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Prazeres inomináveis e desterritorializados:

contrassexualidade
Beatriz Paul Preciado. Manifesto Contrassexual: práticas subversivas de
identidade sexual. São Paulo: n-1, 2014, 223 pp.

Flávia Lucchesi
Pesquisadora no Nu-Sol (Núcleo de Sociabilidade Libertária) e mestre em
Política pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-
SP. Contato: flalucchesi@gmail.com.

Em abril de 2000, Beatriz Nova York. Foi uma das agitadoras


Preciado publicou pela primeira vez dos estudos queer na França, no
seu Manifeste Contra-sexuel. Cerca final dos anos 1990. No entanto, é
de dois anos depois, o texto ganhou difícil situar, comodamente, Preciado
forma em espanhol e em 2014, no interior dessa tradição de estudos
assinado por Beatriz Paul Preciado, pós-feministas e da Teoria queer.
o Manifesto Contrassexual foi Antes de tudo, porque Preciado detona
lançado no Brasil pela Editora n-1. o binarismo pré/pós que conduz
O atraso na tradução em português o pensamento a uma compreensão
é um possível indicativo do pouco geracional, temporal e evolutiva.
interesse na chamada Teoria queer e Mas também pelos questionamentos
em produções mais radicais que lidam desconcertantes que lança em suas
com temas feministas e lgbt’s por análises para além de lugares
parte de pesquisadores e militantes confortáveis, ainda que críticos e
brasileiros. revestidos como alternativos.
Preciado teve contato com os Se desde a década de 1990, as
estudos pós-feministas e a Teoria pós-feministas sacodem concepções
queer na New School for Social identitárias totalizantes de gênero e
Research, onde se tornou mestre em sexualidade, Preciado aparece para
Filosofia Contemporânea e Teoria abolir o pensamento binário: homem/
de Gênero, e ao frequentar o Clags mulher, heterossexual/homossexual,
(Centro de Estudos LGBTQ), em masculino/feminino, natureza/

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tecnologia. E não restringe o olhar às e de seus conceitos, verdades
mulheres e à sexualidade feminina, inquestionáveis a serem aplicadas ou
dedicando-se também a desconstrução citadas por floreio ou pedantismo.
do homem e da masculinidade. De Michel Foucault, Preciado amplia
Como descreve a socióloga Marie- as análises da tecnologia do corpo,
Hélène Bourcier, uma das mais segue as pistas apresentadas na
destacadas pensadoras da Teoria queer História da Sexualidade, e persegue
francesa, no prefácio ao Manifesto, a produção de um prazer-saber a
“o que Preciado faz com a filosofia partir do corpo como lugar da luta
se parece com o que o punk fez de forças que intentam governá-lo,
com a música” (p.9). Preciado não domesticá-lo, discipliná-lo, controlá-
poupa ninguém. Todos os autores lo, e das resistências. Acompanhando
que o1 acompanham pelas análises os dispositivos da sexualidade,
do Manifesto Contrassexual são mostrados por Foucault, inscreve a
questionados, na maioria das vezes, de contrassexualidade na genealogia das
maneira provocativa e bem humorada. análises de Monique Wittig sobre
Não faz de suas referências autores a heterossexualidade como regime
a serem seguidos, sacramentados, político. De Jacques Derrida, que a
convidou a acompanhar seu seminário
1
Preciado pensa o sistema sexo/gênero na L’École des Hautes Etudes en
como um lugar de escritura, os corpos
como textos. Contudo, adverte aqueles Sciences Sociales, em Paris, Preciado
que reclamam “de sua torre de marfim” lida com a noção de “suplemento”.
a utilização de e/ou antecedendo os
pronomes, ou que pregam o fim das Junto de Judith Butler e de Donna
marcas de gênero nos substantivos e Haraway, avança nas considerações
adjetivos: “reduzem a textualidade e a
sobre as identidades performativas e
escritura a seus resíduos linguísticos,
esquecendo as tecnologias de inscrição o corpo ciborgue. De Deleuze, além
que as tornam possíveis” (p.27). das muito utilizadas noções de devir
Preciado alerta para a potência de se
modificar a posição de enunciação, e linha de fuga, Preciado traz algo
mostrando que a intenção de substituir quase intocado pelos deleuzianos: a
ou criar uma marca neutra não vai
além da vontade de designar um lugar “homossexualidade molecular”, noção
possível de enunciação de “uma voz que atravessa a reflexão de um dos
política imaculada” (idem). Ao longo
capítulos, “Da filosofia como modo
desta resenha, alterno as referências
gramaticais de gênero ora de modo a superior de dar o cu”. O Manifesto
concordar com Beatriz, ora de modo a Contrassexual encontra-se dividido
concordar com Paul.

