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A BATALHA DA BORRACHA:

PROPAGANDA POLÍTICA E MIGRAÇÃO NORDESTINA


PARA A AMAZÔNIA DURANTE O ESTADO NOVO
Isabel Cristina Martins Guillen
Fundação Joaquim Nabuco

RESUMO
Ao promoverem a migração para a Amazônia, no contexto dos Acordos de Washington e da “Batalha da
Borracha ”, as autoridades governamentais do Estado Novo elaboraram um discurso em que acenavam com
um futuro promissor. Tal discurso, que norteava a propaganda política da região, apagava as contingências
e descontinuidades do programa de soerguimento econômico da Amazônia e da própria migração, colocando
a todos uma grande missão: integrar a Amazônia ao corpo da Nação.
PALAVRAS-CHAVE: Estado Novo (1937-1945); “Batalha da Borracha”; propaganda política: migração
nordestina.

I. INTRODUÇÃO destinos se dispuseram (ou foram dispostos) a


O presente trabalho busca discutir a migração enfrentar a batalha da produção. Esses trabalha­
de trabalhadores nordestinos para a Amazônia dores acreditaram que conseguiriam refazer suas
durante o Estado Novo (1937-1945), quando se vidas em bases mais seguras, uma vez que, além
promoveu a “Batalha da Borracha”. Organizada de arcar com os custos financeiros da viagem para
como uma campanha nacional, ela foi o resultado a Amazônia, o Estado prometia encetar novos
de uma série de acordos firmados com os Estados planos de colonização da região.
Unidos (os Acordos de Washington) que obje­ E importante compreender que a Amazônia era
tivavam aumentar a produção de matérias- primas apreendida por um imaginário constituído de
estratégicas para o esforço de guerra (MARTI- elementos contraditórios, onde sobressaía a
NELLO, 1988). imagem de uma floresta verde e pujante, misto de
Firmados em março de 1942, os Acordos de Éden e Inferno Verde1. Para o migrante nordestino,
Washington previam ajuda técnica e financeira dos a Amazônia era marcada por dois elementos que,
Estados Unidos ao Brasil durante a Segunda ao contrário da escassez nordestina, havia em
Guerra Mundial (1939-1945). Em troca de uma fartura: água e terra. Por outro lado, devemos
série de matérias-primas estratégicas, tais como a considerar a tradição de migração para a Amazônia,
borracha e alguns minerais, os Estados Unidos principalmente no Ceará, sempre que a seca asso­
forneceriam ao Brasil material bélico, financia­ lava os sertões nordestinos.
mento para programas de saneamentos (Vale do Grande parte da migração para a Amazônia
Rio Doce e Amazônia) e abastecimento alimentar, ocorreu durante o último terço do século dezenove
dentre outros. Uma série de campanhas cívicas e princípio do vinte, quando a economia extrativa
foram desenvolvidas, dentre as quais a “Batalha da borracha facilitou a arregimentação de tra­
da Borracha”. Todos deviam se concentrar no es­ balhadores pelos sertões do Ceará. Não é uma
forço de guerra, e essas campanhas deveriam coincidência que na literatura seja recorrente a
“conscientizar e mobilizar a sociedade brasileira figura do “paroara”: aquele sujeito que migrou e
para o conflito” (GOMES, 1996: 130). voltou para o Ceará alguns anos depois, muito rico,
Respondendo ao apelo da propaganda, aos 1 Esse imaginário pode ser exemplificado pelas obras
incentivos governamentais e, em decorrência da de Euclides da Cunha e Alberto Rangel. Ver GONDIM,
seca de 1942, cerca de 50 mil trabalhadores nor­ 1994.

