Você está na página 1de 18

Labrys

estudos feministas

número 4

agosto/dezembro 2003

Pedagogias do corpo 1

Carmen Lúcia Soares

Resumo:
A educação do corpo é intermediada por múltiplos saberes e práticas que vão
da higiene às boas maneiras, dos banhos como limpeza às inúmeras pedagogias
que trabalham no adestramento e na modelagem dos corpos. Este texto
propõe-se a discutir alguns aspectos desta educação.
Palavras-chave: corpo, educação, educação do corpo

Uma pergunta inicial poderia ser colocada como ponto de partida


para a escritura deste texto: como mulheres e homens se tornam“educados” e
passam a tratar-se com “boas maneiras” ? (Ribeiro, 1994 :9) Pode-se inferir
que isto não ocorreu de imediato e que foi necessário um lento, intenso,
extenso, meticuloso e obstinado trabalho de constrangimento do corpo para
que isto ocorresse. Foi preciso considerar inadequado satisfazer as necessidades
fisiológicas em qualquer lugar, hora e em público. Não é demasiado lembrar
que até há três séculos e ainda até os dias de hoje, em muitas culturas, ou
mesmo em grupos e classes sociais distintas, (Gonçalves, 2002) pessoas não
tem qualquer pudor em satisfazer as suas necessidades fisiológicas em qualquer
lugar e diante de outros.

Arrotar, escarrar, urinar e defecar em qualquer lugar e hora não


foram sempre consideradas ações que expressam comportamentos não
civilizados e próprios de pessoas “mal educadas”. A cultura material é pródiga
em objetos requintados destinados a essas funções orgânicas, como
escarradeiras e penicos de porcelana, prata e outros materiais nobres. Havia um
certa “naturalidade” nessas ações, mais tarde combatidas e tornadas restritas ao
âmbito não só do privado, mas do individual (Elias, 1994, vol. 1).

Os usos do elemento água também atestam transformações de


costumes e se colam à educação do corpo.“Impossível retroceder às origens
dos elos entre a água e o corpo humano. Na biologia e no imaginário, a água
constitui os corpos, assim como ela se confunde com a essência da vida”
(Sant’Anna, 2002a :100). Seu uso como elemento fundamental de higiene,
por exemplo, nem sempre teve esta finalidade aparentemente única e
universal. Um longo percurso foi percorrido para que a água se tornasse este
elemento central destinado à limpeza do corpo, uma limpeza que, por muito
tempo, e ainda hoje, em diferentes culturas e grupos sociais, é feita “a seco”.

Muito mais do que a higiene, os usos da água, na longa duração,


revelam os divertimentos do corpo, as preliminares amorosas, os jogos
eróticos e o próprio trabalho. Banhos públicos e mistos, lugares onde se
misturavam os corpos e os sexos, por muito tempo, foram uma prática
comum. (Vigarello, 1985). Simultânea ou seqüencialmente a essa prática,
pode-se fazer referência aos banhos terapêuticos nas águas do mar, dos rios ou
das termas, sem esquecer que a água foi e ainda é lugar de trabalho, e sua
aceitação generalizada como lugar de divertimento é recente. (Corbin, 1989 e
1995; Hasse, 1999) “Importante testemunho do corpo, a água se presta aos
mais íntimos e desclassificados serviços e, ao mesmo tempo, aos mais
abençoados e higiênicos atos (Sant’Anna, 2002a :100)
A educação do corpo, portanto, percorre caminhos múltiplos e
elabora práticas contraditórias, ambíguas e tensas. Prescreve, dita, aplica
fórmulas e formas de contenção tanto de necessidades fisiológicas,
contrariando, assim, a “natureza”, quanto de velhos desejos. É onipresente e
manifesta-se em tudo o que envolve indivíduos, grupos e classes. São distintos
atos de conhecimento e não apenas a palavra o que constitui esta educação
diuturna e intermitente. Vejamos alguns aspectos de seus aspectos.

O corpo é educado pelas roupas que são escolhidas, por exemplo,


para meninos e meninas; desde cedo, as crianças do sexo feminino são
constrangidas, corporalmente, pela moda (Sant’Anna, 1994), pelas pequenas
torturas que devem aprender a suportar para tornarem-se adultas belas, para
tornarem-se mulheres que consideram “natural” e normal equilibrar-se sobre
um salto de 10 cm de altura e atender à moda.

