Você está na página 1de 9

SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001

FEMINIZAR É PRECISO
por uma cultura filógina

MARGARETH RAGO
Professora do Departamento de História da Unicamp.
Autora de Entre a história e a liberdade. Luce Fabbri e o anarquismo contemporâneo

Resumo: Este texto traz algumas reflexões sobre o lugar do feminino em nossa cultura, tomando como ponto
de partida a recorrente estigmatização da feminista como frustrada, assexuada e mal-amada. Pergunta pelas
reações misóginas que a luta pela emancipação das mulheres tem provocado ao longo de sua história e sugere
alternativamente a possibilidade da construção de uma cultura filógina.
Palavras-chaves: feminismo; poder; discurso médico; sexualidade; filoginia.

Ouso dizer que às vezes você se espanta com minha maneira Lágrimas! Mas por ventura chora uma feminista? Quan-
independente de andar pelo mundo como se a natureza me tivesse
do muito faz rir, quando passa pelas ruas a passo dobra-
feito de seu sexo, e não do da pobre Eva. Acredite em mim,
querido amigo, a mente não tem sexo, a não ser aquele do, consultando as horas como um homem, sem sorrir,
que o hábito e a educação lhe dão. porque já não tem sorriso sem faceirice, porque a fealda-
Frances Wright, feminista inglesa,
de das roupas lha veda, e sem o aprumo que devia dar-lhe
em 1822 (Gay, 1995:306) o sentimento da sua coragem e da sua dignidade, por que
sabe que estas coisas só merecem do vulgo o escárneo...”
m um conto intitulado “Jornal de uma feminista”,

E
(Dolores, 1934:123).1
publicado num livro bastante raro, intitulado Almas Embora construída por uma escritora bastante engajada
complexas, a escritora gaúcha Carmen Dolores nas questões da mulher, logo após a conquista do direito
(1934) delineia uma imagem triste e patética da feminista. de voto feminino, esta imagem reforça o estereótipo so-
Refere-se a uma professora que vive no limite de suas possi- cialmente difundido da feminista como uma figura
bilidades financeiras, ao lado da mãe viúva e dos irmãos dessexualizada, amargurada e sem perspectivas e, ao mes-
pequenos e que, certo dia, se vê absolutamente sem recursos mo tempo, contrasta com as representações veiculadas
para enfrentar o cotidiano. Sentada diante do espelho, en- pelas revistas feministas do período, ou com as informa-
quanto conversa consigo mesma, mal consegue suportar a ções referentes à vida cotidiana das escritoras, articulis-
própria imagem refletida. Sente-se um absoluto fracasso: os tas e ativistas políticas dos meios ricos e pobres, que se
seus esforços de melhoria vão sempre por água abaixo; suas colocavam em luta pela independência de seu gênero,
lutas são sempre inglórias. Pensa desolada: “Fito os olhos desde meados do século XIX, no Brasil.
no vidro sarapintado pelas falhas do aço, fui-me sentindo Foi esta, pois, a imagem da feminista que predominou
pouco a pouco penetrada de uma piedade intensa e doloro- na memória social sobre outras possíveis e, ainda hoje, as
sa, que me provocava a figura refletida nesse velho cristal; que lutam pela autonomia das mulheres continuam sendo
fiquei a olhá-la, como se não a conhecesse, assim, magra e desqualificadas por um estereótipo que vem de longa data,
abatida, com esse chapéu usado, essa jaquette surrada, cor- não apenas dos anos 70, definindo-as como machas, feias
rendo tão cedo à caça do pão – e de súbito um véu se inter- e mal-amadas. Do modernista Oswald de Andrade que ri-
pôs entre mim e a face murcha que eu contemplava, e esse diculariza as sufragettes inglesas como figuras que o as-
véu era feito de lágrimas... sustavam profundamente, nos anos 20, aos “rapazes” de

