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[Introdução geral]
Em O Nome da Rosa, duas tendências de controle do riso são confrontadas. Uma é a que tem como
representante o velho monge e bibliotecário Jorge de Burgos, que define o riso como fonte de dúvida
e defende que o mesmo não deve ser livremente permitido como meio para afrontar a adversidade do
dia-a-dia, visto que pode ser usado como arma para desacreditar a própria Igreja. Essa tendência é
seguida pelos monges que integravam a abadia onde as cenas do romance se desenvolvem. A
justificativa teológica (mas não lógica) é a de que o riso mata o temor e isso, por sua vez, impede a
fé. Outra é a abordagem fundamentada em Aristóteles e seus comentadores, que teve, ao longo da
história, desdobramentos diversos. Essa tendência é representada, no romance, por Guilherme de
Baskerville, o investigador franciscano que encara o riso como pertencente à essência do homem,
sinal da racionalidade do humano e instrumento para se lidar com as vicissitudes da vida.
Procuraremos apresentar um percurso das formas e conteúdos teatrais que se desenvolveram durante
a Idade Média relacionando seu percurso estético ao contexto histórico do período. Há durante todo
o período uma convivência entre o teatro de temática religiosa e didática, realizado por religiosos e,
em um segundo momento, por proprietários de terra, comerciantes e artesãos endinheirados (os
chamados primeiro e segundo Estados), as apresentações populares, experiências festivas, ligadas ao
carnaval e aos espaços mais degradados das cidades (estalagens, feiras, pátios), de forte teor
subversivo, grotesco e farsesco.
Na medida em que o clero e a nobreza viam a economia feudal entrar em crise, com a ascensão
dos burgos e do comércio, com o surgimento das manufaturas e da mão-de-obra assalariada o modo
de produção baseado na servidão se viu cada vez mais tomado por conflitos e movimentos populares
de resistência. Como expressão desse deslocamento do centro de poder decisório e econômico da
agricultura para as cidades, comércio e manufaturas, a Igreja permite que, inicialmente, os espetáculo
fossem financiados pelos mais ricos habitantes das cidades, que contratavam mimos, menestréis e
atores para montar as peças, para que, em um outro momento, os estratos mais pobres das cidades
assumissem, eles próprios, as representações religiosas, gerando peças em que o conteúdo grotesco
emergia fundido aos temas moralizantes, constituindo as formas híbridas dos mistérios e
moralidades, que leremos a seguir. Esta disputa pelo controle do riso, tornou os elementos cômicos,
inicialmente performativos e proibidos, em forma hegemônica. PODEMOS DIZER QUE É
POSSÍVEL ACOMPANHAR AS CONTRADIÇÕES, AVANÇOS, RECUOS E LUTAS DE UM
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Ao contrário dos autos católicos iniciais, representados apenas por membros da Igreja, os
mistérios e moralidades eram realizados pela população laica e, apropriando-se das experiências
populares dos carnavais e Charivaris , tomavam toda a cidade, durando semanas inteiras,
incorporando às narrativas bíblicas, únicos temas dos primeiros autos religiosos, formas cômicas e
grotescas, bem como conteúdos profanos. Importante lembrar que, como alerta Marc Bloch:
“Durante os primórdios da Idade Média, o catolicismo penetrara nas massas apenas de forma
incompleta. Recrutado sem controle suficiente e imperfeitamente formado, o clero paroquial era, em
seu conjunto, intelectual e moralmente inferior à sua tarefa. A pregação era irregularmente praticada”.
(BLOCH, MARC. A sociedade feudal. São Paulo: EDIPRO, 2010, p. 210).
constituem um tipo de prazer. (...) Entre as muitas concupiscências, ao meu julgamento, estão os
prazeres. Da mesma forma, entre os muitos prazeres estão os espetáculos. Da mesma forma somos
admoestados a manter-nos afastados de todo tipo de impureza. Através desse mandamento, então,
somos afastados também do teatro, que é a própria casa da impureza, onde nada ganha aprovação a
não ser o que não é consentido em outros lugares.
Logo, o charme do teatro é produzido acima de tudo pela sua imundície – imundície que o
ator das farsas transmite através de gestos; imundície das experiências silenciosas por que passou o
pantomimo em seu próprio corpo quando menino pra tornar-se um ator e imundície que o mímico
exibe com aparência de mulher, acabando com toda e qualquer reverência por sexo e senso do ridículo
para que assim eles se envergonhem e fiquem vermelhos mais rápido em casa do que no palco. Até
mesmo as prostitutas, vítimas do desejo público, são levadas ao palco, criaturas que se sentem ainda
mais miseráveis na presença de mulheres, as únicas da comunidade que não sabiam de sua existência.
