Resumo
Manuais de roteiro nos dizem que as narrativas devem ter um protagonista e que o
protagonista deve ter uma meta dramática importante para perseguir. Com relação a este
objetivo, os manuais muitas vezes mencionam outra distinção comum, entre o quê um
protagonista “quer" e o que ele “precisa”. ‘Querer’ é geralmente entendido como algo
externo e/ou consciente, enquanto as necessidades são definidas como internas e/ou
inconscientes. Este ensaio argumenta que essas podem ser ferramentas mais poderosas se
definidas de um maneira mais precisa. Considerando que "querer" se refere às metas dos
dialoga com estudos muito mais complexos e vastos sobre o envolvimento do público e de
espectador, um assunto que se estende para muito além dos limites de um único artigo.
Introdução
outro, lidem com narração de histórias, o que os dois têm conseguido fazer é ignorar um
perdido oportunidades de aprender uns com os outros. Podem-se supor várias razões
1
Poucas exceções confirmam a regra geral; ver Bordwell (1985:13 e ss.; 2006: 247? 248), que consideraram também o
estudo dos manuais de roteiro.
1
para esta situação. Os manuais de roteiro servem a um propósito que é muito diferente
iniciativas podem ajudar a atingir essa meta, embora seja desnecessário dizer que ainda há
e não - universidades TEIs3 (Teacher Education Institutions, algo como as escolas de ensino
técnico no Brasil, como as FATECs, SENAI, etc.). No caso específico do roteiro, vale à pena
Universidade de Leeds, em setembro de 2008, para ser seguida por outra na Universidade
organizado para 2010. Estas conferências e outras iniciativas poderiam lançar (ou talvez
concretamente, isto poderia implicar num know-how para as aulas de escrita podendo
encontrar os estudos acadêmicos sobre narrativa.4 Esse encontro representa uma situação
2
Para mais informações, ver http://ec.europa.eu/education/policies/educ/bologna/bologna.pdf. Acessado em 18 de
fevereiro de 2010.
3
Por exemplo, a associação da Catholic University of Louvain, ou a ligação em rede da University of Antwerp ligando
a universidades belgas com outras faculdades.
4
Eu entendo estudos narrativa em seu mais amplo sentido pós-1980, ou seja, como "pós-classical" (Herman 1997) ou
"contextual" (Fludernik 2005: 44) estudos de narrativa que envolve a entrada de um conjunto de disciplinas como a
retórica, pragmática , estudos cognitivos, psicologia, estudos culturais, etc.
2
diferentes pontos de vista disciplinar, diferenças entre o que é comumente conhecido e o
comunicarem melhor com os roteiristas, e estes também terão de fazer esforços para
complementar sua formação. A fim de preencher o fosso entre a teoria e a prática, uma
espécie de 'interlingua nova' poderá ter que ser desenvolvida, devendo ser sofisticada e
precisa o suficiente para satisfazer os padrões acadêmicos, mas não tão sofisticada que
pareça pedante para a prática orientada do escritor ou do professor. Uma vez que uma
língua nunca funciona fora do contexto de usuários específicos, alguns pontos em comum
têm de ser desenvolvidos para que essa 'interlíngua' possa ser usada de forma pragmática
acadêmicos.
É dentro desse amplo contexto que eu arrisco uma contribuição muito modesta.
‘desejos’ e ‘necessidades’. Os manuais de roteiro nos dizem que as narrativas devem ter
isto é assim nem sempre é claramente explicado, mas pode-se supor que é menos difícil
história - e é mais fácil para o público se interessar por alguém que quer algo do que por
alguém que não quer nada, daí o objetivo dramático. Os tipos de problemas ou os
amplamente discutido nos manuais de roteiro. Objetivos dramáticos podem ser concretos
que ele 'precisa'. No que se segue, eu afirmo que estas ferramentas podem ser mais
poderosas se definidas com mais precisão. Ao mesmo tempo, pretendo dar um passo
3
que os conceitos acadêmicos altamente especializados e os termos imprecisos dos
roteiristas, Frank Daniel, mas desde então vários outros roteiros estudiosos têm aplicado
alguns exemplos retirados de Trottier (1998: 24-28), Cowgill (1999: 45-46) e McIlrath (2004:
revelam dois parâmetros recorrentes: interno vs. externo e consciente vs. inconsciente. Um
Ashley.
Casablanca (1942) Rick (Bogart) quer esquecer paris Rick precisa descobrir o que
Kramer VS Kramer (1979) Kramer (Dustin Hoffman) quer a Kramer precisa tornar-se um pai
melhor.
custódia de seu filho.
Tudo por uma Esmeralda Joan (Kathleen Turner) quer Joan precisa encontrar o amor.