58
FEMINIZAR É PRECISO: POR UMA CULTURA FILÓGINA

esquerda do Pasquim, nos anos 70, investindo com unhas dessexualizadas, se na prática têm reivindicado uma maior
e dentes contra a estética de Betty Friedan, as feministas sexualização ou, em outros termos, o direito à própria
foram percebidas como mulheres feias, infelizes, sexual- sexualidade?
mente rejeitadas pelos homens e, convenhamos, não é Trata-se, sem dúvida, de uma disputa pelo controle do
muito raro ouvirmos outras mulheres reafirmando estes que significa ser mulher, mulheres e homens propondo
estigmas ainda hoje. 2 interpretações historicamente muito diferentes e opostas.
Deve-se perguntar, então, a que vem a perpetuação É óbvio que uma das questões centrais do feminismo, an-
desse estigma sobre mulheres que lutam e lutaram por tes e agora, tem sido a de propor a construção de identi-
outras mulheres, que se empenham pela melhoria da con- dades femininas sob outras bases e parâmetros conceituais.
dição feminina, que dão visibilidade a questões radical- Uma recusa, portanto, das formas de sujeição impostas
mente novas, que propõem outras alternativas para o pen- pelo olhar masculino, pela ciência, pela moral e pela cul-
samento e que, sem dúvida alguma, ajudam a construir tura masculinas, principalmente nas últimas décadas em
um mundo novo e muito mais saudável também para os que cresce a luta mais pela “desidentificação”, ou pela
homens? E mais, o que a utilização desse estigma nos in- possibilidade de construção de múltiplas subjetividades
forma sobre o lugar do feminino em nossa cultura e sobre pessoais, grupais, sexuais. 3
a relação que se mantém com o diferente? A reflexão so- É de se perguntar, portanto, a que vêm essas constru-
bre essas questões nos ajuda a perceber como a sociedade ções misóginas e por que foram e são amplamente acei-
reage ante a idéia de que as mulheres passem a se pensar tas? Como se explica que as feministas, que lutaram pela
com autonomia, como podendo figurar por conta própria redescoberta da sexualidade feminina, fossem tachadas de
na História, recusando-se a girar, como auxiliares ou som- dessexualizadas ou, no limite, de lésbicas? Será que essas
bras, em torno dos homens. imagens se ancoravam em amplas constatações empíricas,
A persistente associação da feminista com o lesbianis- isto é, eram todas as feministas virgens solteironas ou ho-
mo, a histeria, o “furor uterino”, a incapacidade de ser mossexuais? E, afinal, por que até mesmo as mulheres, nem
amada por um homem, repondo-se todas as misóginas todas evidentemente, mas sobretudo as das gerações mais
concepções vitorianas sobre a sexualidade feminina, mar- jovens não reconhecem o muito do que hoje se conquis-
cam profundamente a referência pela qual se lida com o tou, as enormes possibilidades econômicas, sociais, sexuais
fenômeno, ainda hoje. Essa questão adquire maior impor- e políticas abertas às mulheres, especialmente nas últimas
tância quando levamos em conta que o feminismo colo- três décadas, desde os direitos civis à revalorização do
cou como uma de suas principais bandeiras as “políticas corpo e à autonomia sexual, como um resultado das pres-
do corpo”, o direito ao próprio corpo, a reivindicação do sões e lutas colocadas historicamente pelo feminismo?
prazer sexual para as mulheres e que, aliás, progrediu nessa Como historiadora feminista, inquieta-me a maneira
direção. pela qual determinadas dimensões do passado são total-
As críticas às misóginas leituras médicas do corpo fe- mente esquecidas, tão logo seus questionamentos tenham
minino, que dessexualizaram e patologizaram cientifica- sido debatidos, avaliados e incorporados. Isso acontece
mente o corpo da mulher, foram manifestadas, embora por com alguns pensadores, que, de repente, somem do cená-
uma minoria, desde o século passado, ou seja, desde o rio intelectual e político, enquanto suas idéias, que num
momento mesmo em que estavam sendo formuladas e momento preciso relampejaram fulminantes, “sacudindo
divulgadas. A redescoberta do clitóris, no final dos anos as evidências”, como diz Michel Foucault, autonomizam-
60, foi inegavelmente uma conquista feminista, posterior- se e passam a ser repetidas localmente, como se nascidas
mente apropriada por revistas femininas de grande circu- naquele preciso instante ou, então, como se estivessem
lação no mercado, a exemplo da Nova, lançada em 1972, sempre existido lá. Um fenômeno de autonomização das
pela Editora Abril Cultural, ou a Veja, que dá visibilidade idéias, em que memória e história se descolam, em que
ao tema, em sua edição de maio de 2001. presente e passado se desconectam e se descontextualizam,
Hoje, as feministas colocam como uma das mais im- em que se borram, ou mesmo se perdem os movimentos
portantes bandeiras de luta a questão dos direitos de origem e as condições de possibilidade de determina-
reprodutivos, aí incluindo-se temas como maternidade, dos acontecimentos.
aborto, violência doméstica e saúde integral da mulher. Esse processo de eliminação da historicidade dos fe-
Por que, então, as feministas têm sido historicamente nômenos, ou de naturalização pode ser claramente per-