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em quatro partes, além de conter português neste ano, no décimo
dois textos em anexo. primeiro volume da revista Ecopolítica.
A força, a agilidade, e o humor Nesta conversação com Bitoux,
corrosivo da escrita de Preciado Foucault anuncia algumas questões
pretendem encontrar leitores abertos. fundamentais para a elaboração
E disponíveis a serem revirados por do conceito de contrassexualidade.
sua obra; que não se neguem a se Preciado se encontra, como Foucault,
voltar contra si mesmos em um âmbito na luta contra o dispositivo da
de difícil ruptura, o das identidades sexualidade e segue atenta para o
sexuais. Só assim, o convite que alerta do filosofo, já no final dos
Preciado faz a experimentação da anos 1970 no rescaldo da liberação
contrassexualidade uma produtora sexual, quanto às armadilhas de
de práticas sexuais desviantes. Esta se lutar contra a sexualidade sem
é questão central: como produzir romper com os termos deste saber
práticas sexuais que rompam com médico, biológico e naturalista.
a sexualidade, com as identidades Escrevendo cerca de vinte anos
sexuais, com o saber médico- depois, no início do século XXI,
psiquiátrico-jurídico-mercadológico quando se anunciava a inclusão dos
que produz a verdade sobre a direitos lgbt’s como uma questão
sexualidade, o desejo e o prazer. democrática, de Direitos Humanos e
Mesmo sem citar a entrevista de Universal – em 2001 os Países Baixos
Michel Foucault a Jean Le Bitoux, se tornaram os primeiros a legalizar o
que consta na bibliografia do casamento gay –, Preciado atualiza a
Manifesto, parece que essa conversa reflexão de Foucault naquela conversa
entre o filósofo e o ativista gay com Bitoux. Agora, além da ciência,
foi uma grande referência para as o mercado se insere na produção da
reflexões e inquietações de Preciado. verdade da sexualidade. Diante disso,
Essa entrevista, de 1978, não incluída Preciado politiza estas tecnologias,
na série Ditos e Escritos, tendo suas propõe outros usos, seja de produtos
primeiras publicações restritas a de sex shop ou a produção de uma
revistas de estudos gay, na Holanda pornografia com outras imagens
e na França, no final dos anos 1980 eróticas que escapem dos enfoques
e meados de 1990. “O saber gay” das lentes do macho hetero e de
foi publicado pela primeira vez em seu fetichismo. Considerando estas

