da republica, fungae pars a qual é indicada pelo Studio, Universidade de Florenga. Escre- ve um Discuise enderecada ao papa Leao. X (1475-1521), da familia dos Médicis, 16 qual aronselha @ pontifice a restaurar as antigas liber- dacies dla repdblica flarentina. No nove cargo oficial pae-se a escre- ver as Histérias Flozentines, obra de grande extensio, da qual oferece ite yelumes, em 1525, aa novo papa, Clemente Vil (1476-1534), também da familia dos Médicis, Compoe uma comédia, Clizia, imita gio livre da Casina de Plauto, satirizando 0 seu proprio case-amaroso. €om ums cantora chamada Barbara. Maquiavel estava casado desde 1501 com Marietta Orsini, que Ihe deu cince filhos, mas naa fai um marida inweiramente fiel. A vida amoresa, no ¢ntanto, naa era o mais importame. Ele ama- va sobretudo a cidade que o viu nascer @ os assuntus de Estado. Por is so, continua fazencle o possivel para voltar a vida publica, da qual tt nha sido exclufde em 1513. A oportunidade chega em 1526, quando é@ nomeaddo secretario dos Cinca Provedores das Muraihas, cargo no - deveria cuidar das fortiticagdes da cidade ¢ tratar da defesa em geral. Em 1527, @ saque de Roma pela farcas do imperader Carlos ¥ (1500-15585, do Sacro Império Romano-Germanico, liberta Flarenca de jugo dos Medicis. © acontecimento € saudade por Maquiavel, que via oele a possibilidade de voltar 26 comando da chancelaria. Mas 08 novos poderosus da republica esqueceram-se de amor que ele VIDA E BRA xu sempre teve pela cidade © por sua liberdade, Foi o Ultimo de seus de- sapontamentos c @ mais profundo, Nao resistinde, tornasse presa facil da doenca ¢ falece no dia 21 de junbo de 1527, com $8 anos de ida- de. A nova ciéncia politica Manuiavel faleceu som ter visto realizados os ideais pelos quais se bateu durante toda a vida. A carreira pessoal nos negdcios puibli- cos tinha sido conada pelo meic com o@ retoma dos Médicis e, quan- do estes foram destituidos do poder, as concidadaos esqueceram-se dele, um homem que a fortuna tinha feito capaz de discorrer apenas sobre essuntos de Estado. Tambem naa foi concretizado, enjyanto vi- yeu,"o ideal de uma Itdlia paderosa e unificada, Deixou perém um valiaso logado: 0 canjunta de idéias elabora- do em cinco au seis anos de meditayan forgada pelo exilio. Talvez nem ele mesmo soubesse avaliar a importincia desses pensamentas dentro da pancrama mais amplo da histéria, pois especulau sempre sobre 0g problemas. mais’ imediatos que se apresentavam. Apesar dis- So, revolucionou a histéria das tearias politicas, canstituindo um mare co quea dividiu em duas fases distintas, Até.entGo, a teoria do Estado ¢ da-sociedade nao ultrapassava os limites da especulacao filosofica, Em Platéo (425-348 aC), Anstére- les (384-329 a.C), Tomds, de Aquino (1225-1274) ou Dante (1265-1321), 0 estude desses dssuntas Vinculavase & moral & consli- tula-se como {epria de ideals de organizagdo politica e-social. A mes- me tegr nda fagem seus contemporinoos, como Erasmo de Rotter- dam (1465-15361 no Manual do Principe Cristde, ou Thomas Mort (14786-1535) na Utopia, que, na base de um humanismo abstrata e descarnado de materia concreta, constmem modelos ideais do bom governante de uma Sociedade justa © universo mental de Maquiavel & completamente’ diverso. Eri San Casciana, tem plena consciéncia de sua originalidade e trilha um nave caminho. Deliberadamonte dictancia-st dos tratsdos sistemati- cus de esculdstica medieval e, & semelhanyer us renascentistes preo- cupades com fundar uma nova Ciéncia fisiea, rompe com oO pensa- mento anterior, através da defesa do método de investigacao empiri- ca, Assim como Leonardo