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In: Anais do XIV Congresso da ANPPOM. CD-ROM. Porto Alegre: Ago. 2003.

Isto é bom! ou Yayá, você quer morrer? – a tradição oral e


a tradição escrita no lundu.
Martha Tupinambá de Ulhôa

Resumo: Com o objetivo de compreender as matrizes musicais e culturais da música


brasileira popular, torna-se necessário analisar comparativamente a canção popular como
registrada na forma escrita e como transmitida pela tradição oral. Três versões do lundu Isto é
bom, de Xisto Bahia (1841-1894) – como publicado com o título Yayá, você quer morrer por
Eugéne Hollender (São Paulo, s.d.) e gravado por Nara Leão em 1977, e na tradição oral
(gravado por Eduardo das Neves, entre 1904-1911) – são discutidas em termos de prosódia,
estrutura e interpretação.
Palavras chave: lundu, prosódia, canção popular.

Abstract: In order to understand Brazilian popular music musical and cultural matrices, it is
necessary to study comparatively how popular song functions in an aural and written form.
Three versions of the lundu Isto é bom by Xisto Bahia (1841-1894) – a score arranged for
voice and piano, its 1977 recorded version sang by Nara Leão, and an early Twentieth century
recording by popular artist Eduardo das Neves – are discussed in terms of prosody, structure,
and interpretation.
Key words: lundu, prosody, popular song.

Prosódia musical tem sido entendida como o ajuste das palavras e da música, de modo que o
encadeamento e sucessão de sílabas fortes e fracas coincidam com os tempos fortes e fracos
do compasso. Na prática observa-se que todos parâmetros sonoros (intensidade, altura,
duração e timbre) podem interferir na ênfase do texto.

Nas canções brasileiras o número de sílabas do verso e seu padrão de acentuação nem
sempre coincidem com o número de tempos e localização de acento do compasso musical.
Esta peculiaridade aparece nas partituras sob a forma de síncopes internas e em antecipações
do tempo forte atravessando a linha imaginária dos compassos. Exemplo emblemático do
último é o lundu de Cândido Inácio da Silva (c. 1800-1838) para versos de Araújo Porto
Alegre (1806-1879), Lá no largo da Sé velha, composto na primeira metade do século XIX e
estudado por Mário de Andrade em 1944.

De fato, existem várias instâncias de uma certa incompatibilidade prosódica entre letra
e música identificáveis na partitura impressa. Esta fricção entre a chamada “divisão” da letra e
“compasso” da canção é resolvida no momento da performance, com o que chamei em outra
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instância de “métrica derramada” (Ulhôa 1999). 1 “Derramar” a métrica é às vezes necessário


para manter a inteligibilidade e naturalidade do canto. Doriana Mendes e Rodrigo Lima são
particularmente felizes ao interpretar Lá no largo da Sé velha (Duo Laguna, Rio de Janeiro,
2000), Doriana “descolando” a divisão do texto da marcação do compasso, Rodrigo
“amaciando” as acentuações com um acompanhamento arpejado ao violão. 2

Esta é uma das questões decorrentes da tradição escrita. A partitura, como nos
ensinou Charles Seeger é uma “prescrição”, uma “receita” que precisa ser “manipulada” e
decodificada. O que significa neste caso, que além das “correções” de prosódia são
necessários ajustes de performance histórica. O lundu e sua irmã modinha são uma prática
que remonta ao século XVIII. Canções cantadas ao violão (ou viola), muitas como, por
exemplo, as 20 Modinhas Portuguezas (sic) de Joaquim Manoel arranjadas por Sigismund
Neukomn em 1824, são transcritas para piano. Ou seja, existe uma tradição oral, de canções
feitas e interpretadas ao violão e uma tradição escrita, para canto e piano. Assim, justifica-se
um acompanhamento de violão, mesmo se a partitura seja para piano. Inclusive, na versão de
Lá no largo da Sé velha, impressa por Filippone e Tornaghi a parte de piano – do tipo baixo
de Alberti, com a mão esquerda tocando os baixos e a direita dedilhando alternadamente as
notas do acorde – enfatiza a regularidade métrica binária e o caráter “sincopado”, se
interpretada de forma mecânica.

Uma outra maneira de se aproximar de práticas interpretativas distantes no tempo


como é o caso das modinhas e lundus do século XIX, é observar registros de repertório
tradicional oitocentista que chegaram a ser gravados no início do século XX. A escuta desses
fonogramas permite a comparação da versão gravada diretamente da tradição oral, com a
partitura, elemento da tradição escrita, sendo uma porta de entrada para discutir algumas das
práticas interpretativas de repertórios antes de interesse meramente “históricos”.