Feitiço da Lua Loretta (Cher) quer se casar Loretta precisa casar com Ronny,
Johnny porque ele é uma aposta que é quem ela ama.
Moonstruck (1987)
segura.
Irmãos Gêmeos Vincent Benedict (Danny De Vito) Vincent precisa do amor de uma
5
Isso também é parte dessa 'outra' cultura de roteiristas. Muitos instrutores transmitem conhecimentos e experiência em
workshops, como no programa europeu "North by Northwest" (que incluí professores da University of Southern
California), eles 'falam' isso em suas oficinas. Ao contrário da tradição acadêmica, a tradição oral, predominante em
oficinas protegidas, não tem referências escritas.
4
Twins (1988) Quer cinco milhões de dólares. família.
Uma Linda Mulher Edward Lewis (Richard Gere) Lewis precisa seguir seu coração.
wants to further his career.
Pretty Woman (1990)
O Advogado do Diabo Kevin Lomax (Keanu Reeves) Kevin Lomax precisa buscar a
Quer continuar sua carreira justiça e não permitir a fuga dos
The Devil’s Advocate (1997)
profissional como um advogado bandidos e pervetidos de uma
que nunca perdeu uma causa. punição justa.
externo de um interno. Por exemplo, em The Screenplay: A Blend of Film Form and Content
(Roteiro: Uma Mistura de forma e conteúdo), Margaret Mehring escreve, "um personagem
pode ser conduzido para atingir uma meta, enquanto ao mesmo tempo é obrigado a
buscar um objetivo muito diferente e conflitante. É este conflito entre os objetivos externos
e internos que é a essência do grande drama” (Mehring, 1990: 195). Mehring associa o
desejo com o exterior, com a luta física, e a necessidade com o lado psicológico, com o
interior. Esta distinção é retomada por vários outros escritores como Vogler (1992: 17), que
distingue uma viagem externa do protagonista de uma jornada interna, ou Lucey (1996:
Batty (2006: 12) que explicitamente intitula seu artigo 'Wants and Needs: Action and
5
associa o 'querer' com uma viagem física, literal, e a 'necessidade' ligada ao emocional, ao
como objetivo consciente vs. objetivo inconsciente. Acredita-se que é assim como Frank
como Robert McKee (1997), que usa o “querer” e “precisar” e objetivo, indiferentemente,
mas que indica que um protagonista pode ter um desejo consciente e um desejo
a ter não apenas um desejo consciente, mas também um inconsciente. Apesar destes
sente, percebendo neles uma contradição interna” (McKee, 1997, p.138). David Trottier
indica que se o personagem central tem o objetivo consciente, sob o mesmo deve haver
uma vida melhor - qualquer outra coisa que a personagem precisa para ser
necessidade consciente.
acordo com Trottier, ele argumenta que a necessidade pode tornar-se clara para o
6
ALGUMAS CONCLUSÕES PRELIMINARES
encontrar um amor, lutar contra a baixa estima – mostram como o ‘precisar’ define-se
como um ‘objetivo interior’ e que pode facilmente transformar-se em (ou estar associado a)
uma necessidade definida como um ‘objetivo inconsciente’, apesar de uma meta interna
frequentemente tratados com uma evolução de uma forma inconsciente. É por isso que
‘precisar’. David Trottier liga o consciente ‘querer’ com o que ele chama de ‘Fora/História
necessidade é bloqueada a partir de dentro por causa de uma falha de caráter. Esta falha
serve de oposição interna à necessidade interior. Esta falha de caráter é óbvia para o
público, porque ele vê o personagem ferir as pessoas, incluindo ele próprio (Trottier 1998:
25). De modo semelhante, Cowgill sugere que "o ‘precisar’ do personagem... se refere a sua
motivação inconsciente e vem da profundidade de sua psique, da qual ele é, muitas vezes,
1999: p. 47). Além disso, independentemente dos parâmetros utilizados para definir os
conceitos de ‘querer’ e ‘precisar’, os exemplos acima mostram dois aspectos mais comuns
1996: 52) de modo a evitar que a narrativa se torne demasiado plana como um desenho .
para o público que os protagonistas vão mais em direção ao seu querer e mais longe da
dizer que uma história com um final feliz é uma história onde o personagem principal
7
abandona o seu desejo e vai em busca de sua necessidade, enquanto que uma tragédia
representa uma narrativa onde o personagem principal se agarra àquilo que ele quer e,
assim, perde o que ele ‘precisa’. O final feliz de Hollywood, então é irônico, quando o
protagonista troca o que ele quer pelo que ele precisa em tempo e, portanto, merece obter
internos vs. externos, ou conscientes vs. inconsciente não são suficientemente precisos
para dar conta das discussões sobre “desejos” e “necessidades” acima mencionados.
