Você está na página 1de 11
Tnverno familia estava reunida em torno do fogo, Fabiano sontado no pilio cafdo, sinha Vitéria de pernas cruzadas, as coxas servindo de travesseiros aos filhos, A cachorra Baleia, com 0 traseiro no chao @ 0 res- to do corpo levantado, olhava as brasas que se cobriam de cinaa, Estava um frio medonho, as goteiras pingavam ld fora, © vento sacudia os ramos das catingueiras, e 0 barulho do rio era como um trovao distante, Fabiano esfregou as maos satisfeito ¢ empurrou os tigdes com a ponta da alpercata. As brasas estalaram, a cinza cau, um trempe de pedira, clareando vagamente os pés do vaquel- +9, 08 joolhos da muthor ¢ os meninos deitados. De quan- do em quando estes se mexiam, porque o lume era fraco apenas aquecia pedagos deles. Outros pedagos esfria- vam recebendo 0 ar que ontrava pelas rachaduras das sulo de luz espalhou-se em redor da acendé-las, Fabiano ajudou-a: suspendeu a tagarelice, s-se de quatro pés o soprou os carvées, enchendo mur, ‘0 as bochechas. Uma fumarada invadi a cozinha, as Dessoas tossiram, enxugaram os olhos. Sinha Vitore ‘manejou o abano, e passado um minuto as labaredas vs. Dieraram entre as pedras, paredes pois gras da jana, Por iso no pod dormir. Quando iam pegando no sono, arropiovam-so, tinham precisio de virarse, chegavam-se a trempe @ ou: viam a conversa dos pas. Ndo ea propriamente conversa: exam frases soltes, espagadas, com repetigdes v incon- geudncias. As vozes uma interjeigao guturl dava energia See ae a ee ‘ha sombra, vermelhas. Fabiano, visivel da barriga vara eee ‘iso, iso tomando indistinto dat para cima, era ue ae ee "rume que vagos clardescortavam, Desse nograme seta Regen ee cat novamente a parolagem: mastigada. Fabiano estava de bom humor. Dias antes a enchente haviacobertoas marcas postasno fim da tereadealuviao, aleancava as catinguetras, que daviom estar submereny Certamente 36 apareciam as folhas, a espuma subi, lan, bhendo ribanceiras que se desmoronavam, Dontro em pouco odespotisino de dgua fa acaba, mas Fublano nfo pensava no fturo.Porenquanto ainundogto Grescia, matava bichos, ocupava grotas o virzean, ‘ee hit bem. E Fabiano estregava as mos, Nao hava o pe, ‘iso da seca imediota, quo aturarizara a familia dures Ines. cathgaamarelecera,avermethara-o,o gu prin, Ciblara a emagrecorehorrves visoes de pesadelotiaham, Aeliado 0 sono das pessoas, De repent um tag ligoina ‘esuara oeéu para os lados da cabeccira do ro, outros ean Biram mais claro, otrovdo roncara perio, na sscuridas da ‘nvie-noite rolaram nuvens corde sangue. A ventanie on ‘ovecarasucupiras¢imburanas, houvorarelimpayos em aes Busia —~e sinha Vitéra ou escondera na camarinha com 0" filhos, tapando as orelhas, enrolando-se nas coberee © circulo de luz aumentou, agora as figuras surgiam jo havia moi reine ests eam elngei neran roe eradotncshandoato. abian tm apr amos inicio uma is Stren dl, oesto psn doscbid. © monina nar elo aby rons tute pe ore cain mssano wood gund Lorton # um cnt da coin, tone de Un ada de Fabian condnevafnteapeo. acon quo roc to dof ovala fala despot oso ofa par : |-se, foi enrolar-se na saia Casio Open eapul-se, dane, ques ps ancamonte do aod — Hum! hum! Que brabeza! Zawlehomumarosin'enmo nha ebas pote da goela, / — Estourada, Romexeu as brasas com o cabo da quenga de coco, ar- rumou entreas pedras achas de angico molhado, procurou ORS SEAS + canciiano navos 65 64 cracuuno naMoe + vias seas Mas aquela brutalidade findara de chofre, a chuva cafra, 1 cabega da cheia aparecera arrastando troncos e animais mottos, A égua tinha subido, alcangado a ladeira, estava com vontade de