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MATERIAL DE ESTUDO – DOCUMENTOS SOBRE A LUTA PELO RISO NA IDADE


MÉDIA

[Introdução geral]

Fragmento do filme “o Nome da Rosa”, inspirado no livro homônimo de Umberto Eco:

Em O Nome da Rosa, duas tendências de controle do riso são confrontadas. Uma é a que tem como
representante o velho monge e bibliotecário Jorge de Burgos, que define o riso como fonte de dúvida
e defende que o mesmo não deve ser livremente permitido como meio para afrontar a adversidade do
dia-a-dia, visto que pode ser usado como arma para desacreditar a própria Igreja. Essa tendência é
seguida pelos monges que integravam a abadia onde as cenas do romance se desenvolvem. A
justificativa teológica (mas não lógica) é a de que o riso mata o temor e isso, por sua vez, impede a
fé. Outra é a abordagem fundamentada em Aristóteles e seus comentadores, que teve, ao longo da
história, desdobramentos diversos. Essa tendência é representada, no romance, por Guilherme de
Baskerville, o investigador franciscano que encara o riso como pertencente à essência do homem,
sinal da racionalidade do humano e instrumento para se lidar com as vicissitudes da vida.

Procuraremos apresentar um percurso das formas e conteúdos teatrais que se desenvolveram durante
a Idade Média relacionando seu percurso estético ao contexto histórico do período. Há durante todo
o período uma convivência entre o teatro de temática religiosa e didática, realizado por religiosos e,
em um segundo momento, por proprietários de terra, comerciantes e artesãos endinheirados (os
chamados primeiro e segundo Estados), as apresentações populares, experiências festivas, ligadas ao
carnaval e aos espaços mais degradados das cidades (estalagens, feiras, pátios), de forte teor
subversivo, grotesco e farsesco.

Na medida em que o clero e a nobreza viam a economia feudal entrar em crise, com a ascensão
dos burgos e do comércio, com o surgimento das manufaturas e da mão-de-obra assalariada o modo
de produção baseado na servidão se viu cada vez mais tomado por conflitos e movimentos populares
de resistência. Como expressão desse deslocamento do centro de poder decisório e econômico da
agricultura para as cidades, comércio e manufaturas, a Igreja permite que, inicialmente, os espetáculo
fossem financiados pelos mais ricos habitantes das cidades, que contratavam mimos, menestréis e
atores para montar as peças, para que, em um outro momento, os estratos mais pobres das cidades
assumissem, eles próprios, as representações religiosas, gerando peças em que o conteúdo grotesco
emergia fundido aos temas moralizantes, constituindo as formas híbridas dos mistérios e
moralidades, que leremos a seguir. Esta disputa pelo controle do riso, tornou os elementos cômicos,
inicialmente performativos e proibidos, em forma hegemônica. PODEMOS DIZER QUE É
POSSÍVEL ACOMPANHAR AS CONTRADIÇÕES, AVANÇOS, RECUOS E LUTAS DE UM
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PROCESSO EM QUE AS FORMAS SUBVERSIVAS DA FARSA, DO CARNAVAL E DOS


NÚMEROS DE VARIEDADE E DE FEIRA FORAM LENTAMENTE INCORPORADOS AO
TEATRO CONTROLADO E PRODUZIDO PELA IGREJA E PELA BURGUESIA NASCENTE,
até emergirem, novamente LIBERTOS, durante o Renascimento, na commedia dell arte e no teatro
elisabetano, principalmente.

Ao contrário dos autos católicos iniciais, representados apenas por membros da Igreja, os
mistérios e moralidades eram realizados pela população laica e, apropriando-se das experiências
populares dos carnavais e Charivaris , tomavam toda a cidade, durando semanas inteiras,
incorporando às narrativas bíblicas, únicos temas dos primeiros autos religiosos, formas cômicas e
grotescas, bem como conteúdos profanos. Importante lembrar que, como alerta Marc Bloch:
“Durante os primórdios da Idade Média, o catolicismo penetrara nas massas apenas de forma
incompleta. Recrutado sem controle suficiente e imperfeitamente formado, o clero paroquial era, em
seu conjunto, intelectual e moralmente inferior à sua tarefa. A pregação era irregularmente praticada”.
(BLOCH, MARC. A sociedade feudal. São Paulo: EDIPRO, 2010, p. 210).