59
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001

cebido na relação estabelecida com vários movimentos diferenças biológicas; e no segundo caso, referência à luta
sociais, entre o feminista, o hippie e o anarquista, entre pelo direito à vida em igualdade de condições para os dois
outros, é claro. Como se se operasse um profundo corte sexos. Aceita-se, em geral, que as mulheres obtiveram
entre gerações imediatamente sucessivas, o que é propos- inúmeros espaços sociais antes inexistentes ou proibidos
to de maneira impactante e conflituosa por uma, é vivido para elas, que conquistaram muitos cargos importantes,
pelas seguintes com naturalidade, como ordem natural do que provocaram muitas mudanças nas relações de gêne-
mundo, esquecendo-se a dimensão da luta realizada para ro, mudanças que, por sua vez, afetaram a própria manei-
sua conquista e tachando-se o movimento originário de ra de ser homem e de pensar. Contudo, poucas vezes o
“derrotado”. feminismo é invocado como sendo o produtor principal
Nem se está referindo, nessa direção, aos mecanismos das mudanças positivas.
já tão discutidos de apropriação e neutralização das rei- Essas constatações têm levado a se tentar entender por
vindicações trabalhistas dos operários das primeiras dé- que à entrada maciça das mulheres na esfera pública, so-
cadas do século XX pelo governo Vargas, construído como bretudo nos últimos 30 anos, à decorrente “feminização
o grande “pai dos pobres”, após a destruição desses mes- da cultura”, isto é, à incorporação crescente de valores,
mos movimentos sociais. Penso mais especificamente nas idéias, formas, concepções especificamente femininos pelo
profundas críticas ao movimento hippie dos anos 60/70, mundo masculino, não correspondeu uma crescente valo-
visto como “alienado” pela esquerda marxista, radicalmen- rização do feminismo, tanto quanto uma incisiva adesão a
te condenado por ter sido absorvido pelo “sistema”. Não ele, seja se for considerado um conjunto de idéias que rei-
se observa, por conseguinte, o quanto a sociedade ganhou vindicam os direitos da mulher, seja como referência às
e cresceu ao incorporar vários valores, concepções, atitu- práticas e lutas que eclodiram e têm eclodido na sociedade.
des e práticas anticapitalistas, libertários e dionisíacos, Seria oportuno também refletir, mesmo que brevemente,
pregados por aqueles. O mesmo poderia ser dito em rela- sobre o tema da “feminização da cultura”, questionando
ção ao anarquismo, visto sempre como o “grande derrota- os motivos pelos quais freqüentemente suscita uma série
do da História”, por não haver proposto o partido políti- de objeções, pois não há consenso de que realmente exis-
co, como se afinal os que o propuseram tivessem tido tiu e existe. É de se perguntar, então, se ainda há dúvidas
melhor sorte, ou como se a sociedade hoje não fosse mui- sobre a transformação cultural provocada pela maior in-
to mais libertária, especialmente no sentido de questionar serção das mulheres no mundo contemporâneo. E se ain-
mais sofisticadamente os macro e micropoderes, as rela- da há quem pense que as mulheres se tornaram “homens”
ções de saber-poder, assim como os modos de sujeição, ao entrar no espaço masculino, esquecendo e abandonan-
inclusive aqueles impostos pelas organizações partidárias. do tudo aquilo que caracterizava sua condição de gênero.
Parte-se, evidentemente, do suposto que apesar dos É possível não perceber a “feminização cultural” contem-
enormes retrocessos e das profundas intolerâncias que porânea, isto é, a maneira pela qual temas, valores, ques-
atravessam nossos tempos, vivemos também um mundo tões, atitudes, comportamentos femininos foram incorpo-
muito mais libertário e feminista, questionado ininterrup- rados na modernidade? Por que, enfim, esse fenômeno não
tamente em todos os seus movimentos, seguramente há é percebido como um resultado extremamente positivo das
mais de 30 anos. pressões históricas do feminismo, num mundo em que
Em relação ao movimento feminista, não é raro ser todos reconhecem a falência dos modos cêntricos – falo-
considerado atualmente como “coisa do passado” por euro-etnocêntricos – de agir e pensar?
muitos que se consideram aliviados por seu final, apesar Não se pretende responder a todas essas questões, mas
das grandes conquistas femininas em curso e da enorme é importante enunciá-las e denunciar os mecanismos sutis
visibilidade – radiante e colorida –, é bom dizer, das mu- de desqualificação e de humilhação social que operam em
lheres em quase todas as profissões, na vida social, nas nossa cultura, em relação às mulheres e à cultura femini-
instituições, nos sindicatos, nas ruas, praças e nos bares na. Justamente por serem sofisticadas e imperceptíveis a
da cidade. Ninguém duvida de que o mundo se tornou mais um primeiro olhar, essas estratégias de aniquilamento ou
feminino e feminista, no Ocidente, entendendo no primeiro de neutralização das conquistas sexuais e de destruição
caso maior aceitação e reconhecimento da “cultura femi- dos movimentos e das atitudes contestadoras da ordem
nina”, de um “saber-fazer” específico das mulheres, mes- masculina estabelecida devem ser evidenciadas e enun-
mo que culturalmente determinado e não resultante de ciadas a cada instante.

60
FEMINIZAR É PRECISO: POR UMA CULTURA FILÓGINA

O MEDO DO FEMININO res e homens passavam a desfrutar de um convívio mais


E A REAÇÃO MISÓGINA intenso, desde o início do século XX, inúmeras vozes le-
vantaram-se amedrontadas, apontando para a “dissolu-
Deve-se descartar a primeira resposta, já bem conhe- ção dos costumes” e para o que supunham ser uma forma
cida, “À falocracia, as mulheres propõem a vaginocracia!”, de desagregação social. Os debates sobre a definição das
e perguntar pelo grande medo do feminino na cultura oci- esferas sexuais, a ameaça de perda de virilidade da civili-
dental, medo este historicizado por intelectuais do porte zação, o avanço dos valores femininos na cultura acirra-
de Jean Delumeau, Mario Praz e Mireille Dottin-Orsini ram as controvérsias entre os teóricos da Modernidade,
(1994; 1996; 1996). A punição das feiticeiras pela desde meados do século XIX.
Inquisição desde a Idade Média, a expropriação do saber Na belle époque vienense, por exemplo, ao lado de
das parteiras, desde o século XIX, pela medicina mascu- Wagner e Nietszche, Johann Jakob Bachofen, teórico de
lina, o alarde em torno da figura da “mulher fatal” des- grande penetração no Brasil e no mundo, autor de O
truidora da civilização no século XIX, como Salomé, ou matriarcado. Pesquisas acerca da ginecocracia de natu-
na representação de Marlene Dietrich, no filme O anjo reza reliogiosa e jurídica no mundo antigo, publicado em
azul, de 1930, concomitante à valorização da “rainha do 1861, atacava radicalmente a feminização da cultura em
lar”, a perseguição policial das prostitutas e não dos clien- curso e o “crepúsculo do patriarcado” (apud Le Rider,
tes são temas já bem explorados. Falemos, então, das 1992). Denunciava o amolecimento da raça, a degringo-
reações ao feminismo, por aí entendendo também o medo lação moral, a degenerescência racial, o retorno à cultura
provocado pela idéia da liberdade feminina.4 dionisíaca, visando valorizar o patriarcado como “a reali-
Esse movimento, ao lado da crescente entrada das mu- zação dos valores espirituais trazidos pelo cristianismo.”
lheres no mundo público, questionou categorias de signi- Segundo ele, “O progresso da sensualidade corresponde
ficação e explicação sociais amplamente aceitas, mostran- em toda parte à dissolução das organizações políticas e à
do sua dimensão falocêntrica, e provocou uma profunda decadência da vida pública. No lugar da rica diversidade,
desestabilização das referências sexuais e culturais ao longo impõe-se a lei da democracia, da massa indistinta e essa
do século XX, em várias partes do mundo. Nas quatro úl- liberdade, essa igualdade, que distinguem a vida de acor-
timas décadas, forçou a incorporação das reivindicações do com a natureza da sociedade civil organizada e que se
colocadas na agenda pública e obrigou a sociedade a per- ligam à parte corporal e material da natureza humana.”
ceber e discutir a “questão feminina”. Desestabilizou as (apud Le Rider, 1992:179).
tradicionais definições das identidades de gênero – que Otto Weininger, por sua vez, construiu uma teoria da
destinavam rigidamente o espaço público para os homens bissexualização da cultura, movimento que caracterizaria
e o privado para as mulheres –, revelando a hierarquiza- os novecentos como decadência estética e moral.
ção, as relações de poder e a misoginia nelas contida. “A extensão que de alguns anos para cá foi assumida
Assim, se de um lado abriu novas perspectivas para um tanto pelo dandismo quanto pelo homossexualismo não
amplo setor da humanidade, de outro suscitou profundas podem-se explicar senão por uma feminização geral. Não
angústias e medos em outros setores sociais. é sem motivo profundo que o gosto estético e sexual des-
Múltiplas reações se fizeram sentir aos avanços femi- te início de século busca seus modelos na arte dos pré-
ninos e às conquistas feministas, destacando-se a emer- rafaelitas.” (apud Le Rider, 1992:176).
gência dos debates sobre a divisão dos papéis sexuais, a Adolf Loos, em artigo sobre a “Moda Feminina”, pu-
preocupação com a definição dos códigos da feminilida- blicado em 1902, procurava explicar porque a mulher ti-
de e masculinidade, os direitos e deveres das mulheres, o nha mais necessidade de roupas do que o homem, nos se-
casamento e o adultério, o controle da prostituição, o pe- guintes termos:
rigo da homossexualidade e o próprio feminismo, ao lon- “Mas, a mulher nua é desprovida de charme para o
go do século passado. O clima foi descrito por Elaine homem. (...) Este é o motivo que obriga a solicitar a sen-
Showalter (1994) como sendo de “anarquia sexual”. Ante sualidade do homem através de sua vestimenta, de excitar
a liberalização dos costumes, a diversificação da vida so- nele uma sensualidade doentia que resulta unicamente do
cial e cultural, a emergência de novas práticas de lazer e espírito da época. (...) A roupa da mulher se distingue
de novos espaços de sociabilidade, como os bares, res- exteriormente pelos ornamentos e as cores. A mulher se
taurantes, cafés-concertos, teatros, cinemas, onde mulhe- atrasou em relação à evolução da indumentária. No pas-