chegar aos juazeiros do fim do patio. Sinha Vitdria andava amedrontada. Seria possivel que a ‘gua topasse 0s juazeiros? Se isto acontecesse, ria invadida, os moradores teriam de subir 0 morro, vi- casa se vor uns dias no morro, como preds. Suspirava aticando a fogo com 0 cabo da quenga de permitiria que sucedesse tal desgraca. a ‘casera fon Onesie do aria estvam bm cada chi dure See ro chess al dara anes 0 tres qi formavam oenchiment das parades do io, Deus progr ani ie davaretavam bem amaradas com cps nox xteis dao Oarabouo da cas rst ia das gus B quand ols basso, fan ores. Si, vi fora ods no mt, como pros Nas wltarian quan doo gua bias aia dobar tra pra a ‘ Sinha isla moveuoabano com fora para no ou- vivo aru dost, quese aproximava, Sra qu sos rave com intengto d progredie? O shane ambi, # 0 rumor daonchonte smu spr mst qo sere Gin pa do uz 66 aracuin AaMoe + OAS SEAS Fabiano contava faganhas. Comegara moderadamen- te, mas excitara-se pouco a pouco e agora via os aconte- cimentos com exagero e otimismo, estava convencido de ‘que praticara foitos notdveis, Necessitava esta convicgéo. ‘Algumn tempo antes acontocera aquela desgraga: 0 solda- do amarelo provocara-o na feira, dera-lhe uma surra de facdo e motera-o na cadeia. Fabiano passara semanas capiongo, fantasiando vingangas, vendo a criagdo defi- nnhar na catinga torrada. Se a seca chegasse, ele abando- ‘aria mutherefilhos, coseria a facadas 0 soldado amarelo, depois mataria 0 juiz, o promotor e o delegado. Estivera uuns dias assim murcho, pensando na seca ¢ roendo a hhumilhagao, Mas e trovoada roncara, viera a cheia, agora 46 goteiras pingavam, o vento entrava pelos buracos das paredos, Fabiano estava contente e esfregava as mios. Como 0 {io era grande, aproximou-as das labaredas. Relatava um fuzué terrivel, esquecia as pancadas ea prisdo, sentia-se copaz de atos importantes. 4 ladeira, estava perto dos juazeiros. N3o havia noticia de que os houvesse atingido — e Fabiano, soguro, baseado nas informagées dos mais velhos, narra- 'va uma briga de que saira vencedor. A briga era sonho, 1as Fabiano acreditava nel As vacas vinham abrigar-se junto a parede da casa, wygada ao curral, a chuva fustigava-as, os chocalhos ba- ‘iam, Iriam engordar com o pasto novo, dar crias. O pas to cresceria no campo, as érvores se enfeitariam, o gado ve multiplicaria, Engordariam todos, ele, Fabiano, a mu- Jhor, os dois filhos ea cachorra Baleia, Talver sinha Vitéria ORS SECAS = GaMcuiAND amos 67 adquirisse uma cama de lastro de couro, Realmente o jirau de varas onde se espichavam era incémodo. Fabiano gesticulava. Sinha Vitéria agitava oabano para sustentar as labaredas no angico molhado. Os meninos, sentindo frio numa banda e calor na outra, ndo podiam dormir e escutavam as lorotas do pai. Comegaram a dis- ‘cutir em voz baixa uma passagem obscura da narrative, Nao conseguiram entender-se, arengaram azedos, iam-se atracando. Fabiano zangou-se com a impertinéncia de- les e quis puni-los. Depois moderou-se, repisou 0 trecho incompreensivel utilizando palavsas diferentes. (© menino mais novo bateu palmas, olhou as méos de Fabiano, que se agitavam por cima das labaredas, escuras ce vermelhas. As costas ficavam na sombra, mas as palmas estavam iluminadas e cor de sangue. Era como se Fabiano tivesse esfolado um animal. A barba ruiva e emaranhada eslava invisivel, os olhos azulados e iméveis fixavam-se nos tidus, a fala dura e rouca entrecortava-se de siléncios. Sentado no pildo, Fabiano derreava-se, feio e bruto, com aquele jeito de bicho lerdo que ndo se aguenta em dois pés, Omenino mais velho estava