Você está na página 1de 20

A Fé da Igreja, vol 4. Pe. Michael Schmaus. Vozes. 2° Ed. 1983. Pg.128-148.

C) A HIERARQUIA

I. A FACE JURÍDICA DA IGREJA EM GERAL

Foi tarefa e intenção de Jesus fundar e estabelecer o reino de Deus e levá-lo, avante. A
realeza de Deus deverá alcançar forma definitiva em sua segundo vinda, na volta do Senhor
glorificado. O começo concreto do reinado de Deus colocou-o Jesus na comunidade messiânica
de salvação, a Igreja; nela deixou os sinais do reinado de Deus que começava (comunidade
salvífica) e os meios de sua realização (instituição salvífica). Como representantes desta nova
comunidade criou Jesus o colégio dos doze (Mc 3,14). Elemento fundamental, contudo, é a
comunidade messiânica total. Ainda que, historicamente falando, a vocação dos apóstolos
constitua o princípio temporal da nova comunidade, contudo o sentido do colégio apostólico
está em ser o núcleo da nova comunidade messiânica, formada, em última análise, pelo
Espírito Santo. Os após-tolos deveriam formar a definitiva comunidade de salvação de Deus, e,
ao mesmo tempo, pela pregação da mensagem salvífica e pelo recebimento daqueles que
ouvissem a mensagem com fé, expandir a comunidade até aos confins da terra, e levá-la ao
crescimento até o fim do mundo (Mt 28,18s, comunidade escatológica de salvação). Se o
Senhor Glorificado se despede dos «doze» (onze), dando-lhes tal encargo, e, na vinda do
Espírito Santo, os confirma definitivamente como apóstolos, surge logo a pergunta acerca da
sucessão apostólica. A ela junta-se um outro e importante problema, o da estrutura jurídica da
nova comunidade messiânica de salvação. Já do ponto de vista puramente natural, não pode
uma comunidade de homens realizar-se historicamente sem elementos jurídicos e sociais. Isto
também vale quanto à Igreja. Contudo ela é uma sociedade de caráter próprio e o núcleo de
sua constituição social foi determinado por Jesus Cristo.

Demonstraremos que Jesus mesmo lançou os fundamentos básicos da forma eclesial


de direito e que a sucessão estava incluída em sua vontade de fundador.

O teólogo evangélico R. Sohm (1841-1917), lá pelo final do século passado,


desenvolveu uma tese de profundas implicações e grande repercussão. Dizia que a essência da
Igreja está em contradição com o direito. E afirmava que a figura carismática da Igreja
primitiva, na qual governou tão-somente o poder das personalidades guiadas pelo Espírito, se
transformou, na passagem século I ao II, no velho catolicismo sacramental-jurídico; e até o fim
do século XII, experimentou uma nova transformação na nova Igreja Católica, constituída em
forma jurídico-corporativa. Este último estágio significa que governo da Igreja se libertou e
emancipou da ordenação, da raiz sacramental. Assim poderiam ter entrado em
desenvolvimento os vários ministérios a Igreja. Hoje esta tese é geralmente rejeitada pelos
teólogos evangélicos. Contudo, permanece uma notável diferença entre o ponto de vista
católico o protestante acerca da estruturação jurídica da Igreja. O próprio Lutero fazia
distinção entre a Igreja espiritual que está oculta, e a Igreja empírica. E dessa forma fazia
igualmente distinção entre o direito humano e o direito divino. O direito divino impera na
Igreja espiritual, na Igreja dos santos. Seu âmbito de ação é o homem interior. No âmbito do
que é visível impera o direito humano da Igreja. Isto não deve ser entendido no sentido de
direito mundano conforme as ordens do Estado. Antes, é um direito de categoria especial.
Enquanto que o direito pertinente à Igreja espiritual diz respeito ao homem interior, isto é,
concerne à sua salvação, o direito pertinente à Igreja visível concerne ao homem exterior. Ele
não obriga primariamente, isto é, por causa da salvação, mas secundariamente, por causa da
ordem. O homem se sujeita à reta ordem não por causa da fé, mas por causa da caridade,
porque a Igreja, sem reta ordem, é incapaz de viver e incapaz de agir. Até aqui o ponto de vista
de Lutero.

K. Holl (1866-1926) inclinava-se para a opinião de que, pelo menos para a comunidade
paulina, em contraposição à comunidade primitiva de Jerusalém, sob o círculo dos doze,
dever-se-ia aceitar uma legislação puramente carismática (Gesammelte Aufsãtze, II, Tübingen,
1928, 46-67). Também esta tese diluída de uma Igreja primitiva carismática está hoje
abandonada na maior parte da teologia evangélica.

A Escritura prova realmente de modo claro que, desde o início, houve elementos
jurídicos na Igreja. Eles não se encontram marginalizados da vida eclesial, mas estão em seu
fundamento. O tempo antes de Cristo foi marcado pela aliança com Deus, que perpassa todo o
Antigo Testamento. A iniciativa então partia de Deus. Embora Deus tenha estabelecido a
aliança para soberanamente conceder a salvação, contudo logo se ligou a ela, com plena
liberdade. Em contrapartida, o povo da aliança, como parceiro humano da aliança, foi ligado
por Deus à lei da aliança e a ela obrigado. Tudo o que aconteceu dentro da aliança no Antigo
Testamento deve sua origem a esta raiz jurídica, chegando-se assim até ao mandamento do
amor de Deus e do próximo. Quando o povo de Deus do Antigo Testamento falhou perante o
progresso da auto-revelação divina, que aconteceu em Cristo, foi a aliança com Deus colocada
em nova forma. Exteriormente isto transparece por uma nova denominação. Jesus, na ceia de
despedida que celebrou com seus discípulos antes da morte, falou de uma nova ordenação de
Deus, isto é, de um Novo Testamento. Nesta expressão aparece melhor, em primeiro plano, a
iniciativa divina. O conceito de Testamento, isto é, ordenação de Deus, também é de âmbito
jurídico. Assim, pois, também a nova época iniciada por Cristo já vem determinada em sua
fundamentação por elementos jurídicos. Haveríamos contudo de compreender mal a estrutura
jurídica, se a interpretássemos segundo o modelo de expressões jurídicas político-estatais. Os
elementos jurídicos possuem caráter análogo. Isto significa que, em âmbito estatal, eles são
expressões jurídicas semelhantes e dessemelhantes; em grau mais elevado, mais
dessemelhantes que semelhantes. Chegaríamos a interpretações errôneas, se quiséssemos
simplesmente interpretar juridicamente os elementos bíblicos do direito que se encontram no
desenvolvimento da história da salvação. A estrutura jurídica, testemunhada pela Escritura,
tem a função de servir. Não é estrutura alguma de dominador, mas uma estrutura que visa o
serviço. Ë figura de expressão e meio do cuidado criativo da salvação e do amor de Deus. A
estrutura fundamental de direito da nova ordenação de Deus adquiriu forma concreta e
histórica, quando Cristo encarregou os apóstolos de sua própria missão. Isto se expressa
principalmente com maior força em sua palavra: «Quem vos ouve, a mim me ouve; quem vos
despreza, a mim me despreza; quem porém me despreza, despreza aquele que me enviou» (Lc
10,16). Desde o início existiu na Igreja o poder de ensinar e de ordenar.

A estrutura jurídica, cuja forma fundamental remonta até Cristo, não apenas não entra
em contradição com a caridade, mas está a serviço dela. Deus se obrigou diante dos homens a
salvá-los dentro da ordem por ele mesmo estabelecida em Cristo. Ele se fez «Deus por nós». E
Deus nunca mais abrirá mão desta obrigação que a si mesmo ele se impôs. Por outro lado, os
homens são chamados a entrar na ordenação de Deus e, para sua própria salvação, entregar-
se a Deus. A entrega a Deus está indissoluvelmente ligada à tarefa de se estar à disposição dos
homens. Jesus acentuou esta interdependência do modo mais expresso possível no sermão
sobre o julgamento.

A missão confiada por Jesus Cristo a seus discípulos serve para exortar e incitar
continuamente os homens a que cumpram sua tarefa principal, isto é: a se entregarem a Deus
e ao serviço dos irmãos e das irmãs. Enquanto os que vivem na ordem de Deus estiverem
ligados comunitariamente entre si, necessitam também de uma ordenação horizontal, na qual
se possa realizar sua vida em comum, a existência de um para o outro, sem que haja caos ou
arbitrariedade. A esta ordenação horizontal servem as determinações jurídicas, nas quais, no
decorrer dos tempos, foi-se concretizando a estrutura jurídica fundamental da Igreja. Quanto a
isto se observe: a histórica concretização dos bens de tradição trazidos pelo Cristo estão
sujeitos à mudança. Eles vêm o podem também passar. Deles vale: tudo tem seu tempo. Deve-
se portanto contar que aquilo que, em uma determinada época, serviu magnificamente à meta
fundamental do direito na Igreja, já não lhe seja favorável em uma nova época, antes, pelo
contrário, prejudicial. A força conservativa do costume pode obstar a iminentes reformas tão
bem como o revolucionário desejo de novidades pode se tornar destrutivo. Forma alguma
condicionada pelo tempo deve ser considerada como norma absoluta para a vida eclesial (ver
p. 69).