Associar 'querer' e 'precisar', com um objetivo interno vs. externo parece ser
uma intenção, um objetivo. Pode-se, portanto, assumir que todas as intenções são internas.
É por isso que os roteiristas iniciantes são freqüentemente aconselhados a prestar atenção
(por exemplo, diretor, atores) não serão capaz de ver, ouvir ou dramatizar, por exemplo,
Além do mais, uma análise mais atenta dos exemplos apresentados como metas
externas vs. internas revela que a verbalização de objetivos em narrativas dramáticas está
(Advogado do Diabo, 1997), poderíamos dizer que o desejo de Kevin Lomax é promover
seu ego profissional, enquanto a sua necessidade é desenvolver o seu julgamento moral.
Neste caso, tanto 'querer' e 'precisar' seriam considerados como internos. No entanto,
também se poderia dizer que seu ‘desejo’ é ganhar o processo contra a acusação de
8
pedofilia, enquanto a sua ‘necessidade’ é abandonar a defesa do cliente, caso em que tanto
alguns críticos fazem (por exemplo, Mehring 1990, Lucey 1996, Batty 2007) pode deixar as
coisas ainda mais confusas, porque o objetivo geralmente se refere ao ponto final da
viagem, enquanto que a viagem (sejam interna ou externa) se refere ao processo, ou seja, a
eu acredito, uma forma muito útil de compreensão (e também uma dos mais antigas).
literal para indicar uma verdadeira viagem ou uma série de eventos e ações, a "viagem
referem-se à antiga distinção entre trama (aqui entendido como trama dos acontecimentos)
metafórica), como uma "viagem interior", e viagem externa como uma jornada literal, os
conceitos 'querer' e 'precisar' - que parecem se referir às metas, em vez de viagens - podem
descrevem muito bem algumas diferenças, como a meta interna 'para se tornar um pai
melhor' (por exemplo, Kramer vs. Kramer (1979), e o objetivo externo "destruir um
meteorito ' (Armageddon, por exemplo, 1998), os termos ‘querer’ e ‘precisar’ não podem
9
Definir ‘querer’ e ‘precisar’ respectivamente como objetivo dramático consciente e
inconsciente para o personagem principal é também problemático por mais de uma razão.
Primeiramente, muitos críticos (Trottier, 1998; Cowgill, 1999; McIlrath, 2007) reconhecem
inconsciente para ajudar a distinguir ‘querer’ e ‘precisar’ de uma maneira mais precisa?
perto do fim ou no terceiro ato, mas pode ser tão consciente na mente do personagem,
como quiser, e desde o início. O Advogado do Diabo (1997) começa com o advogado
Kevin Lomax (Keanu Reeves), que nunca perdeu um caso e que está defendendo um
estuprador de crianças. Quando, de uma forma não muito sutil, o suspeito se masturba em
tribunal, enquanto o promotor interroga sua vítima, Lomax fica indignado e pede ao juiz
um recesso curto. Ele corre para o banheiro e se confronta frente ao espelho. Neste
momento, Lomax experimenta um conflito interno, ficando evidente para o público através
do clichê de olhar-se no espelho: o que ele deve fazer? Seguir o seu desejo ou sua
necessidade? Ir para a esquerda ou para a direita? Continuar sua lista de vitórias nos
tribunais e deixar esse pervertido livre, ou abandonar o seu cliente e permitir que a justiça
siga seu devido curso? As apostas do dilema são aumentadas porque se Lomax abandonar
o seu cliente agora, ele será impedido de continuar exercendo a sua profissão de
advogado. Ambas as jornadas, ambas as opções, podem ser percebidas e descritas como
também internas ou externas (como mencionado acima), mas, acima de tudo, na mente do
protagonista, ambas são muito claras desde o início. Em Some Like it Hot (Quanto Mais
Quente Melhor, 1959) pode-se supor que Joe (Tony Curtis) também é bem consciente de
que não deveria mentir para Sugar (Marilyn Monroe), que ele deveria dizer a verdade. No
entanto, quando Daphne (Jack Lemmon) o confronta com o seu comportamento imoral, Joe
(Sephine) responde que não se pode fazer uma omelete sem quebrar ovos.