descontente. Nio podendo perceber as feigdes do pai, cerrava os olhos para entendé-lo bem. Mas (6ria — e isto reduzia-the a verossimilhanga, Um desen- canto. Estirou-se e bocejou. Teria sido melhora repetigao das palavras. Altercaria com o inmdo procurando inter- pretéclas. Brigaria por causa das palavras — ea sua con vviegdo encorparia. Fabiano devia t6-las repetida: Nao. ‘Aparecera uma variante, o her6i tinha-se tornado humano. @ contraditério, O menino mais velho recordou-se de um surgira uma duvida. Fabiano moditicara a his 6B acne aauos + As seas ‘winquedo antigo, presente de seu Tomas da bolandire, Fechou os olhos, reabriu-os, sonolento. O ar que entra. va pelas rachas das paredes esfriava-Ihe uma perna, um ‘ago, todo o lade dreito.Virou-se, os pedavos de Fabiano sumiram-se. O brinquedo se quebrara, o pequeno entris- ‘cera vendo as pecas indtis. Lembrou-se dos currats feitos de seixos mitidos, sob as catingueiras. Agora ala- ‘oa estava chefa, tinha cobutto os currais que ele cons- ‘tutta. O barreiro também se onchera, atingia a parede dla cozinha, as éguas dele juntavam-se ds da lagoa. Para it a0 quintal onde havia craveiros e panelas de losna, sinha Vit6ria safa pela porta da frente, descia o copiar 6 atravessava a porteira da baratina, Atras da casa, a cor- ©as, 0 pé de turco @ as catingueiras estavam dentro da ‘gua, As gotoiras pingavam, os chocalhos das vacasti- nam, 0s sapos cantavam. O som dos chocalhos era fa- tiliar, mas a cantiga dos sapos @ o rumor das goteiras ‘causavam estranheza, Tudo estava mudado. Chovia o dia inteiro,a noite inteira. As moitas e capdes de mato onde viviam seres misteriosos tinham sido violados. Havia la sapos. E a cantiga deles subia e descia, uma toada la- mentosa enchia o8 arredores. Tentou contar as vozes, ‘trapalhou-se, Eram muitas, com certeza havia uma infi- nidade de sapos nas moitas © nos capoes. Que esta- riam fazendo? Por que gritavam a cantoria gorgolejada ® triste? Nunca vira um deles, confundia-os com os ha- bitantes invistveis da serra e das bancos de macambira, Entolou-se, acomodou-se, adormeceu, una banda aque «da polo fogo, a outa banda protogida pola nddegas de sinha Vitoria. DAS StCAS + GhaciuAno Ramos 69 O abano agitava-se, a madeira tmida chiava, o vulto {de Fabiano iluminava-se e escurecia, Bale va quea familia se recolhesse. Enfastiava-a o barulho que Fabiano fazia. No campo, seguindo uma rés, ele so as- imovel, paciente, olhava os carvées ¢ espera- ‘goelava demais. Natural. Mas ali, belra do fogo, para que tanto grito? Fabiano estava-se cansando a toa. Baleia se enjoava, cochilava nao podia dormir, Sinha Vit6ria de- via retirar os carvOes ea cinza, varrer o chao, deitar-se na cama de varas com Fabiano. Os meninos se arrumariam ra esteira, por baixo do earité, na sala. Era bom que a deixassem em paz. 0 dia todo espiava os movimentas das pessoas, tentando adivinhar coisas incompreensiveis, vrar-se das pulgas e daquela vigilancia a que a tinham babituado. Varrido 0 chao com. Agora precisava dormir, vassourinha, escorregaria entre as pedtas, enroscar-s adormeceria no calor, sentindo o cheiro das ¢abras mo- thadas ¢ ouvindo rumores desconhecidos, o tique-taque ddas pingueiras, a cantiga dos sapos, 0 sopro do tio cheio, Bichos miidos e sem dono iriam visité-la, 70 acti samos + vias seas Festa abiano, sinha Vit6ria ¢ os meninos iam a festa de Natal na cidade. Eram trs horas, fazia grande calor, redemoinhos espalhavam por cima das \irvores amarelas nuvens de posira o folhas secas, ‘Tinham fechado a casa, atravessado patio, des ladeira, ¢ pezunhavam nos seixos como bois doentes dos