Para a compreensão da convicção católica da estrutura jurídica da Igreja, deve-se ter


sob os olhos a atitude cristocêntrica fundamental da Igreja. Em Jesus Cristo Deus se comunicou
de modo irrevogável e definitivo aos homens. A autocomunicação de Deus é, em verdade,
primeiro um oferecimento, mas não sem compromisso. Encerra em si um incitamento ou uma
obrigação. A aceitação do oferecimento divino por parte dos homens decide a salvação ou a
perdição. Sob este ponto de vista a aparição e a função de Jesus já incluem elementos jurídicos
pelo fato de compreender em si a reivindicação sobre os homens, uma reivindicação aliás para
a salvação. A presença, cheia de graça, de Deus em Jesus Cristo torna-se julgamento para
aquele que recusa ter fé. A autocomunicação de Deus acontecida em Cristo permanece viva e
eficaz até a consumação dos tempos. Ela tem sua concreta figura na Igreja e na pregação
eclesial, na dispensação dos sacramentos e na direção. A Igreja é a presença e a graça de Deus.

Ela é a comunidade daqueles que aceitaram o oferecimento da salvação da parte de


Deus, oferecimento acontecido em Cristo; aceitaram-no pela fé e pelo batismo, e sempre de
novo o estão aceitando e, ao mesmo tempo, o estão transmitindo a outros pela pregação e
pela aplicação de sinais (sacramentos). A comunhão com Cristo e a daqueles, entre si, que
crêem em Cristo, requer uma ordem que lhe corresponda, caso eles, à maneira de uma escola
gnóstica, não recorram à espiritual e invisível esfera, que a ninguém obrigue. Ordem somente
há pelo direito. Também a transmissão, ou antes, a mediação da autocomunicação divina a
outros, requer uma determinada ordem, cujo fundamento é a delegação, a missão. A pregação
daqueles que foram dotados pelo Cristo com sua própria missão tem o mesmo caráter de
salvação e o mesmo caráter de exigência que a própria pregação de Cristo.
Cristo, na realidade, tinha em vista uma ordem fundamental para a sua messiânica e
escatológica comunidade de salvação, cujos elementos, natural-mente, ainda não podiam ter
aquela variedade, quantidade de graus e de firmeza tão claras como se foi evidenciando no
decorrer dos séculos. Jesus transmitiu sua própria missão aos apóstolos, e, de modo particular,
a Pedro. Tais homens estavam assim autorizados a, em nome de Cristo e na plenitude de seu
poder, anunciar a mensagem de Jesus. Pelo ministério de Pedro e dos apóstolos deveria ao
mesmo tempo ser assegurada e comprovada a unidade da comunidade que acreditara em
Cristo. E mais: conforme a determinação de Cristo, deveria a pregação ser independente de
qualquer poder desta terra. O fato de a pregação ser feita em nome e na plenitude do poder
de Jesus lhe conferia autoridade divina. A ordem prevista por Cristo para a Igreja visava a
credibilidade e a autoridade da pregação, a pureza e a intangibilidade do Evangelho, a unidade
e a liberdade.

Assim como a origem da Igreja pela vinda do Espírito Santo no primeiro dia de
Pentecostes deve ao mesmo tempo ser atribuída à decisão de homens repletos do Espírito
Santo, assim também a realização concreta e histórica da ordem fundamental da Igreja,
querida pelo Cristo, se deu pela decisão de homens, em obediência a Cristo. Uma vez que
Jesus, conforme a Sagrada Escritura, nunca falou com palavras claras acerca de uma
determinada forma de ordem jurídica para a futura Igreja pós-apostólica, mas apenas instituiu
elementos jurídicos, é compreensível que nos tempos apostólicos nos deparemos com uma
longa série de experiências, como de quem tateia; que encontremos uma busca e uma luta,
até que se reconheça e se realize com clareza aquela forma jurídica querida por Cristo. Em
virtude da criação divina da Igreja não poderia, por exemplo, surgir igreja alguma sem
distinção e sem íntima união entre leigos e membros da hierarquia; sem a distinção e a
conexão entre episcopado e o primado. Estes elementos jurídicos não são o produto de uma
evolução histórica, mas formas de expressão da vontade divina. Pela vontade fundadora do
Cristo e por sua respectiva obediente aceitação pela Igreja primitiva, isto é, pelos apóstolos,
criaram-se ministérios, isto é, instituições duradouras para a pregação da mensagem de
salvação.

A origem da constituição jurídica da Igreja, em última análise atribuível a Cristo, não


exclui, como já foi dito, que a forma de realização tenha sido condicionada pela situação
histórica, então dominante, e a reflita. Se os componentes da ordem eclesial, provenientes do
Cristo, devem ser chamados de seu elemento «divino», então cada vez a concretização
histórica apresenta os componentes humanos. É evidente que os componentes divinos nunca
podem ser dados em sua pura forma divina, mas sempre em forma de realização humana e
histórica. Isto não significa que o elemento «divino» tenha de aparecer na história de uma
forma humana, como em um corpo criado por ele próprio e que sempre há de permanecer
como um corpo na história. Pelo contrário, por livre decisão humana, cada vez realizou-se a
concretização da história. Esta tese implica consequências de grande alcance. Pois ela afirma
que em cada tempo na ordem eclesiástica se ajuntam o divino e o humano, no sentido de livre
decisão de Deus, isto é, de Cristo, e da livre decisão dos homens chamados por Cristo, para
formarem uma união; e mais, afirma que cada vez a concreta realização dos elementos divinos
pode se mudar. Assim a Igreja, em vista dos componentes humanos de sua ordem, está sujeita
a uma constante dinâmica histórica, sem que, com isso, se torne infiel a seu conteúdo
fundamental divino. Este é a garantia da continuidade através dos séculos. Aquele implica no
fato de a Igreja sempre estar em perpétua transição. E neste sentido ela sempre é uma
comunidade em formação, o povo peregri- nante (João XXIII). Assim a Igreja, no decorrer dos
séculos, se utilizou tanto em sua teoria de direito como também em sua praxe de direito,
muitas vezes de conceitos e símbolos jurídicos e das instituições jurídicas terrenas (por
exemplo, constituições diocesanas). De maneira semelhante a teologia, a reflexão científica
sobre a revelação divina se utilizaram da filosofia fora da Bíblia. Por um tal processo não se
suspende, contudo, a diferença caracterís- tica para a Igreja entre sua forma jurídica e o direito
civil. O direito da Igreja por tais incorporações não se torna direito civil. Seria perfeitamente
possível e imaginável, se a estrutura fundamental da Igreja, oriunda do Cristo, tivesse surgido
em outras, e não nas implicações por nós conhecidas, e tivesse se concretizado de outra
maneira. Basta apenas que se pense na grande influência exercida pela constituição imperial
romana, pela legislação de Constantino ou pela inter-relação medieval de imperium e

sacerdotium. Pela origem da Igreja, também em sua estrutura jurídica, de Jesus Cristo,
representa ela em sua constituição social um sinal eficaz de salvação (cf. o capítulo da
sacramentalidade da Igreja).
Mostram, portanto, tais considerações que há na Igreja um direito irre- movível, por
ser divino, e, ao mesmo tempo, um direito removível, por ser humano. Não é possível sempre
dar com exatidão a diferença entre o direito divino e o direito humano na Igreja. Não é
possível separar completamente um do outro. Fundamentalmente, contudo, existe a
diferença. Assim não nos seria jamais possível, como já foi dito, acabar com a diferença entre
leigos e clérigos, entre o primado e o episcopado. O papa jamais poderia criar uma Igreja sem
bispos. Mas na maneira e no modo como estas relações jurídicas fundamentais são
concretamente realizadas, não é pequeno o papel que nisto representam o julgamento
humano, as inclinações e falta de inclinação, o temperamento, o «meio-ambiente». Assim, por
exemplo, hoje se luta pela libertação do primado papal de sua forma centralística. Da mesma
forma a Igrejn hoje se esforça por uma nova apresentação de toda a vida litúrgica. Isto, por sua
vez, traz como consequência que o múnus episcopal seja focalizado do outra e nova maneira.
Basta apenas lembrar as numerosas mudanças, feitas no decorrer dos últimos anos, quanto às
determinações do Código do Direito Canónico, por exemplo, quanto ao casamento, e a revisão
planejada de todo o Direito Canónico, que não está na dimensão divina. Pelo fato de a ordem
fundamental e jurídica ter sido, de uma vez para sempre, por Cristo doada à Igreja, ela (a
Igreja) se encontra tão enraizada no sacramento, nas coisas da salvação, e nele mesmo, que
jamais se pode tornar independente, sem que com isto renegue sua própria essência. Só existe
direito na Igreja por causa do ministério da salvação. Um outro uso seria abuso. Devemos
acrescentar a esse respeito que pode haver salvação, onde a evidência não permite suspeitar
ser possível.

Onde há direito, existe superioridade e inferioridade, missão e obediência. O direito na


Igreja confere pleno poder espiritual. A autorização pelo direito significa uma obrigação ao
ministério da salvação. Quando mais alta a autorização, maior o dever (Mt 20,25s). Por isso é o
exercício do direito um ministério fraternal. Fundamentalmente não há oposição alguma entre
Igreja de direito e Igreja do amor, entre Igreja ministerial e Igreja espiritual. O ministério
eclesial é exatamente o santuário e o modo de agir do Espírito. O Espírito não se atém
exclusivamente ao ministério, ele sopra onde quer (Jo 3,8). Os ministérios da Igreja, porém,
foram criados pelo Espírito. A vinda do Espírito teve caráter constitutivo para os ministérios
fundamentais. Também os administradores dos ministérios em suas livres ações estão repletos
do Espírito e por ele são guiados. Nos dignitários dos ministérios eclesiásticos está o próprio
Jesus agindo no Espírito Santo (ver p. 108s).