61
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001

sado, o homem também usava vestimentas ricamente or- Participando mais intensamente do mundo masculino,
nadas. A evolução magnífica que nossa cultura conheceu as mulheres trariam uma colaboração muito enriquecedora,
durante este século teve o feliz efeito de ultrapassar o or- em função de sua formação e experiência singulares, des-
namento. Quanto mais baixo é o nível de uma cultura, mais conhecidas dos homens, desde que aceitas e reconheci-
o ornamento se manifesta nele com força.” (apud Le Rider, das. Assim, poderiam oferecer o complemento necessá-
1992:12). rio à cultura dominante, caracteristicamente masculina.
Esses autores, cujos livros se encontram com relativa Nesse sentido, propunha: “O verdadeiro problema cultu-
facilidade nas bibliotecas públicas brasileiras, tiveram uma ral que colocamos assim (produzirá a liberdade que as
ressonância bastante grande entre nossos pensadores e mulheres buscam novas qualidades culturais) só encon-
governantes, que buscavam nas fontes européias respos- trará resposta positiva mediante uma nova partilha das
tas para os problemas do país. Menos conhecidos entre profissões ou mediante uma nova modulação destas, fa-
nós foram aqueles que apresentaram questionamentos e zendo não que as mulheres se tornem cientistas ou técni-
respostas alternativas às questões de gênero, a exemplo cas, médicas ou artistas no sentido em que os homens o
da feminista Rosa Mayreder, ou do filósofo Georg Simmel, são, mas que realizem trabalhos que eles são incapazes
traduzido para o português apenas na década de 90. de realizar. Trata-se, em primeiro lugar, de estabelecer
Em seu ensaio de 1905, intitulado Crítica da feminili- uma outra divisão do trabalho, de redistribuir os traba-
dade, Mayreder trazia uma nova interpretação sobre as lhos globais de uma profissão dada, de reunir depois os
razões da emergência do feminismo. Constatava uma pro- elementos especificamente adaptados ao modo de traba-
funda crise da identidade masculina na modernidade e o lho feminino para constituir esses ofícios parciais, singu-
abandono por parte dos “guerreiros” dos espaços e mode- lares, diferenciados. Não se obteriam, assim, apenas um
los que tradicionalmente ocupavam. Isso sim estaria le- aperfeiçoamento e um enriquecimento extraordinários de
vando e até mesmo exigindo maior presença das mulhe- todo o setor de atividade envolvido, mas também se evi-
res na vida pública e social, considerava ela. A emergência taria em boa parte a concorrência dos homens.” (grifos
do feminismo seria, então, explicada menos como uma luta meus) (Simmel, 1993:74).
das mulheres pela liberdade, buscando destronar os ho- Simmel raciocinava em termos da complementaridade
mens, do que como resultado da feminização e de um cer- trazida pela experiência feminina, bastante diferenciada
to refinamento da cultura, que fizera com que a forma da masculina, tanto por questões culturais quanto natu-
masculina de vida se aproximasse da forma de vida das rais. O fato de desacreditarmos hoje da existência de uma
mulheres. Essas, aliás, passavam a ocupar os postos ou- suposta “natureza feminina” não invalida suas colocações,
trora dominados pelos homens, por uma necessidade vi- afinal as diferenças de gênero, construídas social e cultu-
tal e social, uma vez que eles haviam desertado de seus ralmente, marcaram profundamente a formação de nossa
postos. identidade ao longo do tempo, assim como a definição dos
“Já que os homens se tornaram mulheres, as mulheres espaços sociais femininos e masculinos. O filósofo defen-
não têm outra escolha senão ocupar o terreno por eles dia que a luta pela emancipação das mulheres, pela des-
desertado.”, afirmava ela (apud Le Rider, 1992:265). truição dos preconceitos sexistas, pela igualdade de di-
Georg Simmel, por sua vez, em um artigo de 1902, reitos entre os sexos traria grandes benefícios para a
apresentava uma posição menos polarizada e indagava humanidade, pois considerava a cultura masculina como
sobre a possível contribuição das mulheres ao participa- restrita, dura, objetiva e racional, ou seja, excludente de
rem de um mundo construído objetiva e racionalmente, outras importantes dimensões vitais da experiência huma-
segundo a visada masculina. Com um olhar profundamente na. A entrada das mulheres na vida pública e social pode-
perspicaz, analisava: “...essa cultura, que é a nossa, se ria, afirmava ele, transformar e enriquecer consideravel-
revela inteiramente masculina, com exceção de raros do- mente a maneira de viver, de pensar e de solucionar os
mínios. A indústria e a arte, o comércio e a ciência, a ad- problemas individuais e coletivos, inovando em relação
ministração civil e a religião foram criação do homem, e aos métodos utilizados e às técnicas produzidas. Num
não só apresentam um caráter objetivamente masculino, pensamento bastante avançado, pensava muito mais em
como, ademais, requerem, para a sua efetuação repetida termos da interação de duas culturas sexualmente deter-
sem cessar, forças especificamente masculinas” (Simmel, minadas, do que na substituição de uma pela outra. As-
1993:74). sim, na medicina, dizia ele, as mulheres dariam uma enor-