ccascos, Fabiano, apertado na roupa de brim branco feita por sinha Testa, com chapéu de baeta, colarinho, grava- ta, botinas de vaqueta e eldstico, procurava erguer 0 espinhago, 0 que ordinariamente nfo fazia. Sinha ria, enlronhada no vestido vermetho de ramagens, equi Jibrava-se mal nos sapatos de salto enorme. Teimava em calgarse como as mogas da rua — ¢ dava topadas no ca- minho. Os meninos estreavam calga e palets. Em casa sempre usavam camisinhas de riscado ou andavam nus. Mas Fabiano tinha comprado dez varas de pano branco na loja ¢ incumbira sinha Terta de arranjar farpelas para le © para os filhos. Sinha Terta achara pouca a fazenda, © Fabiano se mostrara desentendido, certo de que a ve- tha protendia furtar-Ihe os retalhos, Em consoquéncia as ‘oupas tinham safdo curtas,estreitas¢ choias de emendas, Fabiano tentava nfo perceber essas desvantagens Marchava diveito, a bariga para fora, as castas aprum: das, olhandoa serra distante. De ordindrio olhava chao, evitando as pedras, os tocos, o8 buracos @ as cabras. A Posigdo forgada cansou-o. Ea0 pisar a areia do rio, notow ‘que assim néo poderia vencer as trs Iiguas que 0 sepa- Favam da cidade. Descalou-se, meteu as meias no bolso, tirou 0 palet6, a gravata e o colarinho, roncou aliviado, Sinha Vitéria decidiu imité-o: arrancou os sapatos e as meias, que amarrou no lengo. Os meninos puseram as Chinclinhas debaixo do brago e sentiram-se vontade, A cachorra Baleia, que vinha atrés, incorporou-se a0 Brupo. Se ola tivesse cheyado antes, provavelmente Far biano a teria enxotado. E Baloia passaria a festa junto as cabras que sujavam 0 copias: Mas com a gravata eo cola- inho machucados no bolso, © palets no ombro e as botinas enfiadas num pau, o vaqueiro achou-se perto dla e acolhou-a, Retomou a posigao natural: andou cambaio, a eabega inclinada, Sinha Vitéria, os dois meninos e Baleia acom- Panharam-no. A tarde foi comida facilimentee a0 cair da noite estavam na beira do riacho, a entrada da rua ‘Af Fabiano parou, sentou-so, lavou os pés duos, pro- Curondo retirar das grotas fundas obarro que léhavia, Sem se enxugar, tentou calgarse ~ e foi uma dificuldade: os calcanhares das meias do algodéo formaram bolos nos 72 acu samos «as seas eitos dos pés e as botinas de vaquetaresistiram como rgons, Sinha Vit6ria levantou a saia, sentou-se no chao Jimpou-se também. Os dois meninos entraram no rie- hho, esfregaram os pés, sairam, calgaram as chinelinhas 'o ficaram espiando os movimentos dos pais. Sinha Vitéria aprontava-se e erguia-se, mas Fabiano soprava arreliado. nha vencido a obstinagio de uma daquelas amaldigoadas botinas;a outra emperrava,¢ ele, com os dedos nas algas, fuzia esforgos intteis, Sinha Vit6ria dava palpites que lrvitavam o marido. Nao havia meio de introduair 0 dia- bo do caleanbar no tacdo, A um arranco mais forte, aalga, detedrobento se o@voquia mete ar mio pla bo ticha,enericament, Nan consogind,lvanou-se reslvidoenr na rn etn mesmo oxen, uma sso mintarr sigma esperan, dune pat vo Intano chio eae comprinins, sss ela, tna molhade gos ops ameraado se ecano4 “ht pods de vaqut, Fabiano soo spi ing do satis odor. Hn soi tou pred 9 Celta duro a pszoo, mas os ds trimelos 9 altar rf Sinha Vitro uno bato en aun cmon ea poetaamarovse Aare, ster. ruin Fiano ‘i camlabve ss tombe, or eve doe sls dos oe imposter porque sah Visa oar oad 2 cchuva com a biqueira para cima eo castdo para baixo, Ela répria nao saberia explicar-se, mas sempre vira as ou- ‘ras matutas procederem assim ¢ adotava o costume, Fabiano marchava teso, Os dois meninos espiavam os lampides eadivinhavam casos