As crianças do sexo feminino, desde muito cedo, são educadas a


constranger seus corpos e a usar unhas pintadas, saltos altos, maquiagem,
mechas coloridas nos cabelos e são educadas a consumir moda.
Em matéria publicada no caderno “Equilíbrio”, da Folha de S. Paulo de
09/05/2002, intitulada “Pequenas peruas”, o jornalista Antonio Arruda, que
entrevistou crianças do sexo feminino entre 4 e 10 anos, assim inicia sua
incursão por um universo estarrecedor:

As entrevistadas em questão não são novas top models ou recém


contratadas apresentadoras de programas de entrevistas da TV. Mas crianças
que ainda não são nem meninas-moças. Têm entre quatro e dez anos de
idade, mas se vestem feito mulheres adultas.
Para os pais, esse é um processo natural, uma vaidade imanente, um modo
"atual e inevitável" de ser menina.
[...]O mercado da moda e mídia, por meio de programas de TV e da
publicidade, bombardeiam as famílias com padrões de crianças vestidas de
mulheres e, em muitos casos, com comportamento de adulto.
A beleza torna-se imperativa para a educação feminina. Ela é
resultado de um esforço, de um autocontrole do corpo, de uma educação
cuidadosa, de uma certa predisposição para a tortura, ou, como afirma uma
jornalista francesa, de uma retomada bíblica: “Você ganhará a beleza com o
suor do teu corpo”. (Caviglioli:12)
Na educação corporal de homens e mulheres, outro aspecto a ser considerado
é a arquitetura (Zarankin, 2002), um caso particular de linguagem e,
portanto, de possibilidades concretas de materialização de discursos.
As ruas das cidades educam os corpos de seus habitantes, assim como o
tamanho das casas, dos cômodos, assim como o mobiliário, os objetos, a
luminosidade do ambiente, a ausência ou presença de cores, texturas,
conforto. (Sant’Anna, 2000) O corpo é também educado pela comida, pelas
religiões, pela mídia, pelas diferentes práticas convencionadas como mais ou
menos adequadas para que dele se “cuide”. Falar de uma educação do corpo,
portanto, é falar de um lento processo civilizatório, da lenta e complexa
mudança de sensibilidade, da tolerância ou intolerância por atitudes e práticas
humanas, de uma consideração cada vez mais eloqüente que confere ao corpo
uma importância sempre mais alargada. Ele é o texto que revela trechos bem
marcados da história de uma dada sociedade. 2

Há uma afirmação de Foucault que me parece adequada para pensar


a educação do corpo, qual seja, a de que “cada época elabora sua retórica
corporal”. Portanto, todas as marcas, as formas, as eficácias e os
funcionamentos do corpo transformam-se, mudam com o tempo,
subvertem-se, substituem-se e representações deslocam-se.
O culto à magreza e a obsessão pela atividade física orientada, assim como pela
“saúde perfeita” (Sfez, 1995), talvez possam ser uma nova representação do
corpo. Tomando como exemplo o lugar da gordura, que já foi sinônimo de
opulência e até de saúde (e ainda o é em determinados grupos e culturas),
percebe-se claramente uma nova sensibilidade e tolerância em relação à sua
existência.
A gordura, hoje, converteu-se no grande mal a ser combatido, um
mal que, aliado ao sedentarismo, outro vilão contemporâneo, torna-se objeto
de combate incessante desde a mídia até programas e políticas de saúde
pública. (Fraga, 2002)3 Típico de uma sociedade da abundância, o modelo de
magreza torna-se imperativo e ocorre de cima para baixo. Nele a gordura e a
obesidade são consideradas ruins e até vulgares. Mais amplamente, pode-se
falar em uma “estética da magreza” - que se impõe, sobretudo, às mulheres,
mas não somente a elas - cuja ampla divulgação se dá pelo sistema midiático,
o qual opera uma espécie de “intimação” aos “santuários do culto ao
corpo”4, locais que sempre apresentam alguma “novidade”, seja ela adequada à
estação, ao que está na “moda” em outros países etc.

Este culto do próprio corpo exige sacrifícios: financeiros (gasta-se


menos com roupas e mais para “manter a aparência”) (...) os meios de
comunicação repetem a todo momento “cada pessoa tem o corpo que
merece”, o que leva a um novo sentido de responsabilidade. Esse corpo a ser
produzido, desnudo, na praia, deve estar de acordo com os cânones do
momento. (Vincent,1992 e Fischler, 1987)

A sensibilidade atual enraíza-se em um rompimento daquilo que se


chamou de controle-repressão e na invenção do que se denomina controle-
estimulação, enraizamento este já assinalado por Foucault e que resulta em
sua célebre afirmação: “Fique nu, mas seja magro, bonito,
bronzeado!”(Foucault, 1984) Os índices relativos à composição corporal,
como as quantidades de massa magra e massa gorda, não foram sempre objeto
da atenção de mulheres e homens desde que estes dados estão disponíveis.
Hoje, não só estão em moda como freqüentam até as escolas, como é o caso
de uma pertencente à rede privada em uma cidade do interior paulista e que
mantém um convênio com uma academia de ginástica.