da Vine] (1452-1519) observa qué a expe- néncia jamais @ngana e o erro & produto do pensamento. especulati- vo, quando dele se quer tirar conseqdéncias fisicas, assim lambert Maquiavel prope estudar a sociedace pela andlise da verdade efeti- va das fatos humans, sem perder-se em vas especulagées. O abjeta de suas reflexdes & a realidade politica, pensada em termos de pratica humana concrete, ¢.0 centro maior de seu interesse @ o fendmeno do poder formalizado. na instituigao do Estado, Nao se trata de estudar o ideal de Estado, mas compraender camo as organitaghes politi- és 3 fundam, se desenvalvem, persistern e decaem. Esse exame que se pretende puramente empirico depende, comtu- do, de duas coordenadas tedricas basicas: uma filosofia da historia ¢ uma explicagao da psicologia humana. A primeira concebe o.fename- IV MAQUIAVEL no histérico nao come @ idéia eristd, segundo 2 qual o desenrolar dos fatos humanos no tempo cumpre designios givinos, diriginda-se |i- nearmente pare 9 juizo final, mas como constitufde por ciclos, que se renavam em mavimentos de revolugo em torn de si mesmos. Os f tos histéricas repetem-se nas linhas mestras;, Conhecé-los € apossar-se de-um material de recarréncia, essencial para o estudo do presente Tal concepcdo do acantecer histérico complemenia-se com uma. compreensio da psicologia humana. Maquiavel conclui, através de esiudo dos antigos ¢ da intimidade com 93 potentados da época, que os homens so todes egoistas © ambiciosos, s6 recuando da pratica do mal quando coagides pela forca da lei. Os desejos @ as paixdes se- riam as mesmos em todas as cidades € em todos 05 poves. A histéria e a psicologia, assim entendidas, nao s40 apenas instru- mmentos tedricos mas também guias para a ac30, possibilitando. a ela~ boracdo de um Conjunto de técaicas € procedimentos que estatuem 0s canones de uma arte de governo. Segundo Maquiavel, quem abser- va com diligéncia os fatos de passada pode prover o futuro em qual- quer repiblica e usar o§ remédios aplicados desde a Antiguidade ou, na auséncia dees, imaginar novos, de acorde com a semielfanga de ‘citcunistdnclas entre'o passado e © presente. Para Maquiavel, a psicalogia desenvolvida em tore do pader fundamenta o conhecimento secular ® auténomao do politico € 0 sepa- ra fedicalmente da ética ¢ do direito. Determinadas as causas da pros+ peridade da decadéncia dos Estados antigos, pade-se assim compar um model analitico para o estudo das sociedades contemporaneas, J que as mesmas causas correspandem os ryesmos efeitas. Isso nao significa, parem, que o método empirico-comparative fornece uma ti- pologia de situaghes-chaves, no estilo de um manual dogmatico. A teoria cientifica, estruturada na repetibilidade da histéria e ne invaria- de do comportamento hurnang, deve ser completada pela investiga~ 80 das peculiaridades da circunstincia sobre a qual se pretende agi. Liberdade e determinismo Isalada a situacao particular em suas multiplas determinagbes © fojtas as previsdes dos desdabramentos provaveis, 2 ciéncia do fend- meno politico cede lugar 4 ante de bem governar. Assim, o saber poli tico triunfaria sobre a teoria da histéria @ a agdo humana nao estaria condenada a seguir um cursa determinado pelo destino, como nas 1a- gédids giegas. Embora a realidade determine os limites da agio, as personalidades decididas e empreendedoras interfeririam na histéria, A ciéncia politica, enquanto pratica. supeta ento a concepcao de um universo fechado e a de uma histéria construida por periddicos & inexoravels retornas © desdobramento eiclige permanece, para Madguiavel, 0 quacro leGrico basico de interpretagio