Como existe hoje tanta antipatia à autoridade, façamos breve análise do que vem a ser
em princípio autoridade na Igreja. Não se pode negar que sempre houve na Igreja, desde o
início, comando e obediência. Mas qualquer autoridade eclesiástica tem seu fundamento na
autoridade de Cristo. Somente ole é o Senhor da Igreja e na Igreja. Cada autoridade humana é
autoridade dn Cristo. Isto significa ao mesmo tempo despojamento do poder humano o
fortalecimento do poder divino na Igreja. Se toda autoridade na Igreja imeama concretamente
a autoridade de Cristo, isto não significa que ela não tenha falhas e imperfeições humanas. Do
contrário, a autoridade de Cristo não seria uma realidade concreta e histórica.

A autoridade e o pleno poder que o próprio Cristo tinha do Pai em virtude da missão
que lhe fora confiada consistia em que ele se podia dar a todos os homens para a salvação.
Esta autodoação era um oferecimento que obrigava. Ela alcançou seu ponto culminante na
cruz e na ressurreição. A cruz, por isso, está inserida na autoridade de Jesus Cristo. A morte de
Jesus apresenta a cada um em particular e a toda a humanidade exigências i|iio não podem
deixar de ser ouvidas para a salvação operada no Gólgota. A morte de Jesus não foi uma
fatalidade privada, mas a autodoação de Jesus nos homens, envolta na escuridão do mistério
de Deus. E isto ele o fez como representante dos homens perante Deus. Jesus pode esperar e
exigir que sua morto seja aceita e reconhecida pelos homens na perspectiva da salvação.

O Gólgota pode também se transformar em tribunal de julgamento para aqueles que


não quiseram receber o presente da auto-revelação de Cristo, com o dom nela incluído da
automanifestação de Deus, mas se rebelaram contra ela.

Se a autoridade de Cristo se manifesta na autoridade eclesial, então devo a autoridade


da Igreja possuir as peculiaridades da autoridade de Cristo. Da autoridade profana ela se
distingue pelo seu sentido e por sua realização. No detentor da autoridade eclesiástica o
próprio Jesus Cristo se encontra representado. Sua autoridade se torna visível no detentor da
autoridade eclesiástica. O detentor humano da autoridade faz valer a autoridade de Jesus.
Conseqüentemente a autoridade eclesial tem sua dignidade e legitimidade não em si mesma.
Ela possui uma relação dupla: uma relativa a Cristo, do qual ela vive, e outra relativa aos
demais batizados, para os quais ela existe. Os detentores da autoridade na Igreja só podem
fazer valer a autoridade de Cristo, porque e até ao ponto em que estão incluídos em sua
missão. Isto acontece, essencialmente, pelo sacramento da ordem. A inclusão dos detentores
do ministério na autoridade de Cristo é irreversível, porque Deus sustenta esta união com
Cristo («sinal indelével»).

A participação na missão de Jesus Cristo é estabelecida pelo Espírito Santo. Assim a


autoridade eclesial tem base tanto cristológica como pneumática. O detentor do ministério
deve por isso se abster de qualquer capricho próprio, de toda auto-afirmação, por amor de
Cristo. Isto, porém, significa que ele deve entrar na cruz de Cristo. O chamamento para
detentor de um ministério na Igreja tem suas raízes profundas e tudo abrangedoras na cruz de
Cristo, quando o homem se incorpora pelo batismo ao povo de Deus. O detentor da
autoridade deve saber mandar e exigir obediência, mas no sentido apenas de que ele oferece
obrigatoriamente os bens da salvação de Jesus Cristo e exorta a todos à livre aceitação deles.
Não deve mandar como um senhor deste mundo. Aqueles aos quais dá ordens não são seus
súditos, mar seus irmãos. Sua ordem tem o caráter de exortação insistente e obrigatória. A
autoridade na Igreja deve fazer sentir o misericordioso amor de Deus feito homem. Caso
contrário, repugnaria a seu sentido. Se o exercício do poder espiritual na Igreja nada mais
deixar entrever do amor, que trans-bordou na cruz, então ele não cumpre o papel para o qual
Cristo o estabeleceu. A plenitude do poder espiritual, ao esbarrar no pecado da obstinação,
pode se tornar também plenitude de poder para vencer e expulsar o mal. Mas também deve
deixar entrever o cuidado pela salvação eterna. Seria uma idéia, ante* formada conforme o
modelo do direito deste mundo do que conforme ao Escrituras, se considerássemos a Igreja
como uma estrutura de direitos, cujos membros fossem os que mandam e os que obedecem,
conforme o modelo da «sociedade perfeita». A autoridade não pode ser exercida
autoritariamente.

Nessa perspectiva encontra-se a resposta à questão se a autoridade da Igreja é


objetiva ou pessoal, sensata ou feita de caprichos; se, portanto, o detentor da autoridade tem
o direito de dar uma ordem, cujo conteúdo não é convincente. A autoridade da Igreja está
acima desta alternativa. Pois seu conteúdo é sempre a salvação no claro-escuro do mistério de
Deus. A salvação depende da vontade amorosa de Jesus Cristo, que é anunciado nas Escrituras
e, por meio dela, se faz reconhecer. O detentor da autoridade tem obrigação para com a
palavra da Escritura que apenas fala pela voz do homem. O detentor da autoridade faz com
que a palavra de Deus presente na Escritura se torne poderosa. Se a própria palavra de Deus
não nos der uma informação clara, então compete ao detentor do ministério a função de
árbitro. E. verdade, não é necessário que haja em todos os casos total clareza. Muitas
prescrições fazem com que elas sejam tidas em pouca conta. Uma decisão autoritativa,
contudo, torna-se inevitável, quando se trata de importantes questões acerca da salvação do
homem. Em caso algum podo o detentor da autoridade ordenar qualquer coisa a seu talante,
ou ordenar qualquer contra-senso. Tais coisas seriam um ultraje à dignidade humana,
ocasionando a «obediência de cadáver», incompatível com a fé cristã, ou então suscitaria um
espírito revolucionário de insubordinação (cf. A. Müller, Das Problem von Befehl und
Gehorsam im Leben der Kirche, Einsiedeln 1964).

O múnus eclesiástico requer que na Igreja só haja uma única autoridade, um único
poder espiritual, um único mestre, um único mediador e um único pastor: Cristo, o Senhor. Por
isso o conceito eclesial de múnus fundamentalmente não significa anquilosamento nem
fossilização, mas libertação das estreitezas humanas e vontade decidida de seguir a Cristo. O
ministério eclesial assegura a liberdade do homem cristão. Protege contra a tirania espiritual e
as veleidades dos assim chamados líderes religiosos, que pretendem ser medianeiros. Coloca
frente a frente Cristo e o fiel. Realiza o ser-viço para o encontro com Cristo dos que nele crêem
e, por meio dele, com o Pai. Desmitologiza de certo modo os detentores do ministério,
fazendo com que eles apareçam como aquilo para o qual foram autorizados, isto é, servos. Os
ministros e os batizados não ordenados estão unidos pelo único Espírito de Cristo, o Espírito
Santo. O povo de Deus está impregnado pelo Espírito Santo como o corpo humano pela alma.
O Espírito age tanto pelos ministros, como também pelos demais batizados, de uma maneira
neste, de outra maneira naquele. Podemos empregar a palavra «múnus» como carisma,
entendendo-a em sentido lato, simplesmente como atuação do Espírito e serviço. Geralmente,
contudo, se entende por «carisma» os efeitos do Espírito, que são espontâneos, existem por
toda a parte, chamam a atenção, e irrompem fortes na vida ordinária da Igreja. E não se acham
necessariamente ligados ao ministério. Podem, contudo, ser dados tanto ao detentor de um
.múnus» como a um não ordenado. São coisas que não se limitam ao ministério. Seria
unilateral, quiséssemos atribuir os carismas exclusivamente aos leigos. Os ministros já se
projetam na Igreja pela simples execução de suas tarefas ministeriais, mas a ação do Espírito
em determinados leigos é resultada de um modo particular. Muito embora, portanto, não
sejam os carismas privilégio dos leigos, mesmo assim, na concepção de hoje em dia, muitas
vezes eles são postos em confronto com os ministérios como um presente de Deus aos leigos.
Muitas vezes a distinção tácita ou intencional entre a chamada Igreja ministerial e a Igreja
carismática, entre a Igreja jurídica e a Igreja da caridade, entre a Igreja institucional e a Igreja
da livre atuação do Espírito, é um retorno até certo ponto às opiniões defendidas por R. $ohm
e, mesmo, por K. Holl, da teologia evangélica do começo de nosso século. Na verdade,
ministério e carisma não se opõem nem se excluem. Pelo contrário, se integram na totalidade
da Igreja de Cristo. Ambos são tão necessários, que sem ministérios não existe a Igreja de
Cristo, e sem carisma ala seria inexistente também. E tanto isto é verdade, que podemos
perguntar se os carismas, da mesma forma que os ministérios, pertencem à estrutura, A
organização da Igreja. Já se afirmou esse fato, e na mesma proporção aia que os carismas
envolvem e supõem os ministérios.