"(...) O Colégio cuida da mente e a Companhia Athletica


cuida do corpo. Desde 1999, as aulas tradicionais de Educação
Física (...) foram abolidas e deram lugar a um programa
completo realizado na Companhia Athletica. O Programa
inclui avaliação física anual, prescrição individual de treino
(voltada para os objetivos de cada um) e avaliação dos
resultados. Faz parte desse programa a premiação do
estudante que obtiver o maior progresso de qualidade de
vida. Cada estudante concorre com ele mesmo, realizando
um exame físico inicial e uma reavaliação após um ano.
Henrique Bastos Lima, 17 anos, recebeu dois pacotes de
viagem (passagem e hospedagem) para Porto Seguro, pois
apresentou o maior progresso entre todos os participantes.
Em um ano, ele perdeu 3% de sua massa de gordura, ganhou
2 quilos de massa muscular e melhorou seu
condicionamento aeróbico em nada menos que 10%. Enfim:
o Anglo cuida da cabeça e a Companhia Atlhetica cuida do
corpo, pois os benefícios da atividade física trazem, como
conseqüência, melhor desempenho escolar”. (Macedo e
Nunes, 2001)

Há aqui uma maneira explícita de educar o corpo para um padrão de


normalidade ora em voga. O modo como se aprende a lidar com o corpo, o
modo como as pessoas são alertadas em relação aos deslocamentos do “mal”,
as classificações estéticas não são mais aquelas que as precederam. Por isso,
talvez, seja sempre importante, como nos ensinam Sant’Anna e Vigarello,
perguntar pela sensibilidade de cada época. No que concerne ao corpo, pensar
nos cuidados a ele destinados, cuidados que abarcam, que congregam
diferentes estratégias para manter o seu equilíbrio e, assim, prolongar a vida.
Perguntar sempre como foi possível o corpo ser o que ele é hoje; como foi
possível construir, por exemplo, esta obsessão pela saúde e pelo sexo, em um
mundo onde tanto uma como outro se tornam nossos déspotas, como sugere
Pascal Brukner.(2000)
1. A educação do corpo

Se somos educados por tudo o que nos envolve, pela matéria da qual
é feito o mundo, conforme as palavras de Pasolini (1990), há formas
específicas, codificadas, cognoscíveis, elaboradas com requinte e junção de
saberes, de práticas e de vontade política que se impõem a cada época e que,
talvez, hoje, o façam com uma velocidade sem precedentes. Na
descontinuidade das retóricas que se elaboram em torno do corpo e de sua
educação, há também permanências, e uma destas é a afirmação de uma
naturalização do corpo e dos fenômenos a ele ligados, e que produzem um
discurso que toma por base referências explícitas às metáforas maquínicas.

Se diferentes épocas elaboram diferentes retóricas e pedagogias do


corpo, parece que a confiança e a autoridade do discurso são maiores quando
apoiadas em argumentos, em explicações e, sobretudo, em provas construídas
por um vasto campo de conhecimentos de natureza física e biológica. Veja-se
a quantidade de artigos que tratam da saúde do corpo veiculados em
periódicos não especializados de grande circulação 5; veja-se o seu conteúdo,
geralmente tratando de uma infindável variedade de regimes alimentares, de
medicamentos, de cosméticos, de chás milagrosos, de ginásticas
rejuvenescedoras, de roupas apropriadas para caminhar, correr, fazer ginástica,
de maneiras de se obter mais prazer no sexo; vejam-se os conselhos de beleza
que rompem completamente com aqueles de outrora 6 e inauguram uma
espécie de tribunal quando apresentam as famosas fotos do “antes” e “depois”
do conselho dado. Aquelas que não o seguirem ficarão feias, gordas, com a
pele espinhenta etc...E não serão amadas, não conseguirão trabalho, ficarão
solteiras. E esse discurso é veiculado diuturnamente, multiplica-se
infinitamente a cada dia, basta olhar as revistas dedicadas ao público
“feminino”. 7