protagonistas se relacionam com suas necessidades. Por exemplo, Scarlett (Gone with the
Wind, ...E o Vento Levou, 1939) tem consciência do fato de que ela deveria se casar Rhett
10
Butler? Provavelmente não. Rick (Casablanca, 1942) é consciente do fato de que ele deve
descobrir por quê Ilsa (Ingrid Bergman) o abandonou em Paris? No começo, ele não é, mas
quando a narrativa avança, ele é. Em Traffic (2000) o juiz Robert Wakefield (Michael Douglas)
quer se tornar presidente dos Estados Unidos da América e para atingir esse objetivo, ele
do filme, o público descobre que a filha de Wakefield, Caroline (Erika Christensen) toma
todos os tipos de drogas pesadas. Quando o público vê como em uma noite seu namorado
sofre uma overdose, e ela mais um casal de amigos despejam o rapaz na rua em frente a
Wakefield, “quer” fazer e o que ele “precisa” fazer. Wakefield quer combater as drogas em
problema da droga no nível familiar, ou seja, em sua própria família, e encarar isso como
consciente de sua necessidade, ele não sente nenhum conflito interior. Na verdade, ele está
convencido de que sua filha está indo bem tanto na escola como em casa. Só quarenta
minutos depois, quando Wakefield descobre que sua filha se droga no banheiro que o
mostrado previamente para a audiência, o conflito entre o seu ‘querer’ (de combate às
drogas em escala internacional) e sua ‘necessidade’ (de combater às drogas em uma escala
familiar).
conflitos deste com o desejo não oferece nenhuma garantia de conflito dramático
ele deve ouvir Ilsa, a fim de saber o que aconteceu em Paris, e sua a luta interna é
dramatizada através de uma ação (beber) e do diálogo. No entanto, em Some Like it Hot, Joe
sabe que ele não deveria mentir para Sugar, mas ele deixa isso de lado, sem grande
dificuldade até o fim. Em The Devil's Advocate, Kevin Lomax "sabe" muito bem o que ele
deveria fazer, mas depois de alguns segundos, ele decide não seguir a sua ‘necessidade’ e
11
interno são raros, porém vai crescendo em oposição a sua necessidade. À medida que a
narrativa avança o relacionamento de Lomax com sua mãe religiosa torna-se problemático,
a sua mulher é estuprada, fica louca e se mata, finalmente, Lomax tem de cometer o
suicídio, para impedir que o antagonista - o próprio Diabo - alcance seu objetivo satânico.
quando lhe foi mostrado como o caminho da sua falta leva à perdição total, que, pelo
para eles, como pode haver um conflito interior? A resposta a essa pergunta é simples: não
pode. Ainda assim, intuitivamente, manuais de roteiro reconhecem um conflito, mas para
o personagem, o conflito não é nem interno versus externo, nem consciente versus
12
personagem deve ou não pode (ou não) corresponde a uma idéia mais ou menos concreta dentro do
personagem no nível da história, o que o personagem deve fazer ou deve fazer é sempre
suficientemente claro no coração e na mente do público. É o público que julga o que um
personagem deve ou não fazer, e ele faz isso (consciente ou inconscientemente) com base em outro
conhecido e antigo conceito grego chamado "doxa" (em Platão) ou 'endoxa' (a partir de Aristóteles).
Doxa ou endoxa refere-se às opiniões dominantes, normas e valores compartilhados por um grupo
de pessoas em um contexto espaço-temporal específico. A falha do argumento de Trottier '(1998:
24) já aponta para um aspecto moral do dilema ‘querer-precisar’. Se o ‘querer’ se desvia da endoxa
reinante, um conflito moral pode ocorrer entre o ‘querer’ e o ‘precisar’. Se tudo correr bem - isto é,
se o público se simpatizar com o personagem principal - este conflito pode reforçar a "esperança /
medo”8 que o público está tendo com o protagonista. 9 Se o público se simpatizar com o personagem
principal , eles esperam que o protagonista vai abandonar o seu ‘querer’ e buscar satisfazer sua
‘necessidade’, mas ao mesmo tempo, eles temem que, devido a razões como uma falha interna, o
lucro material, etc, o protagonista irá escolher o seu ‘querer’ e, assim, perder a oportunidade de
satisfazer a sua ‘necessidade’.
Se considerarmos o dilema ‘querer-precisar’ como um conflito entre o personagem e o
público, e não entre o personagem e ele próprio, isto muda o foco central do conflito a partir do
nível de história para o nível de interação entre a trama (como um história narrada) e dos
espectadores. Ao nível da história, todos os tipos de opções continuam em aberto: o personagem
nunca poderá aprender sobre um conflito entre o que quer e o que precisa, ou pode aprender sobre o
dilema após o público fazer, ou o personagem e o espectador podem ser informados ao mesmo
tempo. O personagem pode ser mais ou menos (in) consciente de um conflito interno, sente
incomodado pelo conflito e age sobre ele ou não. O conflito interno no nível da história pode
transparecer imediatamente, ou só mais tarde.