extraordingrios. Nao sentiam curiosidade, sentiam ‘modo, ¢ por isso pisavam devagar, receando chamar a ‘tengio das pessoas. Supunham que existiam mundos diferentes da fazenda, mundos maravilhosos na serra azulada. Aquilo, porém, era esquisito, Como podia haver tantas casas ¢ tanta gent brigar. Seria que o povo ali era brabo e nao consentia que lus andassem entre as barracas? Estavam acostumados ‘@ aguentar cascudos e puxdes de orelhas, Talvee as cria- turas desconhecidas ndo se comportassem como sinha #7 Com certeza os homens itiam Vitdria, mas os pequenos rotraiam-se, encostavam-se a Paredes, meio encandeados, os ouvidos cheios de rumo- res astrankos, Chegaram a igreja, entraram, Baleia ficou passeando na calgada, olhando a rua, inquieta, Na opiniéo dela, tudo devia estar no escuro, porque era noite, © a gente que andava no quadro precisava deitar-se, Levantou o foci- ‘ho, sontiv. um cheiro que Ihe deu vontade de tossie. Gri- tavyam demais ali perto e havia luzes em abundancia, mas ‘© que a incomodava era aquele cheiro de fumaga. Os meninas também se espantavam. No mundo, sub tamente alargado, vi no @ sinha Vit6ria muito reduzidos, menores que as figuras dos altares. Néo conhe- ‘iam altares, mas presumiam que aqueles objetos doviam Ser preciosos. As luzes ¢ os cantos extasiavam-nos. De luz TA GRACING Matos « ions seas havia, na fazenda, 0 fogo entre as pedras da cozinha ¢ 0 candeeiro de queroseno pendurado pela asa numa vara «que saia da taipa; de canto, o bendito desinha Vitéria eo aboio de Fabiano. O aboio era triste, uma cantiga moné- ona e sem palavras que entorpecia a gado, Fabiano estava silencioso, olhando as imagens eas ve- Jus acesas, constrangido na roupa nova, o pescogo estica- ‘do, pisando em brasas. A multidao apertava-o mais que a roupa, embaragava-o. De pereiras, gibio e guarda-peito, andava metido numa caixa, como tatu, mas saltava no lom- bbo de um bicho e voava na catinga. Agora nao podia virar- /:mfos e bragos rogavam-lhe corpo, Lembrou-se da surra que levara e da noite passada na cadeia. A sensagio que experimentava nao diferia muito da que tinha tido ao ser peso. Eta como se as mios e os bragos da multidao fos- sem agarré-lo, subjugé-lo, espremé-lo num canto de pare- de, Olhow as caras em redor, Evidentemente as criaturas que se juntavam ali ndo o viam, mas Fabiano sentia-se ro- «leado de inimigos, temia envolver-se em questdes © aca- bar mal a noite, Soprava e esforgava-se inutilmente por abanarse com o chapéu. Dificil moverse, estava amarra- do, Lentamente conseguiu abrir caminho no povaréu, es- gueirou-se até junto da pia de égua benta, onde se deteve, receoso de perder de vista a mulher es filhos. Erguew-se nas pontas dos pés, mas isto the arrancou um grunhido: os calcanhares esfolados comecavam a afligi-lo. Distinguiu © cocé de sinha Vitéria, que se escondia atrés de uma co- una, Provavelmente os meninos estavam com ela. A igre- jacada vez mais se enchia. Para avistara cabega de mulher, Fabiano precisava estirar-se, voltar 0 rosta. E 0 colarinho 75 furava-lhe 0 pescogo. As botinas e o colarinho eram in- dispensévets. Nao poderia assistir & novena calgado em alpercatas, a camisa de algodao aberta, mostrando o peito cabeludo. Seria desrespeito. Como tinha religigo, entrava ‘a igroja uma vez por ano. E sempre vira, desde que se entondera, roupas de festa assim: calga e palets engoma- dos, botinas de eldstico, chapdu de baeta, colarinha e gra- vata. Nao se arriscaria a prejudicar a tradigao, embora sofresse com ela, Supunha cumprir um dever, tentava aprumarse. Mas a disposigdo esmorecia:o espinhago vor s0va, naturalmente, 0s bragos mexiam-se desongongados. Comparando-se aos tipos da cidade, Fabiano reconhe- se inferior. Por isso desconfiava que os outros mange- vam dele. Fazia-se carrancudo e evitava conversas. 