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propostas de Preciado, é preciso históricos diferentes, a percepção
ter cuidado para não cair em uma da sexualidade por uma mulher gay
alternativa de mercado. difere da de um homem gay.2 No
Talvez a atualização que Preciado entanto, a empolgação com práticas
faz do tema do prazer seja a sexuais desviantes também animava
mais instigante. Foucault procurou Foucault, “os usos do corpo serão
demarcar as diferenças entre desejo aqueles que podemos definir como
e prazer. Em linhas gerais, pode- dessexuados, como desvirilizados, seja
se dizer que, para ele, o desejo foi o fist fucking ou outras fabricações
capturado pelo discurso médico- extraordinárias de prazer que os
psicológico, diferente do prazer americanos atingem com o auxílio
que, ainda segundo Foucault, de certo número de drogas ou de
escapa às conotações da ciência, a instrumentos. (...) As intensidades
“anormalidade”, a “patologia”, sendo do prazer estão ligadas ao fato de
algo indiscutível em si mesmo, um alguém se dessujeitar, deixar de
acontecimento. Foucault chamou ser um sujeito, uma identidade. É
atenção para a tolerância social algo como uma afirmação da não-
do prazer, notando que o maior identidade.”3
problema era a felicidade decorrente É isto que a contrassexualidade
deste prazer. Na análise de Preciado, persegue. São os espaços errôneos,
o prazer aparece como uma palavra as falhas do sistema sexo/gênero
também capturada, não pelo discurso heterocentrado, como os corpos
científico, mas pelo mercado. Há intersexuais, e Preciado aponta
uma produção de verdade sobre o
prazer sexual que está além e aquém
2
Tanto Preciado quanto Foucault
recusaram a identidade gay, contudo
do sexo hetero e do sexo homo, foram atravessados pelo discurso da
localiza-se nos corpos e nos lugares (homo)sexualidade, foram identificados
como o outro gay, experimentaram os
originários do prazer: os órgãos que guetos gays e os jogos dessa sexualidade.
gozam. Daí a desterritorialização do É ai que se localiza o grande alerta de
Foucault quanto às armadilhas da luta
prazer e o uso de próteses e outros
contra a sexualidade, e é ai também
orifícios não-naturais propostos no onde se localiza o grande esforço de
Manifesto. Preciado.

Certamente, além do fato de 3


Michel Foucault. “O saber gay” in
estarem na luta em momentos Revista Ecopolítica. São Paulo, Nu-Sol,
vol.11, 2015, pp.18-22.

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possibilidades de “deriva radical” poder subjacentes ao contrato que
como o uso de dildos, a erotização a heterossexualidade impôs como
do ânus e as relações S&M natural” (p.32), sinalizando para
(sadomasoquistas), estas últimas que a necessidade da ruptura com
também interessaram nas análises de esse contrato, e não apenas as
Foucault. possibilidades de inversão dos papeis
Preciado é bastante generoso ao abertas, por exemplo, pelas práticas
apresentar em sua obra as perguntas sadomasoquistas. Preciado destaca
que se indagou durante a pesquisa. algumas práticas S&M como o fist-
“Quem não tem cu?”, essa pergunta fucking (penetração com o punho),
simples bombardeia a noção de desenvolvida no gueto gay da década
identidade de gênero/sexo pautada de 1970, e a utilização prazerosa de
pelo reconhecimento visual dos tecnologias de tortura do final do
chamados órgãos sexuais, bem como século XVIII e meados do XIX para
a motivação sexual reprodutiva ou coibir a masturbação.
a que concebe o prazer somente Ao traçar uma possível genealogia do
na ereção e ejaculação masculina orgasmo feminino, Preciado mostra que
e no orgasmo feminino. Preciado, o que se concebe hoje como o prazer
ao afirmar a universalidade do cu, sexual feminino e o orgasmo remete às
sugere que dar o cu não deve ser uma técnicas de repressão da masturbação
posição sexual polêmica e fetichista e às técnicas de cura da histeria que
no sexo heterossexual ou sodomia produziam “crises histéricas”. O prazer
entre homens. Ao dizer que todos sexual atingido com a masturbação,
têm e devem dar o cu, Preciado bem como uma diagnosticada frigidez
retira essa prática do lugar identitário em relação ao coito heterossexual,
das práticas sexuais de homens e caracterizavam desvios sexuais, loucura
mulheres heteros e de homens e e tendência ao “lesbianismo”, também
mulheres gays. compreendido como uma doença. Foi
O estudo das práticas neste período que se desenvolveu,
sadomasoquistas a instiga a pensar no interior das instituições médicas,
no estabelecimento dos papéis o vibrador. Preciado não perde de
de submissão e dominação em vista as transformações no discurso da
seu aspecto mais geral, “tornam sexualidade e, após o século XX, suas
evidentes as estruturas eróticas de conexões com o mercado.