da histéria enquanto ciéncia. Ao des- dobramento ciclico junta-se um oulo nivel de determinacGes mats proximas ¢ concretas, sobre as quais Maquiavel nao fornece. indi¢a~ Ges rigorosas; compreende-as sob a denominagao geral © clissica de fortuna, VIDA E OBRA xv A fortuna prdparciaha chaves pard 0 axito da agao politica e constitui a metade da. vida que ndo pode ser governada pelo indivi- duo: Ela proporciona a occasioné aproveitada pela vir do governan- te. Em outros termos, o hamem de virtd: é aquele que sabe 9 momen- to exato criado pela fortune, no qual a agao podera funcionar com éxito, © estadista sdbio e prudente busca na historia uma situagao se- melhante e exemplar, da qual saberia extrair 9 conhecimento dos meios para a acdo € a previsdo dos efeitos. Para ser eficaz, a iniclati- va politica deve ajustarse as circunstancias. Na contabilidade de Ma- quiavel, os 50% reservados ao arbitrio e & vontade humana teriam acu circulo de operagoes possiveis no espace concreto de uma situa- (30 determinada. A acao destinada 20 éxito seria enti aquela que se exerce em compatbilidade com je qualité de‘teripi, eos homens se fiam felizes na medida em que soubessem combinar seu modo de agir com as particularidades do momento. © necessdria é manter-sc a frente dos acontecimentes, procurando imprimirthes rumo ¢ allemali- vas, dado que a fortuna é um rio impetuose e as homens devem pre- venirse com a edificacdo de diques e barragens, A vontade criadora nao passa, assim, de umn método para a agdo, pois 0 agir humane es- td condicionado pela necessidade. O carisma da vir é prépric daquele que se conforma 4 natureza de seu tempo, apreende-ihe 0 sentido ¢ se capacita a realizar pratica- mente ¢ necessidade latente nas circunstincias. No uso do instrumen- tal dos mecanismos de poder, a neutralidade moral decorreria da ade- quagio doagir & realidade: G hormem politico deve estar sempre aten- 10 40s sinals da fortuna, pols conhecera 2 ruina se, mudando o tempo @ a8 coisas, pio alterar seu comportamento, Segundo Maquiavel, a histérie mostra como o talente de alguns herdis foi capaz de extrair das circunstincias, isto é, dos. momentos propicios fomecidos pela fortuna, uma orienlacéo para a iniciativa, perseguindo-a implacaveimente, Moisés, Ciro, Romulo, Teseu — per- sonagens maquiavélicas — criaram grandes e duradouras instituicdes porque, acolhidos pela. fortuna, tiveram tirocinia para antecipar-se ao tempo e firmeze para realizar novas obras na oportunidade exata, A César Borgia nao faltou valor pare lancar-se a missao-com que a iortu- va lhe sorria, nem presteza de visao para reconhecer circunstancias fovordveis. No entanto, fol abandonade pela fortuna, quando esteve proximo Ge lograr seus objetivos, ao adoscer gravemente apds a mor- te do pat, protetor ¢ inspirador de suas ages: Mas @ irracionat partic a iguaimente da histéria, como na doenca de Borgia, © o que é previ- sivel nem sempre se cansuma. Uma atitude que desafia a fortuna po- de, portanto, froqtientemente premiar seu auter com o éxito. © homem de vind €, assim, © inventor do possivel numa situa- ga@ conerets dada, e Maquiavel, no Gitima capitulo de O Principe, exarta a casa remanie dos Médicis a canstituir, dentre seus membros, © principe virlwusu da Italia, que dela fizesse uma nagae unificada, Principadas ¢ repablicas Para Maquiavel, © essencial numa nagao é que os cenilitos origi XVE MAQUIAVEL fados em Seu interior sejam cuntrolados e regulados pelo Estado. Em funcao do modo pela qual os bens sao compartilhados, as sociedades Coneretas assumem diferentes formas. Assim. ande persista ou possa persistir uma relativa