Será que uma re-definição dos ‘desejos’ e ‘necessidades’ resolve todos os problemas
possíveis no que diz respeito aos objetivos dramáticos? Claro que não, porque o conceito de endoxa
é bastante escorregadio, e é ligado a outra idéia não muito clara, a audiência. Considerando que os
críticos e os jornalistas, muitas vezes gostam de fingir que existem apenas dois tipos de público – a
8
Outro dos conceitos de Frank Daniel (cf. Howard 2004: 52ff.)
9
Por razões de clareza preciso especificar aqui que o conceito de público, “refere-se ao público real”, as audiências
empíricas, não se imagina "os espectadores implícitos" ou "narradores", como é frequente em narratologia estruturalista.
13
audiência de massa e os cinéfilos – hoje é geralmente aceito que existem muitos tipos diferentes de
público, que devem ser considerados como complexos, heterogêneos, grupos de indivíduos em
constante mudança.
Consequentemente seus respectivos endoxas mostram características não apenas comuns,
mas também diferenças importantes. Pode-se supor, portanto, que as expectativas do público sobre
o que um personagem deve ou não, diferem entre si em conformidade. Em outras palavras,
redefinindo os conceitos de ‘querer’ e ‘precisar’, como sugerido acima, estabelecemos uma conexão
com um problema interessante e muito mais complexo, bem diferente que diz respeito a
interpretação da audiência e do envolvimento do público.
Desde Platão e Aristóteles, os estudiosos de sociologia e estudos culturais têm
naturalmente sugeridos vários mecanismos para descrever (En) Doxas de forma mais específica. O
conceito grego tem semelhanças com a teoria de Bakhtin de "heteroglossia" e conta Volosínov de
'multi-acentualidade' (como em Fiske, 1992: 298-299). Recordamos também as “comunidades
interpretativas” de Stanley Fish (Fish, 1976), os estudos de Pierre Bourdieu sobre o gosto,
“campo”, “capital simbólico” e “habitus" (Bourdieu, 1979) e o conceito de “preferência” em Stuart
Hall, assim como “negociação” e “oposição” (Hall, 1980). O que esses, e outros, assim chamados
pós-estruturalistas têm em comum é a noção de que os textos não têm um significado fixo e que
pessoas diferentes podem 'ler' textos de diferentes maneiras - maneiras que quem nem sempre foram
as desejadas pelos escritores. Entre outros fatores, a posição sócio-cultural das pessoas, por
exemplo, co-determina o processo de interpretação em diferentes maneiras (Fiske, 1992: 292). Para
ilustrar isso, Fiske descreve uma experiência interessante sobre um grupo de mendigos que
assistiram o filme Die Hard (Duro de Matar, 1988) em um videocassete em um albergue da igreja
(1992: 302). Estes homens que raramente assistem televisão, e não compartilham dos valores
defendidos pela mesma, como a vida familiar, trabalho e lazer, para eles, estes valores são
irrelevantes. Fiske descreve como estes homens entusiasticamente comemoraram quando os
bandidos destroem um veículo blindado da polícia e matam um "bom rapaz", mas desligaram o
videocassete, antes do final, quando o herói e a polícia restabelecem a ordem e a lei reiterando a
ideologia dominante que eles desprezam. No caso contado por Fiske e das teorias citadas acima na
discussão sobre a interpretação da audiência e da participação do público. Em vez de identificação
com a personagem principal e seus objetivos dramáticos, os espectadores de Fiske experimentaram
o que em alemão é chamado de 'Schadenfreude';10 eles esperavam que o protagonista perdesse e eles
desligaram o videocassete, quando ele começou a ganhar. Isso também sugere outra linha de
pesquisa que é de interesse para este estudo: o estudo da empatia narrativa e outros tipos de
10
Prazer malicioso (trad. do autor).
14
envolvimento cognitivo-emocional do público e seu engajamento em narrativas ficcionais. 11 O
impacto cognitivo-emocional da narrativa ocorre em diferentes níveis. Quando lê ou assiste, os
leitores e espectadores consciente ou inconscientemente reagem ao modo como o narrador se
comporta, a como um personagem age no nível da história e os recursos que o narrador mobiliza
para o ‘narrate’.12 Narradores podem se comportar de uma maneira simpática e agradável, mas
também podem ser sexistas, racistas, indignos de confiança, entre outros. Estas formas podem ou
não motivar o interesse do leitor ou do espectador na narrativa. Como explicado acima, "eventos" e
"existents'13 no nível de história pode se referir a personagens que querem as coisas cujas esperanças
e medos estão em pé de igualdade com o leitor ou espectador, ou não. E, finalmente, a utilização de
qualquer narrador, seja por meio de dizer ou de mostrar, não só cria um mundo diegético, mas
também "cria" um destinatário, ou, em termos narratológicos, um narratee. O próprio ato de narrar
sugere as características de um narratee. Estas características dizem o que um narratee faz ou não
sabe, gosta ou não gosta, sente ou pensa, etc. Por exemplo, no romance The Remains of the Day por
Kazuo Ishiguro (Vestígios do Dia, 1998) o personagem que narra, Stevens, endereça sua narrativa
para um "você" no texto, o narratee. Quando fala sobre servidão ele assume que o narratee sabe
algumas coisas sobre o assunto, e assim não explica esses elementos. Stevens também assume
outros itens que não podem ser conhecidos pelo narratee - daí ele explica essas coisas. O mesmo
vale para certos pressupostos em relação ao "normal", social, política, economicamente e valores
culturais ou idéias que sejam "um dado adquirido" pelo narrador.