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Preciado descreve outras práticas entende-se esse brinquedo sexual
desviantes, mais artísticas do que como se ele fosse a explicitação das
sexuais, como performances de Ron inquisições sobre “como as lésbicas
Athey, Del LaGrace, Diane Torr transam”. No entanto, o dildo também
e Annie Sprinkle, e a body art, e é relegado ao complemento da falta
inventa práticas que descentralizam por lésbicas feministas radicais, que
e desterritorializam o prazer sexual o vem como um símbolo fálico.
como “masturbar um braço” e “fazer Preciado recorre às considerações
um dildo-cabeça gozar”, e o que de Lacan sobre a diferença entre o
significa desenhar dildos nestas pênis e o falo, e as de Judith Butler,
partes do corpo que são masturbados que analisa o falo como o ideal
e gozam. Um orgasmo fake? Fingir do pênis, também a partir de Lacan
um orgasmo? Assim, ele questiona a e da “inveja do pênis” freudiana,
verdade sobre o prazer sexual, sobre para mostrar que o dildo não é um
o que nomeia e delimita quantitativa “consolo”, uma representação do
e qualitativamente o prazer. pênis para o preenchimento de um
Thanks god(e)!4 O dildo aparece em vazio.
quase todos os capítulos do Manifesto. O dildo é um estrangeiro durante
“Objeto maldito”, assombrado pela o sexo que dinamita o encontro entre
falta, o dildo é tido comumente como dois órgãos sexuais reprodutivos como
uma representação plástica do pênis, o lugar originário do prazer sexual.
como um “consolo” (nome popular Argumenta que no interior do sistema
do objeto em língua portuguesa) que sexo/gênero o que prova o prazer
intenta suprir a ausência da penetração sexual é o orgasmo, compreendido
peniana no sexo entre mulheres e na como o ápice do estimulo dos órgãos
masturbação feminina – ignorando sexuais masculino e feminino que
que o dildo pode ser usado também gozam. Como uma prótese, o dildo não
por homens, até mesmo no interior precisa ser colocado como extensão
do plural mercado do sexo esses plástica de uma região específica, a
produtos são destinados ao público pélvica. Não há uma forma natural
consumidor feminino. Comumente, de utilizá-lo, assim como inexiste um
orifício naturalmente reservado a ele.
4
Essa frase, lida sem o “e” significa Ele pode ser considerado uma paródia
“graças a deus”, e acrescida do “e” se da heterossexualidade e seu arbitrário
transforma em “graças ao dildo (gode)”.