62
FEMINIZAR É PRECISO: POR UMA CULTURA FILÓGINA

me contribuição, pois tendo um aprendizado diferente de ga organização familiar e as definições tanto da feminili-
lidar com o corpo e com as emoções, poderiam perceber dade quanto da masculinidade. Muitos reagiam inquietos
melhor e mais detidamente o próprio doente. à emergência das reivindicações feministas, à moderniza-
“Os métodos de exame clínico tidos como objetivos ção dos costumes, ao surgimento de novas formas de so-
logo se esgotam, se não forem completados por um co- ciabilidade, ao crescimento das práticas de lazer, dos pas-
nhecimento subjetivo do estado do doente e de seus senti- seios nas ruas aos novos ritmos musicais e às novidades
mentos, seja esse conhecimento imediatamente instintivo, da moda.
seja mediatizado por manifestações quaisquer. (...) é por Os médicos tiveram um papel bastante grande na rede-
isso que estou persuadido de que, confrontada a mulhe- finição dos códigos da sexualidade feminina, ao buscar
res, uma médica, além de ter o diagnóstico mais exato e o na própria anatomia do corpo da mulher os limites físi-
pressentimento mais fino para tratar dos casos individuais cos, intelectuais e morais à sua integração na esfera pú-
de maneira conveniente, ainda poderia, sob o ângulo pu- blica. Esforçaram-se para definir a especificidade do cor-
ramente científico, descobrir conexões típicas, não detec- po feminino em relação ao masculino, acentuando seus
táveis por um médico, e dar com isso contribuições espe- principais traços: fraqueza e predestinação à maternida-
cíficas à cultura objetiva; porque as mulheres possuem, de. Para o importante dr. Roussel, médico iluminista fran-
com sua constituição idêntica, uma ferramenta de conhe- cês, cujas teorias tiveram ampla repercussão no mundo
cimento recusada aos homens.” (Simmel, 1993:76). ocidental, na mulher “os ossos são menores e menos du-
Na mesma direção, a anarquista italiana Luce Fabbri, ros, a caixa toráxica é mais estreita; a bacia mais larga
desde os anos 30, acreditou que as mulheres podiam dar impõe aos fêmures uma obliqüidade que atrapalha o an-
uma contribuição especial à cultura dominante, justamente dar, pois os joelhos se tocam, as ancas balançam para en-
por não terem tido a experiência de guerra dos homens, contrar o centro de gravidade, o andar é vacilante e inse-
por não terem participado dos governos, dos exércitos, da guro, a corrida rápida é impossível às mulheres”, explica
polícia e por terem desenvolvido uma cultura salutar, li- Knibiehler (1983:90).
gada aos cuidados com a vida, com a organização domés- Ademais, os doutores conseguiram ampla penetração
tica e com a sobrevivência das crianças e velhos. Numa social, como inúmeros estudos mostram, interferindo in-
entrevista realizada em 1996, afirmou: “...as mulheres têm cisivamente na constituição do imaginário social e sexual,
algo de seu para dar, algo de gênero, uma experiência única sobretudo por apresentarem-se como portadores do dis-
de uma economia não competitiva: a economia domésti- curso científico legítimo, produtor da verdade e das solu-
ca, em que as crianças têm precedência, em que os velhos ções aos problemas da doença e da morte. 6
estão assistidos porque são velhos, em que cada qual dá o Nesse sentido, o saber médico informou uma série de
que pode e consome o que necessita, isto é a economia práticas autoritárias e misóginas, que permitiram justifi-
doméstica. 5 car objetivamente a exclusão das mulheres de inúmeras
No Brasil, infelizmente, as pesquisas históricas refe- atividades políticas, econômicas e sociais, para não di-
rentes aos discursos científicos e políticos predominantes zer das sexuais, estigmatizando aquelas que, como as
até os anos 60, masculinos, é claro, permitem perceber feministas, se colocaram na contramão. Ao mesmo tem-
muito menos os ecos dessas concepções filóginas, na po, propôs alternativas para um reajustamento das re-
problematização das relações entre os gêneros, do que a lações de gênero, mantendo inalteradas as formas da
acentuação dos discursos misóginos, produzidos e repro- dominação masculina. Segundo a “brasilianista” Susan
duzidos no contexto das discussões sobre os rumos de Besse (1996), as relações sexuais foram modernizadas, nas
construção da nação e a formação do povo. décadas iniciais do século, tendo em vista atender às ne-
Principalmente a partir da instalação da República, do cessidades masculinas, mas não acabar com as desigual-
início da industrialização, da imigração européia maciça dades de gênero.
e da modernização das cidades, desde o final do século Contudo, o medo e à aversão ao feminino, visto como
XIX, a maioria dos médicos, juristas, políticos, escrito- o grande desconhecido, não impediu a própria trans-
res, jornalistas e ativistas políticos, reagiu muito mais formação da vida social e das formas culturais ao lon-
negativamente às transformações que desestabilizavam as go de todo o século XX, principalmente em função da
relações entre mulheres e homens. Para eles, a desestabi- crescente entrada das mulheres no mundo público, a
lização das antigas fronteiras de gênero destruiria a anti- partir dos anos 70.