igualdade enire os cidadaws, o fundador de Esta- dos deve estabelecer uma.repablica, Grorrenda 9 contrdrio, manda a prudéncia que soja constituido. um principado. Se nao proceder as sim, 0 govemante formard um Estado desequilibrada e sem harmo- nia, que nae poderd subsistir por muito tempo. © nécleo da organizagao do Estado residiria na orem, que pode fanifestarse sob varias formas, mas que se apresentaria basicamente como principados ou como repdblicas. As reptblicas apresentariamn trés modalidades: a aristocrdtica, como Fsparta, env que uma maioria de governados encontrava-se subordinada a uma minoria de gover nantes; a democracia restrita, na qual dé-se 9 Contrario, Como ocor reu em Atenas; ea democracia ampla, quaido a colotividade se auto~ koverna, fendmena encontrado em Roma apés a instituigaa dos triba- nos da plebe ¢ a acimissao do pova a magistratura, Nao existiria, contudo, uma ocdem ideal, cam validade absolu- ta, independente da organizagao social concreta Hos povos. O pave &, para Maguiavel, uma matéria que sguarda sua forma ea engenha- ria da ordem parte da andlis¢ da situacao social, ndo resultando da ar bittia do fundador de Estados, mas de sua caparidade para capt hum momento de genio, aquela forma desejavel ¢ de sua dispasigao para impiela sem qualquer vacilacao. AS observagces levaram Maquiawel a concluir lambem que ov principades, quando héreditarios, padecem de debilidade conpénita, pols pode carrer neles que o poder estabelecide pelo fundador seja Usado ambiciosamente pelos sucessores, sem a virti do mesmo. Por outro lado, seria fraco-v Estado que sé pode ser governado pela vanta- de de um homem apenas; na falta deste, ndo hd como triuniar sobre a desordem. Q abuso de poder, por parte dos herdeitos do herd pri- Tnordial, fomenta a discordia e alimenta censniracdes, ponda em peri- goa orden interme. QO reine Ga competi¢ao entre Esiades pee seria concrolivel, se~ gundo Maquiavel, por instituigdes nem pela lei, @ seria impossivel Que uma republica Conseguisse permanecer tranquita e gozar de liber- dade dentro de suas fronteiras. Se nao molesiar as démais, sera moles tada par elas, e disso nasceria a desejo e a necessidade de Conquista. © fundador de Estados néo 6, pata Maquiavel, um homem qual quer, mas uma personalidade fora do comum, dotada de uma etica superior. que the faculta a uso de mess extracrdindrias para a organi- 2acio de reinos ou rpiblicas. Rémulo seria um bam exemplo, nai ‘obstante a Imagem negativa que dele sempre se fez, pot ter assassina- doo irmia © consentide no assassinato de Tio Talius, com quem divi- dia o trono, Fsee sexia um exemplo negativo, caso nao se consideras~ sem 5 molivos otientadores de sua acde. Segundo Maquiavel, a obra de ROmula-o exime de qualquer culpa, pois seus fins exam morais. I~ so fica clara quanda se sabe da pequena parcela de autoridade que 1e- servou pata si, ao dividir-o governo com © senaco, ¢ a0 criar leis, que ele mesmo sempre cbserveu VIDA E OBRA XVI ‘Os fins justificam os melos O poliico de witi na chefia dos Estados @ um momenta breve & excepcional, ¢ somente a ele os homens isentam de culpa pelo use de meios indiscriminadas, em conjunturas de grave perigo para a co- municade. Disso deriva que a estabilidade politica depende de boas leis e instiwigdes, pois 0 poder puramente pessoal degenera facilmen- te om tirania © instabilidace. © homem proviclencial jamais & um tira- no. Sua heroicidade realiza-se no plasmar a forma conveniente para a ‘matérla, que € 0 pova. Ele institucionaliza a ordem e a coesda social, quer em regimes republicanas. quer em principados, dependendo das circunstincias, © heféi