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a esbanjar dinheiro e cantar as maravilhas da explícito de controlar o poder dos coronéis. Evi­
Amazônia. É uma figura central no imaginário dentemente, sabemos que, no plano substantivo,
nordestino quando se trata da migração para os a tensão social no campo era decorrente da con­
seringais. centração da terra e das relações sociais que pri­
Por outro lado, é preciso considerar que a mavam por sistemas coercitivos de trabalho, como
mesma tradição dava ao migrante conhecimento o conhecido esquema de endividamento do tra­
mínimo sobre a vida num seringal do Acre, seja balhador ao barracão da usina de açúcar — me­
por ter algum parente que tivesse ido para os canismo semelhante ao utilizado nos seringais da
seringais, por ter ouvido alguns cantadores nas Amazônia no início do século.
feiras, ou mesmo nas conversas corriqueiras. Dessa forma, entendemos a política de mi­
Além da figura do “paroara”, o imaginário do gração de nordestinos para a Amazônia como uma
migrante também era composto por figuras um estratégia política para aliviar as tensões sociais
pouco mais tenebrosas, da selva, das relações no campo, simplesmente deslocando o problema
sociais dominantes nos seringais e, principalmente, para outro lugar, onde os conflitos poderiam ser
das condições sanitárias da região. abafados mais facilmente. Os incentivos para a
Ao elaborarem um discurso que justificava as migração começaram já em 1940, anteriores, por­
políticas públicas levadas a efeito na Amazônia, tanto, aos Acordos de Washington, na forma de
durante o período da Segunda Guerra Mundial, distribuição de passagens gratuitas para quem se
os ideólogos do Estado Novo buscaram conferir dispusesse a migrar para a Amazônia. Ao mesmo
um sentido menos conjuntural aos seus projetos. tempo, resolvia-se em parte, e de forma bastante
Visavam apresentar tais medidas como um feito tradicional, o problema da seca que novamente
que redimiria a Amazônia do descaso governa­ grassava pelo sertão do Nordeste. Por outro lado,
mental que a região vinha sofrendo desde a deca­ supria-se de mão-de-obra barata um setor da
dência da borracha. Ao mesmo tempo, apresen­ economia que estava em crise.
tavam a campanha como uma solução para a ques­ Objetivava-se, pelos Acordos de Washington,
tão dos camponeses nordestinos, que além de intensificar a produção de borracha, a ponto de
ganharem dinheiro, teriam facilidade para conseguir suprir a necessidade bélica dos aliados, compro­
terras. Para tanto, lançaram mão, discursivamente, metida com o domínio do Japão sobre as regiões
da “Marcha para o Oeste”, e a “Batalha da Borra­ produtoras na Malásia. Pensava-se poder incre­
cha” passou a fazer parte da campanha bandeirante mentar a produção para chegar a cem mil tone­
que visava integrar os sertões ao corpo da Nação2. ladas, pretensão que logo se percebeu impossível
Para o Estado Novo, o Brasil ainda não estava de ser concretizada, devido principalmente ao pou­
geograficamente integrado. Urgia ocupar o sertão; co interesse dos seringalistas em abrir mão do
daí as campanhas da “Marcha para o Oeste” e da controle sobre o sistema extrativista.
colonização da Amazônia. Ao alardear a fartura Mas os recursos financeiros, colocados à dis­
de terras sem donos, o regime atraía muitos mi­ posição pelos Estados Unidos para a campanha
grantes que esperavam encontrar a terra e a liber­ da borracha, visavam principalmente aumentar a
dade de nela reconstruir suas vidas, tal como vinha produção de forma extensiva, reincorporando os
acontecendo desde os anos áureos da borracha. seringais abandonados desde o final do boom da
Por outro lado, a questão social no campo as­ borracha. Para tanto seria necessário aumentar a
sumia, durante esse período, conotações explo­ mão-de-obra, via migração3. Assim, montou-se
sivas. Especialmente para o Nordeste, o Estado pelo Nordeste e pela Amazônia uma rede de airegi-
Novo delineou algumas medidas saneadoras, pro­ mentação de trabalhadores que se dispusessem a
movendo um cerco ao banditismo, principalmente ir para os seringais, com a construção de hos-
aos grupos de cangaceiros, bem como uma campa­
nha de desarmamento do sertão, com o objetivo 3 Os Estados Unidos, que tiveram participação ativa
na Batalha da Borracha, não só forneceram recursos
financeiros, mas também montaram e participaram de
2 Para uma análise da “Marcha para o Oeste” ver LE- uma série de organizações destinadas a sustentar a
NHARO, 1986 e RICARDO, 1970. Para a questão da campanha, como o Serviço Especial de Saúde Pública
propaganda política durante o Estado Novo ver (SESP) e a Rubber Development Corporation (RDC).