Quando em Romeo is Bleeding (O Sangue de Romeo, 1993) o personagem narrador Jack
Grimaldi (Gary Oldman) está observando através de seus binóculos um homem fazendo sexo com
duas mulheres, ele aborda o narratee de forma direta:
Alguns espectadores (reais) desta cena podem concordar com a suposição e apreciar a
vista, outros não.
11
Ver, por exemplo, Zillmann (1991), Smith (1995), Tan (1996), Grodal (1997), Coplan (2004), Keen (2006) e Keen
(2007).
12
O conceito é bem conhecido na narratologia estruturalista, mas geralmente ignorado no mundo dos roteiristas e
professores de roteiro. Refere-se à pessoa para quem o narrador está narrando/se dirigindo.
13
Ver Chatman (1978).
15
Mesmo que nem todas as narrativas tenham um narratee presente de forma evidente, os
exemplos mostram que, durante a leitura, visualizar um narratee pode, em parte ou totalmente
corresponder com o (ou diferir do), leitor/espectador, bem como no nível social ou político, em
termos de moral e de outros valores, opiniões, crenças, sensibilidades, etc. Assim, estas diferenças e
semelhanças podem ter um impacto sobre os diferentes tipos de envolvimento e empatia. Neste
sentido, os estudos cognitivos da narrativa vão de encontro com as abordagens acima referidas
como estudos sociológicos e culturais. Como Ralf Schneider explica, «[o] tipo de emoção [que]
resultam da empatia e de quão intensa esta é em cada caso depende da atitude do destinatário em
relação ao personagem, que é (sic) por sua vez influenciado pelo seu sistema de valores em geral
"(Schneider 2005: 136).
Manuais de roteiro não ignoram completamente o problema. Vários autores aconselham
respeito do chamado protagonista antipático e como aumentar as chances de obtenção de empatia
com a platéia com o personagem e seus objetivos. 14 Eles sugerem transformar o personagem
principal em um herói e que ele ou ela tenham desafios impossíveis, ou ainda uma característica
"positiva" recursos para o personagem principal ao lado de uma negativa, e que tenham outros
personagens da história que admiram o protagonista, ou vitimando este protagonista "antipático" e
fazendo o seu antagonista (s) mesmo "pior" do que ele (a) é, etc. No entanto, a maioria dos manuais
de roteiro foca na empatia do protagonista com o público e um objetivo dramático que corresponde
àquilo que o "público gostaria que o personagem principal fizesse. 15 A redefinição do ‘querer’ e
‘precisar’ oferecida acima inclui narrativas que contêm um personagem que vai atrás de um
objetivo e o público discorda. Por que público continua interessado em assistir a personagens que
buscam alguma coisa contra a vontade do público é uma questão interessante. Por que o público
continua assistindo Scarface (1983)? E todas aquelas outras histórias de crimes e filmes de
gangsters? A fim de experimentar atos criminosos por procuração? Ou esperar pelo momento
gratificante quando o vilão finalmente consegue o (s) que ele merece? 16 O sucesso das histórias de
crimes e filmes de gangsters sugere que há uma lacuna entre o que um personagem quer e o que o
público acha que um personagem deveria querer não destrói necessariamente a motivação do
espectador. A historinha contada por Fiske (1992: 302) sobre os homens sem-teto assistindo Die
Hard (Duro de Matar) em um videocassete mostra ao mesmo tempo que as narrativas com
necessidades e desejos conflitantes correm alguns riscos, incluindo o risco de que o sistema de
valores do personagem se desvie muito da dos espectadores e que o espectador abandone a
narrativa.
14
Ver por exemplo Lavandier (2005: 43, 45), Iglesias (2005: 61ff.), Williams (2006: 93ff.), etc.
15
Ver, por exemplo Vogler (1992) e, especialmente, Vogler (2007), que se concentra na história com um herói com um
objetivo moral dramático claro e um final feliz.
16
Ver por exemplo Armer (1993: 5ff.), Iglesias (2005: 61ff.), Lavandier (2005: 44ff.).