Muito embora se deva acentuar a importância dos carismas, mesmo assim a


introdução deles na constituição eclesial conduz a mal-entendidos profundos e de graves
conseqüências. Os carismas pertencem à dimensão da vida, e não da ordem. De modo
semelhante os dotes naturais do homem não pertencem à constituição do Estado, e sim à vida
do homem. Os carismas se enquadram na estrutura jurídica que não teria vida sem a fé, a
esperança e a caridade. Pelo contrário, a vida seria caótica, se não se enquadrasse numa
ordem que lhe seja adequada. Adquirimos uma visão muito esclarecedora da importância e
dos limites dos carismas através do capítulo 12 da 1° epístola à comunidade de Corinto. Aí se
manifesta grande quantidade de atuações do Espírito. Ao mesmo tempo subsiste o perigo de
que os carismas singulares se tornem independentes e já não sirvam para a edificação, e sim
para a destruição da comunidade. Paulo, em sua carta, não ataca os carismas. Apenas concita
os seus leitores a que reflitam sobre o verdadeiro sentido dos carismas. Segundo suas
explanações, cada manifestação carismática provém do Espírito de Cristo, no qual encontra
sua legitimidade. A atuação do Espírito pode, contudo, ser frustrada pela vaidade, arrogância e
mania humanas de passar por importante, mas também pela tolice e assim entrar em
contradição com o sentido original do acontecido. Contra tal erro protestou o Apóstolo. Os
carismas, muito embora múltiplos, não devem destruir a unidade da comunidade. Eles têm a
tarefa de edificar a comunidade e não de colocá-la em perigo ou de a prejudicar.
Evidentemente Paulo luta contra tais perigos: a instalação do caos, por um lado; por outro
lado, a perda do Espírito. Além das exortações com base em princípios cristãos, não dá Paulo
instrução alguma. Paulo acentua na mesma epístola que Deus é um Deus de ordem (1Cor
14,33). No contexto de toda a epístola isto não significa que Deus exija uma ordem qualquer. A
única ordem apropriada é a do amor (1Cor 13). O direito não termina onde começa a caridade.
A caridade não termina onde começa o direito. No direito é fixado e decidido o que cada qual,
no seio da comunidade, pode esperar do outro, de caridade, benevolência e fidelidade.
Coordena-se a caridade. O direito, por conseguinte, prepara a moldura para a razoável
execução da caridade. Na caridade cumpre-se com sentido a ordem do direito. Conquanto o
direito sirva à salvação, também está ao mesmo tempo delimitado por esse ministério.
Devemos nos lembrar da palavra de Cristo: ‘0 sábado foi criado para o homem, e não o
homem para o sábado» (Mc 2,27).

O Concílio Vaticano II acentua a unidade de ministério e de carisma quando diz que o


Espírito Santo guia a Igreja através dos diferentes dons, hierárquicos e carismáticos
(Constituição sobre a Igreja, n° 4. Cf. J. Brosch, Amt und Charisma, em Lex. für Theol. u. K. I,
Friburgo 19572, 435s. H. Küng, Strukturen der Kirche, Friburgo 1962. W. Breuning, Zum
Verstãndnis des Priesteramtes vom (‘Dienen» her, em: Lebendiges Zeugnis, 1969, 5-24. M.
Kaiser, em: Lebendiges Zeugnis, 1969, 5-24. J. Hasenhüttl, Charisma, Fri-burgo 1969; R. J.
Bunnik, Das Amt in der Kirche, do holandês, tradução alemã de H. Julauf, Düsseldorf 1970. K.
Rahner, Schriften zur Theologie, vol. VI e VII, Einsiedeln 1965s).

Na concretização histórica, contudo, ocorreram de muitos modos e muitas vezes


tensões entre dignitários da hierarquia e os leigos. Então se torna necessário um contínuo
exame de consciência da parte de todos os membros da Igreja. As contradições têm sua
origem quer na fragilidade humana na possibilidade de pecar, o que leva alguém a se tornar
imperioso e inclinado para o orgulho, de um lado; e inclinado à vanglória ou à lisonja, de outro
lado; quer na diferença de conhecimentos objetivos e de opiniões. Desta forma são
compreensíveis as contínuas exortações feitas pelo Concílio Vaticano II na aceitação de uma
tradição oriunda dos tempos da própria Igreja primitiva (por exemplo: Constituição sobre a
Igreja, n° 27, 32, 37). Na 1° Carta de Pedro (1,1-5) se diz: «Também exorto os anciãos
(presbíteros) dentre vós, eu, ancião igual a eles (co-presbítero), testemunha dos padecimentos
de Cristo e participante da glória que há de se revelar. Apascentai o rebanho de Deus que vos
foi confiado, vigiando-o, não pela força, mas de bom grado, como Deus o quer; não pela
sórdida ganância de lucros, mas através de um zelo amoroso. Não sejais como tiranos em
relação à parte da Igreja que vos foi confiada, mas servi de modelo ao rebanho. Porquanto
logo que aparecer o pastor supremo, recebereis a coroa imperecível da glória. Também vós, os
jovens, sujeitai-vos aos presbíteros». No mesmo sentido, mais tarde, São Bernardo de Claraval
se dirigiu a seu discípulo, o papa Eugênio III (De con-sideratione sui, III, 6): «Considera acima de
tudo que a santa romana Igreja, que, com plenitude do poder divino governas, é a mãe da
Igreja, e não sua dominadora; considera que não és o senhor, mas o irmão dos bispos e um só
com eles».

Em princípio, no ministério eclesiástico une-se o elemento pessoal do encontro


salutífero na fé e na caridade com o elemento institucional, no qual o elemento pessoal se
desenvolve e deve se desenvolver, isto de tal maneira que o serviço da salvação não fique
sufocado pela força do pessoal; isto é, que não se dêem ordens no afã de poder mandar. Não
se deve esquecer que a liberdade sempre tem prioridade e somente necessita de peias, na
medida que a salvação o exige. Só descobre tais coisas quem for iluminado pela caridade. Se
houver amor vivo na realização do institucional, este não há de degenerar em burocracia. O
elemento pessoal, isto é, a intenção de servir à salvação, na execução de ações ministeriais,
tem seu fundamento último no fato de que o Espírito Santo, isto é, o Cristo age através do
detentor do ministério. Quem exerce o cargo, quem com liberdade recebeu a autorização para
exercer seu ministério, desempenha, em sua atuação ministerial, o exato papel de Cristo, de
maneira que nele e por ele Cristo se encontra concretamente presente. Isto exige por parte do
ministro que de boa mente se ligue a Cristo, Senhor crucificado e glorificado, como seu
instrumento. Para a dispensação dos sacramentos exige-se o mínimo: que o dispensador tenha
a intenção de fazer na Igreja um sinal de Cristo, sinal este usual na Igreja. O detentor do pleno
poder, portanto, está pessoalmente engajado em seus atos de salvação, e isto não somente no
sentido de que condiciona a validez do ato salvífico praticado por ele; mas também no sentido
de que põe em jogo sua própria salvação. Se ele não tivesse desejo de se unir a Cristo e servir à
salvação cristã, haveria então de abusar da instituição, de que é ministro, e assim perderia sua
salvação. A realização do ministério por seu sentido e natureza é sempre realização de fé e de
caridade.

Contra o perigo de fossilização e de burocratização que se esconde em todo direito,


não há remédio de absoluta e comprovada confiança. Em virtude do que Jesus prometeu
sobre a atuação do Espírito Santo nos apóstolos, devemos esperar que o Espírito Santo
acabará resistindo vitoriosamente a tais perigos. E isto pode acontecer de várias maneiras:
pela sempre de novo suscitada renovação do Espírito de Cristo e da prontidão quanto à
reforma, tanto nos próprios membros detentores do ministério, como no chamamento dos
leigos a um maior amor a Cristo, a uma compreensão mais profunda de Cristo, a um mais
elevado senso de responsabilidade; chamamento àquela coragem espiritual, na qual os leigos,
de uma crescida e segura consciência, conclamem os dignitários dos ministérios à necessidade
de reforma. Essa atua-ção do Espírito visa a santidade, em sentido universal. Isto é, a sincera e
verdadeira caridade fraterna, que se realiza no mundo e para o mundo se volta. Pelo
ministério da Igreja não se põe fora de lei o que São Paulo disse: «Se eu falo as línguas dos
homens e dos anjos mas não tenho a caridade, sou um bronze que soa ou um címbalo que
tine» (1Cor 13,1). O amor cria-dor é a medida e a escala de todo mandamento e de toda
obediência. O amor, porém, é um processo executado pelo Espírito. Nunca deve ser esquecida
a parênese apostólica: «Não extingais o Espírito!» (1Ts 5,19).

II. OS SUCESSORES

1°) Princípios gerais

Os ministros da Igreja são sucessores dos apóstolos. Antes de mais nada havemos de
tratar o problema da sucessão em princípio; depois, separada-mente, cada ministério
eclesiástico. Em virtude da situação das fontes, sempre será impossível a descrição exata do
processo histórico pelo qual, ao fim da era apostólica, se chegou à tríplice estruturação de
bispo, presbítero e diácono. Mas é necessário distinguir entre a realidade dogmática e esta
questão relativa à história. Tanto os textos da Escritura como também os mais antigos textos
explicados pelos Padres da Igreja falam da tríplice estruturação com aquela clareza, que, para
a confissão da fé católica, é fundamento suficiente.