6 the folavam com o fim de tirar-the qualquer coisa, Os nego- Giantes furtavam na medida, no prego ena conta. O patrdo realizava com pena e tinta eélculos incompreenstveis, Da tiltima vez que se tinham encontrado houvera uma confu- so de mimoros, ¢ Fabiano, com os miolos ardendo, dei xara indignado o escritério do branco, certo de que fora enganado. Todos the davam prejutzo, Os caixeiros, os co- ‘morciantes e o proprietéia tiravam-Ihe 0 couro, ¢ os que ‘Go tinham negécio com ele riam vendo-o passar nas ruas, Uvopecando, Por isso Fabiano se desviava daqueles viven- {es.Sabia quea roupa nova cortada ecosida por sinha Terta, © colarinho, a gravata, as botinas e 0 chapéu del bata 0 tomavam ridfculo, mas ndo queria pensar nisto, — Proguigosos, ladroes, faladores, mofinos, Estava convencido de que todos os habitantes da ‘cidade eram ruins. Mordeu os beigos. Nao poderia dizer 76 cacuumo nanes + woss seas semethante coisa, Por falta menor aguentara facdio ¢ dor- ‘mira na cadeia. Ora, o soldado amarelo... Sacudiu a ca- boca, livrou-se da recordagio desagradével e procurou ‘uma cara amiga na multiddo. Se encontrasse um conhe- ido, ira chamé-lo paraa calgada, abragé-lo, sorrir, bater palmas. Depois falaria sobre gado. Estremeceu, tentou ver 0 cocé de sinha Vit6ria. Precisava ter cuidado para nao se distanciar da mulher e dos filhos. Aproximou-se de- les, alcangou-os no momento em que a igreja comegava a esvaziar-se, Safram aos encontrdes, desceram os degraus. Empur- rado, machucado, Fabiano tornou a pensar no soldado amarelo, No quadro, ao passar pelo jatobd, virou o rosto, ‘Sem motivo nenhum, o desgragado tinha ido provocé-lo, pisarthe o pé. Ele se desviara, com bons modos. Como outro insistisse, perdera a paciéneia, tivera um rompan- te, Consequéncia: facdo no lombo e uma noite de cadeia. Convidou a mulher ¢ os filhos para os cavalinhos, ar- Tumou-os, distraiu-se um pouco vendo-os rodar. Em se guide encaminhou-os &s barracas de jogo. Cogou-se, Puxou o lengo, desatou-o, contou © dinheiro, com a ten- taco de arriscé-lo no bo26. Se fosse feliz, poderia com= rar a cama de couro cru, o sonho de sinha Vitdria. Foi ober cachaga numa tolda, voltou, pds-se a rondar inde iso, pedindo com os olhos a opinido da mulher. Sinha Vitoria fez um gesto de reprovagao, ¢ Fabiano retirou-se, Jembrando-se do jogo que tivera em casa de seu Indic com o soldado amarelo. Fora roubado, com certeza fora roubado. Avizinhou-se da tolda e bebeu mais cachaga. Pouco a pouco ficou sem-vergonha. n - — Festa 6 festa, Bebeu ainda uma vez ¢ empertigou-se, olhou as pos- ssoas desafiando-as. Estava resolvido a fazer uma asneira, Se topasse o soldado amarelo, esbodegava-se com ele, Andou entre as barracas, emproado, atirando coices no chao, insensivel as esfoladuras dos pés. Queria era des- sragar-se, dar um pano de amostra aquele safado. Nao Jigava importincia & mulher e aos filhos, que o seguiam. — Apareca um homem! berrou. No barulho que enchia a praca ninguém notou a Provocagao. E Fabiano foi esconder-se por detrés das barracas, para la dos tabuleiros de doces. Estava dis- posto a esbagagar-s doncia, Ali podia iritar-so, dirigir ameagas ¢ desaforos 4 inimigos invisiveis. Impelido por forgas opostas, ex- punha-se e acautelava-se, Sabia que aquela explosio era perigosa, temia que o soldado amarelo surgisse de Fepente, viesse plantar-lhe no pé a reiuna, O soldado amarelo, falto de