Veja-se por exemplo a quantidade de exames médicos 8 que se


multiplicam e que buscam revelar o que se passa no interior do corpo; veja-se
a sofisticação tecnológica existente para percorrer o interior do corpo ainda
misterioso e cheio de surpresas. Aquilo que antes fazia parte da vida de
comunidades inteiras e as singularizava hoje passa a ser visto como o grande
mal. Esta afirmação pode ser traduzida pelo modo como as pessoas se
alimentam, amam, divertem-se, vestem-se. Para tudo é necessário um
“especialista”, e tudo fica pateticamente igual. O que representava força e
vitalidade transforma-se na causa de inúmeras doenças, não é mais parte do
conjunto de elementos que compõem uma cultura, é algo que se comercializa
separadamente de sua origem e funções. A própria dor, antes um sinal para
que o indivíduo se voltasse para si e escutasse este chamado do corpo, foi
completamente abolida. Não sabemos mais escutar o corpo e atender-lhe aos
chamados, relacionar este apelo à totalidade da vida que inclui a emoção, os
afetos, as mágoas, as angústias, os relacionamentos. Os analgésicos para o
corpo...os antidepressivos para a alma. Novas sensibilidades constroem-se. Mas
talvez seja possível pensar que há um empobrecimento na compreensão deste
corpo apartado do sujeito que o habita. Parece que na época atual cada
momento é portador de uma nova possibilidade de antecipar-se ao mal, que
tanto pode ser uma doença ou sua suposta aparição em algum momento da
vida9, como pode ser a obesidade (hoje considerada uma doença), mas
também pode ser a velhice, este grande mal a ser combatido por múltiplas
armas que são descobertas, enaltecidas e abandonadas com a mesma
velocidade, em uma época em que uma anatomia juvenil se impõe.
O corpo reduzido a um conjunto de células, líquidos, órgãos, músculos,
nervos, reduzido a uma materialidade esquadrinhada por atos de
conhecimento causa surpresas infindáveis e não cessa de mostrar que há
universos que estão mais além e que seus espaços internos, assim como sua
aparência, são também construídos com uma variedade de elementos
invisíveis. As marcas visíveis do tempo constroem-se com lentidão, são os
traços da experiência, contam histórias; talvez apagá-las signifique apagar um
trecho importante da história da sociedade em que se vive. Talvez esse
apagamento seja, de fato, a fonte mais privilegiada para pensar, para escrever
uma história do indesejado no que concerne ao corpo contemporâneo: as
rugas, a idade, a gordura, a flacidez, os cabelos brancos, a lentidão, a velhice.
Tudo isso talvez para se viver em uma sociedade de jovens velozes, brancos e
magros, uma sociedade profundamente fascista.
A ambição de conhecer e de controlar o corpo, de adentrar sempre mais e
mais neste território obscuro e que parece sempre reservar algo a ser ainda
explorado, revela uma compreensão predominante: os discursos sobre a
materialidade corpórea constroem-se ao largo da história e da subjetividade...
As referências teóricas buscadas para a elaboração das retóricas corporais
revelam permanências: para falar do corpo, consultam-se os tratados de
anatomia, de fisiologia, de higiene, de bioquímica e agrega-se a este acervo,
tanto em um passado recente como no presente, uma dose de convencimento
da necessidade imperiosa de colocar o corpo em movimento, sem o que não
há saúde e, nos dias de hoje, também não poderá haver felicidade, e ser feliz
cada dia mais passa a ser uma obrigação. 10

2. Uma nova antiga compreensão da educação do corpo

“Quanto mais quente melhor - Enérgica, a instrutora incita os alunos do


Sports Club de Los Angeles a pedalar mais depressa na bicicleta ergométrica. “Tenho
uma turma supermotivada de indivíduos agressivos e competitivos”, ela diz.
[...]Um corpo bem treinado é uma máquina eficiente e complexa...(idem)
[...]VO2 máx. Expresso em milímetros por quilo de peso corporal por minuto, o VO2
máx. indica a quantidade de oxigênio que o corpo usa durante o exercício. (idem)
[...]Copa do Mundo de Saltos Ornamentais, considerada um ensaio para as Olimpíadas.
Dezenas de competidoras de 30 países estão se aquecendo. [...] Menos de 3 segundos
depois, cada mergulhadora fura a superfície, mal perturbando o espelho-d’água.
“As pessoas adoram ver isso na TV”, comenta Valerie Beddoe, superintendente da equipe
australiana de saltos ornamentais. “