Agora elas são exibidas em público diante de pessoas de todas as idades e classes; o endereço delas,
o preço, o passado são anunciados publicamente, até mesmo para aqueles que não precisam dessa
informação, e também são anunciadas coisas que deveriam limitar-se aos seus quartos para assim não
contaminar a luz do dia. (TERTULIANO, Sobre os espetáculos. São Paulo: Paulus, 1983, p. 45-46)”.
“O surgimento de uma poderosa tradição dramática no seio da Igreja da Idade Média tardia parece
paradoxal à luz das suspeitas que os antigos padres nutriam em relação à arte: entretanto, os pontos
de vista novo e velho partilhavam uma teoria comum: a do drama como instrução. (...) Mais decisivos
para o desenvolvimento do teatro religiosos posterior foram aqueles que viram, e começaram a
apontá-los, elementos dramáticos na própria missa. Esse conceito foi invocado, por exemplo, pelo
bispo de Metz, em 840 d.c. (...) Novamente, a ênfase recaía no elemento didático: ‘bem se sabe que
os atores que recitavam tragédias nos teatros representavam para o povo, mediante gestos, as ações
de forças conflitantes. Assim também nosso ator trágico representa para os cristãos no teatro da Igreja,
por gestos, a luta de Cristo, neles incutindo a vitória de sua redenção”. (CARLSON, Marvin. Teorias
do teatro. São Paulo: Unesp, 2003, p.35).
O Mistério de Adão, que apresentamos a seguir, de autor anônimo, é um pioneiro do século XII dos
espetáculos medievais que ligam o mistério da redenção ao pecado original. A peça comporta três
partes: 1) a desobediência de Adão e Eva, 2) a morte de Abel, e 3) um desfile de profetas anunciando
a redenção de Cristo (esta parte chegou a nós mutilada). O Mistério de Adão, ao contrário das
primeiras composições latinas - mais próximas da liturgia e representadas dentro da igreja - era
encenado sobre vários tablados, na rua. A peça começava em frente ao templo e espalhava-se pela
cidade. Não se ousa representar Deus, que é meramente sugerido pelo personagem da Figura (que
está na igreja e, de lá, entra e sai do primeiro palco).
O DIABO
Contigo posso falar com segurança,
Pois tenho em ti total confiança.
EVA
E fazes bem em confiar,
Pois não te irei defraudar.
O DIABO
Contigo, sim, eu conto,
Não com Adão, que é um tonto.
EVA
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As alturas e a profundeza,
Tudo sob tua grandeza.
EVA
Ele tem todo esse poder?
O DIABO
Podes olhar e ver.
(Eva contempla com interesse o fruto proibido e, depois de examiná-lo bem, diz:)
EVA
Só contemplá-lo já me faz bem.
“O palco simultâneo corresponde exatamente a esse cunho épico da representação; toda a ação já
aconteceu e o próprio futuro é antecipado, sendo tudo simultâneo na eternidade do logos divino. A
temporalidade sucessiva é apenas aparência humana. Cada evento cotidiano é ao mesmo tempo elo
de um contexto histórico universal e todos os elos estão em relação mútua e devem ser
compreendidos, simultaneamente, como todos os tempos e acima dos tempos. Assim, a Idade Média
concebia o sacrifício de Isaac como prefiguração do sacrifício de Cristo; no primeiro, o último é
anunciado e prometido. A relação entre esses acontecimentos só se verifica pela ligação vertical com
a providência divina”. (ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 1997, p. 49)
Observação sobre diferenças formais entre os autos iniciais (realizados na e pela Igreja]
e os mistérios e as moralidades:
À medida em que a língua vulgar foi se estendendo sobre o latim, os autos medievais e mistérios
(estes mais extensos que os autos, chegavam a durar até 40 dias e procuravam apresentar o “teatro do
mundo” desde seu gênesis até o Apocalipse) , que eram organizados pela Igreja e representados,
escritos e dirigidos por padres e monges, romperam sua ligação com a liturgia. A solenidade dos
eventos atemporais abriu caminho para a multiplicidade do presente e a linguagem corrente, trajes e
gestos espalharam seu colorido pela história bíblica. Quando a Igreja abriu suas portas e deixou o
drama escapar para a confusão e a animação da cidade, o fato significou mais do que um simples
aumento de espaço. A próspera população de burgueses da cidade apropriou-se do teatro com fervor,
deixando de ser apenas espectadores. Patrícios, burgueses e artesãos tinham a liberdade de apresentar
as verdades da fé de acordo com sua própria interpretação da vida.