GOULART, 1990 e SOUZA, 1990. Ver CORRÊA, 1967.
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pedarias com serviços médicos. Fabricou-se tam­ Segundo Lenharo (1985), “a razão da fome,
bém, na Amazônia, um sistema de abastecimentos da seca, do sofrimento cede lugar à dimensão mí­
(papel que coube à Rubber Development Corpo­ tica de uma participação que se toma impositiva,
ration, pela facilidade de importação dos Estados em face do curso de uma tradição que converte a
Unidos) e uma rede de transporte para levar os migração e a conquista numa obrigação patriótica
nordestinos migrantes para os seringais. Além de a ser sempre reposta. [...] Da seca à conquista, o
todo esse aparato, elaborou-se uma propaganda discurso esvazia o primeiro pólo, pelo qual deveria
em que se prometia ao migrante amparo estatal, dar conta de suas responsabilidades e acentua o
através da assinatura de um contrato de trabalho outro, o da participação obrigatória, miticamente
que, em linhas gerais, atacava o sistema de avia­ formulada, a impulsionar o trabalhador, somente
mento, responsável pela escravidão do seringueiro pelo trabalho, a tomar o seu lugar, intocável, de
ao barracão, e um auxílio monetário para a família edificar do corpo do país” (LENHARO, 1985:98).
que ficava, além de dispensar todas as despesas II. SOLDADOS DA BORRACHA: PROPAGAN­
com a viagem. DA POLÍTICA E MIGRAÇÃO
A elite amazônica que controlava a produção e Como se disse, a assinatura dos Acordos de
comercialização da borracha, no entanto, não Washington desencadeou uma propaganda maciça
aderiu de pronto à campanha, apesar do incentivo em torno da migração para a Amazônia e da
à produção por preços mais altos do que os produção da borracha. Os migrantes que se
praticados no mercado internacional. A resistência engajaram na campanha ficaram conhecidos como
maior se voltava contra a regulação do Estado, “soldados da borracha” e ganharam status de
através do Banco de Crédito da Borracha e da Rub­ combatentes de guerra.
ber Development Corporation, que controlavam,
respectivamente, a comercialização da borracha e Visando controlar a produção e racionalizar a
o abastecimento dos seringais, alijando as casas migração, o governo federal criou uma série de
comerciais do lucrativo sistema de aviamento. instituições e organizações, dentre as quais se des­
Quanto aos migrantes nordestinos, a preocu­ tacaram o Banco de Crédito da Borracha (BCB),
pação maior era mascarar as reais condições de o Serviço Especial de Saúde Pública (SESP), o
vida nos seringais e continuar a atrair novos con­ Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores
tingentes de trabalhadores, uma vez que a escassez (SEMTA) e, mais tarde, a Comissão Administrativa
de mão-de-obra tomava-se flagrante devido à alta de Encaminhamento de Trabalhadores (CAETA),
mortalidade e às constantes fugas. Por outro lado, o Instituto Agronômico do Norte, a Superinten­
a única possibilidade de aumentar a produção, man­ dência do Abastecimento do Vale Amazônico
tido o sistema extrativista — uma vez que os serin­ (SAVA) e o Serviço de Navegação da Amazônia e
gais encontravam-se abandonados —, era via ex­ Administração do Porto do Pará (SNAAPP). Ou
tensão da mão-de-obra. De fato, para o trabalhador seja, um aparato nunca antes criado pelos governos
que tinha migrado restava tentar sobreviver, en­ federais anteriores. Tais instituições davam a apa­
frentando não só as agruras da selva amazônica e rência de que o governo federal estava realmente
o arcaico sistema de aviamento implantado nos integrando a Amazônia ao resto do País, bem como
seringais desde o período áureo da borracha, mas os migrantes que para lá se dirigissem não ficariam
tendo também que reelaborar substancialmente desprotegidos.