63
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001

DA FEMINIZAÇÃO CULTURAL tiva ao assumir como ponto de partida de suas análises o


direito dos grupos marginalizados de falar e representar-
A maneira pela qual a valorização da cultura feminina se nos domínios políticos e intelectuais que normalmente
tem afetado nosso mundo é perceptível em vários momen- os excluem, usurpam suas funções de significação e re-
tos, dos quais seria importante apenas sugerir alguns bre- presentação e falseiam suas realidades históricas”
ves exemplos no âmbito da ciência, da política e da se- (Holanda, 1994:8).
xualidade. Buscando a construção de um novo conceito de cida-
Em relação à produção do conhecimento, sem dúvida dania, Sonia Alvarez mostrou como a atuação das mulhe-
alguma a constituição de uma área de “estudos feminis- res e sua interferência na esfera pública burguesa, no Brasil
tas” em quase todas as universidades do mundo ocidental das últimas décadas, forçou a incorporação de suas de-
permitiu inovar profundamente não apenas no reconhe- mandas, levando a que se ampliasse seu espaço de repre-
cimento da participação das mulheres nos processos sentação. As mulheres passaram a participar de todos os
históricos, mas na crítica à própria narrativa histórica, campos social e político: suas demandas foram levadas
vista agora como produção sexuada ou “generificada” aos partidos políticos, às centrais de trabalhadores, aos
(gendered).7 Da inclusão das mulheres nos acontecimen- sindicatos, aos coletivos e criaram-se instituições especi-
tos políticos e sociais, passou-se a perceber as dimensões ficamente voltadas para a questão feminina (Alvarez, 1990;
femininas da vida humana, antes excluídas do discurso Alvarez e Escobar, 1992). Evidentemente, são muitos os
histórico, a exemplo da história da vida privada, da histó- problemas que emergem a partir de então, mas, sem dúvi-
ria das sensibilidades, das emoções, dos sentimentos, e da alguma, a visibilidade que a “questão feminina” ganha
de outras dimensões consideradas femininas em nossa não deixa de ser um ponto de partida fundamental para
cultura (Rago, 1996). E daí perceberam-se praticamente qualquer negociação possível.
as limitações dos conceitos masculinos, inscritos na lógi- Segundo outra feminista, Eleonora Menicucci de Oli-
ca da identidade, para representar o “irrepresentável” e, veira (1990), as mulheres politizaram praticamente o pri-
nesse caso, para dar conta das experiências e práticas fe- vado, desfazendo as tradicionais barreiras que opõem o
mininas, ou de outros grupos sexuais. público-masculino ao privado-feminino. Ao trazerem as
A epistemologia feminista, como mostra Sandra questões privadas para o espaço público, ao assumirem a
Harding (1996:13), apontou para a necessidade da des- discussão pública de sua sexualidade, entre os anos 70 e
centralização do foco da atenção da masculinidade no in- 80, forçaram sua incorporação e produziram uma profun-
terior do pensamento e nas práticas sociais: o masculino, da transformação naquilo que era considerado os direitos
embora instituído culturalmente, deveria deixar de ser o de cidadania. Nesse sentido, a sexualidade, antes silenciada
único padrão existente para o assim chamado ser huma- e considerada questão de pouca importância política e
no, uma vez que os homens não são os únicos habitantes social, foi trazida para o cenário político, levando a uma
humanos do planeta. Centrar a atenção exclusivamente nas discussão sobre os pressupostos hierárquicos que regem
necessidades masculinas, nos seus interesses, desejos, nossas representações sexuais e nossas definições do líci-
concepções, garante apenas uma compreensão distorcida to e do ilícito para toda a sociedade.
e parcial das práticas sociais. É preciso levar em conta a tradição política autoritária
Na área da política, o feminismo questionou, de ma- e clientelista de nosso país, onde nunca se formou uma
neira diferenciada nos seus dois momentos expressivos – clara noção de esfera pública moderna e de direitos do
os anos 20/30 e os anos 60/80 do século passado –, os cidadão. Aqui, as mulheres sempre foram vistas como
conceitos básicos que sustentam os princípios liberais, muito mais irracionais do que os homens pobres, porque
como o universalismo, a idéia de liberdade e igualdade, foram consideradas como muito mais sensuais e sexuali-
originados a partir do contrato social, denunciando que zadas do que as dos países de tradição puritana. Discutir
este sempre foi formado a partir da exclusão de muitos e a sexualidade no Brasil é, então, de extrema importância,
que, portanto, a constituição de uma esfera pública autô- pois com base no argumento da “sensualidade tropical”,
noma só seria possível pela perspectiva da diferença e não característica fundamental das mulheres, das índias nuas
da igualdade. Várias autoras observaram que “os estudos às mulatas carnavalescas de Sargentelli, justificou-se a
feministas, assim como os estudos étnicos ou antiimpe- dominação masculina e patriarcal e sua exclusão do mun-
rialistas, promovem um deslocamento radical de perspec- do dos negócios e da política (Parker, 1993). Lembre-se