Em primeiro lugar, devemos fazer uma constatação negativa: em parte alguma da


Sagrada Escritura encontramos qualquer palavra, pela qual Cristo tenha ordenado aos
apóstolos que constituíssem sucessores ou que transmitissem a outros, em formas parciais de
bispos e de presbíteros, a missão confiada a eles próprios. Estava porém incluído na própria
condição, isto é, na tarefa confiada aos apóstolos, que eles cuidassem de seus sucessores.
Assim a Igreja é essencialmente «apostólica». Nisto todos concordam: a Igreja de Jesus Cristo
há de ser apostólica. As diferenças se encontram na explicação do caráter apostólico. Em todo
o caso, a Igreja é apostólica em virtude de sua origem, como também em virtude de sua
doutrina. A Igreja de Cristo sabe que sua doutrina é idêntica à pregação da mensagem de
Cristo pelos apóstolos. A Igreja Católica, bem como a ortodoxa e a anglicana (cuja auto-
inteligência a este respeito não foi reconhecida até agora pela Igreja Católica), acrescentam
como terceiro e essencial elemento da apostolicidade a sucessão apostólica, e ligam
fortemente este terceiro elemento ao segundo. A apostolicidade da doutrina está
fundamentada na sucessão apostólica. E, por sua vez, o sentido da sucessão apostólica se
encontra na não diminuída nem desfigurada pregação da mensagem de Jesus, na transmissão
do Evangelho puro. A sucessão apostólica é a forma da tradição da doutrina apostólica. A
tradição da doutrina apostólica é a forma da tradição da sucessão (J. Ratzinger, Primat,
Episkopat und successio apostolica, em K. Rahner, J. Ratzinger, Episkopat und Primat, Friburgo
1961).

A teologia protestante rejeita a sucessão apostólica, porque o minis-tério apostólico


era único e, conseqüentemente, não pode ser herdado e especialmente porque a missão
peculiar dos apóstolos passou ao Cânon. Isso exato enquanto os apóstolos em sentido estrito
eram testemunhas visuais e auriculares que podiam atestar com sua pregação aquilo que eles
mesmos haviam visto e ouvido (At 1,21s). Além disso, eles não eram só os receptores, mas
também os portadores da revelação. Pois a automanifestação do Deus não terminou até ao
final do período apostólico. Ainda que os apóstolos tenham sucessores, esses de nenhum
modo podem receber novas revelações. De nenhum modo podem ser testemunhas visuais e
auriculares. As eventuais «aparições» não tornam isso possível. Mas a unicidade da situação
apostólica não exclui a duração da missão, a saber, a pregação do Evangelho até ao final dos
tempos. Se Cristo glorificado diz que em meio à sua relativa ausência quer estar ao mesmo
tempo presente até ao final dos tempos (Mt 28,20), se ele confia o encargo de levar a
mensagem aos confins da terra (At 1,8) e, sobretudo, depois de sua glorificação ainda chama
um novo após-tolo, a saber, a Paulo, e lhe confia tarefas singularmente importantes, tudo isso
indica que seus encargos hão de realizar-se para além da morte dos apóstolos.

Deve-se, no entanto, notar não terem estes sucessores outra coisa a fazer senão
retransmitir a pregação dos apóstolos, interpretá-la e desenvolvê-la. Neste sentido é correto
que a tarefa imposta aos apóstolos de evangelizar sofreu uma mudança de estrutura, embora
não uma mudança quanto ao conteúdo, pela formação do Cânon escriturístico, isto é, pelo
aparecimento da sagrada Escritura e de sua coleção obrigatória. Enquanto que os apóstolos,
em virtude de sua experiência e iluminação pelo Espírito Santo, puderam dar testemunho do
Cristo, os que lhes foram posteriores têm de se ater ao Cânon. Este Cânon, desde que existe, é
a norma para a atividade global da Igreja nos tempos pós-apostólicos. De outro lado, porém, a
Escritura não se auto-anuncia. Muda permanece, enquanto não for veiculada pela voz
humana. Por mais que, por seu Espírito, tivesse suscitado o nascimento da Bíblia, Jesus não
edificou sua Igreja sobre um livro, mas sobre homens, no encontro salvífico do homem com o
homem (Rm 10,14-18). A pregação é necessária em vista da salvação, e a salvação se processa
no encontro salvífico. A Igreja possui uma estrutura pessoal, e não uma estrutura objetiva.
Quanto a isto, deve-se contudo refletir que, se levarmos em conta a palavra «estrutura» em
seu primitivo sentido estrito, o elemento pessoal só pode ser entendido como um «pessoal»
de certo modo somente institucional. Esta estrutura é de tal feitio, que não possuímos paralelo
algum para ela fora da Igreja. É o único e mesmo Espírito que, agindo na Igreja, produziu a
objetivação da mensagem de salvação na palavra escrita, e continua a atuar na pregação desta
mensagem de salvação, objetivada na Escritura. Mas a mensagem objetivada da salvação
somente se torna audível pela palavra do pregador. Aquela idéia, segundo a qual se atribuiu ao
mesmo livro da Sagrada Escritura o papel de pregar a Cristo, nasceu do entusiasmo do
humanismo, daquele movimento histórico pelo qual no tempo do Renascimento se tornou
conhecido no Ocidente a antiga literatura grega e latina sob muitas manifestações até então
desconhecidas. O princípio da sola scriptura tem por base um tal mal-entendido do
humanismo. Na realidade, ele está hoje em dia sendo abandonado por toda parte, também na
Igreja evangélica (cf. vol. r, p. 139s).

Levanta-se assim a questão: quem é que empresta voz à mensagem da salvação,


objetivada na letra morta da Escritura, de modo que a palavra proclamada por Cristo e pelos
apóstolos em cada momento se torna presente e audível? Pode-se responder: cada cristão, na
medida em que, pelo batismo e pela confirmação, se acha unido a Cristo e é repleto pelo seu
Espírito Santo. Esta é a opinião da teologia protestante, e a Igreja Católica a rejeita apenas por
seu caráter unilateral e exclusivo (cf. o que dissemos acerca dos leigos). Os cristãos, segundo
Lutero, pelo batismo são bispos e sacerdotes. Opiniões semelhantes, antes de Lutero, eram já
defendidas pelo inglês Wiclif e Hus, em muitas coisas dependente de Wiclif. Neste ponto
admite Lutero uma graduação. Há um chamamento e, além disso, uma ordenação por parte da
comunidade. Os que foram assim requisitados têm o ofício da pregação do Evangelho,
possuindo um poder espiritual. É possível que Lutero tenha chegado à sua tese porque
acreditava que os chamados ao ministério espiritual daquele tempo, isto é, os bispos,
rejeitavam a obra da Reforma; e, por tal motivo, o ministério consistiria na tarefa sacerdotal de
qualquer homem cristão. Em face da objeção de que a comunidade não está em condição de
comprovar o caráter cristão e rejeitar um pregador indigno, tranqüilizava-se Lutero com a
atuação do Espírito Santo, de tal modo que, na sua opinião, graças a ele, nada acontecia do
que em si poderia acontecer, isto é, a corrupção da doutrina de Cristo.

2°) Ministros oficiais no período apostólico

A imagem dos tempos apostólicos e da mais antiga Igreja corresponde tão-somente a


tese, que, muito embora cada qual seja obrigado a dar testemunho de Cristo, a autêntica e,
por assim dizer, obrigatória pregação se deu através daqueles que para isto foram
encarregados no Espírito Santo. Tais foram os apóstolos, principalmente. Os apóstolos, por sua
vez, logo designaram colaboradores e auxiliares. Estes tinham muitas e diversas tarefas. Nos
primeiros tempos não havia terminologia homogênea para a designação dos auxiliares e
colaboradores apostólicos. E isso não deve causar estranheza, pois era um período de
formação da Igreja. Pelo contrário, é muito natural tenha isto acontecido. O próprio Cristo,
segundo Lucas (10,1-20), não reuniu em torno de si apenas os doze, mas também outros mais
discípulos. Lembra o texto de Lucas a cena do Antigo Testamento (Nm 11,16s), segundo a qual
Moisés, em obediência à ordem de Deus, associou a seu ministério 70 homens de projeção,
para que, com ele, regessem o povo. Eles receberam, como se encontra escrito, participação
no espírito de Moisés, isto é, tomaram parte na autoridade dele.
Muito em breve tais colaboradores e auxiliares foram chamados, nos tempos
apostólicos, de «apóstolos», principalmente Matias (At 1,2.15-26), escolhido por sugestão de
Pedro para a complementação do colégio dos doze, após a eliminação de Judas; mas também
outros, como Tiago, irmão do após-tolo Tadeu, e, após Pedro, cabeça da comunidade de
Jerusalém (1Cor 15,7), e outros irmãos do Senhor. Também alguns missionários dos primórdios
do cristianismo receberam este nome: Barnabé (1Cor 9,5s), Júnias, Andronico (Rm 16,7), Apoio
(1Cor 4,6.9), Silas, Timóteo (1Ts 2,7). Provavelmente foi em Antioquia que surgiu a ulterior
significação da palavra, aplicada às primeiras testemunhas autorizadas de Cristo, que
missionavam (At 13,2s; 14,4). Na Epístola aos Hebreus (3,1), o próprio Cristo é denominado
apóstolo, enquanto é o legado, o encarregado, o plenipotenciário de Deus.