seus referenciais culturais, espaciais e temporais. No discurso do Estado Novo, o que era, na
Discursivamente, contudo, apresentava-se o verdade, contingência e descontinuidade, trans­
problema como parte de um plano global de colo­ figurou-se em epopéia, configurando um sentido
nização da Amazônia — um programa de desen­ e uma direção para o vivido. Desse modo, a
volvimento da região num contexto de economia campanha da Batalha da Borracha forjou a imagem
de guerra e de crise da produção da borracha. Os de um trabalhador protegido, em primeiro lugar
nordestinos que para lá migrassem seriam os “sol­ pela legislação, através de um contrato de trabalho
dados do trabalho”, contribuindo para a conquista que seria supostamente e de pronto cumprido pelos
e ocupação de uma grande região esquecida pelos seringalistas; e, em segundo lugar, pela onipresença
poderes públicos, incorporando-a definitivamente do Estado Novo, através dos órgãos criados, como
ao corpo da Nação. Os “soldados do trabalho” a CAETA ou o SESP.
seriam, assim, os novos bandeirantes. Um modelo de contrato de trabalho foi larga­
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mente divulgado na imprensa nordestina, no qual homem à terra, povoando uma região que, “vazia”,
se regulamentava desde a compra de gêneros ali­ não se integrava organicamente à Nação.
mentícios até a jornada de trabalho diária. Contudo, Esta questão respaldava-se nos projetos de
o contrato não se coadunava com as condições colonização agrícolas que seriam implantados no
de extração do látex. No caso da jornada de traba­ Maranhão, Amazonas e Pará. Não é possível, pois,
lho, por exemplo, ela é determinada, no seringal, dissociar a migração do chamariz pela terra. Para
pelo ritmo do trabalhador e pelas condições naturais os ideólogos do Estado Novo, tratava-se de apre­
de processamento do látex. O látex colhido num sentar projetos “racionais” de ocupação da terra,
dia não pode ser defumado no dia seguinte. No ordenados e sob controle do Estado, ao mesmo
mais das vezes, a jornada de trabalho num seringal tempo em que a propaganda liberava mão-de-obra
gira em tomo de doze horas (ZANONI, 1979 e para os seringais. Para o migrante, era-lhe posto
TEIXEIRA, 1980). no horizonte a possibilidade de conseguir a repro­
Quanto à assistência prometida, no Nordeste dução da condição camponesa, com a aquisição
construiu-se uma série de hospedarias nas quais de uma pequena propriedade numa terra que era
o migrante tinha alimentação e vestuário gratuitos, apresentada como sendo de eterna fartura.
além de assistência médica desde o momento do Desse modo, a possibilidade de conseguir uma
alistamento, em que somente eram recrutados gleba de terra constituía-se num dos elementos
aqueles que passavam pela inspeção médica. centrais da propaganda do Estado Novo para arre­
Prometia-se auxílio monetário para as famílias dos gimentar novos trabalhadores para os seringais.
trabalhadores que migravam e o recrutamento tam­ É exemplar, nesse sentido, uma série de artigos
bém previa a assinatura de uma espécie de termo publicados na imprensa do Ceará, assinados por
de responsabilidade, nos quais, tanto a SEMTA Pimentel Gomes, nos quais ele mostrava de maneira
quanto a CAETA previam assistência ao migrante idealizada uma pequena propriedade no Acre e as
na Amazônia. possibilidades de se ganhar muito dinheiro com a
Mas chegando ao seringal, a realidade era bem borracha, desde que o trabalhador estivesse
diferente. O aparato montado pelo Estado Novo disposto a, acima de tudo, trabalhar muito4.