Examinemos, portanto o lundu Isto é bom, de Xisto Bahia (1841-1894) como


publicado em partitura (com o título Yayá, você quer morrer), de onde foi feito o arranjo de
Radamés Gnatalli para a gravação por Nara Leão em 1977, e na tradição oral (gravada por
Eduardo das Neves no disco Odeon 108076, entre 1904-1911). Através da comparação das

1
O que é escrito como “antecipação” nas palavras de Mário de Andrade ao escrever sobre o lundu de Cândido
Inácio da Silva indica mais uma flexibilização dos limites do compasso do que uma “síncope” ou
“contrametricidade”, na conceituação de Carlos Sandroni (2001). No meu entender ir contra a métrica é
diferente de derramá-la, o último procedimento sendo mais próximo do que acontece na prática interpretativa
da canção brasileira.
2
Existe uma outra versão de Lá no largo da Sé velha pelo Quadro Cervantes, solo de Helder Parente (Quadro
Cervantes – Brasil 500 anos, Rio de Janeiro, LSB150484, 2000), que utiliza uma versão para canto e violão por
F. Hidalgo, impressa por Arthur Napoleão.
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três versões são feitas algumas considerações sobre a prosódia, estrutura e interpretação da
canção brasileira popular. 3

O que chama a atenção inicialmente no caso de Isto é bom com Eduardo das Neves e
Yayá, você quer morrer com Nara Leão é que as melodias (e parte dos versos) são diferentes,
dando a impressão até que sejam músicas distintas... A autoria é fácil de comprovar. Ambas
versões são realmente de Xisto Bahia, a última pela inscrição na partitura e a primeira por
observações faladas na própria gravação. A confirmação é encontrada com a ajuda de Mello
Moraes Filho no livro Cantares brasileiros [1901], onde aparece a letra de Isto é bom, com a
indicação de ser do repertório de Xisto Bahia. A ordem das quadrinhas (a maioria com sete
sílabas, ou seja, em redondilha maior) é (primeiros versos):

A renda de tua saia...

Levanta a saia mulata...

Iaiá, você quer morrer...

O inverno é rigoroso...

Se eu brigar com meus amores...

Me prendam a sete chaves...

Ou seja, alguns versos presentes numa versão e outros presentes noutra, sem uma
ordem lógica, apontando para uma característica do lundu: versos improvisados e estribilho
curto (como depois ficou sendo a prática no partido alto). 4

Observemos, no entanto a versão escrita e a versão gravada a partir da partitura.


Discutindo somente uma quadra podemos observar imediatamente algumas diferenças
(Exemplo 1). Na partitura e na transcrição do que faz Nara Leão, parece que a versão de Nara
é mais “sincopada”, com antecipações quase que sistemáticas de tempos fortes ou parte de
tempos fortes.

3
Tanto a partitura de Yayá você quer morrer (Eugéne Hollender de São Paulo, s.d.) quanto sua gravação (álbum
duplo Cantares Brasileiros - 1 A Modinha, Cia Internacional de Seguros, Natal de 1977) foram encontradas no
acervo Mozart de Araújo (1904-1988) abrigado no Centro Cultural do Banco do Brasil do Rio de Janeiro
(CCBB-RJ). Pesquisador meticuloso, Mozart de Araújo se interessou muito pela investigação da música
brasileira, tendo estudado, sobretudo sobre a modinha, o lundu (Araújo 1963). Para uma revisão atualizada dos
estudos em torno da modinha ver Veiga 1998.
4
“Isto é bom” é o primeiro verso do estribilho, enquanto “Yayá, você quer morrer” é o primeiro verso da
quadrinha inicial do arranjo escrito por “XXX”. Isto não chega a ser um problema, uma vez que as canções
tradicionais são conhecidas ora pelo primeiro verso das estrofes não repetidas ora pelo verso inicial do refrão.
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Exemplo 1. Primeiros versos de “Yayá você quer morrer” na partitura e a partir da gravação.

A primeira frase “Yayá, você quer morrer” transcorre sem problemas de prosódia. A
frase seguinte “quando morrer morramos juntos” é mais complicada. Na versão escrita
observe-se que a sílaba “do” de “quando” cai num tempo forte. A versão de Nara/Gnattali
“antecipa” o início do verso de modo a deixar que a sílaba tônica de “morrer”, palavra mais
importante que “quando” caia no início do compasso, mas faz o mesmo com o início do outro
compasso. Ficou mais sincopado? Ou simplesmente “derramou” a métrica? Coisas do tipo
continuam acontecendo na peça inteira.