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sistema homem/mulher, ativo/passivo, que abarca também gays que afirmam
também reproduzido nas relações a naturalização da (homo)sexualidade
gays e lésbicas heteronormatizadas. como orientação sexual. Preciado
A questão para Preciado é menos analisa o sexo como uma “tecnologia
a forma fálica do objeto, que de dominação heterossocial” que
poderia, por exemplo, ser substituído reduz e identifica os corpos a
por produtos naturais como frutas partir do recorte de zonas erógenas,
e legumes. O que o interessa em circunscritas aos órgãos reprodutivos
relação ao dildo é a possibilidade externos, e das reações anatômicas
de produzir um pênis como prótese. nelas ou por elas produzidas.
Assim como próteses de mãos, ele Partindo desses órgãos recortados,
não precisa ser uma cópia mimética produz-se a diferença sexual, a
do que se conhece como uma mão ou feminilidade e a masculinidade
um pênis normais, sendo produzido e dos corpos. Determinam-se práticas
ajustável às vontades ou necessidades e papéis sexuais que inscrevem
do usuário. Assim, ele não seria uma regulações nesses corpos e asseguram
confirmação da inveja do pênis, ou de a exploração e a dominação de
uma sexualidade falocentrizada. Trata- determinados corpos sobre outros.
se da inserção de próteses que buscam Neste sentido, o bebê intersexo
produzir outras experiências sexuais, arrebenta a fronteira, está para além
cindindo com o que se entende como da diferença e aquém da identidade.
o natural e o artificial de um corpo. Diante de um sistema sexo/gênero,
O suplemento altera o corpo, alterna fundamentado no pensamento binário,
a experiência, seja temporariamente a existência de um corpo possuidor de
com o uso de dildos e outros produtos, dois sexos, por vezes irreconhecíveis
seja de maior permanência como o pelo olhar, é ameaçadora. Preciado
uso de hormônios e as intervenções mostra as técnicas violentas e
cirúrgicas. arbitrárias, escolhidas pelos donos
A contrassexualidade declara o da criança intersexo – seus pais, os
fim da Natureza e da naturalização médicos e o Estado – ao determinarem
da sujeição de certos corpos. Atenta qual será o seu verdadeiro sexo e
aos efeitos políticos daquilo que é submeterem seus pequenos corpos a
postulado como natural, Preciado ataca inúmeras cirurgias e medicalizações.
o contrato social “heterocentrado”, Preciado propõe um “contrato

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contrassexual”, consensual e temporal, união estável e os Pacs franceses:
a ser assinado por “corpos falantes”, “nenhum contrato sexual poderá
equivalentes (e não iguais), que compõe ter o Estado como testemunha”
uma “sociedade contrassexual”. (p.36); dos privilégios derivados da
Leitores sérios demais se arvoram condição feminina ou masculina; e
com cópias físicas e postagens dos sistemas de transmissão e legado
virtuais do contrato contrassexual. de patrimônios e bens adquiridos por
Tanta seriedade perde o humor ácido uma ou todas as partes contratantes.
que habita a obra, que deixa claro Acabar com o matrimônio é acabar
se inscrever no presente e “não com a família e com o Estado.
fala[r] de um mundo por vir” (p.24). Contudo, esta questão parece estar
Talvez, deixando um pouco de lado para além dos contratos e jurisdições,
suas vontades liberais, estes leitores pois não casar, perante à religião
levem ao pé da letra também frases e ao Estado, não exime ninguém
como “Os trabalhadores do ânus são de viver como uma família, não ter
os novos proletários de uma possível uma conduta de casal, e tampouco
revolução contrassexual” (p.32). aniquilar o Estado que lhe governa.
O que Preciado escreve como um Mas, tendo em vista o momento em
contrato contrassexual rompe com a que Preciado escreveu e o atual estado
ficção postulada como necessária para do movimento lgbt, essas linhas são
o convívio social e a segurança da de uma contundência salutar.
propriedade, desde os contratualistas Sua contrassexualidade demanda
dos séculos XVII e XVIII. O primeiro, a abolição da família e “a
dentre os 13 artigos que antecedem subversão da normalização sexual,
o contrato contrassexual, demanda qualitativa (hetero) e quantitativa
que se apaguem as denominações (dois)” (p.41), e a produção de
“masculino” e “feminino”, imagens e textos contrassexuais e
correspondentes às ditas categorias contrapornográficos, lembrando a
naturais, e que se encontram fixadas pospornografia – tema de interesse
nas carteiras de identidade, formulários de Preciado que, em 2008, organizou
administrativos e de controle estatal. o congresso Feminismopornopunk,
Mais adiante, Preciado demanda em Donostia, Espanha. Na década
abolições: do contrato matrimonial e de 1980, putas, atrizes pornô,
de todos os seus correlatos como de lésbicas e feministas contrárias