não chegou a se expandir pelo interior da A propaganda elaborada para a Batalha da
Amazônia. O SESP, que, sem dúvida, fez um Borracha é vista aqui como uma estratégia de
trabalho sem precedentes em termos de controle social que, ao se utilizar dos meios de
saneamento, nunca saiu das cidades e nem chegou comunicação de massa, buscava estabelecer
próximo a um seringal do Acre. Medicamentos mecanismos de persuasão no sentido de garantir
que eram para ser distribuídos gratuitamente, como a adesão coletiva ao regime. No caso específico
a atebrina no combate à malária, eram da “Batalha da Borracha”, a migração para a
descaradamente vendidos pelos seringalistas. A Amazônia foi apresentada como uma ação
Rubber sem dúvida se esforçou para manter o patriótica, equiparando-se com os pracinhas da
abastecimento dos seringais, vendendo seus FEB, já que, para os soldados da borracha, tra-
produtos em Rio Branco por preços bem razoáveis tava-se de ganhar a “batalha da produção”. Ao
para um tempo de guerra, mas ninguém fiscalizava nos remetermos para o contexto nacional, perce­
o repasse na caderneta do seringueiro. bemos que esta não foi uma ação isolada, uma
A propaganda do Estado Novo, no entanto, vez que conecta-se com a criação da Coordenação
elaborava um discurso em que o migrante estaria de Mobilização Econômica, sob o comando de
protegido pela ação governamental. Mais do que João Alberto, ao mesmo tempo em que decretava-
migrantes, seriam soldados na batalha da pro­ se, no espaço urbano, o aumento da jornada de
dução. E além de soldados, teriam a chance de re­ trabalho, a suspensão do direito de férias e a proi-
fazer suas vidas numa região para a qual se antevia
um futuro promissor.
Entendemos aqui que a migração teve íntimas 4 Publicada no jornal O Povo, de Fortaleza, durante
relações com a questão da terra, uma vez que o os anos de 1942 e 1943. Pimentel Gomes foi o mentor
plano de “soerguimento econômico da Amazônia” de uma série de colônias agrícolas implantadas nesse
dava uma coerência discursiva à política de período, em quase todos os municípios do Acre, e
migração, como se fosse seu propósito fixar o que, terminada a guerra, entraram em imediata
decadência.
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bicão da mobilidade do trabalhador, considerado Amazonas”, proferido por Vargas em Manaus e
desertor aquele que abandonasse o emprego. Tais trabalhado pelo DIP na imprensa como um monu­
medidas davam para a indústria nacional mais mento, marco oficial da nova era.
chances de absorver o mercado interno na subs­ Através da Marcha para o Oeste e do plano de
tituição das importações imposta pela guerra Valorização Econômica da Amazônia, o Estado
(CORREIA e NOGUEIRA, 1976). Novo se considerava restaurador do passado,
O discurso do Estado Novo apresentava sua instituindo-se como origem do futuro e marco
política e seus projetos como se estivessem se inaugural da história, que o discurso do Rio Ama­
realizando no plano substantivo, sem resistências, zonas consubstancia. Vargas inicia seu discurso
críticas ou dissidências. O que ele enunciava como lembrando o quanto a Amazônia povoa a imagina­
possibilidade de futuro, enunciava ao mesmo ção nacional por sua grandeza e potencialidades
tempo como se estivesse acontecendo no momento virtuais. “Conquistar a terra, dominar a água,
presente, ou seja, como fato. O Estado Novo era sujeitar a floresta” são as vitórias que paulatina­
assim o futuro que se concretizava. mente constroem uma nova terra, onde agora
Ao promoverem a migração em massa, as au­ busca-se centrar esforço na “fixação do potencial
toridades governamentais promoveram também humano”. “O nordestino, com seu instinto de
uma propaganda da Amazônia e dos nordestinos, pioneiro, embrenhou-se pela floresta, abrindo
trabalhando discursivamente com dois grandes “a- trilhas de penetração e talhando a seringueira
contecimentos”: a conquista do Acre pelos nor­ silvestre para deslocar-se logo, segundo as
destinos e a Marcha para o Oeste. O modo como exigências da própria atividade nômade. E, ao seu
aproximam os dois “acontecimentos” numa linha lado, em contato apenas superficial com esse
de continuidade remete para uma discussão sobre gênero de vida, permaneceram os naturais à
as formas de apropriação do tempo histórico pelo margem dos rios, com a sua atividade limitada à
poder. caça, à pesca e à lavoura de vazante para consumo
doméstico. Já não podem constituir esses homens
Instituiu-se para a Amazônia dois tempos que de resistência indobrável e de serena coragem,