A abertura do teatro aos leigos representou um importante instrumento de catequese. Durante


todo o período medieval, a luta pelo controle do riso e do prazer, expressa nas formas teatrais,
representou também o embate pelo controle político e econômico daquela ordem social.

[1] Condenação da Igreja aos espetáculos em geral/ condenação ao riso e à comédia:

“Passemos agora ao teatro que – conforme já demonstramos – compartilha com o circo a


mesma origem, o mesmo título de “lúdico” (...).
O teatro é, no mais estrito sentido, o santuário de Vênus. Foi sob tal estandarte que este tipo
de edifício proliferou pelo mundo. (...) O teatro consagrado a Vênus é igualmente de Bacchus: estes
dois demônios da embriaguez e do vício estão alinhados em andam juntos. Também o palácio de
Vênus é ao mesmo tempo santuário de Bacchus. Com efeito, certas representações teatrais se
chamavam antigamente jogos liberais, não somente porque, dedicados à Bacchus, eram a mesma
coisa que os dionisíacos dos Gregos, mas ainda porque tinham Bacchus como fundador. De resto,
Bacchus e Vênus não reinam menos sobre as artes auxiliares da cena. Os miseráveis histriões dedicam
os gestos típicos da infame cômica – os gestos e movimentos dissolutos do corpo – a Vênus e a
Bacchus, ambos deuses dissolutos: ela por perversão sexual, ele por pantomimas impudicas e
afeminadas. Quanto o resto – música, versos, instrumentos e lira –, está tudo sob a guarda dos Apollos,
Musas, Minervas, Mercúrios. Discípulo de Jesus Cristo, não odiarás as frivolidades cujos autores só
podes odiar?
Tem mais: quanto ao que se refere a estas artes, deveríamos voltar ainda mais e estabelecer
que os demônios, prevendo desde a origem que o prazer e o riso dos espetáculos seriam formas de
levar o mundo à idolatria, inspiraram os homens de gênio a inventar estas artes criminosas a fim de
afastar o homem de seu Criador, colhendo elogios terrenos. Pois apenas os demônios planejariam o
que voltaria à gloria deles! Para ensinar esta ciência fatal, não empregariam outros agentes que os
homens sob cujos nomes e imagens e fábulas se propunham a enganar e a fazer chacota do universo
em proveito próprio.
Assim como há uma luxúria pelo dinheiro, pelo riso, pelas honras da vida, pelo comer glutão,
pelas volúpias da carne, pela fama, o prazer também tem sua concupiscência. E os espetáculos
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constituem um tipo de prazer. (...) Entre as muitas concupiscências, ao meu julgamento, estão os
prazeres. Da mesma forma, entre os muitos prazeres estão os espetáculos. Da mesma forma somos
admoestados a manter-nos afastados de todo tipo de impureza. Através desse mandamento, então,
somos afastados também do teatro, que é a própria casa da impureza, onde nada ganha aprovação a
não ser o que não é consentido em outros lugares.
Logo, o charme do teatro é produzido acima de tudo pela sua imundície – imundície que o
ator das farsas transmite através de gestos; imundície das experiências silenciosas por que passou o
pantomimo em seu próprio corpo quando menino pra tornar-se um ator e imundície que o mímico
exibe com aparência de mulher, acabando com toda e qualquer reverência por sexo e senso do ridículo
para que assim eles se envergonhem e fiquem vermelhos mais rápido em casa do que no palco. Até
mesmo as prostitutas, vítimas do desejo público, são levadas ao palco, criaturas que se sentem ainda
mais miseráveis na presença de mulheres, as únicas da comunidade que não sabiam de sua existência.
Agora elas são exibidas em público diante de pessoas de todas as idades e classes; o endereço delas,
o preço, o passado são anunciados publicamente, até mesmo para aqueles que não precisam dessa
informação, e também são anunciadas coisas que deveriam limitar-se aos seus quartos para assim não
contaminar a luz do dia. (TERTULIANO, Sobre os espetáculos. São Paulo: Paulus, 1983, p. 45-46)”.