Mas não muitas tem vontade de fazer. É difícil de aprender. Muito


técnico. Dá medo. E leva anos para se atingir o nível de elite”. Além disso,
apesar da graciosidade dos saltos, os repetidos choques contra a água a mais de
64 quilômetros por hora podem ser uma agressão brutal ao corpo.
O esforço intenso, a freqüência das lesões e as pressões da competição - não
só para os competidores de saltos ornamentais, mas para todos os atletas de
elite - podem conduzir a outro problema muito comum: a tentação de
reforçar o treinamento com drogas como esterórides anabólicos-
androgênicos, que geram massa e força musculares artificiais. (Gore, 2000)

O uso indiscriminado do GH, hormônio produzido pela hipófise e


responsável pelo crescimento humano, fornece elementos para a compreensão
contemporânea do corpo tanto do atleta como de qualquer indivíduo
desejoso de adquirir um corpo “sarado”. A produção natural deste hormônio
pelo organismo humano atinge seu auge entre a idade de 13 e 18 anos e entre
os 25 e 30 anos começa a cair. Há cerca de 35 anos começou a ser utilizado
em crianças que apresentavam problemas de nanismo. Nessa época era
retirado da hipófise de cadáveres humanos ou de vacas.

Na última década, passou a ser produzido sinteticamente e passou a


ser chamado de hGH, deixando os consultórios médicos e conquistando
adeptos entre interessados em obter resultados estéticos quando
acompanhado de exercícios físicos e dieta balanceada: redução de gordura,
aumento de massa muscular, sensação de bem-estar. Foi considerado o
anabolizante do verão nas academias de São Paulo, conforme matéria assinada
pelo jornalista Roberto Oliveira, intitulada “A droga do verão” e publicada na
Folha de S. Paulo (28/01/2001). Os prejuízos que pode trazer à saúde são
inúmeros: risco de desenvolver diabetes resistente à insulina, acromegalia, que
é o risco de ter um crescimento desproporcional das extremidades ósseas
como os dedos das mãos, pés e queixo, inflamação e dores nas mãos, câncer
de fígado.

O conteúdo das citações iniciais é bastante representativo de um


modo muito particular de pensar o corpo e traduz os resultados de um lento
processo de especialização de discursos, de investimentos tecnológicos, de
pesquisas científicas, de implementos, de códigos, de regras, de saberes e
práticas. Esse modo de pensar e educar o corpo presente nessas citações revela,
ainda, o aporte teórico hegemônico utilizado para se falar do corpo, para
explicá-lo. Revela, sobretudo, a importância dada a essa compreensão de
educação corporal, a essa concepção de corpo, nem sempre explícita, por vezes
difusa ou sutil, mas que goza, nos últimos 200 anos, de uma singular
consideração, muitas vezes apenas presente em discursos, mas sempre em
pauta.
É inédita a maneira como o corpo começa a ser tratado em fins do século
XVIII, mas sobretudo no XIX. Ele passa a ser o lugar de expressão de
civilização. A ginástica, em um primeiro momento, intervém de modo direto,
explícito, prescreve uma educação física e higiênica para toda a população e
não apenas para o soldado. Ela agrega e busca argumentos científicos para
compor um conjunto articulado de prescrições, para reunir algo que estivera
difuso. Ela atuará de modo mais minucioso e mais explícito. (Ver Vigarello,
1978)

Não bastam mais os manuais de civilidade (Roterdão, 1978), não


basta saber se portar à mesa, em público, cuidar da higiene pessoal, da
aparência. É necessário adestrar (Vigarello, 1978) as forças, economizar
energias, empregar o tempo adequadamente. A força e o vigor devem ser
adquiridos, reorientados; saúde, vigor e beleza resultam deste modo novo de
“cuidar de si”. Um imaginário energético impõe-se e a busca da eficácia no
gesto tem a sua entrada triunfal na educação do corpo. (Vigarello, 2001 e
Sant’Anna, 2001).

Parece que essas idéias, tão bem desenvolvidas por Georges Vigarello
em obras já citadas aqui, constituem-se em permanências no pensamento
contemporâneo da educação do corpo e conferem uma linha de continuidade
a idéias caras ao higienismo vitorioso desde o século XIX, idéias que fundam
esta obsessão pela saúde, pela “performance esportiva”, e que traduzem novos
conceitos de beleza, novos modos de viver e de comportar-se.
Por estas razões, talvez fosse interessante problematizar a ruidosa cultura de
massa e tudo o que arrasta consigo, sobretudo o enaltecimento das práticas
corporais e a ausência, quase absoluta, de questionamentos e de elucidação de
suas contradições e ambigüidades. Pensar, por exemplo, nos problemas
causados pelo doping, sejam aqueles vivenciados muitas vezes silenciosamente
pelos grandes atletas (e pela mídia [Pires, 2002]), sejam aqueles dos
freqüentadores da academia de ginástica do bairro em que vivem.