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aos movimentos de reivindicação dificuldades de fazer um pênis “de
por direitos, apropriaram-se das fato” a partir de uma vagina.
tecnologias utilizadas pelo mercado Em outros artigos que antecedem
da pornografia para produzir outras o contrato contrassexual, Preciado
imagens eróticas de corpos menores, situa a contrassexualidade apartada e
reiterados e vendidos pelo mercado contrária aos controles e definições
através do enfoque do macho hetero. do Estado e das instituições médicas
Inventaram a pospornografia, hoje e farmacêuticas, invariavelmente,
revigorada por queers, mulheres, heteronormativas. Considera que
trans, intersexos, corpos disformes e o Estado, bem como o mercado
incapacitados. farmacêutico, não pode possuir e
No âmbito da mudança de sexo, determinar o acesso ou a restrição aos
aparta-se das políticas psiquiátricas, hormônios sexuais, descritos por ele
médicas e jurídicas, e se distancia como “drogas político-sociais”. Em
das reivindicações dos movimentos Testo Junkie: Sex, Drugs and Biopolitics
lgbt’s. A contrassexualidade se faz in the Pharmacopornographic Era,
contrária ao governo das práticas segundo livro de Preciado, sem
transexuais por meio das instituições tradução para o português, ela relata
públicas e privadas pautadas pela sua experiência de autoaplicação de
heteronormatividade estatal que testosterona sem qualquer prescrição
determina o que é anatômica e ou acompanhamento médico e
politicamente feminino e masculino; jurídico. As obras de Preciado
“não há razão política que justifique inscrevem-se em seu corpo e em
que o Estado deva garantir uma suas experimentações. Mais do que
mudança de sexo, visto que esta seria militância, como alguns costumam
equivalente a uma cirurgia estética classificar, Preciado é e se transforma
de nariz, por exemplo” (p.39). Ainda na escrita de suas obras. Ela pretende
sobre trans, no terceiro capítulo, “A politizar essas tecnologias, dando-lhes
industrialização dos sexos ou Money outros usos, mas o que chama atenção
makes sex”, Preciado analisa as é que o faz apartada de um discurso
técnicas das cirurgias de faloplastia trans, do saber médico-psiquiatrico,
e vaginoplastia, localizando o foco e de garantias legais. Não se afasta
dos investimentos nas cirurgias de do mercado, pois para se conseguir
“invaginar” o pênis e as alegadas essas drogas sem receita é preciso

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recorrer ao que se configura como descentralizado e desterritorializado?
tráfico, ou ao uso de medicamentos Para isso, não é necessário contrato,
disponíveis nas farmácias, ainda que papel, assinatura, testemunha, nem
para outras finalidades que não a mesmo palavra.
mudança de sexo, mas que cedo ou Estaria Preciado insinuando o
tarde provoca novas regulamentações contrato sinalagmático e comutativo
no mercado. do anarquista Proudhon, rompendo
No final do livro, cujos capítulos com sua universalidade para ganhar
não seguem um único fio condutor, imanência na relação entre os
há dois anexos: uma breve história envolvidos? Isso não sabemos. Mas
do dildo e “Prótese, mon amour”, um seria interessante que Preciado, ou
texto sobre as sapas butch publicado quem com essas sugestivas análises
na França, em 2001, à parte do compõe, retomar os anarquistas para
Manifesto. Talvez neste momento, a remover, também com humor, não só
análise empolgada de Preciado sobre a noção de contrato, mas ao mesmo
a butch (caminhoneira) deixe escapar tempo apartar-se da equivocada e
alguns deslizes, como a reprodução moralizante compreensão de Proudhon
de uma conduta machista para além acerca da pornocracia.
das relações sexuais. Para além dessas questões
Também é possível questionar o possíveis, o Manifesto Contrassexual
porquê de Preciado falar em contrato, não dá sossego a ninguém: Foucault,
porque insistir nessa palavra? Ao falar Deleuze, Derrida, Butler, Wittig,
em contrato, mesmo que com tanto Haraway, lésbicas feministas radicais,
humor e estabelecendo “artigos” que feministas separatistas, feministas
rompem com o Estado, jurisdições e lgbt’s liberais, movimentos
e toda a ficção contratualista, por minoritários que pedem ajuda para
vezes, é provável que um leitor mais o Estado, lgbt’s heteronormatizados,
liberal ou desatento a entenda ao pé etc. A contrassexualidade se volta
da letra. Preciado ressalva se tratar de contra as instituições médicas e
um contrato contrassexual temporal psiquiátricas, o mercado farmacêutico,
e consensual, mas o livre querer o Homem, a Mulher, o masculino,
não é impreterível para que role o feminino, a Natureza, o Estado, o
uma transa entre “corpos falantes” sexo e prazer fixados, centralizados,
interessados no prazer descomedido, governados; enfim, o sistema sexo/