16
Tal como foi sugerido no início deste artigo, estas questões vão muito além dos limites de
um único texto. Eles se encaixam no debate ainda maior sobre o prazer e experiência estética. A
empatia da audiência com um ou mais caracteres deve ser considerada ao lado de outras motivações
possíveis do espectador para ligar ou desligar-se de uma narrativa. Alguns espectadores poderão
continuar assistindo por causa da escolha dos atores ou atrizes, ou o contrário. Outros podem
continuar a ver por causa da música ou a fotografia ou porque o filme foi filmado em sua cidade
natal. Assim, o ponto de vista aqui adotado é o do roteirista, e no âmbito da aplicação deve ser
limitada às motivações que caibam no campo de trabalho do roteirista.
Visando a conclusão, volto à discussão sobre as necessidades e desejos. Deve ser claro
para os roteiristas que eles podem escrever os conflitos entre o que um personagem quer e o que
ela/ele precisa de acordo com uma audiência. No entanto, na medida em que não há um público
homogêneo, não há uma necessidade homogênea. O que os roteiristas pretendem nem sempre é o
que os telespectadores interpretam. Pode-se duvidar que os roteiristas de Die Hard pretendiam
escrever um conflito entre um desejo e uma necessidade no que diz respeito ao seu protagonista,
John McClane (Bruce Willis)? E quem disse que todos os espectadores assistem a filmes de
gangsters por causa da experiência de um conflito entre um desejo e uma necessidade? O que
devemos pensar do enorme sucesso de vídeos ultra-violentos e dos jogos de computador, onde o
objetivo dramático do leitor-protagonista consiste em matar tantas pessoas quanto possível o mais
rápido possível?
As conexões entre os sistemas de valores em uma narrativa por um lado, e o engajamento
compreensivo do espectador de outro, continuam a fascinar os estudiosos. Pesquisas adicionais
terão que ser realizadas com explicações mais convincentes. Sendo o próximo desafio transformar
os resultados em ferramentas de escrita funcional.
BRIBLIOGRAFIA
ARMER, A. (1993), Writing the Screenplay. TV and Film, Second Edition, Belmont, CA:
Wadsworth Publishing.
BATTY, C. (2006), ‘Wants and Needs: action and emotion in scripts’, ScriptWriter, 31, pp. 12–18.
BATTY, C. (2007), ‘Physical wants and emotional needs’, ScriptWriter, 32, pp. 45–51.
BORDWELL, D.; Thompson, K. and Staiger, J. (1985), The Classical Hollywood Cinema. Film
Style and Mode of Production to 1960, London: Routledge & Kegan Paul.
BORDWELL, David (2006), The Way Hollywood Tells It. Story and Style in Modern Movies,
Berkeley: University of California Press.
BOURDIEU, P. (1979), La Distinction. Critique sociale du Jugement, Paris: Éditions de Minuit.
17
CHATMAN, S. (1978), Story and Discourse. Narrative Structure in Fiction and Film, London:
Cornell University Press.
COPLAN, A. (2004), ‘Empathic Engagement with Narrative Fictions’, The Journal of Aesthetics
and Art Criticism, 62:2, pp. 141–152.
COWGILL, L. (1999), Secrets of Screenplay Structure. How to Recognize and Emulate the
Structural Frameworks of Great Films, Los Angeles: Lone Eagle.
FISH, S. (1976), ‘Interpreting the Variorum’, Critical Inquiry 2:3, pp. 465–485.
FISKE, JOHN (1992), ‘British Cultural Studies and Television’, in R. C. Allen (ed.), Channels of
Discourse, Reassembled. Television and Contemporary Criticism. Second Edition, London:
Routledge, pp. 284–326.
FLUDERNIK, M. (2005), From Structuralism to the Present, in J. Phelan and P. J. Rabinowitz
(eds), A Companion to Narrative Theory, London: Blackwell Publishing, pp. 36–59.
GRODAL, T. (1997), Moving Pictures. A New Theory of Film Genres, Feelings, and Cognition,
Oxford: Clarendon Press.
HERMAN, D. (1997), ‘Scripts, Sequences, and Stories: Elements of a Postclassical Narratology’,
Proceedings of the Modern Language Association, 112:5, pp. 1046–1059.
HALL, S. (1980), ‘Encoding/Decoding’, in Stuart Hall, Dorothy Hobson,
ANDREW LOWE, AND PAUL WILLIS (eds), Culture, Media, Language, London:Hutchinson,
pp. 128–139.
HOWARD, D. (2004), How to Build a Great Screenplay, New York: St. Martin’s Press.
KEEN, S. (2006), ‘A Theory of Narrative Empathy’, in Narrative 14:3, pp. 207–236.
KEEN, S. (2007), Empathy and the Novel, Oxford: Oxford University Press.