substancia, ganhava fumaga na com- panhia dos parceiros. Era bom evité-lo, Mas a lembran- {6a dele tornava-se as vezos horrivel. E Fabiano estava tirando uma desforra. Estimulado pela cachaca, for- mas havia nele um resto de pru- talecia-se: — Gad@o valente? Quem 6 que tem coragem de dizer que eu sou feio? Aparega um homem, \ Langava o desafio numa fala atrapalhada, com o vago receio de ser ouvido. Ninguém apareceu. E Fabiano ron- 0u alto, geitou que eram todos uns frouxos, uns capa- dos, sim senhor. Depois de muitos berros, supds que havia ali perto homens escondidos, com medo dele. 78 caacnuns sAMOs + nOAS stcas Insultou-os = Cambada de. Parou agoniado, suando frio, a boca cheia de dgua, sem atinar com a palavra. Cambada de qué? Tinha o nome debaixo da lingua. E a lingua engrossava, petra, Babiano cuspia, fixava na mulher e nos filhos uns olhos. vidrados. Recuou alguns passos, entrou a engulhar. Em seguida aproximou-se novamente das luzes, capen- ‘sando, foi sentar-se na calgada de uma loja, Estava desa- nimado, bambo; o entusiasmo arrefecera. Cambada de qué? Repetia @ pergunta sem saber o que procurava. COlhou de perto a cara da mulher, do conseguiu dis- ‘inguir-lhe os tragos. Sinha Vitoria perceberia a atra- palhagdo dele? Havia ali outros matutos conversando, te Fabiano enjoou-os. Se nao estivesse to ansiado, ar- rotando, suando, brigaria com eles. A interrogagao que Ihe aperreava 0 espirito confuso juntou-se a ideia de que aquelas pessoas ndo tinham o direito de sentar-se nna calgada. Queria que o deixassem com a mulher, os filhos e a cachorrinha. Cambada de qué? Soltow um agrito dspero, bateu palmas: — Cambada de cachorros. Descoberta a expressio teimosa, alogrou-se. Cambada de cachorros, Evidentemente os matutos como ele nao passavam de cachorros. Procurou.com as maos a mulher © 0s filhos, cerlificou-se de que eles estavam acomoda- dos. Uma contragdo violenta no pescogo entortou-Ihe © rosto, a boca encheu-se novamente de saliva. Pés-se a cuspir. Serenou, respirou com forga, passou os dedos por ‘um fio de baba que Ihe pendia do beigo. Estava era tonto, 9 om uma zoada infllz:nos ouvidos. fa jurar que mostrara valentia @ coreera perigo. Achava ao mesmo tempo que hhavia cometido uma falta. Agora estava pesado e com sono, Enquanto ondara fazendo espalhalato, a cabeca cheia de aguardente, desprezara as esfoladuras dos pés. Mas asia- va, © as hotinas de vaqueta magoavam-no em demasia, Atrancou-as, trou as melas, libertou-se do colarinho, da sth ou-se no cimento, puxou para os olhios o chapéu de bata, Eaadormeceu, com o estémago embrulhado, Sinha Vit6ria achava-se em dificuldade: torcia-se para satisfazer uma precisdo e niio sabia como se desembata ‘sar, Podia esconder-se no funda do quadro, por detrés das, barracas, para li dos tamboretes das doceiras. Erguew-se sravata e do palet6, enrolou tudo, fez um travesseiro, ‘meio decidida, tornou a acocorar-se, Abandonar os meni ‘nos, 0 marido naquele estado? Apertou-se e abservou os Quatro cantos com desespero, que a pracisto era grande, Escopuliu-se disfargadamente, chegou a esquina da loja, onde havia um magote de mulheres agachadas. B, olhan- doas front ias das casas eas lanternas de papel, molhou © chao ¢ os pés das outras matutas, Arrastou-se para junto a familia trou do bolso o cachimbo de barro, atochou-o, ‘acendeu-o, largou algumas baloradas longas de satisfagao. Livre da necessidade, viu com interesse o formigueiro que Circulava na praga, a mesa do leild, a listas luminosas dos foguotes. Realmente a vida ndo era mé, Pensou com tum arrepio na seca, na viagem medonha que fizera