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PUC-Rio -Certicagio Digital N°111 2688/6.8 3 O intruso: 0 inumano, o animal A Lagarta e Alice ficaram olhando wma para a cutra algum tempo em silencio. Finalmente a Lagarta trou 0 narguilé da boca ese irigiu a ela mona vos lénguic, conolenta ‘Quem é voe8?" perguntow a Lagarta. Nao eraum comeco de conversa muito animador. Alice respondeu, meic encabulada: “Eu...eu mal sei, Sir, neste exato momento. pelo ‘menos sei quem eu ere quad me levantei esta mania. mas acho que ja pastel por varias mudangas desde ent.” ‘Que quer dlcer com isso?” esbravejou a Lagaria. “Explique-sel” “-Receto nto poder me explicar”, respondeu dlice, “porque no ou ‘eu mesma, encencie?” Lewis Carrol 34 Acerca do intruso e da forma-Homem No texto O maruso, Jean-Luc Nancy (2010a:2006) relata a experiéncia de um transplante de coragdo a que foi submetido, produzindo um pensamento sobre as relages entre um “eu” e um “outro”, esse “eu” que se descobre “mais duplo ou miltiplo do que nunca”, e que descobre ser o intruso dele mesmo. A intrusio, n0 caso, no se restringe a um corpo biolégico individual, mas também diz respeito a uum corpo social, como Nancy deixa claro logo no comego do texto: (Ointruso se intruduz a forga, por supresa ov por asticia; em todo caso, sem direito sem ter sido admitido de antemio. E preciso que haja o intrusc no estrangeiso, sem o qual ale perde ova estraahezs. Se ele jé tem diseito de entrada e de residéncia, se é esperado e recebido sem que nada dele fique amargem da expera e do acolimento, ele nao @ mais o imtruso, mas tambem a0 €, tampouco, 0 estrangeiro. Por isso, ndo é logicamente procedents nem eticamente admissivel excluis toda intrusdo na chegada do estrangeito. (2010a.:11-12)! * Procurei traducir as citager,cioute de dificuldade, mas celoco om nota do rodapé os trechoo no orignal. De modo geral, me guiei pela tradusdo para o espaahol de Margarita Martinez (NANCY, 2006), mudanio apenas um ou outto termo quando 240 achava equlvalente para o portugu’s ‘Como as paginacées das duas edigées s£o muito proximas, a referéncias so relatvas & edicdo em francés, PUC-Rio -Certicagio Digital N°111 2688/6.8 3 (0 intruso, todavia, nfo se define como um corpo estranho que vem de fora: a partir do momento em que © coragSo comega a falhar, ou, como diz Nancy, fica “fora de servigo", © intruso se faz perceber dentro dele mesmo, fazendo perceptivel algo que era antes “to ausente quanto a sola dos pés na caminhada Mev coragio se converiia em meu estrangeiro: justamente estrangeiro porque cestava dentro. Se a cstranheza vinka de fora, € porque antes havia aparecido dentro [.-] Até aqui, ele era alheio por forga de ndo ser sequer sensivel, de nfo estar sequer presente, Doravante, ele desfalece, e esta estranheza me reconduz a mim mesmo. (NANCY, 2010a:17)" Precisamente porque esse corpo, a9 mesmo tempo habitual e estranho, se faz intraso, torna-se necessirio extrai-lo. © corpo se abre — on, antes, o intruso que nele se manifesta abre o corpo, pondo em questio o limite entre dentro e fora Uma vez que encontrase ado mais fechade, tampouco completamente aberto antes entreaberio, 0 corpo tora-se fonda (KIFFER, 2012:27), e se percebe passivel de mutagées e “contaminagdes™ de outros corpos; a certeza das identidades que antes balizavam tanto a nogdo de corpo quanto a de Sujeito, de um “Ev” autoidentitério © autocentrado, é intensamente perturbada. O proprio texto de Nancy encontra-se em uma zona de indiscemibilidade de género, pois passa por relato autobiografic ensaio, e, mesmo abordando temas ou problemas relativos & filosofia, € atravessado por quesides ético-politicas que tangenciam outras disciplinas ou outros saberes. Ao longo da narrativa, o abalo que softe o corpo, portanto, afeta e reverbera diretamente nas nodes de Sujeito ¢ de humano em um deslocamento concomitante de corpo e pensamento, termos nfo mais apartados enquanto ‘opositivos; movimento radical de desterritorializaco do corpo dito “proprio” pelo “Liintrus s‘intodut de force, par surprise ou par ruse; en tout cas sans droit ni sans avoir été @'abord admis. Il faut qu'il y ait de lutrus dans etranger, sans quoi il perd soa étrangete. S'la gj droit d'entrée ot de séjour, sll est attendu et recu sans que sien de lui reste hors d'atente ni hhors d'accueil, il x'est plus I'intus, mais il n'est plus, zon plus, [étranger. Ausi west. ni logiguemante recevable, ni athiquement admicitle, daxclare toute intrusion dane la venue de Vétanger. No caso do termo ééranger, como explica Margarita Martinez, pode-se ler tanto “estrangeito’ (quanto “estranho” ou “alheic”, de acordo com 0 contexto e a constugdo em que é uszdo. Do mesmo modo, éirangeté pode significar também “singularidade” ou “originalidade”; Nartizez (gptcu por “ajenidad *Mon coeur devenait mon étranger: justement étranger parce qu'il était dedans. L'étrangeté ne doveit venir da dekore que pour avoir @aberd surgi da dedane. [..] Juegu'ici, il eit ctrnger & force de étre méme pas semsible, méne pas présent. Désomais, il défaile, et cette tranzete me rapport amoi-méme * Em um sentido “deleuzeana” do termo, isto €, nlo negative, mas positivo, como encentro: € passagens entre “meios” e/ou corpos heterogéneos (DELEUZE & GUATTARI, 1997).

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