[2]. Um mistério medieval - O Mistério de Adão

“O surgimento de uma poderosa tradição dramática no seio da Igreja da Idade Média tardia parece
paradoxal à luz das suspeitas que os antigos padres nutriam em relação à arte: entretanto, os pontos
de vista novo e velho partilhavam uma teoria comum: a do drama como instrução. (...) Mais decisivos
para o desenvolvimento do teatro religiosos posterior foram aqueles que viram, e começaram a
apontá-los, elementos dramáticos na própria missa. Esse conceito foi invocado, por exemplo, pelo
bispo de Metz, em 840 d.c. (...) Novamente, a ênfase recaía no elemento didático: ‘bem se sabe que
os atores que recitavam tragédias nos teatros representavam para o povo, mediante gestos, as ações
de forças conflitantes. Assim também nosso ator trágico representa para os cristãos no teatro da Igreja,
por gestos, a luta de Cristo, neles incutindo a vitória de sua redenção”. (CARLSON, Marvin. Teorias
do teatro. São Paulo: Unesp, 2003, p.35).

O Mistério de Adão, que apresentamos a seguir, de autor anônimo, é um pioneiro do século XII dos
espetáculos medievais que ligam o mistério da redenção ao pecado original. A peça comporta três
partes: 1) a desobediência de Adão e Eva, 2) a morte de Abel, e 3) um desfile de profetas anunciando
a redenção de Cristo (esta parte chegou a nós mutilada). O Mistério de Adão, ao contrário das
primeiras composições latinas - mais próximas da liturgia e representadas dentro da igreja - era
encenado sobre vários tablados, na rua. A peça começava em frente ao templo e espalhava-se pela
cidade. Não se ousa representar Deus, que é meramente sugerido pelo personagem da Figura (que
está na igreja e, de lá, entra e sai do primeiro palco).

O DIABO
Contigo posso falar com segurança,
Pois tenho em ti total confiança.
EVA
E fazes bem em confiar,
Pois não te irei defraudar.
O DIABO
Contigo, sim, eu conto,
Não com Adão, que é um tonto.
EVA
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É, ele é meio durão:


Tem convicção.
O DIABO
Mas, pode deixar,
Ele vai se abrandar.
EVA
Ele é muito nobre, eu acho.
O DIABO
Nobre? Ele é servil, um capacho!
E já que o bem para si ele não quer
Podia, ao menos, pensar em sua mulher.
Tu, que és tão meiga e gentil,
Mais terna que as rosas de abril,
Como a aurora radiosa,
Como és bela e formosa!
O Criador errou e fez mal
Ao constituir este casal:
Tu, terna, e ele intransigente.
Tu, porém, és mais inteligente,
Decidida, corajosa e discreta...
Aliás, posso contar uma coisa secreta?
EVA
Ninguém vai ficar sabendo não.
O DIABO
Nem mesmo Adão!
EVA
Podes ficar sossegado.
O DIABO
Então, chega aqui a meu lado.
Podemos falar porque Adão, lá,
Certamente não escutará.
EVA
Fala, fala sem medo,
Pois ficará tudo em segredo.
O DIABO
Vós fostes vilmente enganados,
Ao serdes aqui colocados.
Fruto por Deus autorizado
Não vale um tostão furado.
Mas a fruta proibida,
Aquela dá virtude e vida,
Glória, poder vital:
O saber do bem e do mal.
EVA
E seu sabor é aprazível?
O DIABO
Simplesmente incrível!
E teu belo corpo, tua bela figura,
Bem merece essa ventura.
Basta tomá-lo agora
E serás dos mundos, a senhora:
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As alturas e a profundeza,
Tudo sob tua grandeza.
EVA
Ele tem todo esse poder?
O DIABO
Podes olhar e ver.
(Eva contempla com interesse o fruto proibido e, depois de examiná-lo bem, diz:)
EVA
Só contemplá-lo já me faz bem.

“O palco simultâneo corresponde exatamente a esse cunho épico da representação; toda a ação já
aconteceu e o próprio futuro é antecipado, sendo tudo simultâneo na eternidade do logos divino. A
temporalidade sucessiva é apenas aparência humana. Cada evento cotidiano é ao mesmo tempo elo
de um contexto histórico universal e todos os elos estão em relação mútua e devem ser
compreendidos, simultaneamente, como todos os tempos e acima dos tempos. Assim, a Idade Média
concebia o sacrifício de Isaac como prefiguração do sacrifício de Cristo; no primeiro, o último é
anunciado e prometido. A relação entre esses acontecimentos só se verifica pela ligação vertical com
a providência divina”. (ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 1997, p. 49)