cerne da visão alegórica: a exposição barroca, mundana, da história como história mundial do
sofrimento, significativa apenas nos episódios do declínio. Quanto maior a significação, tanto maior
a sujeição à morte”. A significação e a morte amadureceram juntos no curso do desenvolvimento
histórico, da mesma forma que interagiam, como sementes, “na condição pecaminosa da criatura,
anterior à Graça” (BENJAMIN, Walter. Passagens. São Paulo: Edusp, p.534)
A dialética é o princípio constitutivo da alegoria; nela, a significação e a morte amadurecem
juntas. Para os autores barrocos, a alegoria é uma figura emblemática que serve para tipificar a
natureza dilacerada e catastrófica do mundo humano. A alegoria revelaria a antinomia das coisas, em
que “cada pessoa, cada coisa, cada relação pode significar qualquer outra”. A ambigüidade e a
multiplicidade podem ser consideradas as marcas essenciais da concepção alegórica, em que a
ambigüidade não passa da “riqueza do desperdício”.
A marca da alegoria seria assim o distanciamento das coisas do seu sentido original, a
alienação das coisas da sua verdadeira essencialidade, na medida em que allo-agorein significa dizer
outra coisa; ela é a afirmação da diferença sem qualquer perspectiva de reconciliação.
A CAVEIRA
E nem o papa
Dela escapa
E é o primeiro
A dançar.
O PAPA
Muito poder eu
Tinha na terra
Mas veio a morte
Me buscar.
O IMPERADOR
Mas no fim
Numa cova
Todo mundo
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É igual.
Imperial.
Uma antiga pousada ou taberna, com cenário adequado, podia servir como local de representação,
sem preparativos especiais para a farsa, a irmã do Carnaval. Um tablado de madeira sobre tonéis, uma
parede como fundo e uma porta para as entradas dos atores, talvez uma mesa ou cadeira servindo de
barra dos tribunais. As falas eram rudes e diretas, tanto no aspecto sexual e fecal, quanto no político
e moral. Ao contrário das encenações dos mistérios e das moralidades, não havia peregrinação do
público entre estações e nem grandiosidade. A cosmovisão religiosa de que nos falou antes Anatol,
passa a ser substituída por uma visão individualista do mundo, na medida em que o comércio e as
manufaturas se expandem e dão lugar a um mercado consumidor cada vez mais dependente do
dinheiro e da venda da força de trabalho.
O Carnaval e o Charivari também surgiam agora incorporados aos mistérios, em uma única
experiência performativa, religiosa e cultural comum, em que os opostos do riso e do sagrado
anulavam-se, dentro de uma nova cosmovisão de mundo:
“Um espetáculo completo era muitas vezes precedido por uma soltura dos diabos na cidade:
indivíduos vestidos como demônios, gritando, espalham-se pelas ruas, perseguem os habitantes e
podem mesmo sequestrá-los. Esses diabos são os pobres -daí a expressão pobres diabos – que
aproveitam a ocasião para injuriar o burguês, cometer roubos, fazer um barulho infernal acompanhado
de risos retumbantes. (...)O diabo do mistério não é apenas uma figura extraoficial, é também um
personagem ambivalente e assemelha-se ao louco e ao bufão. Ele representa a força do baixo material
e corporal que dá a morte e regenera (...) Depois de dias de diabruras, procede-se ao grito, isto é, ao
apelo do público, e sucedem-se, em ordem variável, sermões jocosos, farsas, mistérios moralidades.
As pequenas intrigas circulam em torno de problemas conjugais. A farsa explora,
essencialmente, as questões da moral privada (...) O riso da farsa é individualista, compete a
cada um arrancar, pela astúcia, uma fatia de felicidade sem, contudo, colocar o mundo sob
questionamento. O riso da festa, obrigatório, expressa o interesse do grupo; o riso farsesco,
egoísta e amoral, é o único meio de o indivíduo ter uma desforra sobre as coletividades nas quais
ele é integrado à força e que o oprimem e o protegem, ao mesmo tempo: paróquia, religião,
família, corporação, guilda, cidade...”. (MINOIS, idem, p. 200).
EXEMPLOS DE FARSA –