Antes de falarmos dos colaboradores dos apóstolos em particular, devemos fazer unia
observação, que diz respeito a princípios. Pergunta-se: a introdução de tais homens foi de pura
ação humana ou dependeu de uma disposição divina? Mais: a divisão dos ministérios a serem
exercidos por estes colaboradores deve ser atribuída somente aos cálculos práticos dos
homens, ou devemos ver aqui em jogo a vontade divina? Portanto, foi direito humano ou
direito divino que aqui se mostrou eficaz? A pergunta tem tanto mais sua razão de ser, porque,
para só citarmos um exemplo, distingue, como é sabido, entre sua pregação, como de apóstolo
instituído pelo Cristo, e sua humana solicitude pela comunidade, muito embora sustentada
pela fé (1Cor 7,12.40).

Deve-se dizer o seguinte: pela instituição dos colaboradores, cumpriram os apóstolos o


mandato de Jesus Cristo, uma tarefa divina, portanto. O texto em Lucas (10,2) parece querer
indicar que correspondia à vontade de Cristo instituíssem os apóstolos tais colaboradores. Em
todo caso eles participavam na tarefa missionária imposta por Deus aos apóstolos. Não deve
também passar despercebido que os apóstolos, por sua vez, hão de ser compreendidos como
porta-vozes da revelação. Os presbíteros (anciãos) instituídos por eles, evidentemente homens
de considerável prestígio, tomando parte nas tarefas ministeriais dos apóstolos, participam
assim de seu poder ministerial. Note-se, os próprios apóstolos ocasionalmente são chamados
de «anciãos» (At 11,30; 1Pd 5,1; 2Jo 1; 3Jo 1).

Digamos primeiro uma palavra quanto à terminologia. A Escritura dá testemunho de


muitos e variados serviços, funções e ministérios dentro do único e homogêneo povo de Deus.
A nomenclatura de tais ministérios não é idêntica à que mais tarde se tornou usual. A palavra
sacerdote (hiereus) somente se emprega para Cristo (Hb 5,5s; 7,17.21; 8,4; 10,21) e para a
comunidade (1Pd 2,5.9; Ap 1,6; 5,10; 20,6). Quanto à denominação de ministérios no seio do
povo de Deus do Novo Testamento, nada ocorre. Em contrapartida, encontramos em algumas
comunidades o pentaforme ministério de apóstolo, profeta, evangelista, pastor e de mestre (Ef
4,11; 1Cor 12,28). O âmbito de ação destes ministérios ultrapassa cada vez a comunidade de
então (At 8,14.40; 11,27; 15,32s). Cada um destes ministérios é necessário, «até que atinjamos
todos a unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus, o estado de homem feito, a
medida da plena idade de Cristo» (Ef 4,13). Em outras comunidades compunha-se a direção de
servos (diáconos), anciãos e «bispos» (1Ts 5,12s; At 14,23; 20,28; 1Cor 16,15-18; Rm 12,7s).
Uma diferença em princípio dos ministérios acima citados não existe. Filipe, por exemplo, é ao
mesmo tempo citado como diácono e como evangelista (At 6,5; 21,8). Estes três ministérios
estão intimamente ligados a alguma comunidade local. Cada comunidade tinha vários bispos
(vigilantes), anciãos e diáconos (Fl 1,1; At 20,17).

O sentido dos ministérios consiste em que Jesus, mesmo chamado de apóstolo (Hb
3,1), profeta (Jo 4,19), pastor (Hb 13,20), mestre (Jo 3,2), servo (Le 21,27) e bispo (1Pd 2,25),
age, de modo todo especial, por intermédio deles (At 21,19; 2Cor 13,3; cf. 12,12; GI 2,8).
Alguns destes ministérios ficaram circunscritos aos tempos apostólicos. Desapareceram com
eles, ou foram absorvidos por outros ministérios. Comprovaram-se como estáveis os
ministérios de bispo, de presbítero e de diácono. A mais antiga denominação e a mais
abrangedora foi a de presbítero (o ancião). Deste termo é que se deriva a palavra alemã
Priester (padre), muito embora seu conteúdo não seja idêntico àquilo que o termo
«presbítero» significa. A expressão não quer dizer idade biológica, nem idade de ensinar, mas
prestígio. A palavra vem do Antigo Testamento. Fora da Bíblia, significa a diretoria, por
exemplo, nas associações pagãs. No Antigo Testamento partia-se da provecta idade natural na
família, na parentela, na tribo, para se chegar ao ministério de presbítero (ancião) (Nm 22,7; Jo
9,11; Ex 3,16s). Os anciãos foram escolhidos por Moisés por ordem de Deus (Nm 11,16). O
ministério vem unido à posse do Espírito (Nm 11,25s; Jo 3,1). No Novo Testamento são os
presbíteros determinados por eleição de Deus (At 21,17; 28; cf. 2Pd 1,21). Eles necessitam de
uma investidura confirmatória pela imposição das mãos dos apóstolos (At 14,23; 6,6; 13,3;
1Tm 4,14; 5,22; 2Tm 1,6; 1Pd 6,2), ou dos delegados deles (Tt 1,5). Eles são os braços dos
apóstolos prolongados na comunidade adentro. São os que presidem às comunidades locais
(At 14,23). Sempre são vários e formam um colégio (At 11,30; 14,23; 15,2; 6,22s).
Pressuposição é vida impecável (1Tm 5,1-7; Tt 1,7s). A palavra «bispo» (episkopos), que
aparece uma vez como denominação de Cristo (1Pd 2,25) e quatro vezes como designação de
ministério (F1 1,1; At 20,28; cf. 20,17; 1Tm 3,1-7; Tt 1,5s), designa o serviço de vigilância, a
direção da comunidade. Em parte alguma são os bispos formalmente chamados de sucessores
dos apóstolos. Em contrapartida, aparecem como sendo os mesmos homens denominados
«presbíteros». Os termos não designam nem pessoas nem ministérios diferentes. Acentuam
somente diversos aspectos do mesmo serviço. Também os ministros designados como
«bispos» aparecem sempre em maior número nas comunidades. Encontramos nas epístolas
pastorais a primeira referência a um dirigente posto acima de todos os que exercem um
ministério. Aqui se dá o começo de uma presidência episcopal (1Tm 4,14; 5,22; 2Tm 1,6). O
bispo continua cercado de presbíteros. Muito discutida é a questão se os dirigentes da
comunidade, chamados bispos ou presbíteros, são bispos e sacerdotes no sentido de sua
evolução posterior. Não poderia haver dúvida alguma justificada de que eles tivessem sido
bispos no sentido posterior desde que tivessem tido a seu dispor atribuições episcopais. O
ofício de presbítero surgiu do ministério dos «presbíteros-bispos», testemunhados nos termos
apostólicos, por redução a um núcleo menor das atribuições atinentes a todos e não se pode
dizer que o múnus episcopal se formou por um crescimento progressivo de suas atribuições.
Quanto a isto, não deve deixar de ser levado em conta o fato de que a suprema direção das
comunidades continuou nas mãos dos apóstolos. Exatas delimitações não eram nem possíveis
nem necessárias no início. Tais delimitações só poderiam ser feitas com o desenvolvimento
histórico, graças à experiência adquirida (ver a parte que trata do ministério sacerdotal com
sucessão apostólica).
O que se iniciou nas epístolas pastorais aparece logo no tempo pós-apostólico, em
pleno desenvolvimento, a saber, a triplicidade ministerial de bispo, presbítero e diáconos (ver
a apresentação de cada um em particular).