“A encenação do mistério distingue-se essencialmente pela simultaneidade. A encenação antiga e


moderna é sempre sucessiva, as cenas seguem-se no decorrer do drama e os fundos e cenários
transformam-se, seguindo um após o outro. Não foi esse o sistema medieval. Todos os lugares, em
que a encenação iria desenrolar-se são de antemão montados e se encontram à vista do espectador.
(...) O mistério medieval é essencialmente épico, e apresenta, portanto, ao espectador tudo o que
aconteceu, com todos os pormenores, sem seleção de cenas essenciais”. (ROSENFELD, Anatol.
Prismas do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2010, p. 87)

[3] A Dança da Morte. Moralidade de autor Anônimo do século XIV

Observação sobre diferenças formais entre os autos iniciais (realizados na e pela Igreja]
e os mistérios e as moralidades:

À medida em que a língua vulgar foi se estendendo sobre o latim, os autos medievais e mistérios
(estes mais extensos que os autos, chegavam a durar até 40 dias e procuravam apresentar o “teatro do
mundo” desde seu gênesis até o Apocalipse) , que eram organizados pela Igreja e representados,
escritos e dirigidos por padres e monges, romperam sua ligação com a liturgia. A solenidade dos
eventos atemporais abriu caminho para a multiplicidade do presente e a linguagem corrente, trajes e
gestos espalharam seu colorido pela história bíblica. Quando a Igreja abriu suas portas e deixou o
drama escapar para a confusão e a animação da cidade, o fato significou mais do que um simples
aumento de espaço. A próspera população de burgueses da cidade apropriou-se do teatro com fervor,
deixando de ser apenas espectadores. Patrícios, burgueses e artesãos tinham a liberdade de apresentar
as verdades da fé de acordo com sua própria interpretação da vida.

As moralidades medievais utilizavam-se amplamente do recurso da alegoria. Importante para


se compreender todo o alcance do conceito de alegoria no teatro Medieval é a definição de Walter
Benjamin. Ao preparar sua introdução ao trabalho das Passagens, em 1935, Walter Benjamin fez uma
breve anotação: “fetiche e caveira”. De modo geral, por meio de todo o material das Passagens e do
livro sobre o drama barroco alemão, a imagem da ruína é vista como emblema da fragilidade da
cultura capitalista e também de sua transitoriedade: “A história em tudo o que nela desde o início é
prematuro, sofrido e malogrado, se exprime num rosto – não, numa caveira. (...) Nisso consiste o
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cerne da visão alegórica: a exposição barroca, mundana, da história como história mundial do
sofrimento, significativa apenas nos episódios do declínio. Quanto maior a significação, tanto maior
a sujeição à morte”. A significação e a morte amadureceram juntos no curso do desenvolvimento
histórico, da mesma forma que interagiam, como sementes, “na condição pecaminosa da criatura,
anterior à Graça” (BENJAMIN, Walter. Passagens. São Paulo: Edusp, p.534)
A dialética é o princípio constitutivo da alegoria; nela, a significação e a morte amadurecem
juntas. Para os autores barrocos, a alegoria é uma figura emblemática que serve para tipificar a
natureza dilacerada e catastrófica do mundo humano. A alegoria revelaria a antinomia das coisas, em
que “cada pessoa, cada coisa, cada relação pode significar qualquer outra”. A ambigüidade e a
multiplicidade podem ser consideradas as marcas essenciais da concepção alegórica, em que a
ambigüidade não passa da “riqueza do desperdício”.
A marca da alegoria seria assim o distanciamento das coisas do seu sentido original, a
alienação das coisas da sua verdadeira essencialidade, na medida em que allo-agorein significa dizer
outra coisa; ela é a afirmação da diferença sem qualquer perspectiva de reconciliação.

PRIMEIRA CAVEIRA DO CORO (Declamado)


Para bem terminares a vida mortal
Ó tu, que desejas a vida futura,
Terás aqui ensinamento sem igual.
Desperta, ó racional criatura.

SEGUNDA CAVEIRA DO CORO (Declamado)


Procura a dança macabra aprender,
Pois ela traz conhecimento pleno.
Ninguém é poupado à morte, vais ver,
Homem ou mulher, grande ou pequeno.
TERCEIRA CAVEIRA DO CORO (Declamado)
Neste espelho todos devem se mirar
Aprender bem e reter na lembrança.
Será útil o que vires, quando chegar
A tua vez de, por fim, entrar na dança.

QUARTA CAVEIRA DO CORO (Declamado)


Verás que os maiorais dançam primeiro.
A ninguém poupa a morte, que é sem dó.
E é muito piedoso e verdadeiro
Pensar que todos somos o mesmo pó.