em ccaminhos abrasados, vendo ossos e garranchos. Afastou a Jombranga ruim, atentou naquelas belezas. O burburinho {da multiddo era doce, o realejo fanhosa dos cavalinhos no BO cracuumo naMos + voAs seas ddescansava, Para a vida ser boa, sé fallava a sinha Vitéria uma cama igual & de sou Tomas da bolandeira. Suspirou, pensando na cama de varas em que dormia, Ficou ali de ‘e6coras, cachimbando, os olhos os auvidos muito aber- los para ndo perder a festa Os meninos trocavam impresses cochichando, afli- {os com o desaparecimento da cachorra, Puxaram a man- x9 da mde. Que fim teria lovado Baleia? Sinha Vitéria levantou 0 brago num gesto mole e indicou vagamente dois pontos cardeais com o canudo do cachimbo. Os pe- ‘quenos insistiram. Onde estaria a cachorrinha? Indiferen- tes a igroja, as lanternas de papel, aos bazares, as mesas de jogo e aos foguetes, s6 se importavam com as pernas {dos transeuntes. Coitadinha, andava por af perdida, aguen- lando pontapés. De repente Baleia apareceu. Trepou-se na calgada, ‘mergulhou entre as saias das mulheres, passou por cima {de Fabiano e chegou-se aos amigos, manifestando com 4 lingua ecom o rabo um vivo contentamento. O meni- xno mais velho agarrou-a. Estava segura. Tentaram expli= carclhe que tinham tido susto enorme por causa dela, ia & explicagao. Achava € que perdiam tempo num lugar esquisito, cheio de odo- res desconhecidos. Quis latir, expressar oposigdo a tudo aquilo, mas percebeu que niio convencerla ninguém e encolheu-se, baixou a cauda, rusignou-se ao capricho mas Baleia nao ligou importan dos seus donos. Acpinido dos meninos assemelhava-se dela, Agora olhavam as lojas, as toldas, a mesa do leila, E canfo- renciavam pasmados. Tinham percebido que havia mui- a tas pessoas no mundo. Ocupavam-se em descobrir uma ‘enorme quantidade de objetos. Comunicaram baixinho lum ao outro as surpresas que os enchiam, Impossivel imaginar tantas maravilhas juntas. 0 menino mais novo teve uma duvida e apresentou Seria que aquilo tinha sido feito por gente? O menino, ‘mais velho hesitou, espiou as lojas, as toldas ilumina- das, as mogas bem-vestidas. Encolheu os ombros. Tal- vez aquilo tivesse sido feito por gente, Nova dificuldade chegou-Ihe ao espirito, soprou-a no ouvido do irmao. Provavelmente aquelas coisas tinham nomes. O menino. ‘mais novo interrogou-o com os alos. Sim, com certe- 20 as preciosidades que se exibiam nos altares da igre= timidamente ao irmao, jae nas prateleiras das lojas tinham nomes. Puseram-so a discutira questao intricada. Como podiam os homens suardar tantas palavras? Era impossivel, ninguém con- servaria tao grande soma de conhecimentos. Livres dos noms, as coisas ficavam distantes, misteriosas. Nao tinham sido feitas por gente. E os individuos que me- xiam nelas cometiam imprudéncia, Vistas de longe, eram bonitas. Admirados e medrosos, falavam baixo para nao desencadear as forgas estranhas que elas porventura encerrassem. = Baleia cochilava, de quando em quando balangava @ ccaboga e franzia o focinho. A cidade se enchera de suo- res que a desconcertavam, Sinha Vitoria enxergava, através das barracas, 9 cama de sou Toms da bolandeira, uma cama de verdade. Febiano roncava de papo para cima, as abas do cha- 82 ceachuano mcs = vbw sas peu cobrindo-Ihe os olhos, o quengo sobre as botinas de voqueta. Sonhava, agoniado, e Baleia porcebia nele um ‘choito que o tornava irreconhecivel. Fabiano se agitava, soprando, Muitos soldados amarelos tinham aparecido, pisavam-the os ps com enormes reiunes e ameagavam- ‘no com facdes terriveis, “WAS Sas + oHMCAIANO Hato 83

Você também pode gostar