IGLESIAS, K. (2005), Writing for Emotional Impact, Livermore CA: WingSpan Press.
ISHIGURO, KAZUO (1998), The Remains of the Day, New York: Vintage Books.
LAVANDIER, Y. (2005), Writing Drama, Cergy Cedex: Le Clown & l’Enfant.
LUCEY, P. (1996), Story Sense. Writing Story and Script for Feature Films and Television,
London: McGraw-Hill.
MCILRATH, M. (2004), ‘Creative treatments’, ScriptWriter, 17, pp. 34–37.
MCILRATH, M. (2006), ‘Beyond Aristotle’, ScriptWriter, 26, pp. 38–42.
MCILRATH, M. (2007), ‘Story Patterns’, ScriptWriter, 35, pp. 39–44.
MCKEE, R. (1997), Story. Substance, Structure, Style, and the Principles of Screenwriting, New
York: Harper Collins.
MEHRING, M. (1990), The Screenplay. A Blend of Film Form and Content, London: Focal Press.
SCHNEIDER, R. (2005), ‘Emotion and Narrative’, in D. Herman, M. Jahn, and M-L. RYAN
(eds), Routledge Encyclopedia of Narrative Theory, London: Routledge.
18
SMITH, M. (1995), Engaging Characters: Fiction, Emotion, and the Cinema, Oxford: Clarendon
Press.
TAN, E. (1996), Emotion and the Structure of Narrative Film: Film as an Emotion Machine,
Mahwah, NJ: Erlbaum.
TROTTIER, D. (1998), The Screenwriter’s Bible. A Complete Guide to Writing, Formatting, and
Selling Your Script, Third Edition. Expanded &Updated, Los Angeles: Silman-James Press.
VOGLER, C. (1992), The Writer’s Journey. Mythic Structure for Storytellers & Screenwriters,
Studio City, CA: Michael Wiese Productions.
VOGLER, C. (2007), ‘Christopher Vogler and the Dark Side’, ScriptWriter, 36, pp. 34–38.
WILLIAMS, S. (2006), The Moral Premise. Harnessing Virtue and Vice for Box Office Success,
Studio City CA: Michael Wiese Productions.
ZILLMANN, D. (1991), ‘Empathy: Affect from Bearing Witness to the Emotions of Others’, in
Bryant Jennings and Dolf Zillman (eds), Responding to the Screen: Reception and Reaction
Processes, Hillsdale NJ: Erlbaum, pp. 135–168.
FILMOGRAFIA
ARMAGEDDON (1998), Wr: Oliver Stone, Dir: Brian De Palma, US, 170 mins.
CASABLANCA (1942), Wr: Julius J. Epstein, Philip G. Epstein, Howard Koch, Dir: Michael
Curtiz, US, 102 mins.
THE DEVIL’S ADVOCATE (1997), Wr: Jonathan Lemkin, Tony Gilroy, Dir: Taylor Hackford,
US, 144 mins.
DIE HARD (1988), Wr: Jeb Stuart, Steven de Souza, Dir: John McTiernan, US, 131 mins.
GONE WITH THE WIND (1939), Wr: Sidney Howard, Oliver H. P. Garrett, Ben Hecht, Jo
Swerling, John Van Druten, Dir: Victor Fleming, Sam Wood, George Cukor, US, 226 mins.
KRAMER VS. KRAMER (1979), Wr: Robert Benton, Dir: Robert Benton, US, 105 mins.
MOONSTRUCK (1987), Wr: John Patrick Shanley, Dir: Norman Jewison, US, 102 mins.
ROMEO IS BLEEDING (1993), Wr: Hilary Henkin, Dir: Peter Medak, US, 100 mins.
PRETTY WOMAN (1990), Wr: J. F. Lawton, Dir: Garry Marshall, US, 119 mins.
ROMANCING THE STONE (1984), Wr: Diane Thomas, Lem Dobbs, Howard Franklin, Treva
Silverman, Dir: Robert Zemeckis, US, 106 mins.
SCARFACE (1983), Wr: Oliver Stone, Dir: Brian De Palma, US, 170 mins.
SOME LIKE IT HOT (1959), Wr: Robert Toeren, Michael Logan, Billy Wilder, I.A.L. Diamond,
Dir: Billy Wilder, US, 120 mins.
TRAFFIC (2000), Wr: Stephen Gaghan, Simon Moore, Dir: Steven Soderbergh, US, 147 mins.
19
WITNESS (1985), Wr: William Kelley, Earl W. Wallace, Pamela Wallace, Dir: Peter Weir, US,
112 mins.
TWINS (1988), Wr: William Davies, William Osborne, Timothy Harris, Herschel Weingrod, Dir:
Ivan Reitman, US, 105 mins.
20