se entrecruzavam: a conquista do Acre, que tinha como nos tempos heróicos de nossa integração
por função se apropriar do passado dos nacional, sob o comando de Plácido de Castro e a
trabalhadores nordestinos e reificá-lo num segundo proteção diplomática de Rio Branco, os elementos
tempo, instaurador de uma nova era: o Estado capitais de progresso da terra, numa hora em que
Novo que unificava as várias experiências, o esforço humano para ser socialmente útil, precisa
apresentando uma imagem homogênea da Nação concentrar-se técnica e disciplinadamente. O
e do Estado, superando os conflitos sociais. nomadismo do seringueiro e a instabilidade
Ao se estabelecer uma linha de continuidade econômica dos povoadores ribeirinhos devem dar
entre os dois “acontecimentos” — qual seja, a obra lugar a núcleos de cultura agrária, onde o colono
dos “lendários nordestinos” com os novos “bandei­ nacional, recebendo gratuitamente a terra desbra­
rantes” que estavam travando a “batalha da vada, saneada e loteada, se fixe e estabeleça a fa­
produção” nos seringais — buscava-se legitimar mília com saúde e conforto. O empolgante movi­
a prática da migração como um grande benefício mento de reconstrução nacional consubstanciado
ao País. no advento do regime de 10 de novembro não
podia esquecer-vos, porque sois a terra do futuro,
Situando-o no terreno da história, os ideólogos o vale da promissão na vida do Brasil de amanhã.
do Estado Novo tentavam imprimir uma imagem O vosso ingresso definitivo no corpo econômico
de futuro: finalmente integrada ao corpo da Nação, da Nação, como fator de prosperidade e de energia
a Amazônia alcançaria o progresso e o desenvol­ criadora, vai ser feito sem demora” (VARGAS,
vimento que parte do País já desfrutava. Essa 1941: 228-230)5.
imagem de futuro naturalmente se constrói com a
recusa de uma certa imagem do passado, reparado
pela ação governamental que não mais deixaria a
região abandonada. Ao mesmo tempo, instituía um 5 Discurso pronunciado por Getúlio Vargas, na cidade
tempo comemorativo, um acontecimento que de Manaus, no dia 10 de outubro de 1940, reproduzido
nascia em seu princípio como um monumento ao na revista Cultura Política (VARGAS, 1941), com
tempo de origem. Trata-se do “Discurso do Rio franco caráter comemorativo.

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Estão presentes nesse discurso os elementos abastecimento enfrentadas num período de guerra
essenciais que norteiam a propaganda que visa e a tenaz oposição da elite amazônica, detentora
arregimentar trabalhadores para os seringais: um do sistema de aviamento que abastecia os sering­
tempo de heroísmos e uma nova era de prosperi­ ais. Num primeiro momento, os seringais seriam
dade. Ao trabalhar com a imagem bíblica do “Vale abastecidos pela Rubber Development Corporation,
da Promissão”, o discurso enuncia para os que que ficaria encarregada de distribuir medicamentos
migram o advento de um novo tempo, livre da e aviamentos aos seringueiros em lugares dis­
escravidão e das pragas. Afinal, esta nova Ama­ tantes. Porém, por pressão da elite amazônica, a
zônia, a terra prometida, finalmente cumpriria seu Rubber passou a entregar os suprimentos dire­
grande papel de acolher o povo escolhido, o tamente aos seringalistas, que, por sua vez, os
migrante nordestino. repassavam aos seringueiros. Os projetos de suprir
Este tempo é contraposto por sua outra face, diretamente estes últimos redundaram, portanto,
que é a experiência de vida dos trabalhadores mi­ num tremendo fracasso.
grantes nos seringais e os vários tempos que se Apartirde 1944, o afapela Batalhada Borracha
entrecruzam: de um lado, o passado da conquista declina sensivelmente, principalmente porque
do Acre, que a tradição cultural nordestina já tinha estava em franco processo a substituição da bor­
fixado no paroara, e, de outro, o tempo do trabalho racha natural pela sintética. Percebe-se, neste con­
nos seringais, em que as conversas nas hospedarias texto, que a Batalha estava terminada e que servira
e nas ruas de Belém e Manaus desfazem de ante­ muito mais como propaganda do Estado Novo,
mão o sonho de um nova era da borracha. Esse uma vez que os resultados produtivos não foram
confronto nos mostra que o tempo, ainda que seja significativos. O aumento da produção de borracha
o esforço unificador do poder, não é vivenciado não chegou sequer para suprir as necessidades
linearmente, constituindo um campo onde a ex­ do mercado interno.