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gênero heterocentrado. Quer produzir sistema sexo/gênero também compõe
desvios, resistências, linhas de fuga. a verdade contratual. Ela mostra que a
Eis o interesse dessa incômoda obra. divisão arbitrária masculino/feminino,
Então se é avessa a essas instituições, homem/mulher é ficcional. Mesmo
porque Preciado não renomeou seu recoberta de cienticidade, tem por
manifesto de antissexual? Talvez por base o que se identifica, visualmente,
ter de necessariamente deixar de vê- como pênis e vagina. Uma criança
lo como manifesto e também por intersexo na qual falte o cromossomo
enfrentar as relações de contrapoder, Y será reconstruída cirurgicamente
que não necessariamente escapam das como mulher. Todo este saber médico
novas normatividades nas relações de é pautado pela falta do pênis e pela
poder, pois nem todo contrapoder é ideia de falo. A criança intersexo
também sinônimo de antipoder e de pode possuir um clitopênis (um
relações livres de normatividades, órgão que se assemelha ao clitóris,
afinal se há algo ingovernável é o mas que pode ser transformado
sexo. em um pênis), um micropênis (um
Preciado tem grande apreço órgão identificado como um pequeno
às palavras. A tradução de Maria pênis bem formado), um microfalo
Paula Gurgel Ribeiro em português (um órgão que se assemelha a um
foi revista e aumentada por ele, pênis malformado), ou um pênis-
sobressaindo o cuidado com as clitóris (um órgão que se assemelha
palavras e seus significados. Se a um grande clitóris e não deve ser
lembrarmos da primeira edição de confundido com um pênis).
seu Manifesto, em francês, intitulado Seu contrato contrassexual debocha
Contra-sexuale, podemos pensar do contrato social liberal, aparta-se do
num jogo de palavras cuja fonética Estado, do direito e da propriedade,
se assemelha contra(ct)uel-contra- e possivelmente, pode-se supor que
(sex)uale. Jogo de palavras que se persegue, sem declarar, as pistas e
mantém em espanhol e em português, os escritos dos anarquistas desde
contra(ct)ual-contra-(sex)ual, contra(t) o século XIX que explicitaram a
ual-contra(ssex)ual. Uma vez que ficção contratual universal. Preciado
Preciado constata que o contrato introduz na verdade contratual um
social é um contrato heterocentrado, novo elemento fictício: sexo/gênero.
as verdades que fundamentam o As práticas sexuais desviantes