64
FEMINIZAR É PRECISO: POR UMA CULTURA FILÓGINA

que, poucas décadas atrás, “mulher pública” evocava a ticas sociais, inclusive dentro de si mesmo. Afinal, hoje
prostituta e não uma figura que participava do mundo da as feministas dificilmente aceitariam falar em nome de um
política, e que as prostitutas, no passado, também não único feminismo, pluralizando, portanto, suas definições
haviam ainda criado seus movimentos de luta pela cida- e campos de atuação.
dania, como o que surge a partir de 1987, nem sugerido a
figura da “trabalhadora do sexo” como alternativa políti- POR UM MUNDO FILÓGINO
ca para sua identidade.
O feminismo veio questionar essa leitura hierarquiza- Retomando a pergunta inicial: como se explica, então,
dora e excludente da política, informada pelo discurso a atitude antifeminista socialmente difundida e incorpo-
médico masculino, que justificava com base em argumen- rada, mesmo por aquelas que usufruem das conquistas
tos científicos a incapacidade física e moral das mulheres feministas que levaram muitas décadas para se concre-
para a condução dos negócios da cidade. Mostrou como tizar? Certamente, o mecanismo de naturalização e de
se opera a exclusão social das mulheres do mundo públi- cristalização das práticas sociais, que implica sua des-
co, assim como o silenciamento e a desqualificação de seus historicização, é fundamental na configuração do imagi-
temas e questões. Lutou e luta para que as mulheres se nário misógino. De outro modo, como entender esse grande
reconheçam como sujeitos políticos, cidadãs com deve- paradoxo que não permite atar nenhum fio com a tradição
res e direitos a serem reconhecidos e criados. Tem amplia- feminista que herdamos, fazendo supor que um dia o mun-
do, portanto, o conceito de cidadania, propondo uma nova do mudou, as portas se abriram para as mulheres e ponto
concepção da prática política, que se manifesta não ape- final? Como entender que as mulheres independentes do
nas nos espaços permitidos e institucionalizados da polí- nosso mundo, sobretudo as jovens, as mais livres, não se
tica, mas na própria vida cotidiana. identifiquem ou não se sintam em nada devedoras em re-
Contudo, é importante remontar ao passado e perceber lação àquelas que lutaram, ou lutam pela abertura do campo
como essa tradição de pensamento se constituiu histori- de possibilidades de que desfrutam na atualidade, senão
camente, onde e quando as primeiras feministas enuncia- por um mecanismo perverso que faz com que tomem como
ram seus temas, revelando a especificidade da condição origem o que não deixa de ser efeito produzido cultural e
feminina; onde e quando falaram publicamente sobre a socialmente?
questão da sexualidade, abrindo espaço para sua interfe- Uma mudança de olhar, um pensamento diferencial
rência no público; onde e quando se manifestaram em prol poderia dar conta de permitir uma maior sensibilidade em
da emancipação feminina e foram silenciadas e excluídas. relação ao feminino e à construção de um mundo filógino.
Se essa crítica foi amplamente formulada nas últimas dé- Ou será uma questão de coração, mais do que de olhar?
cadas do século XX pelo movimento feminista, vale lem-
brar que foi colocada no próprio movimento de constitui- Filoginia, do grego philos, amigo + gyne, mulher – amor
ção da esfera pública, no final do século XIX, e que o às mulheres – antônino Misoginia, aversão às mulheres
silenciamento deste fato pela memória histórica masculi- (Grande Dicionário Larousse, 1999:432).
na estabelece mais um elemento da exclusão das mulhe-
res do direito de viver com dignidade.
Finalmente, para além do questionamento da política e NOTAS

das restrições da cidadania, o feminismo expandiu sua 1. Sobre as escritoras brasileiras, veja-se o belo estudo de Norma Telles (1986).
crítica para as bases de constituição da racionalidade que 2. Oswald de Andrade: “Em Londres, fui encontrar vivas nas ruas duas novida-
norteia as práticas sociais e sexuais. Estendeu a crítica às des – o assalariado e a sufragete. Esta era representada por mulheres secas e machas
que se manifestavam como se manifestava o operário. Ordenadamente, às vistas
próprias formas da cultura, revelando como a dominação da polícia, mas protestando contra um estado de coisas de que minha ignorância
se constitui muito mais sofisticadamente nas próprias for- mal suspeitava.” (1959:69).
3. Veja-se a respeito Costa (1996).
mas culturais que instituem uma leitura da política e da
4. Dois importantes trabalhos sobre a história do feminismo no Brasil são: Famí-
vida em sociedade, convergindo com outras correntes do lia e feminismo: reflexões sobre os papéis femininos na imprensa para mulheres
pensamento pós-moderno, como “o pensamento da dife- (Moraes, 1981) e Feminismo e autoritarismo: a metamorfose de uma utopia de
liberação em ideologia liberalizante (Golberg, 1987).
rença”.8 Nesse sentido, longe de pretender destronar o “rei”
5. Veja-se a respeito Margareth Rago (2001:315).
para colocar em seu lugar uma “rainha”, o feminismo pro- 6. Vejam-se por ex. Meretrizes e doutores (Engel, 1989); e Os prazeres da noite.
põe a destruição da monarquia no pensamento e nas prá- Prostituição e Códigos da Sexualidade Feminina em São Paulo (Rago, 1991).