fundador de Estados © © politica de virtd, por si 468, na instituem @ melhor regime @ a melhor sociedade. O nivel de solidar dade ¢ maivr quando © pove participa do governo. Homens em liber- dade identificam-se com as ao de seu Estado ¢ 0 defencem co- mo coisa sua, Nada fel mais dificil para-os romanos de que a conquis- ta de povos vizinhos, amantes da liberdade que gozavam em seus pal- ses. A grandeza romana deve ser atribuida a liberdade de seus cida- dios, © a vocagie imperial nao padieria ter side realizada sem a an- pla partiripagao do pavo nos negécios pablicos. Um povo décil ov aterrorizado nao seria capaz de encontrar forgas e@ motivagag para conquistar o mundo. Numa nagao nao corrempida, onde as instilai- ges mamenham pela educagio ¢ pelo exemplo as virtudes c(vicas, os cidaddos sobrepdem os interesses gerals ans particulates. A liberda- de refarca a coesae interna e desanima as pretensdes de conquists dos Estados tivais. Maguiavel ensina, ainda. que a energia criatlora de uma socieda- de livre nao 6 dadiva dos herdis fundadores ou dos politicos de virtt. Ha advem do. sistema de-apasican entre os grandes ¢ 0 poe @; as sim, 65 conflitas sociais sé0 necessdtins porque praprios a natureza mesma da liberdade. As condigdes desta nao sto arbitrérias, manten- do relagie nevesstna com o grau de igualdade exlstente no interior do Estado_ A corupeas e a inaptidao para o viver livre provém da de- sigualdade, para cuja climinagia & preciso pedir socarra a reméxlios extraardindrios, coisa que peucos homens sabem ou querem fazer: © povo faz parte da galeria dos herdis de Maquiavel. Camparan- do as republicas democrdticas com os principados, observa que st jul- garmos um principe e€ um pave subordinados as lels, verificamos que © pova masta qualidades superiares as do principe, porque & mais conforme © canstante. Se, ao contrarie, ambos estdo libertos de qual quer eoercdo legal, resulta que os eros do pave sda menos Huntere= S08, menores-¢ de mais facil reparacio do que os do principe. Interpretacaes do maquiavelisma © destino do pensamento: de Maquiavel, inca séculos depois desua mone, ainda nav foi decidide. Lide por muttos e-citade aubli- camente por poucos. a obra do diplemata florentina tem conhecide quase tanjas interpretacdes divergentes quantos s30 0s tildsofos e en- Saistas gue dele se aproximam para anelisa-io, VIL MAQUIAVEL © tempa cm que vive n3o poderia chacarse com esse pensa- mente, pais 2 fenovacdo cultural ¢ cientifica atingia um momento cul- minante @ criava um novo Universo idenldgico, centrado no homem © om sua secular aventura; A cbra de Maquiavel era nitida expresso ‘dessas mudancas e ele proprio foi assessor de papas e cardeais. A des sacralizaczo. do. politico, a independéncia do poder temporal frente ae Vaticano, © primade do Estade face religido constitulam um con- junto de circunstancias que se expressavam no desenvolvimento dos Estados nacianais © conferiam a seu pensamento intensa contempora-~ neidade. Tudo isso explica por que o manuscrito de O Prineipe tenha cinculado durante dezenove anos sem pravacar qualquer comogao, € por que @ primeira edicao, publicada em 1532, tenha sido autorizada pelo papa Clemente Vile patrocinada por um cardeal romano. A mS sorte iniciase com a Contra-Reforma, quando ao cisma prowstante opée-se 0 retorne & artodoxia ¢ teata-se revitalizar a in fluéncta espiritual da Igreja ¢ defender seu poder temporal. A partir dat, a obra de Maquiavel torna-se extremamente vulneravel. Na situa- a0 especial da kalia. sede fisica da Igreja catélica, a subordinagao do religingo ao politico. defendida por ele, ndo poderia