periência se constrói (THOMPSON, 1979 e LE Mas a campanha serviu como forma de co-
GOFF, 1979). optação da elite amazônica ao regime. No decorrer
III. DESFAZENDO O SONHO do período, tanto o Banco de Crédito da Borracha
A política de migração incentivada de nor­ quanto o RDC deram espaço político a essa elite,
destinos para a Amazônia remetia a questão para oferecendo cargos e incentivos econômicos.
o contexto das discussões que se travavam, na­ Assim, o plano de colonização da Amazônia e
quele momento, em tomo da legislação social. E a política de migração de nordestinos para os serin­
mais do que conhecido o fato de que o trabalhador gais durante o Estado Novo, mais do que ocupar
rural ficou excluído dos benefícios da CLT, sob o uma região vazia para o corpo da Nação, apre­
argumento de que o ônus econômico sobre os sentou-se como uma estratégia de desterrito-
proprietários rurais era muito grande, uma vez que rialização do nordestino, visando quebrar sua resis­
ainda não tinham se recuperado da crise econômica tência cultural, levando-os para um meio hostil e
de 1929/1930. amarrando-os a uma cadeia de trabalho desumano
Por outro lado, em 1937, discutia-se na Câmara e cruel (LENHARO, 1985). Os jornais do Nordes­
Federal um projeto denominado de Código Rural, te, ao findar o ano de 1945, noticiaram a volta
que objetivava disciplinar o sistema de barracões desses homens, maltrapilhos, doentes e famintos.
dos engenhos e as relações de trabalho nos serin­ Isto sem falar dos inúmeros que por lá ficaram
gais. Ao elaborar a campanha de migração, os ideó­ vitimados pela malária ou pelos jagunços. O saldo
logos do Estado Novo divulgaram um contrato de desse apelo patriótico foi um tanto quanto trágico.
trabalho padrão, que seria assinado pelo migrante Estima-se em cerca de vinte mil os migrantes que
e pelo seringalista, dono do seringal, respeitando, morreram nos seringais, mortes provocadas prin­
portanto, as normas que o Código Rural procurava cipalmente pela malária e pela fome, segundo dados
implementar para as relações de trabalho no campo. divulgados pela comissão de inquérito da Assem­
Procurava-se demonstrar que o Estado Novo se bléia Constituinte em 1946, que averiguou os
preocupava com o sistema de abastecimento dos resultados da Batalha da Borracha6.
seringueiros, visando impedir o seu endividamento
com os seringalistas. No entanto, toda essa 6 Conforme foi publicado no relatório da CPI sobre a
preocupação “trabalhista” fica desmascarada se Batalha da Borracha em 1946, no BOLETIM Geográ­
associarmos ao contexto acima as dificuldades de fico IV, 1946: 1135-1139.