Análises desta natureza podem permitir ainda que se rompa com a


romântica e perene visão de uma positividade imanente relativa ao fenômeno
esportivo, quer seja como espetáculo de massas, quer seja como prática e
como forma de educar o corpo. Nunca é demasiado recordar que o esporte
moderno é o divertimento aceito e representativo da sociedade industrial,
aquele que se impõe e deseja substituir outros divertimentos que passam a ser
considerados bárbaros ao lado de uma atividade tão ordenada e
“civilizada”.(Ver Lucena, 2000; Mello, 2001 e Adão, 2001)

Se o corpo pode ser pensado como primeiro lugar de visibilidade


humana, como um texto escrito 11 pela sociedade da qual é parte, pensar os
modos como se opera sua educação é pensar nossa própria sensibilidade e vida
em sociedade.

referencias:

Adão, Kleber do Sacramento. 2001. Devoções e diversões em São João Del-


Rei : um estudo sobre as festas do Bom Jesus de Matosinhos – 1884-1924.
Tese (Doutorado) – FEF, Unicamp, Campinas.
Assis, Sávio. 2001. Reinventando o esporte : possibilidades da prática
pedagógica. Campinas, Autores Associados.

Brasílio, Liza Aparecida. 2001.Um certo modo de olhar : a desigualdade do


padrão de beleza entre os sexos.Dissertação (Mestrado em Sociologia) –
Unesp, Araraquara.

Brukner, Pascal. 2000. L’euphorie perpétuelle: essai sur le devoir de bonheur.


Paris: Bernard Grasset.

Caviglioli, François. [s.d.] La dictature de la beuté. Le nouvel Observateur. Les


Collections, n. 21, Le trionphe du corps.

Certeau, Michel de. 1999. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 4.ed..


Petrópolis: Vozes.

Corbin, Alain. 1989. O território do vazio: a praia e o imaginário ocidental.


São Paulo: Companhia das Letras.

Corbin, Alain. 1995. L´Avènement des loisirs: 1850-1960. Paris: Aubier.

Dalcroze, Emille Jaques. 1920. Le rythme, la musique et l’éducation. Paris:


Editions Foetich.

Dantas, Eduardo R.. 2002. O corpo modificado, os discursos da mídia e a


educação multirreferencial.Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-
Graduação em Educação, UFRN, Natal.

Elias, Norbert . 1994. O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio
de Janeiro: Zahar.
Fischler, Claude.1987. La symbolique du gros. Communication. Paris: Seuil, n.
46, pp. 255-278.

Fontana, Roseli Cação Fontana. 2001.“O corpo aprendiz”. Em Yara Maria de


Carvalho e Kátia Rubio . Educação Física e Ciências Humanas. São Paulo:
Hucitec.

Foucault, Michel. 1984. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis:


Vozes.
Fraga, Alex Branco. 2002. O Evangelho do agito: uma forma de ativar o
corpo e regular a vida. Projeto de tese de doutorado apresentada e defendida
no Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da
UFRGS, Porto Alegre ( sob orientação da profa dra Guacira Lopes Louro).

Goellner, Silvana. 2003. Bela, maternal e feminina: imagens da mulher na


Revista Educação Physica. Ijuí:Unijuí.

Gonçalves, Antonio Giovani Boaes .2002. A plasticidade dos usos sociais do


corpo de classes populares em São Luis. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-
Graduação em Sociologia da Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara,
Unesp, Araraquara.

Gore, Rick. 2000. “Limites do corpo: até onde chegar? Revista National
Geographic-Brasil (set.).

Hasse, Manuela. 1999. O divertimento do corpo: corpo, lazer e desporto na


transição do séc. XIX para o XX, em Portugal. Lisboa: Temática.

Louro, Guacira Lopes. 2000. Currículo, gênero e sexualidade. Porto: Editora


Porto.

Lucena, Ricardo.2000. O esporte na cidade. Campinas: Autores Associados.

Macedo, Adriana & Nunes, Mara. 2001."Um casamento perfeito!",


Companhia Athletica Magazine, ano II, n. 6 (nov.), p. 70.

Madureira, Rafael. 1997. Corpo, matéria poética. Monografia (final de curso da


modalidade Licenciatura)- FEF,Unicamp, Campinas.