PRIMEIRA CAVEIRA DO CORO (Declamado)


Vós, que por decreto divino,
Na vida ocupais lugares diversos.
Haveis de dançar, é o destino,
Seja dos bons, seja dos perversos.
SEGUNDA CAVEIRA DO CORO (Declamado)
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Corpos ágeis tornar-se-ão inermes;


Beleza pura, hedionda podridão.
Olhai para nós, pasto de vermes,
Pois, tal como somos, todos serão.
A TERCEIRA CAVEIRA DO CORO (Declamado)
Se sua presença é tão forte,
Dizei as razões pelas quais
Não tendes lembrança da morte
E sobre ela nunca pensais.
A QUARTA CAVEIRA DO CORO (Declamado)
Mesmo que todo dia se apresente
De modo súbito ou esperado,
Hoje um amigo, amanhã um parente
Um dia serás tu o visitado.
(A caveira, cantando a primeira estrofe da canção, vai trazendo para a dança os personagens, que
cantam a segunda estrofe)

Declamação simultânea, vinda de todos os carros.


Espectadores no meio.

A CAVEIRA
E nem o papa
Dela escapa
E é o primeiro
A dançar.
O PAPA
Muito poder eu
Tinha na terra
Mas veio a morte
Me buscar.
O IMPERADOR
Mas no fim
Numa cova
Todo mundo
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É igual.
Imperial.

[4 ] Os carnavais, as farsas e os Charivaris:

“ Nas festas chamadas Charivari, os mascarados, transformados em demônios barulhentos, saíam às


ruas fazendo maldades e perturbando o sossego. A Charivari era uma espécie de parada carnavalesca
de bufões; seus participantes assustavam os burgueses honestos com empurrões e com o bater de
panelas de cobre, chocalhos de madeira, sinos e sinetas de vaca. Não admira que a Igreja exortasse o
clero e leigos a não assistir nem tomar parte nas festas chamadas Charivari , nas quais o povo usa
máscaras de demônio e coisas terríveis são perpetradas.” (BERTHOLD, Margot. História mundial
do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2000. P. 248)

Uma antiga pousada ou taberna, com cenário adequado, podia servir como local de representação,
sem preparativos especiais para a farsa, a irmã do Carnaval. Um tablado de madeira sobre tonéis, uma
parede como fundo e uma porta para as entradas dos atores, talvez uma mesa ou cadeira servindo de
barra dos tribunais. As falas eram rudes e diretas, tanto no aspecto sexual e fecal, quanto no político
e moral. Ao contrário das encenações dos mistérios e das moralidades, não havia peregrinação do
público entre estações e nem grandiosidade. A cosmovisão religiosa de que nos falou antes Anatol,
passa a ser substituída por uma visão individualista do mundo, na medida em que o comércio e as
manufaturas se expandem e dão lugar a um mercado consumidor cada vez mais dependente do
dinheiro e da venda da força de trabalho.

“ Já no final da Idade Média, a farsa ressurge intercalada em meio a representações religiosas,


como uma espécie de pausa, de curta-metragem”. (MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio.
São Paulo: UNESP, 2013, p. 199).

O Carnaval e o Charivari também surgiam agora incorporados aos mistérios, em uma única
experiência performativa, religiosa e cultural comum, em que os opostos do riso e do sagrado
anulavam-se, dentro de uma nova cosmovisão de mundo:

“Um espetáculo completo era muitas vezes precedido por uma soltura dos diabos na cidade:
indivíduos vestidos como demônios, gritando, espalham-se pelas ruas, perseguem os habitantes e
podem mesmo sequestrá-los. Esses diabos são os pobres -daí a expressão pobres diabos – que
aproveitam a ocasião para injuriar o burguês, cometer roubos, fazer um barulho infernal acompanhado
de risos retumbantes. (...)O diabo do mistério não é apenas uma figura extraoficial, é também um
personagem ambivalente e assemelha-se ao louco e ao bufão. Ele representa a força do baixo material
e corporal que dá a morte e regenera (...) Depois de dias de diabruras, procede-se ao grito, isto é, ao
apelo do público, e sucedem-se, em ordem variável, sermões jocosos, farsas, mistérios moralidades.
As pequenas intrigas circulam em torno de problemas conjugais. A farsa explora,
essencialmente, as questões da moral privada (...) O riso da farsa é individualista, compete a
cada um arrancar, pela astúcia, uma fatia de felicidade sem, contudo, colocar o mundo sob
questionamento. O riso da festa, obrigatório, expressa o interesse do grupo; o riso farsesco,
egoísta e amoral, é o único meio de o indivíduo ter uma desforra sobre as coletividades nas quais
ele é integrado à força e que o oprimem e o protegem, ao mesmo tempo: paróquia, religião,
família, corporação, guilda, cidade...”. (MINOIS, idem, p. 200).