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apresentadas e inventadas por é possível que as autoridades
ela podem produzir mais do que optem por produzi-lo como um
“práticas subversivas de identidade corpo feminino. A questão não é
sexual”, sinalizando para o que pode o falocentrismo, apenas, mas todas
ser pensado como antissexualidade as verdades produzidas a partir da
e, obviamente, sem jamais se anatomia do que se identifica como
deixar confundir com assexualidade. feminino e como masculino. Não se
Preciado se interessa pelo prazer, por trata somente do pênis e do ideal
um prazer inominável, indetectável, falo, mas também daquilo que se
que não tem lugar de origem ou nomeia imprecisamente de vagina
requeira um manual de “como chegar (orifício do canal genital do órgão
lá”. E prazer não está relacionado sexual feminino).
a Estado, espaço universalizador de Preciado vai além das feministas
limites, a não ser que se defina o e não incorre nos equívocos lgbt’s
prazer relacionado à legitimidade de achar que o lesbianismo, a
de uma nova forma de conduta bissexualidade, a homossexualidade
individual. Neste restrito espaço de ou a transsexualidade são resistências
prazer, a racionalidade neoliberal hoje. Ser gay na atual democracia
sabe conjugar, como nunca outra, neoliberal não é uma resistência.
direitos e capital humano. Desse São identidades sexuais identificadas,
modo, um prazer pessoal pode existir governadas, (hetero)normalizadas;
independentemente de presença de cidadãos que têm seus direitos e
Estado, assim como, novos prazeres cumprem com seus deveres. Lutam
dependerão de um Estado cada vez pelo direito ao contrato matrimonial,
mais à esquerda quanto ao governo ou de união estável, e querem seus
das condutas. Tudo pode ser possível privilégios de transmissão e legado de
desde que produtivo e resiliente. bens, com suas pensões e heranças.
Por romper com o binarismo Mesmo não havendo referência aos
homem/mulher, que fundamenta as anarquistas em seu Manifesto, Preciado
verdades inquestionáveis do sistema propicia leituras e questionamentos
sexo/gênero, Preciado não concebe libertários. A contrassexualidade é
uma única dominação homem/mulher, exterior e contrária ao Estado, ao
ao mostrar, como vimos, que sobre Direito, à Ciência, ao mercado. Indo
os corpos de crianças intersexuais para além de muitos anarquistas, de

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outrora e da atualidade, Preciado avançarem rumo a novas práticas
se aproxima dos escritos de alguns e transformações; instigar outras
individualistas como Émile Armand, viagens guiadas pela cartografia
Han Ryner e Emma Goldman, ao se invisível de existências estranhas.
voltar contra as relações pactuadas A contrassexualidade, apresentada
na propriedade de um sobre o nesta obra, pode produzir
outro. Traz frescor para as relações desterritorializações do sexo, do
amorosas libertárias e problemas prazer e de qualquer “corpo falante”
para os partidários de acordos que se arrisque, de mente e peito
de poliamor ou das permissivas abertos, por essas páginas explosivas.
liberais dos relacionamentos abertos. E isso é mais do que saudável.
Surpreende que ela não tenha dado Porém, quais modos de resistências
atenção em suas análises às práticas se abrem? Sabe-se que diversas
libertárias. A não ser que, como condutas hoje aceitas nas relações
ressentidas feministas, veja as análises sexuais não foram conquistadas sem
anarquistas restritas ao falocentrismo dor, combate, exposição e provocação
de Proudhon. Daí decorre a pergunta de desassossegos. É preciso ter
incômoda, mas sempre necessária: por cuidado para que a ruptura com a
que chamar isso tudo de manifesto? heteronormatividade não se coadune
Nostalgia de século XIX, ou crença com as práticas de normalização
em formalização de consciência? do normal. Afinal, o monstro de
O Manifesto Contrassexual fala em ontem hoje está bem aninhado e
uma filosofia queer, “é viajar guiada normalizado no seio de sua honrada
só por uma cartografia invisível e, família. Diante do tudo pode ser
na ausência de solução no horizonte, normal resta saber como esses novos
inventar o Arquivo” (p.214). É o sujeitos ou seres fazem e farão em
primeiro arquivo queer publicado favor de novas formas de liberdades
por Preciado e convida qualquer um, libertárias, ultrapassando as fronteiras
qualquer “corpo falante” disposto colonizadas pela ciência, o direito, o
e disponível, a revirar-se e romper mercado e o Estado. Resta saber como
com suas identidades, inclusive as darão forma, a um dessujeitamento
mais reconfortantes e naturalizadas. que goze anarquicamente e livre de
Sua obra pode impactar um leitor sexualidades.
comum; fazer leitores insuportáveis

ecopolítica, 12: mai-ago, 2015

Prazeres inomináveis..., 108-120 120

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