Mauss, Marcel. 1974. Sociologia e antropologia. São Paulo: EPU/EDUSP, 1974.


(Cap. I- Noção de Técnica Corporal, pp. 211-233).

Mello, Victor Andrade de. 2001. Cidade sportiva. Rio de Janeiro: Relume
Dumará/Faperj.

Nobrega,Terezinha Petrucia. 2001. "Agenciamentos do corpo na sociedade


contemporânea: uma abordagem estética do conhecimento da educação
física", Revista Motrivivência, NEPEF-UFSC, Florianópolis, n. 16 (mar) .
Pasolini, Pier Paolo. 1990. Os jovens infelizes – antologia de ensaios corsários .
São Paulo: Brasiliense.

Pires, Giovani de Lorenzi . 2002. Educação Física e o discurso midiático:


abordagem crítico emancipatória. Ijui: Unijui.

Poirier, Jean (org.). 1998. História dos costumes: as técnicas do corpo. Lisboa:
Estampa.

Prieto, Felipe. 2001. "Del vivir bien al estar bien”. Conferência proferida no I
Congreso Colombiano de Historia de la Educación Física. Bogotá, out.
(tradução livre da autora a partir de transcrição de fita da conferência
proferida).

Ribeiro, Renato Janine. 1994. “Apresentação”. In: Norbert Elias. O processo


civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Zahar.
Roterdão, Erasmo de. 1978. A civilidade pueril. Lisboa: Estampa (publicado
pela primeira vez no século XVI).

Sant´Anna, Denise. 1994. La recherche de la beauté: une contribution à


l’histoire des pratiques et des représentations de l’embellissement féminin au
Brésil- 1900 à 1980. Thèse (Doctorat em Histoire et Civilizations).Université
de Paris VII, Paris ;

Sant´Anna, Denise. 2000. "História do conforto na cidade de São Paulo.


Anos 90" . Revista do Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS ,
Porto Alegre, n.14 (dez.), pp. 162-183.

Sant’Anna, Denise. 2001. “É possível realizar uma história do corpo?” In:


Soares, Carmen Lúcia (org.). Corpo e história.Campinas: Autores Associados.

Sant’Anna, Denise. 2002a. "O corpo na cidade das águas: São Paulo (1840-
1910)". Projeto História. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados
História e do Departamento de História da PUC/SP. São Paulo: EDUC, n. 25,
(dez..), p.100.

Sant´Anna, Denise .2002b. La recherche de la beauté: une contribution à


l’histoire des pratiques et des représentations de l’embellissement féminin au
Brésil-1900 à 1980. 1994. Thèse (Doctorat en histoire et civilisations) -
Université de Paris VII, Paris, 2 v.
Folha de S. Paulo, Caderno Equilíbrio (maio), pp. 8-10.

Sant’Anna, Denise. 2003. "Partilhas e fomes brasileiras" , Revista Glob(AL) ,


Porto Alegre, n. 0.

Silva, Ana Márcia. 2001. Corpo, ciência e mercado: reflexões acerca da


gestação de um novo arquétipo da felicidade. Campinas: Autores Associados.

Sfez, Lucien. 1995. A saúde perfeita: críticas de uma utopia. Lisboa: Instituto
Piaget.

Soares, Carmen Lúcia. 2002."Cultura de movimento". Revista do SESC/SP-


Corpo, Prazer e Movimento (jan.), pp. 15-23.

Vago,Tarcísio Mauro. 2002. Cultura escolar, cultivo de corpos. Bragança


Paulista: EDUSF.

Valéry, Paul.1991. Variedades. São Paulo: Iluminuras.

Vaz, Alexandre Fernandez . 1999. “Treinar o corpo, dominar a natureza: notas


para uma análise do esporte com base no treinamneto corporal”. Cadernos
Cedes (org. de Soares, C.L.), Campinas, ano XIX, n.48 (ago.), pp. 89-108.

Vaz, Alexandre Fernandes. 2001.Memória e progresso: sobre a presença do


corpo na aqrqueologia da modernidade em Walter Benjamin. In: Soares, C. L.
(org.). Corpo e História. Campinas, Autores Associados.

Vigarello, Georges. 1978. Les corps redressé: histoire d’un pouvoir


pédagogique. Paris: Jean-Pierre Delarge.

Vigarello, Georges. 1985. Le propre et la sale: l’hygiène du corps depuis le


Moyen Age. Paris: Seuil.