EXEMPLOS DE FARSA –

1. JENIN, FILHO DE NADA (anônimo)


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“JENIN – Meu Deus, como vossa coisa é grande!


E vós a colocais lá dentro?
O PADRE – Não toqueis aí.
JENIN – Ela tem dentes?
Vai me morder se eu a tocar?”

2. FRAGMENTOS DE CONTOS DE CANTERBURY, DE GEOFFREY CHAUCER


1.CONTO DO BELEGUIM (fragmento)
O pobre enfermo estava quase louco de raiva. Seu maior desejo era ver o frade arder numa fogueira
com toda a sua falsidade e hipocrisia. A custo conseguiu dizer: “Tudo o que me pertence eu gostaria
de dar ao senhor, ao senhor e a ninguém mais. Mas diga-me: se eu fizer isso, ficarei sendo irmão leigo
de sua ordem?”
“Mas é claro”, assegurou-lhe o frade, “pode confiar em mim. Até já entreguei à sua senhora a carta
com nosso timbre.”
“Nesse caso”, continuou o outro, “vou dar alguma coisa a seu santo convento antes de morrer. Mas
só vou depositar o donativo em sua mão sob uma condição e nenhuma outra: que o senhor, meu caro
irmão, o reparta com os demais frades de modo que todos venham a ter exatamente a mesma quantia.
Tem que me jurar isso pela salvação de sua alma, sem fraudes ou cavilações.”
“Por minha fé”, disse o frade, “eu juro!” E, apertando a mão do doente: “Eis aqui o meu penhor! Não
vou faltar ao prometido.”
“Então agora”, prosseguiu o enfermo, “enfie a mão sob minhas costas e vá apalpando. Debaixo de
minha bunda o senhor vai achar uma coisa que escondi lá.”
“Ah!” pensou o frade. “Estou gostando disso”. E, sem perda de tempo, foi logo com a mão à procura
do racho, na expectativa de encontrar o valioso presente. Quando o homem sentiu que o frade, a
apalpar aqui e ali, chegara com a mão bem debaixo de seu cu, soltou um peido tão sonoro que nem
um cavalo puxando a carroça seria capaz de dar outro igual.
O frade ergueu-se de um pulo, furioso como um leão: “Ah! Canalha! Pelos ossos de Cristo! Você fez
isso de propósito, para me ofender! Mas deixe estar: esse peido ainda vai lhe custar muito caro!”
A criadagem do doente, ao ouvir a gritaria, acorreu no mesmo instante, e expulsou o frade. E lá se foi
ele, vermelho de indignação, ao encontro do companheiro que ficara com os donativos. Parecia um
javali selvagem; rangia os dentes de raiva.
2. CONTO DO FRADE (fragmento final)
“Irmão”, falou o diabo, “não fique zangado comigo, mas acho que tenho direito a seu corpo e a esta
panela. Esta noite você vai comigo para o inferno, onde irá conhecer nossos segredos mais que um
professor de teologia.”
E, assim dizendo, o demônio o agarrou e o arrastou de corpo e alma para o lugar que é o destino de
todos os beleguins. Queira Deus, que criou o homem à sua imagem e semelhança, guiar e salvar a
todos nós, fazendo com que este Beleguim aqui ao lado se torne um homem bom.
Senhores, – concluiu o Frade, – se eu dispusesse de tempo para tentar salvar a alma deste Beleguim,
eu poderia, seguindo os textos de Cristo, São Paulo, São João e muitos outros Doutores de nossa
Igreja, relatar tais tormentos, que seus corações ficariam apavorados, ainda que não haja neste mundo
língua capaz de retratar perfeitamente, nem que falasse por mil invernos, todas as penas da maldita
mansão dos condenados. Por isso, fiquem sempre atentos para não caírem naquele lugar perverso,
rogando a Jesus que, com sua graça, os proteja das tentações de Satanás. Ouçam minha advertência!”

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