Em Jerusalém que encontramos, de maneira mais clara, os elementos de uma ordem


hierarquizada nos tempos apostólicos. Após a execução do apóstolo Tiago Maior (At 12,2) e
após a saída dos demais apóstolos, principalmente de Pedro (At 12,17), lá estava Tiago, o
«irmão do Senhor» (chamado apóstolo), em grande prestígio como dirigente da comunidade
(e .Ill a, I Em torno dele agrupavam-se os anciãos — os presbíteros, que silo o* nono auxiliares
(At 11,27.30). Eles são diferençados tanto dos apóstolos quanto dos demais membros da
comunidade. Judas Barsabás e Silas, citados nos Atos dos Apóstolos (15,22), certamente que
pertenciam a este grupo. Que eles desempenhavam um papel de importância se vê no fato de
Paulo e Barnabé, em sua chegada a Jerusalém, terem sido recebidos pelos apóstolos o pelos
anciãos. E a estes dois grupos ambos prestaram contas de suas atividades missionárias (At
15,4). O assim chamado «Concílio dos Apóstolos»(51), que deveria resolver a questão das
missões entre os gentios, foi uma reuniria de apóstolos e de presbíteros, os anciãos (At 15,6).
Os apóstolos e os presbíteros tomaram a resolução do concílio. Todos eles em conjunto
resolveram participar a Antioquia a decisão do concílio. A epístola dirigida a Antioquia começa
com as palavras: «Os apóstolos e presbíteros, vossos irmãos, aos irmãos da Antioquia, Síria e
Cilicia, oriundos do gentilismo. Saudações!» E quando no texto seguinte dos Atos dos
Apóstolos se diz: «Aprouve ao Espírito Santo e a nós», este «nós», como se evidencia do
contexto, inclui sem dúvida os presbíteros (At 15,22.23.28). O colégio dos presbíteros da
primitiva comunidade de Jerusalém encontra seu protótipo análogo nos sete homens de
prestígio que constituíam o Conselho dos Anciãos entre os judeus, conselho este que estava à
frente da comunidade sinagogal (At 11,30; 21,8). Os anciãos judeus, juntamente com os
sacerdotes e os escribas, formavam o sinédrio de Jerusalém e o governo central dos judeus.
Assim permaneceu a sinagoga judaica apta a ser imagem concreta e legal da Igreja primitiva.
Somente devagarzinho foi que a comunidade messiânica de salvação se desvencilhou do
judaísmo reconhecendo sua diversidade e criando uma ordem própria de culto divino. Outra é
a situação que encontramos nas comunidades missionárias de São Paulo fora de Jerusalém.
Certamente devemos admitir que os apóstolos e os colaboradores por eles escolhidos, tais
como Filipe, Timóteo, Apoio, Tito, Silas, Sóstenes, a modo de missionários ambulantes
tentaram fundar comunidades cristãs. A frente destas colocavam os apóstolos dirigentes que,
muitas vezes, não possuíam título determinado algum. O fato em si precedeu à designação
verbal. As informações que possuímos acerca dos acontecimentos são deveras muitíssimo
escassas. Devemos, contudo, admitir que, em geral, a origem de uma comunidade cristã se
processava, como vem escrito na Crônica de Arbela e na História da Igreja de Eusébio. Na
medida em que a fisionomia das comunidades paulinas se reflete nas cartas paulinas antigas,
pela Epístola aos Romanos (12,6-8) e 1° Epístola aos Coríntios (12,28-30) podemos ver que
nelas existiam os ministérios acima mencionados, exercidos pelos próprios fiéis, suscitados
pelo Espírito Santo, mas nem sempre, necessariamente, com investidura de autoridade no
cargo. Paulo não condena estes processos. Exige apenas a correta ordenação na vida fraterna
da comunidade (1Cor 12). O decisivo é que os ministérios desta natureza sirvam à edificação
da comunidade, de modo que todos os membros da comunidade sejam um, na fé, na
esperança e na caridade. Estes variados ministérios não foram todos de muita duração. Aos
poucos se foram reduzindo a uns poucos ofícios. O próprio Paulo exercia de longe uma
autoridade vigilante (H. Zeller-K. H. Schelkle-J. P. Michael, Amt, em: Lex. f. Theol. u. K., I,
Friburgo 195T, 451-455s; Schlier, Grundelemente des priesterlichen Amtes im Nenen
Testament, em: Zeitsehrift kath. Theologie 9, 1969, 160-180. O. Semmelroth, Die Prãsenz der
drei Ámter Christi ira gemeinsamen und besonderen Priestertum der Kirche, ibidem, 81-195).

Um exemplo particularmente esclarecedor e concreto para a instituição de dirigentes


de comunidade e para a mudança da denominação do Antigo Testamento de presbyter para a
denominação oriunda do mundo helenístico de episkopos (o vigilante) nos é dado pelos Atos
dos Apóstolos. No capítulo 4°, versículo 23, narra-se que Paulo e Barnabé instituíram
presbíteros nas comunidades cristãs por eles fundadas de Licaônia e Pisídia, e, «com oração e
imposição das mãos», os recomendavam ao Senhor, ao qual eles se tinham voltado na fé. Esta
instituição ocorreu, como estamos informados de outro trecho dos Atos dos Apóstolos (At
20,28), não na plenitude do próprio poder, mas na plenitude do poder do Espírito Santo, que
escolheu presbíteros para a direção da comunidade. Enquanto que quem dirigia a comunidade
era chamado pelos Atos dos Apóstolos (20,17) de presbyter, Paulo os chama, conforme o
versículo 28, de episkopoi. A tarefa deles é de apascentar a comunidade de Deus, a
comunidade de salvação messiânica. Isto significa: guiá-la e preservá-la, com devotado cuidado
e atenção, dos perigos que surgem, da corrupção e da heresia. Os Atos dos Apóstolos têm sua
origem na década de 80 de nossa era. O relato da exortação de Paulo aos presbíteros-bispos
de Éfeso que Paulo enviou a Mileto refere-se à terceira viagem missionária (pelo ano de 56).

A mesma situação — que uma comunidade fosse dirigida por um colégio de


presbíteros ou de vigilantes (episkopoi) — subsiste também em Filipos. Na introdução à
epístola à comunidade cristã em Filipos, Paulo, com Timóteo, saúda os fiéis cristãos daquela
cidade, juntamente com os episkopoi e os diáconos. É a primeira vez que os diáconos
aparecem como ministros numa epístola. Por episkopoi, como nos Atos dos Apóstolos,
entendam-se os dirigentes locais da comunidade, que sob a direção superior do Apóstolo,
praticada de longe, exerciam colegialmente seu ministério. Eles possuem a mesma posição que
os presbíteros (At 11,30; 15; 16; 20,17; 21,18; 1Tm 5,17; Tt 1,5; Tg 5,14; 1Pd 5,1), e certamente
também a mesma que os pastores e mestres (Ef 4,11), a mesma que os dirigentes (lTs 5,12) e
dos que presidem (Hb 13,7.17.24). O quanto Paulo se considerava como pai das comunidades
por ele fundadas, comunidades que ele, embora distante, dirigia, demonstra-se pelo fato de
que em suas epístolas ele sempre se dirige à comunidade, ou à Igreja de Deus em determinada
cidade e somente depois, em segunda linha, ao dirigente da comunidade cristã.

Como acabamos de ver, pelo fim da era apostólica, vai-se esboçando nas
comunidades paulinas uma nova estruturação da autoridade, testemunhada nas epístolas
pastorais (começo da década de 60?). A situação existente naqueles lugares lembra as
condições na comunidade de Jerusalém. Aquilo que vem claramente desenvolvido
posteriormente nas epístolas de Inácio, encontramo-lo nas epístolas pastorais em seus
primeiros passos: os três graus do ministério eclesiástico.

Nas epístolas pastorais não se volta o autor imediatamente às comunidades, mas a


seus respectivos chefes. Uma vez a Timóteo, outra vez a Tito. Tito e Timóteo são prepostos
isolados, de alta categoria, no colégio dos presbíteros ao qual pertenciam. Conforme 1Tm 4,14,
dá Paulo a exortação: «Não negligencieis o dom espiritual que há em ti (carisma) e que te foi
concedido, em virtude de revelação profética, pela imposição das mãos do colégio dos
presbíteros» (do presbitério, ou: para o presbitério). A tomada de posse no cargo de dirigente
evidentemente se dava pela imposição das mãos por parte do presbitério. A escolha para o
cargo de dirigente se processava sob o influxo de vozes proféticas proferidas por carismáticos,
que chamavam a atenção para quem deveria ser escolhido e o recomendavam. Segundo Tt
1,5, Tito recebeu do autor a incumbência de instituir presbíteros em cada cidade de Creta,
onde já houvesse uma comunidade cristã. Para a escolha de tais dignitários citam-se diversos
critérios. Na enumeração deles diz o autor (verso 7): «É necessário que o bispo, como
dispenseiro de Deus, seja irrepreensível». As palavras presbyter e episkopos (vigilante) são, por
conseguinte, empregadas na Epístola a Tito ainda no mesmo sentido que nos Atos dos
Apóstolos 20,17.28.

Em que pesem tais tentativas, a epístola do bispo Policarpo de Esmirna à comunidade


de Filipos nos fornece algum esclarecimento sobre o tempo que durou a forma de organização
que aparecia nas comunidades paulinas, segundo a Epístola aos Filipenses e Os Atos dos
Apóstolos. Policarpo é uma espécie de superbispo local. Ele endereçou sua carta à comunidade
de Deus em Filipos. Fala apenas em diáconos e presbíteros como detentores de um corpo. A
evolução do episcopado colegial para o monárquico ainda não se dera em Filipos, lá pela
metade do século II. Havia uma diferença entre a legislação eclesiástica das comunidades
paulinas e joaninas. Nestas o dirigente local tem maior autonomia perante os apóstolos. É bem
provável que os sete anjos citados pelo Apocalipse de João sejam os bispos. Nesta suposição,
os próprios bispos teriam ousado opor-se ao Apóstolo.

Nos tempos pós-apostólicos desenvolveu-se, com muita rapidez, o episcopado


individual nas comunidades joaninas. Assim surgiu a tríade de bispos, sacerdotes e diáconos da
dualidade que a precedeu: bispo-sacerdote e diáconos.

