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Literatura e Revolugao por Eduardo Lourenco A Jacinto do Prado Coelho © ritmo imposto desfezse tio depressa ue poueos dias depois nio se sabia jé como dantes. EDUARDA DroN{s10 Retrato de um amigo enguanto falo ‘Macétio olhava os vizinhos. Ninguém queria abandonar o largo, apesar da noite. Como se tivessem feito uma experiéncia de jibilo mal rematado. LIA JoxcE. O Dia dos Prodigios RACASSADAS ou vitoriosas, as revolugdes fo grandes consumidoras de imagindrio activo. Néo € 0 que mobilize 0 eu profundo ou por cle € mobilizado. Surge assim uma espécie de contradigio entre « vertigem secreta do imaginério ¢ 0 fulgor da sua urgéncia histérica. O nosso momento revolucionério teve, contudo, uma singulatidade: a de ter con- vocado, a0 mesmo tempo, as duas formas do imagindrio. Mais que revolugao vivida, a nossa foi logo, desde o inicio, revolugao sonhada. Durante um ano — pois mais néo durou 0 momento revoluciondrio—, o Pais viveu em estado onirico. Importam pouco as leituras opostas dessa vivéncia colectiva, 20 lado da sua intensa «irrealidade>, Surgida como um milagre, como mile- gre se prolongou, até passar, quase sem transis, & palinédia intermindvel do seu éxtase, deplordvel para uns, exaltante e exaltado para outros. A esse titulo, ¢ como € Iigico, a Revoluco, em sentido estrito, estava mais des- tinada a ser o lugar vazio de uma escrita digna desse nome que o seu manan- cial de sonho. A paralisia da nossa ficcéo durante os primeiros dois anos de Abril parecia confirmar os beaux esprits, no fundo nostdlgicos da antiga ordem que os reconbecera, a0 desenhar, por caréncia, um espago de esterilidade criadora. Seria que a «liberdade» nao era assim to necesséria e estimulante como se epregoava, que a famigerada censura nfo coarctara 0s voos de ninguém, uma vez que, com a porta aberta, no surgiam, afinal, as admi- riveis reprimidas obras imaginariamente escritas para a gaveta? Este tema consoledor foi glosado, com infinda complactncia, por gregos e até por troianos... No entanto, a pouca verdade que continha tal glosa era perfei- tamente explicivel, A revolucio de Abril, para aquelas geracSes que, durante décadas, de modos diversos, a haviam sonhedo, chegava, enquanto acon- tecimento libertador de pulses ctiadoras, realmente tarde. Havia sido jus- tamente o seu sonho, a sua miragem, o pensamento dat suas hipotéticas ou previsiveis contradisSes que mobilizara ou servira de linha de fuga ideal a uma parte considerdvel da ficgGo portuguesa desde os anos 40 a0s anos 60. Pela natureza das coisas, a esses autores que, de uma maneita ou de outra, tinham construfdo a sua obra no horizonte da «revolugdo mitica>, a revolucio real devia nascer, por assim dizer, exausta. Alguns, profetica- mente, ou jé se tinham separado do seu mito, como Vergilio Ferreira, ou © haviam glosado até A vertigem, como Augusto Abelaira, limitando-se ‘outros, como Fernando Namora, a caminhar, calmamente, ao lado. De certo modo, tods a obra romanesca do autor de Ar Boas Inteugdes nio € mais que a encenagao virtual do fracasso ou da inutilidade dessa mesma «revo- lugio mitica», fonte de certeza ou de esperanga para a gera¢do imediata- mente contigua. Acontece ainda que, por cansago da obsessio ideolégica inerente A maior parte da nossa ficgdo até aos anos 60 (se exceptuamos obras como as de Agustina ou Ruben A.), a literatura portuguesa, nas vés- peras de Abril, se movia jé em sendas pouco propicias @ impregnacio do imaginério por realidades de ordem politica. O fim da censura néo podia modificar uma exigéncia mais profunda, uma légica que enraizava na con- figuracio nova assumida pela fiegio desde os anos Agustina e continuada nos de Maria Judite de Carvalho, Fernanda Botelho, Natélia Nunes, e com um suplemento de medernidade ainda mais visfvel nos de Maria Velho da Costa, Maria Isabel Barreno, Almeida Faria, Herberto Helder e nos da mais nova gerasio. No seu momento dinimico ou nas proximidades dele, a Revolucio suscitou, naturalmente, um certo mimero de textos que a cla aludem ou glo- sam como fonte de exaltagio ¢ metamorfose colectivas. Nao & set injusto Para com os seus autores verificar que tais textos sio, em geral, pouco con- vincentes € nfo suportam hoje, como j4 nfo suportavam ento, 0 confronto com paginas menos esctavas da urgéncia e do entusiasmo dos seus autores. Sao os épico-lfricos da Revolusio, como Urbano Tavares Rodrigues, alis bem consciente dos tiscos que corre mas enfrentando-os com a sua pro- verbial generosidade, enquanto eco imediato de sucessos ou exaltagdes rilitantes em Viamoroléncie ou As Pombas so Vermelbas. Na realidade, © momento revolucionétio nada alterou de substancial na conhecida pers- pectiva do autor de Bestardos do Sol. Ficcionista do imediato antes da Revolucio, novelista do presente revoluciondrio depois dela, a sua visio, a sua escrita séo as mesmas. Nessa dptica, como para outros, a Revolugio & um acidente. Podia dizer-se 0 mesmo de quase todos 0s autores j con- firmados antes do 25 de Abril: Fernando Namora, V. Ferreira, Abelaira, Agustina, Cardoso Pires, M. Velho da Costa, M. Isabel Barreno, Almeida Faria, Nuno Braganga, entre outros. O fenémeno «Revolugio» atingi-los-é tem alterar, no essencial, a visto que lhes é prépria, embora inflectindo-a, por vezes, como no caso de Agustina,

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