ser tolerada. Trés décadas apés sua morte, a reagio da Contra-Reforma manda queimarthe a effgie ©, em 1539, 0 papa Paulo IV (1476-1559) © in- clu ne index dos liveos preibidos, deciséo confirmada pelv concilia de Trento em 1564 Nao obstaniie a interdigao, os livros de Maquiavel circalam am- plamente pela Europa, especialmente na ltalia, Franca ¢ Inglaterra. Nos sécuine saguintes, quando se Consolida © poder absolute dos mo- areas; 1 acusagao de impiedade acrescenta-se a de defensor das dés- potas, ¢ © Principe & identificade com um manual de técnicas instru- mentais do despatismo. © autor era assim abstraida de seu comtexto histérico; eriava-se dele a imagem de um talentoso oponunista polit cu e fragmentava-se sua obra: como autor de © Principe, seria 0 en- saista cortejadar do nove poder da farnilia dos Médicis, aos quais: se ‘Opusera quando na govern de Piero Soderini: rejeitada, afirmau can- viegoes republicanas nos Discurses Sobre a Primeire Década de Tito Livi, © século XVIII revlime 0 autor, embora © debate tenha ficado cir cunscrita as dimensdes éticas, Pensadores iluministas, como Rous- seau (1712-1778) ¢ Diderot (1713-1784), defendem a unidade de sua ‘obra, cam base na problemdtica republicana, Diderot sustenta ser O- Principe uma satira, entendida equivocamente camo elogio. Rous- seau Sublinha a profundidade das convicgdes republicanas dé Ma- quiavel, que teria sido obrigada pelas circunstancias a disfarcar © amor pela liberdade, simulando dar lig6es aos reis, quando na verdi Ye as dava ao pove, Estanhamente, o julgamento: de Voltaire (3694-1778) ser negativa, tendo trspirade a Frederico II da Prossia (1712-1786) a redagae do. Anti-Maquiavel, critica que pretendia ser uma tejeigde radical do améralisma em politica. 5 democtata-radicais do século XIX tomam como ponto de par tida a afirmagio do préprio Maquiavel de que seus ensinamentos fo- ram extraidos de estudo atento da histéria: O maquiavelisma seria, as- sim, a pratica politica corrente entre os poderosos de todes os tem- VIDA E ORRA XIX pos. Criadares © detentores das técnices de dominagao nao precisa- riam jamais de ligdes; Maquiavel terla entia, come objetivo, age ensi- nar a eles, mas ao povo. Na impossibilidade de dirigitse diretamente 20 seu publica, teria optado por desmestificar 6 poder, despojando-o de toda moralidade aparente através da crua revelacdo dos proce Mentos ¢ técnicas uliligadas em sua conservacao por parte dos gover- hantes. Ainda no sécule XIX, 0 autor de O Principe seri transformade ém herd? nacional pelo movimento de unificagdo da italia, 0 Risorgi- mento. Antes, ninguém como Maquiavel tinha se batide pela transter- magio da peninsula italiana numa grande nagio. Neo comego do séculn XX as discrepancias: quanto ao entendi- mento da obra de diplamata tlorentina permitiraa © aparecimenta de varias interprotagées, sensivelmente divergentes. Mussolit (1083-1945) 0 transformard em precursor do, fascismo e Gramsci (1891-1937), marxista, assimilaré ao principe ideal renascentista a partido co proietariade, como instrumento contemporingo de sua wontade ¢ agao Culetivas. Maquiavel na atdafidade Modernamente, o5:estudos tm procurado ramper com a tradi- G80 de eritica do ponto de vista moral, ou com a utilizagie da obra de Maquiavel como instrument ideolagico. Procura-se mais ampla- meme determiner ¢ cantribuigao especiiica que ele deu a histria das idéias, especiaimente aquilo que se refere ans dominios pertenceates Aciéncia politica. A tendéncia & nao mais ver © pensamento de Maquiavel come geometria euclidiana da politica eterna, mas como pensamenta de seu tempo. Por autro- lado, problema