E a comparação entre Iaiá, você quer morrer e Isto é bom? O estribilho é o mesmo,
confirmando serem a mesma canção. A grande diferença está no contorno melódico (Exemplo
2). Na versão com Nara Leão o refrão é cantado numa melodia pendular, indo do sol 2 ao dó 3
e às vezes ao si 2, ou seja, ora na tônica, ora na dominante. O estribilho com Eduardo das
Neves começa no fá 3 bequadro, descendo em terças e parando no mi e depois no ré, retoma o
fá e descamba até terminar no sol 2 inferior.

Exemplo 2. Estribilho transcrito das gravações com Nara Leão e Eduardo das Neves.
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Nos versos a mesma coisa (Exemplo 3): a versão de Nara Leão começa no sol 2,
atingindo com um salto o dó 3, repousando no si 2 (“Yayá você quer morrer”). O segundo
verso começa também no sol 2, salta até o mi 3 e termina por uma apojatura inferior no ré 3
(“quando morrer morramos juntos”). O terceiro verso atinge a nota mais aguda lá 3 a partir do
sol 3, desce num arpejo até o sol 2 e salta novamente para o sol 3 com uma apojatura superior.
É o verso de registro mais agudo, enfatizando os verbos querer e caber tanto na métrica
quanto na altura (“qu’eu quero ver como cabe”). O último verso conclusivo é até um pouco
“disfórico”, como diria Luiz Tatit pelo movimento descendente até o sol 2 partindo da nota mi
3 (“numa cova dois defuntos”).

Exemplo 3. Início das estrofes com Nara Leão e Eduardo das Neves.

A versão de Eduardo das Neves, de sonoridade modal praticamente não usa saltos,
declamando o texto dos versos em torno da nota final (Sol), mas com a sensível abaixada (“O
inverno é rigoroso, já dizia a minha avó, quem dorme junto tem frio, quanto mais quem dorme
só!”).

Ou seja, estamos diante de duas canções condicionadas por seu meio de registro e
transmissão, a prosódia musical mediando práticas sociais diferenciadas que se mostram na
oposição verso/estribilho. Numa a ênfase na interpelação, noutra na reiteração. A versão
escrita varia a melodia com saltos percorrendo a extensão de uma oitava mais uma nota com
desenvoltura e movimento nos versos e mais contida, utilizando somente a metade inferior da
sua escala, no estribilho. Aqui a ênfase está nos versos, na diferença enquanto o refrão
funciona apenas como um repouso para a retomada de outra estrofe. A versão tradicional
funciona exatamente ao contrário, a parte dos versos na metade superior da escala numa
melodia em terraço e o estribilho percorrendo uma extensão de uma sétima (fá 3 ao sol 2). Na
versão popular o estribilho se torna a parte mais importante, enfatizando o lúdico, o irônico e
o travesso.
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Mas será que estas práticas se opõem? Como conclusão gostaria de compartilhar algo
que só apareceu no laboratório, mas que pode abrir novos rumos na questão. Para
comparação as 3 versões estão em Dó M, seja da partitura (original em Lá M) seja das
gravações (transcritas por Roberto Gnatalli). Os exemplos foram preparados no programa
Finale por Mônica Leme, que está estudando a produção de Eduardo das Neves. Ao ouvir
todas as partes em arquivo midi, incluindo sua própria transcrição da gravação de Isto é bom
Mônica observou que as versões não são incompatíveis, como pode parecer à primeira vista.
A hipótese que fica para ser explorada é que talvez o arranjo de “xxx” pudesse ter sido
concebido como uma variação destinada a ser cantada em dueto com a versão tradicional,
algo bastante plausível se considerarmos a prática musical da música de salão da época.
Assim as sinhazinhas poderiam exibir seus dotes vocais enquanto a audiência, ou um
enamorado cantava a canção gravada na memória de todos: “Isto é bom, isto é bom, isto é
bom que dói!”.

Referências bibliográficas:

ANDRADE, Mário de. Cândido Inácio da Silva e o Lundu. Revista Brasileira de Música vol
X, p. 17-39, 1944.
ARAÚJO, Mozart de. A Modinha e o Lundú no século XVIII. São Paulo: Ricordi, 1963.
MORAES FILHO, Mello. Cantares brasileiros. Rio de Janeiro: Instituto Estadual do Livro,
1982 [1901]).
SANDRONI, Carlos. Feitiço Decente – Transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-
1933). Rio de Janeiro: Jorge Zahar; Editora UFRJ, 2001.
ULHÔA, Martha Tupinambá de. Métrica Derramada. Brasiliana 2, p. 48-56 , 1999.
VEIGA, Manuel. Estudo da Modinha Brasileira. Revista de Música Latino Americana, v. 19,
University of Texas, 1998.

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