3°) Interpretação do contexto da missão

O conspecto geral que apresentamos revela que no período apostólico havia


considerável pluralismo de tarefas, ministérios e encargos. Quando Cristo chamou os
apóstolos e lhes confiou sua própria missão, nela estava em verdade incluída, sem que Cristo o
dissesse expressamente, a incumbência de conseguirem auxiliares e sucessores. Contudo,
como isto deveria, de caso para caso, ser executado, ficou entregue ao critério e à experiência
daqueles que imediatamente receberam a incumbência de Cristo. Decisivo foi que o tempo
apostólico tenha criado ministérios, através dos quais a missão de Jesus pudesse ser
continuada, com plenitude de sentido e força para salvar, até ao final dos tempos. É mais que
natural que os apóstolos, quanto a isto, se utilizassem dos dadas de seu tempo. Também não
era possível sem um lapso de tempo para experiências. Assim duas coisas se tornam claras:
primeiro, que os ministérios eclesiásticos, surgidos no tempo apostólico, têm, em última
análise, seu fundamento na vontade de Cristo, sendo, portanto, de origem divina, e, neste
sentido, instituídos por Cristo Jesus, como disse o Concílio de Trento (DS 1764); depois, que
eles (os ministérios) são ao mesmo tempo humanos, criações que trazem o sinete dos tempos
de sua origem e do âmbito cultural daquela época. Os ministérios eclesiásticos surgiram como
ramificações do ministério apostólico. Os apóstolos receberam o encargo de edificar a Igreja e
tomar providências para o tempo que seguisse à morte de todos eles. O estado de coisas
torna-se claro já na Primeira Epístola do Apóstolo aos Coríntios. Escreve à comunidade de
Corinto (1Cor 4,17): «Foi justamente para isso que vos enviei Timóteo, meu filho amado e fiel
no Senhor. Ele vos recordará as minhas normas de conduta no Cristo, tais como em toda parte
as ensino por todas as Igrejas (comunidades)». Assim como o discurso de despedida do
Apóstolo Paulo aos presbíteros de Éfeso (At 20,18-35) testemunha o início da sucessão
apostólica, com mais força, as três epístolas pastorais têm importância de referência para a
sucessão apostólica. As três cartas são cartas de despedida, nas quais Pedro exorta os dois
destinatários, Timóteo e Tito, a que prossigam na obra dele.

Nossas considerações esclarecem que o relacionamento dos ministérios eclesiásticos


com Cristo consiste tanto na interdependência da missão, quanto também no teor da
proclamação de Jesus Cristo e de sua obra, e não em um ponto ou outro apenas. A sucessão
apostólica repousa ao mesmo tempo sobre a identidade da fé e sobre a missão. A última é
garantia da primeira. Segundo 1Pd 5,2 é Pedro, Apóstolo de Jesus Cristo (1,1), co-presbítero
dos presbíteros. O ministério deles está contido no ministério apostólico, que, por sua vez, se
torna durável através dos presbíteros. Os detentores do múnus hão de se ater às normas da
tradição apostólica. Isto ressalta de modo particular-mente, claro nas epístolas pastorais (1Tm
3,15; 4,6.11.16; 5,7; 2Tm 1,13s; 2,2.7; 3,11.14; 4,1; 7; Tt 1,5).

O outro elemento da sucessão, a interdependência da missão, é estabelecido na


recepção e investidura do ministério pela imposição das mãos. Esta simboliza o caráter divino
e pneumático da investidura e é importante porque mostra e vincula, por um sinal visível, a
missão e plenitude do poder em sua origem, a vontade de Deus. Muito embora a imposição
das mãos não encontre testemunho em cada transmissão de pleno poder (Rm 12,6s; 12,28s),
ela aparece, contudo, desde o final da era apostólica, com muita clareza (At 6,6; 1Tm 1,18;
4,14; 5,22; 2Tm 1,6; 2,2; Tt 1,5). Ela se realiza por indicação de vozes proféticas (cf. At 13,1s).
Assim se unem na investidura do cargo publicamente elementos ministeriais e carismáticos. A
instituição de detentores de um cargo se processa perante o presbitério reunido, como
testemunhas de responsabilidade, com orações e com a entrega da doutrina apostólica (cf. At
13,13; 14,23). A imposição das mãos era feita pelo apóstolo e o presbitério. Assim o ministério
era todo divino e humano. Cristo mesmo, naturalmente, não deixou instrução alguma sobre a
forma como alguém pudesse ser instituído como presbítero-bispo, visto que ele jamais disse
expressamente palavra alguma quanto à sucessão. Ficou, portanto, à decisão dos apóstolos de
que modo haveriam de transmitir a outros a missão que lhes fora confiada. As formas por eles
tiradas dos dados culturais do tempo e adaptadas à realidade permaneceram como diretrizes
para o futuro desenvolvimento da Igreja (H. Schlier, Grundelemente des priesterlichen Amtes
im Neuen Testament, em Theologie und Philosophie, 44, 1969, 161-180).

4°) O período pós-apostólico

Consideremos ainda o período pós-apostólico. Clemente de Roma, discípulo dos


apóstolos, em sua carta dos fins do século I (96?) à comunidade de Corinto, cita, como Paulo
na Epístola aos Filipenses, dois grupos colegiais de ministros: os «bispos» e os diáconos como
seus auxiliares. Não fala de um bispo só. Segundo Clemente, eles foram instituídos pelos
apóstolos ( 1 Clem 42,4 ). Neste particular, agiram os apóstolos em nome de Jesus Cristo.
Assim, segundo Clemente, a instituição de bispos e diáconos remonta a Jesus ao próprio Deus,
por conseguinte. Para evitar futuras discórdias quanto aos postos de comando eclesiásticos,
deram os apóstolos instruções para que, após a morte dos bispos e diáconos por eles
instituídos, outros homens comprovados recebessem o ministério. O provimento do cargo
deve-se processar com o assentimento da comunidade. Ocasionalmente fala a epístola, como
a epístola aos Hebreus (13,7.17.24), de prepostos (1Clem 1,3; 21,6) ou «anciãos» (1 Clem 44,5;
47,6), que são idênticos aos «bispos».

A Doutrina dos Doze Apóstolos, do começo do século II, também conhece apenas
bispos e diáconos. Diz (15,1): «Elegei, portanto, para vós (isto é, quando no dia do Senhor
estiverdes reunidos para o culto divino) bispos diáconos, dignos do Senhor, homens bondosos,
livres da cupidez do dinheiro, cheios de amor à verdade, experimentados; pois são eles que
para vós exercem o santo serviço dos profetas e dos mestres». Tais guias da comunidade eram
escolhidos por toda a comunidade reunida.

Em ambas as obras acima mencionadas apenas se fala de dois grupos de ministros,


como na epístola aos Filipenses. Continua de pé a mesma forma de organização, da qual nos
dá testemunho a Epístola de Policarpo, ainda nos meados do século II.

Representam um significativo progresso as Epístolas de Inácio de Antioquia, na Síria.


Inácio mesmo é um bispo de nível superior. Seis de suas epístolas foram imediatamente
dirigidas às comunidades, e a sétima a Policarpo, bispo de Esmirna. Em cada comunidade à
qual Inácio se dirige, há um bispo, um colégio de presbíteros e outro de diáconos. O bispo, em
lugar de Deus, exerce a presidência. Os presbíteros formam o seu conselho e são seus
colaboradores, mas em subordinação a ele. Os diáconos são ministros da Igreja, ministros dos
mistérios de Cristo Jesus. Ao bispo deve a comunidade se subordinar como a Jesus Cristo; ao
presbitério, como aos apóstolos. Os diáconos sejam honrados como Jesus Cristo. Sem o bispo
nada se faça, no que concerne à comunidade. Somente merece acato aquela eucaristia que se
realize sob a presidência do bispo ou sob alguém por ele encarregado.

Nas epístolas inacianas apresenta-se como consumado o que fora iniciado nas
epístolas pastorais: os três graus do ministério. Nas epístolas pastorais, contudo, não aparece
ainda a posição do «presbítero», tão claramente distinta daquela posição do «bispo», como
em Inácio, muito embora ao episkopos se dê um certo realce. No decurso do século II, os três
graus tornam-se a forma geral da organização eclesiástica. Pela metade do século II fala
Hermas acerca de bispos, presbíteros e diáconos. Os presbíteros são chamados chefes e
presidentes da comunidade. Segundo Justino Mártir (meados do século II) «o presidente dirige
os irmãos», isto é, cada bispo preside à celebração da Eucaristia. Os diáconos repartem as
ofertas consagradas entre os presentes e as levam aos ausentes. Segundo Ireneu, à testa de
cada comunidade está um único bispo em posição superior. A sucessão apostólica, segundo
Ireneu, é o penhor de tradição sem erro da doutrina apostólica. Os sucessores dos apóstolos,
contudo, são ainda ocasionalmente denominados presbíteros. Clemente de Alexandria,
Orígenes, Tertuliano, Hipólito de Roma são, para o tempo do Concílio de Nicéia (325), outras
tantas testemunhas dos três graus do ministério eclesiástico em todas as comunidades cristãs.
Mas que a lembrança da identidade de origem do episcopado e do presbiterato não se tenha
perdido nos tempos que se seguiram, isso podemos ver nos debates que Jerônimo, entre
outros, sustentou, em virtude dos seus conhecimentos bíblicos, sobre a relação entre bispos e
sacerdotes. De que modo se chegou à passagem de dois para três graus, será melhor
apresentado nas exposições sobre o ministério sacerdotal (J. Colsen, Les fonc-tions ecclésiales
aux deux premiers siècles, Paris 1956. L. Ott, Das Weihe-sakrament, em: Handbuch der
Dogmengeschichte IV 5, Friburgo 1969, 1-25). Acentue-se, em vista da clareza, que os escritos
que atestam os ministérios eclesiais, não devem sem mais nem menos ser apresentados como
testemunhos do ministério sacerdotal no sentido hodierno. Somente a análise das tarefas
atinentes aos detentores do cargo e a eles reservadas será capaz de dar maior esclarecimento.
Tal análise leva à conclusão de que, por volta de 200 depois de Cristo, certos dignitários eram
chamados sacerdotes (hiereis) num retorno ao passado superado por Jesus. Mas somente no
campo verbal. Objetivamente estes «sacerdotes» representam algo de diferente do que eram
aqueles do Antigo Testamento ou das «religiões». Pois eles têm apenas a tarefa de tornar
presente a Cristo e sua obra.

Você também pode gostar