da exisiéncia ou ngo de unida- de intrinseca entre seus diversas escritos — especialmente os Diseur- s05 Sobre a Primeira Década do Tito Livia. e O Principe — nde 6 ava lade stpimelo as disputas flostficas que propiciou. © maguiavelsme antecede # Maquiavel como repositorie de praticas qué informavam a aga dos detentores da poder: cle simplesmente teria sistematizada esse conhecimento, transiormanda-o em engenharia aperacianal de governo. Nela nao haveria lugar para a moral, e 0 amoralisma dos meios nao prejudicaria os resultados se estes sdo bons. Voltado para a historia, Maquiavel teria aprendido que as grandes obras humanas, coma a cragao de Estados © religies, impuseram aos tundadores 0 uso de todos a5 recuirses. E © que fez foi simplesmente aceitar essa realidade como um dade concreio e definider da natureza humana. E Ticito discordar dessas idéias, mas 4 dificil demonstrar que o convivie politica entee.op homens tenha side outro. Se existem boas teorias politicas, a pidtica € sempre diferente. Maquiavel simplesmen- te fez da pratica uma tegria. O enunciade brutal das principias do ma- guiavelisme, com sua choeante amoralidade, explicitaria a realidade interna do poder politico, E isso talyez seje Lina Contribuigde nau pe- quena para a superacao desse amoralismo. i MAQUIAVEL Cronologia 1453 —Temadade Constantinopia pelos turcos, as — A pd Led gu um periade de equilittio nine os Estados Sta- iano, 1469 — Maquiavel rasce em Florenga, no dia 3 dé mai. 1492 —Cristov.io Colombo cescobre a América, 7494 — essa 9 poder dm Médicis om Florengs, Carlos Vill, da Franga, ata- caa lila, 1498 — Maquiavel toma-sé segunda chanceler da republica Hlorentirss, Vas- ‘co da Gama descabre 0 camsnho para as Indias. 1500 — Viaja pars a Franga a fim-de traiar da problema de Pisa junto, @ Luis All 1582 — Casa-se conr Manica Orsini; encontrase com César Boegia. em Ro- mapoana, 1502 — Preacuau-se com a problema de substituir os saldabios mercenaries or milicias nacionats 15lld — Os franceses peeclem Napokes. Michelangelo esculpe o David, 1506 — Maquiavel ¢ escolhido. are o carga de secretaria dos Nove: das isil/= 4511 — Realiza embaixaclas em Milsn e na Franca. 1512 — Os Malitis retornam a Florenga 1513 — Magquiavel ¢ exitado em San Casciano, onde comega a-escrever 38 principals obras: 0 Principe # os Discursas Sabre a Primeira Oécada de Ti- ta Livio 1518 Feerevela connidiv A Mandrégor9, obra-prima do teatra italiano. 1519 — Carlos V torna-se imperador de Sacro Impéria Romano-Germanica Faleae Lourenga de Medicis. 1520 — ém Luca, (ata dos interesses-mencantis de Florenga: Escreve a Vida de Castruccio Castracani 4521 — Publica A Arte da Guurra. Marre Led X. 1523 — illo de Médicis torna-se pape sob 0 nome de Clemente Vil. 1525 — Maquiasel oferece ao pamifice os only primeires livros das Histériag Hoventinas. Francisen Sforza @ reconhecide como duque die Mila 1527 — Magquiavel 6 excluido da participacio no governo insttaida apds no- va queda dos Medicis, Falece a 3t de junha, liografia Vasa Ps Niceolo Machiavell & 1 suo! Tempi, wey volumes, Horenga, 1877-1882. Ninn, F- Machiavelli nelfa'Vita-e actle Dottine, Mipoles, L876. eat Ni Machiavelll, 1902. Frum}, G.: Machiavelli, £918, Encou F.: La Politica de Machiavelly, 1926. Woniao 1, Hy: Machiavelli, 1947. Riow.t Resear. Vita di Niccold Machiavelli, Ronta, 1954. Burmantin, H.: The Statecraft of Machiavelli, 1953. Sw Garato Miccold Machiavelli — Storia del suo Peasiéro Politico, Napo- ies, 1951 Excoat, aunt Introdagae 20 Peasamento Politico de Maquiavel, Simées. Rio de Janeira, 1955)

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