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A intervenção do governo federal na produção lugar trabalhei algum tempo, indo trabalhar depois
gomífera nada mais fez do que recriar as condições em um seringal no rio Paca Nova onde trabalhei
para a exploração do seringueiro, tais como exis­ seis meses, deixando o serviço por me achar com
tiam durante os primeiros anos deste século (SAN­ impaludismo, vindo para Porto Velho e sendo
TOS, 1980, PINTO, 1984 e WEINSTEIN, 1993). internado no hospital, onde não obtive melhora,
Segundo Warren Dean (1989), a incerteza quanto fui mandado para Belém onde depois de examinado
ao número de trabalhadores desaparecidos cons­ fui julgado retomado. Por me achar com impalu­
titui um dos aspectos da tragédia que tinha se resu­ dismo crônico e esgotamento de sangue, afinal
mido em dar “sobrevida [...] ao arcaico e reacioná­ me mandaram para Fortaleza onde me julgaram
rio sistema de crédito e distribuição” da produção inapto para o serviço e finalmente enviado para o
extrativa da borracha (DEAN, 1989: 151). Rio onde me acho. Aqui chegando, procurei alguns
Efetivamente, o programa sofreu uma série de canais da coordenação, a fim de esclarecer a minha
percalços, sobretudo burocráticos, que dificulta­ situação, como fosse o estado de minha saúde,
ram a arregimentação dos trabalhadores, seu documento que durante a viagem me foi extraviado,
deslocamento para os seringais e o abastecimento infelizmente não fui devidamente atendido, disse-
dos mesmos. Aparecia, na propaganda, que coletar ram-me que o SEMTA acabou-se [...]. Se o SEM­
o látex era uma atividade relativamente simples e TA, como alguém me disse acabou-se, não foi
rendosa. Fotografias mostravam seringueiros bem mal pois alguns dirigentes não cumpriram com os
dispostos ao lado de baldes cheios de leite, sina­ seus deveres, mas a palavra, a promessa de olhar
lizando a abundância da coleta. Na prática, os para os que lá estão, a justiça e o coração magnâ­
trabalhadores foram abandonados na selva, sem nimo de V Excia. jamais se acabarão” (ARQUIVO
experiência, e, ao contrário do que dizia a propa­ Nacional, (Arquivo Nacional / Gabinete Civil da
ganda, sem assistência, saneamento e abasteci­ Presidência da República / Fundo Soldados da
mento alimentar. Borracha PR 25077/44).
José Alfredo Leite Araújo foi um desses solda­ Nem Vargas, nem nenhum outro governo da
dos da borracha. Como se tomou costume no regi­ República reconheceu os direitos dos soldados da
me de Vargas, quando muitos trabalhadores apela­ borracha. Para alguns daqueles que conseguiram
ram, através de cartas, para os sentimentos huma­ sobreviver à vida nos seringais, o governo pagou
nitários do Presidente que cuidava dos pobres, José a passagem de volta. Mas isso só aconteceu aos
Alfredo também escreveu uma carta ao ditador que conseguiram um atestado médico provando
contando sua história. Apesar de um pouco longa, que estavam inaptos para o trabalho (MELLO,
vale a pena reproduzi-la: “[...] Nos primeiros dias 1956). Muitos, desse modo, voltaram como pude­
de janeiro de 1943, ao ler um dos jornais, com ram, sem assistência, trilhando a floresta como
grande satisfação vi que V. Excia. havia decretado penitentes, flagelados do novo sertão, assombran­
a mobilização voluntária de trabalhadores para o do as cidades de Rio Branco, Manaus e Belém.
Vale do Amazonas e, como devido a minha idade Em 1946 finalmente o País se dava conta da
ser 36 anos, e não poder ser convocado para as dimensão da leviandade com que a migração fora
fileiras do nosso glorioso Exército, cheio de orgu­ conduzida e da tragédia de seus resultados. Por
lho e certo de que, sendo um soldado da borracha, toda a imprensa do país apareciam reportagens
cumpriria assim com o meu dever, para com a mostrando as condições dos soldados da borracha,
minha pátria, procurei os dirigentes do SEMTA, a alardeando o número de mortos e cobrando
fim de seguir o destino ditado por V. Excia. Inscrito responsabilidades. O escândalo foi tão grande que
que fui, e depois de um rigoroso exame médico, o Congresso Constituinte decidiu formar uma
fui incluído em uma turma de 300 homens que comissão de inquérito. Ouviu-se uma série de au­
aliás foi a primeira a partir aqui do Rio, a 17 de toridades responsáveis pelos programas, recrimi-
janeiro de 1943, com destino a Belém. Lá chegando nou-se o Estado Novo. Os migrantes dependiam
e, depois de examinado novamente, fui mandado da caridade para poderem voltar. O sonho de uma
para Porto Velho, hoje território Guaporé, uma nova era da borracha tinha terminado em pesadelo.
terra onde em breve será uma potência. [...] Neste Recebido para publicação em julho de 1997.

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A BATALHA DA BORRACHA
Isabel Cristina Martins Guillen (guillen@fundaj.gov.br) é Pesquisadora do Departamento de História
Social da Fundação Joaquim Nabuco e Doutoranda em História na Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP).

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