Vigarello, Georges. 2001.“L’invention de la gymnastique au XIX siècle:


mouvements nouveax, corps nouveau”. In: Vigarello, Georges (org.)
Anthologie de textes historiques. Paris: EPS.
Vincent, Gerard. 1992. "Uma história do segredo?" . In: Prost, Antoine &
Vincent, Gerard (orgs). História da vida privada: da Primeira Guerra aos nossos
dias . São Paulo.Cia.das Letras, v. 5, pp. 311-312.

Zarankin, Andrés. 2002. Paredes que domesticam: arqueologia da arquitetura


escolar capitalista. Campinas: Centro de História da Arte e Arqueologia,
IFCH-Unicamp-Fape

Dados biográficos:

Carmen Lúcia Soares é professora doutora da Faculdade de Educação da


Universidade Estadual de Campinas/SP. É membro do Conseil Genéral de la
Société Internationale de l’éducaion physique et du sport; membro
pesquisador do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte(CBCE) e editora da
Revista Brasileira de Ciências do Esporte(RBCE). Publicou os livros Educação
Física: raízes européias e Brasil. Campinas: Autores Associados 2001, Imagens
da Educação no corpo: estudo a partir da ginástica francesa no século XIX.
Campinas: Autores Associados, 2002 e Corpo e História (org.) Campinas:
Autores

Associados, 2001. Organizou o dossiê “A visibilidade do corpo” , Revista Pro-


Posições. Campinas, Faculdade de Educação-UNICAMP,v. 14, n. 2 (41)
maio/agosto de 2003.

1 As idéias que deram origem ao formato final deste texto foram apresentadas na
conferência de abertura da “I Reunião Anual do PROEFE: por que educação física”,
realizada na Escola de Educação Física da Universidade Federal de Minas Gerais, na cidade
de Belo Horizonte, no período de 28 a 30 de novembro de 2002, sob o título. “A
Educação do corpo e a Educação Física”
2 Nunca é demasiado fazer referência aos textos clássicos de Marcel Mauss, como uma
espécie de fundador de um olhar sobre o corpo como objeto histórico. Ver
especialmente Mauss, 1974.
3 É bizarra esta afirmação, considerando a fome no mundo e, em particular, a fome no
Brasil! Abundância para quem? Para quantos? Para aqueles que inventam o modelo! Ver
Sant’Anna, 2003.
4 Expressão que utilizo para me referir, por exemplo, às academias de ginástica. Ver Vaz,
1999 e 2001.
5 Por exemplo, somente no ano 2002, as revistas Veja e IstoÉ publicaram cada uma
mais de seis matérias sobre temas concernentes aos cuidados corporais como regimes
alimentares, cirurgias, ginásticas etc. Para uma leitura crítica, consultar Dantas, 2002.S
6 Os conselhos de beleza freqüentam periódicos desde muito tempo, porém, não com a
velocidade e intensidade, nem com a quase determinação e ordem dos dias de hoje. Ver
a respeito Sant´Anna, 1994 e Goellner, 2003.
7 Por exemplo, as revistas Boa Forma, Capricho,Nova, Marie Claire, entre outras. Para
uma análise crítica, ver o excelente trabalho de Dantas, 2002.
8 Conforme o filósofo colombiano Felipe Prieto (2001), “(...) vivemos na sociedade
mais medicalizada da história, desde fetos nos medicalizam, ai daquele pobre bebê que
quando não atende, não pára quieto, não se movimenta bem, de imediato se diz que
isto ocorre porque ele não tem estimulação precoce, [...]ai daquele pobre, já maduro, já
adolescente que não realize plenamente sua saúde, pois daí em diante está precisamente
nas garras da eficácia transformativa do corpo, na qual não há descanso possível
nenhum, para nenhum ser humano (...)” .
9 Há mulheres nos EUA que extirpam suas glândulas mamárias para “evitar” o câncer de
mama; fazem mastectomias preventivas! Ver a respeito Silva, 2001.
10 Brukner (2000 :17) (...) "Par devoir de bonheur, j’atends donc cette idéologe propre
à la deuxième moitié du XXe et qui pousse à tout évaluer sous l’angle du plaisir et du
désagrément, cete assignation à l’euphorie qui rejette dans la honte ou le malaise ceux
qui n’y souscrivent pas. Double postulat: d’un côté tirer le meilleur parti de sa vie; de
l’autre s’affliger, se pénaliser si l’on n’y parvient pas.
11 Utilizo aqui a expressão e o conceito de Certeau, 1999 e Poirier, 1998.

Labrys

estudos feministas

número 4

agosto/dezembro 2003

Você também pode gostar