65
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001

7. Como a bibliografia na área é vastíssima, indicam-se apenas alguns trabalhos GAY, P. A experiência burguesa da Rainha Vitoria a Freud. São Paulo, Com-
muito conhecidos: Gender and the politics of history (Scott, 1988); Gender trouble. panhia das Letras, 1995, v.3: O cultivo do ódio.
Feminism and the subversion of identity e Bodies that matter (Butler, 1991 e GRANDE DICIONÁRIO LAROUSSE CULTURAL DA LÍNGUA PORTU-
1993); Feminismo como crítica da modernidade (Benhabib, 1991); Poética do GUESA. São Paulo, 1999.
pós-modernismo (Hutcheon, 1991); Pós-modernismo e política (Holanda, 1991);
Uma questão de gênero (Bruschini e Oliveira, 1990). GOLDBERG, A. Feminismo e autoritarismo: a metamorfose de uma utopia de
liberação em ideologia liberalizante. Dissertação de Mestrado. Rio de Ja-
8. Susan Bordo (2000) levanta instigantes questões a respeito dessa aproxima- neiro, UFRJ, 1987.
ção, perguntando-se pelos motivos que levam à grande visibilidade dos “filóso-
fos da diferença” em contraste com a invisibilidade das teóricas feministas. HARDING, S. Whose science? Whose knowledge? Thinking from women´s lives.
Nova York, Cornell University Press, 1996.
HOLANDA, H.B. Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro, Rocco, 1991.
_________ . Tendências e impasses. O feminismo como crítica da cultura. Rio
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS de Janeiro, Rocco, 1994.
HUTCHEON, L. Poética do pós-modernismo. Rio de Janeiro, Imago, 1991.
ALVAREZ, S. Engendering democracy in Brazil: women’s movement in transition KNIBIEHLER, Y. e FOUQUET, C. La femmes et les medecins. Paris, Hachette,
politics. Princeton, N.J., Princeton University Press, 1990. 1983.
ALVAREZ, S. e ESCOBAR, A. The making of social moviments in latin america: LE RIDER, J. A modernidade vienense e as crises de identidade. Rio de Janeiro,
Identity, strategy and democracy. Boulder, Westview Press, 1992. Civilização Brasileira, 1992.
ANDRADE, O. de. Um homem sem profissão. Sob as ordens de mamãe. Rio de MORAES, M.L.Q. de. Família e feminismo: reflexões sobre os papéis femini-
Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1959. nos na imprensa para mulheres. Tese de Doutorado. São Paulo, FFLCH/
BENHABIB, S. Feminismo como crítica da modernidade. Rio de Janeiro, Rosa USP, 1981.
dos Tempos, 1991. OLIVEIRA, E.M. de . A reapropriação do corpo feminino: da recusa do
BESSE, S. Restructuring patriarchy. The modernization of gender inequality in confinamento doméstico à invenção de novos espaços de cidadania . São
Brazil, 1914-1940. The University of North Carolina Press, 1996. Paulo, Departamento de Ciência Política da USP, 1990.
BORDO, S. “A feminista como o outro”. Revista Estudos Feministas. Centro de PARKER, R. Corpos, prazeres e paixões. A cultura sexual no Brasil contempo-
Filosofia e Ciências Humanas da UFSC, v.8, n.1, 2000, p.10-29. râneo. São Paulo, Ed. Bestseller, 1993.
BRUSCHINI, C. e OLIVEIRA, A. Uma questão de gênero. Rio de Janeiro/São PRAZ, M. A carne, a morte e o diabo na literatura romântica. Campinas, Ed. da
Paulo, Ciec/Carlos Chagas, 1990. Unicamp, 1996.
BUTLER, J. Gender trouble. Feminism and the subversion of identity. Nova York, RAGO, M. Os prazeres da noite. Prostituição e códigos da sexualidade femini-
Routledge, 1991. na em São Paulo . Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1991.

_________ . Bodies that matter. Nova York, Routledge, 1993. _________ . “Epistemologia feminista, história e gênero”. In: GROSSI, M. e
PEDRO, J. Masculino, feminino, plural. Florianópolis, Ed. das Mulheres,
COSTA, C.L. “Sujeitos ex/cêntricos: explorando as fronteiras das teorias femi- 1996.
nistas”. Fazendo gênero. Revista da Pós-Graduação em Letras da UFSC,
_________ . Entre a história e a liberdade. Luce Fabbri e o anarquismo con-
1996. temporâneo. São Paulo, Ed. da Unesp, 2001.
DELUMEAU, J. História do medo no ocidente. São Paulo, Companhia das Le- SCOTT, J. Gender and the politics of history. Nova York, Columbia University
tras, 1994. Press, 1988.
DOLORES, C. Almas complexas. Rio de Janeiro, Editor Calvino Filho, 1934. SHOWALTER, E. Anarquia sexual. Rio de Janeiro, Rocco, 1994.
DOTTIN-ORSINI, M. A mulher que eles chamam fatal. Rio de Janeiro, Rocco, SIMMEL, G. Filosofia do amor. São Paulo, Martins Fontes, 1993.
1996.
TELLES, N. Encantações. Escritoras e imaginação literária no século XIX. Tese
ENGEL, M. Meretrizes e doutores. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1989. de Doutorado, São Paulo, PUC-SP, 1986.

66

Você também pode gostar